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Vianna Moog

SEPARATISTAS E ANTI-SEPARATISTAS

O que temos a fazer é separar o Rio Grande afirma o promotor, olhos postos no prefeito como a pedir aprovação. E como visse que o chefe aprovava com a cabeça, acrescentou: O Norte é o peso morto do Brasil: só dá seca, impaludismo e febre amarela. Mas lembrando-se de que Geraldo era amazonense, procurou suavizar: Aqui o amigo não repare. Que diabo! Já come churrasco e toma chimarrão.

Está bem disse Geraldo, sem jeito. Não se constranja. Fale com toda a franqueza. Mas que vantagem vê você na separação?

Ora, ficávamos livres...

Não, o Rio Grande só ficava muito pequeno interrompe o secretário. Podíamos incorporar Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Precisamos de São Paulo por causa do café e das indústrias.

Ruben Tauben queria também o Rio de Janeiro. Cidade bonita, a mais bonita do mundo. Tinha um tio que conhecia Constantinopla e não a achara tão bonita quanto o Rio. Ele mesmo podia dar o seu testemunho. No centenário tinha ido lá com o tiro-de-guerra.

Karl Wolff procurava interessar-se, mas não conseguia. Um Brasil do Amazonas ao Chuí, limitando-se ao norte com Mampituba ou com o Oiapoque era-lhe indiferente. Ele mesmo não sabia, nem podia compreender como o Brasil chegava a constituir um Estado independente. Por mais que revolvesse a memória, esta só lhe restituía fatos vagos, imprecisos, esfuminhados, coisas da escola, dispersas, desconexas. Primeiro uma data, 1500, depois um nome, Pedro Álvares Cabral, o Seu Cabral das últimas canções carnavalescas; algumas guerras sem importância contra os franceses e os holandeses; o 7 de Setembro, onde aparecia um príncipe de espada desembainhada, cercado de cavaleiros, à margem de um riacho, como no motivo de tapete que acabara de ver na sala de honra do Centro; a guerra do Paraguai, que o Brasil não teria vencido se não fosse a ajuda dos primeiros colonos alemães; o 13 de Maio, que proclamou a libertação da negrada, uma gente que podia afinal de contas continuar escrava e não precisava andar por aí a faltar com respeito aos arianos. Depois, uma série de revoluções, de correrias, de requisições que só serviam para atrapalhar o comércio e a indústria, fruto exclusivo do esforço germânico.

Pois bem, incorporamos o Rio de Janeiro sentenciou o prefeito, pondo termo à discussão.

Sim, mas até agora ninguém me deu ainda as razões por que deva ser feita a separação insiste Geraldo. Que conveniência vêem os senhores em que o Rio Grande, São Paulo, Santa Catarina e o Rio de Janeiro para fazer a vontade aqui ao nosso amigo Tauben devam constituir um estado à parte?

Por favor, o senhor que é engenheiro e entende de números, então não está vendo logo? E o dinheirão que o Norte representa nas nossas despesas, sem entrar com quase nada para a receita? Veja as obras contra o seca?

O prefeito achava agora que talvez não fosse preciso fazer a separação. Eram todos irmãos. Mas opinava que vinte por cento da arrecadação devia tocar ao município. Não era justo que a Coletoria Federal de Blumental arrecadasse perto de 5.000 contos e não ficasse nenhum tostão desse dinheiro para o município.

Nesta altura o agente fiscal resolve intervir.

Quem paga diretamente são efetivamente os estados do Sul. Mas indiretamente quem entra com grande parte desse dinheiro é o Norte.

Mas, como? exclamou o promotor.

Muito simples. Aqui o Karl, que é o dono de uma fábrica de sandálias, sabe bem disso. Ele compra o selo na coletoria e sela as suas sandálias. E quem são os maiores consumidores dos artigos de Wolff & Filhos?

Karl estava neste momento pensando em que essa riqueza do Sul era produto exclusivo do trabalho alemão. Com os colonos alemães é que tinham aparecido as indústrias no Brasil. E considerava com orgulho a ascensão de Blumental, de mera feitoria há cem anos, até o parque industrial que lhe valia o nome de Manchester do Brasil. Tudo trabalho dos alemães, como dizia o pastor: "O que é o Sul do Brasil deve-o ao trabalho alemão. Se fizermos abstração dos alemães, restará uma mísera carcaça." Percebendo que o fiscal se dirigia a ele, Karl despertou, pedindo que repetisse a pergunta.

Quais são os maiores compradores de sandálias de Wolff & Filhos?

É o Norte responde Karl. Para ele o Norte era tudo quanto ficasse situado além do Mampituba.

Não, eu quero saber quais os estados.

Ah, os estados que mais nos compram são Pernambuco, Ceará, Sergipe, Alagoas e Paraíba. Quase toda a nossa produção é remetida para a nossa filial de Recife.

Compreendeu? volve o fiscal, virando-se para o promotor. Feitas as contas, o dinheiro do Norte, que paga, vai aparecer nos orçamentos como arrecadação de Blumental. O que se dá com as sandálias de Wolff & Filhos, meu caro, dá-se com o vinho, com os tecidos e com quase todos os produtos de exportação dos estados do Sul.

Resta ainda averiguar outra questão acode Geraldo. É se, sem o resto do Brasil, o Sul poderia manter esse grau de prosperidade que ostenta atualmente.

Ah, que podia, podia! assegura o promotor.

Tenho minhas dúvidas. Atualmente a exportação dos senhores para os países estrangeiros é diminuta. O verdadeiro mercado consumidor do Rio Grande é o Norte. Ele é que fica com o excedente da produção do mercado interno. Pergunto: teria o Rio Grande à sua disposição os mercados do país, no dia em que se constituísse estado independente?

O promotor vacila. Geraldo, respondendo à própria pergunta, afirmava que não deviam fazer-se ilusões. Na luta de concorrência contra os similares estrangeiros, em igualdade de condições, e os similares dos demais estados, protegidos então por suas tarifas alfandegárias, o Sul seria vencido. Ficaria sem mercado. Teria dentro de pouco tempo, na própria casa, o colapso pelo excesso, com todo o seu cortejo de crises. E havia mais ainda, acrescenta Geraldo, aprofundando a tese que ia desdobrando. Sob certos aspectos até podia sustentar-se que o Norte é que era o sacrificado.

Como? disseram a um tempo o prefeito, o promotor e Karl Wolff, agora interessado na discussão.

Tomo o caso do meu estado, o Amazonas. O nosso mercado normal é o exterior. Os nossos dois produtos quase que exclusivos são a borracha e a castanha. Vão para a Inglaterra, para os Estados Unidos, para Portugal, de quem, em compensação, não podemos comprar nada.

Não compram porque não querem, ora essa é boa! aparteia o promotor, atirando-se para trás na cadeira.

Não, não compramos deles porque somos obrigados a comprar dos senhores, porque a isso nos força o governo, impondo taxas proibitivas aos produtos estrangeiros que possam fazer concorrência à produção dos senhores. Tomo ainda o caso do vinho e do tecido há pouco lembrado por Armando. Acha o senhor que o vinho do Sul é do melhor do que o vinho português, o francês e o italiano? Que acontece? Por causa do imposto nas alfândegas, para se adquirir uma garrafa de vinho português, cujo custo real poderia ser de um ou dois mil-réis, paga-se três e quatro vezes mais. Com o tecido então nem se fala. A casimira inglesa custa os olhos da cara. E qual o resultado de tudo isso? O Norte, que só teria a lucrar com a supressão das tarifas, porque a regra da reciprocidade manda comprar de quem nos compra, está escravizado ao imperialismo das indústrias do Sul. Somos colônias do Sul conclui Geraldo.

Neste momento Karl Wolff tinha chegado a uma conclusão quanto às idéias do engenheiro: o homem era comunista.

Fazemos o que os outros países estão fazendo há mais tempo pontificou o prefeito delicadamente.

Isso é outra questão. Não quero dizer que se proceda de outra maneira e que haja alguma coisa a retificar. Hoje temos um tal amontoado de erros do passado acumulados pelos povos, à nossa revelia, que não há nada mesmo a fazer, senão acompanhar a marcha do mundo.

E o Norte por que não se industrializa? pergunta o promotor, que não queria deixar a discussão parar num ponto em que se sentia derrotado.

Geraldo não respondeu. Apenas deu de ombros, fatigado.

O promotor sentia agora o terreno mais firme. Vendo que Geraldo recuava, tomou novo impulso.

A prosperidade do Sul vem da raça. Somos um povo mais forte e decidido.

Geraldo permanece calado.

Então lá se pode comparar a nossa gente continuou o outro , uma mistura de açorianos, de charruas, de bandeirantes, alemães e italianos, com a mestiçagem do Norte? Note-se: falei em açoriano. Não confundir açoriano com português... É outra coisa. O açoriano é celta... Não, não me venha defender esse pessoal de perna fina e cabeça chata.

Geraldo quis reagir. Pensou, porém, na cena do bolão e continuou calado. Ruben Tauben, que vinha acompanhando distraído a discussão, quando ouviu falar em portugueses, acordou. Agora podia entrar na palestra. Sabia umas anedotas muito engraçadas de portugueses...

Mas o promotor não lhe deu tempo. Gesticulando com os braços curtos e magros, procurava novos aliados contra o engenheiro:

Aqui só dá isso: essa alemoada forte que você está vendo. E batia amigavelmente no ombro de Karl, que procurava fugir à intimidade. Desta gente não sai Antônio Conselheiro, nem Padre Cícero.

E os Muckers? avança Geraldo, sem poder dominar-se. Mas logo se arrepende. Em lugar de atingir o promotor, ia talvez ferir o irmão de Lore.

Era tarde para recuar. Já Karl Wolff intervinha, para explicar que a história dos Muckers estava mal contada. Fora escrita por um padre. Isso bastava para tornar o livro suspeito. O que ele pretendera fora desmoralizar os protestantes, quando entre os Muckers havia muitos católicos. Um livro parcial, cheio de exageros. Os Muckers não haviam sido o que eu dizia. No princípio fora uma simples luta entre colonos em torno da interpretação da Bíblia e de questões de terra. Jacobina queria reparar certas injustiças. Ele sabia, estava bem informado, tinha amigos, rapazes direitos, descendentes de Muckers. A culpa fora do governo, mandando a polícia para resolver o caso pela violência. Os padres também tiveram muita culpa. Os soldados agiram como verdadeiros selvagens. Não foram só os Muckers que mandaram matar e incendiar. Na picada dos portugueses os católicos fizeram o diabo. Acabaram om os protestantes. Mas isso tudo nada seria se não fosse a polícia. Os Muckers apenas se defenderam. Bem se podia ver que os colonos alemães por si mesmos não seriam capazes de barbaridades. Uma vergonha mandar prender os chefes e trancafiá-los nas cadeias de São Leopoldo e Porto Alegre, só porque dirigiam as cerimônias religiosas do Ferrabrás, umas festas inocentes de cantos e orações e leitura da Bíblia! E não havia nada que justificasse a remessa para lá de tantas forças do exército com o fim de chacinar os colonos, como bichos. Degolamentos à vontade. E o pior é que a história nunca seria contada direito. Os que restavam eram poucos e não podiam falar. Ele não queria fazer comparações... Mas o que se dissera contra os Muckers era mais ou menos o que os judeus contavam contra o nacional-socialismo. Pura mentira. Exagero. Eles é que envenenavam tudo. Hitler era um homem muito bom.

Armando aprestava-se para contrapontear, quando da porta Ben Turpin vem avisá-lo e a Ruben Tauben de que a roda já se tinha formado e só estava esperando por eles.

Karl Wolff sentiu um alívio. Já era quase meia-noite. Uma noite perdida, pensou. Podia ter ficado em casa, no seu canto, ouvindo no rádio as estações de Berlim. Mas sua mãe é que não devia saber onde estivera. Na certa havia de escandalizar-se quando soubesse que entrara no Centro, aquele antro de jogatina, e passara toda uma noite conversando com tal gente. Agora, felizmente, chegara a oportunidade de retirar-se.

Armando quis pagar a despesa, mas o prefeito não deixou. Não, aquela mesa era dele.

À saída, Becker, todo mesuras, respondeu aos boas-noites, de acordo com a hierarquia: para o prefeito e o fiscal foi uma saudação enfática, calorosa. Para Karl Wolff um pouco mais discreta. Para Geraldo, o secretário e o promotor, uma resposta cansada.

Quando ganharam a praça, o prefeito chega junto de Geraldo e diz:

É preciso preparar os homens da hidráulica. As eleições estão chegando.

Geraldo, sem saber o que havia de responder, apenas pôde murmurar, vago:

Pois não, não há dúvida.

Karl Wolff se aproxima para despedir-se.

Então estamos combinados. Sábado ou domingo, se não chover, podemos fazer a nossa partida.

Um vento forte levanta a poeira da rua. O grupo se dispersa. Ruben Tauben e o fiscal tomam o rumo do Centro. O major, o secretário e o promotor pendem para o ângulo direito da praça. Karl Wolff encaminha-se num passo largo e batido para o fim da rua. O engenheiro se recolhe ao hotel.

(Um rio imita o Reno, capítulo 7, 1938.)

 

GERALDO

Geraldo não consegue dormir. Faz várias tentativas para recomeçar uma leitura interrompida na véspera. Impossível. Não pode prestar atenção. Já fumou vários cigarros. Está descontente consigo mesmo, irritado, nervoso. O calor o incomoda: perturba-o a zoada dos mosquitos. Vira-se na cama de um lado para o outro e o sono não vem. Pesa-lhe a cabeça. Faz um derradeiro esforço para pensar em coisas agradáveis. Inútil. Impossível fugir de si mesmo. A discussão lhe fizera mal. E ele, afinal, se conduzira como um covarde. Para não comprometer a sua situação, o seu emprego, umas relações que para ele não tinham significação, deixara insultar a sua terra, a sua gente.

Na rua sopra um vento forte, uma nuvem de pó invade o quarto. Os fios da iluminação assobiam, parecem vaiá-lo. Longe, rola o bolão. De repente Geraldo lembra-se do pai, que fazia parte dessa sub-raça que ele deixara impunemente insultar. Preguiçoso, o seu pai... E as imagens daquela vida de heroísmo anônimo perpassavam-lhe pela memória. Primeiro via-o na sua fuga do Ceará, acossado pela seca. Tinha sido num ano em que as chuvas não vieram e a soalheira pintara de negro os campos. Via o pai no meio de uma legião dos caminhos esturricados, em demanda do litoral, cruzes toscas e anônimas balizando o roteiro daquela peregrinação de fantasmas. Do litoral, campo de concentração de todas as misérias do sertão, tomara o rumo do Amazonas, que era o primeiro destino que lhe apresentaram e que meio atonizado pelo sofrimento teve de aceitar. Embarcou como os outros para a Terra da Promissão, de que lhe falavam com hipérboles de entusiasmo os primeiros paroaras. Atravancavam o navio como o gado para o corte, em bandos consignados à morte, "com carta de prego para o desconhecido".

O vento sopra com mais intensidade. As árvores se agitam. A orquestração dos mosquitos não pára. Os sapos coaxam. O bolão continua a rolar.

Geraldo vê agora o pai em pleno seringal. Ao seu lado uma mulher bronzeada, de olhos brandos, cabelos corridos, um belo exemplar de índia descendente dos nenhagaíbas. A borracha a acumular-se no barracão do centro. A índia a tecer com suas mãos de artista redes de tucum, franjadas, para dá-las de presente aos viajantes, redes que ele depois foi encontrar nas vitrines do Rio de Janeiro, por preços exorbitantes.

Geraldo ouve mentalmente a voz do promotor, fazendo o elogio de Paul Wolff: "Comprar quando toda a gente quer vender, vender quando toda a gente quer comprar." Ah, sua mãe não entendia disso! Trabalhava porque amava o trabalho, dava tudo quanto fazia, apesar das brigas do pai. Era do seu feitio, que é que ia fazer?! O mesmo com os vasos de cerâmica, a maravilhosa cerâmica marajoara, cuja arte fazia o assombro dos etnólogos.

Agora era a voz mansa da mãe que escutava:

Para que vender, meu velho? Pois se não precisamos...

De fato, não precisavam. Era o tempo áureo da borracha. O paroara não havia enganado o pai. O Amazonas era o Eldorado. Todos chegavam, viam, venciam. Da Europa nenhum país deixou de se representar sob o sol dos trópicos. Os portugueses tinham sido os precursores. Vieram os ingleses, os franceses, os alemães, os italianos, os gregos. Do Oriente, os sírios não podiam faltar. Onde há uma feira, lá estão eles. Do Norte a imigração acudiu em massa. O inglês foi regiamente pago para construir o porto de Manaus. Os demais europeus consagraram-se às operações da bolsa. O nordestino embarcou para o seringal. O sírio saiu em busca da boa-fé do caboclo. Todos ganhavam, menos este, para quem riqueza ou pobreza são indiferentes.

Mas em meio daquela dobadoura, lá veio pelo tráfego a notícia terrível: a desvalorização da borracha. Ninguém queria dar crédito. Não pode ser, pensou o pai, pensaram todos. Chegou a confirmação. Será apenas uma crise como as outras. A castanha irá dando para a despesa. Em verdade, ninguém podia admitir que houvesse motivos para maiores alarmes.

O tempo que o pai malbaratava em fazer conjecturas, os mais prudentes, os estrangeiros, empregavam em atividades objetivas, arrumavam suas contas, encerravam os seus balanços, apuravam o saldo tranqüilizador e lá tornavam para a terra de origem, despreocupados das incertezas do futuro. Todos os anos continuavam a voltar, a fugir, os abúlicos tardiamente despertados pela evidência persistente da catástrofe, ainda de olhos voltados para trás, como a mulher de Lot, teimosa na esperança de que retornassem ao Amazonas os dias opulentos do passado. Dos arianos já não havia ninguém voluntariamente vinculado à terra. O regresso era o pensamento geral. Ficavam os que ainda não tinham liquidado as suas contas, os que não conseguiam meios de embarcar e alguns heróicos abencerragens na esperança da revalorização do ouro negro. Mas uma pequena legião condenou-se irremediavelmente a ficar. Nela estava o seu pai. Eram os grandes proprietários territoriais. Tinham vindo do Ceará, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Sergipe, do Maranhão, do Piauí. Tinham sido dos mais trabalhadores, dos mais tenazes. E muitos deles, como o pai, conservaram-se sóbrios numa época tocada do delírio da prodigalidade e do esbanjamento. As sobras dos seus lucros não eram imobilizadas nas caixas-fortes das casas de crédito, a render juros irrisórios em confronto com a renda oferecida pela terra. Acrescendo aos poucos os seus domínios, fizeram-se senhores absolutos de grandes latifúndios. Mandaram a família residir com opulência em Manaus. Os filhos foram estudar em Coimbra, em Londres, em Paris, no Rio, no Recife, em São Paulo. Como lhes faltasse um título, foi-lhes reconhecido pacificamente o de coronel. A fúria dos iconoclastas ampliou-o depois para "coronel de barranco".

Com estes a crise foi implacável. Golpeou-os em cheio. Nos primeiros tempos ainda agüentaram com as reservas disponíveis. Mas logo se viram obrigados a desocupar o palacete de Manaus. Iam vendendo tudo. Os filhos tiveram de abandonar os ginásios, as escolas. Muitos deles, inconformados, ganharam o mundo largo. No entanto, ele, Geraldo, fora dos poucos que o sacrifício dos pais permitiu continuar os estudos e conquistar o diploma. E, para mantê-lo, ia vivendo dos escassos resultados da borracha e da castanha, casaco roto, cerzido à gola, esse homem que outrora, se quisesse fazer como os outros, podia dar-se ao luxo de acender o charuto em notas de quinhentos mil-réis, porque era dono de terras extensas como países.

Geraldo relembra agora as cartas do pai, quando pensava em retirar dinheiro de empréstimo nos bancos, para facilitar-lhe uma vida mais folgada. Considerara mesmo na possibilidade de vender tudo quanto possuía. O ridículo das ofertas é que o tinham feito desistir. O seu feudo já não era considerado suficiente garantia para o levantamento de alguns contos de réis sob hipoteca. Cogitou ainda da agricultura. Um sábio alemão havia profetizado que a Amazônia seria o celeiro do mundo. Mas a agricultura era a fixação, o retorno à terra e exigia braços. Apelou para o caboclo, que sacudiu os ombros com displicência. Não pôde sequer pensar em trazer agricultores de fora. Para o Amazonas só vinham agora alguns ingleses esquisitos que faziam coleções de tudo, os judeus compradores de pele e os sírios do regatão. Numa região em que a natureza se concentrara para resistir, o homem se dispersara para agredi-la. Lá, onde cem lenhadores trabalhando com afinco não eram bastantes para dar cabo da mata compreendida no círculo de uma única estrada de seringal, passou a viver um indivíduo isolado. Os velhos agricultores, iniciados nos segredos do transplante das culturas exóticas para o meio equatorial, também tinham se dispersado pelos seringais, com o seu cabedal de experiência. Eles seriam, pensava Geraldo, mais úteis à planície do que todos os sábios que a percorreram. Agora passava em revista os homens de ciência que estudaram a região. Wallace e Hart perquiriram-na como geólogos, para concluir que ela surgiu da mesma convulsão geogênica que sublevou os Andes. Martius foi encarregado de estudar-lhe o mundo botânico, mas o contato com os índios levou-o a desbravar o recanto etnográfico. Bates consumiu cerca de nove anos nas imediações de Tefé em classificações vegetais que deveriam servir a Darwin de base às suas teorias. Nenhum deles tinha saído dos limites de sua especialidade. E a arte e a ciência do cultivo da terra na Amazônia continuavam ainda um capítulo por escrever. Os homens que sabiam o segredo da adaptação das culturas às terras da planície deixaram-se arrastar com os outros, atrás das árvores fabulosas, que sangravam um sangue branco, como os deuses. Por lá ficaram.

Mas, já agora, se seu pai quisesse retomar a agricultura, não teria outro caminho senão recomeçar, sem o apoio dessa experiência que os livros não ensinavam e que estava perdida para sempre. Ele, o barão feudal, o senhor da terra, era hoje escravo dela. Estava condenado a ficar, esgotando a existência entre fantasias e desesperos. A possibilidade da revalorização da borracha havia de ser sempre o tema de suas cogitações. Estava condenado a viver dessa esperança. Dentro dela, encastelado nela, ao lado da companheira resignada, gastando suas últimas reservas de energia. Um lutador obscuro e formidável. Da sua passada opulência ficara-lhe apenas a terra imensa e desvalorizada, o título ferreteante de "coronel de barranco" e um filho doutor, que não sabia defendê-lo.

Por mais que fizesse, Geraldo não conseguia tranqüilizar a consciência. A palavra covarde o apunhalava.

" Não, não me venha com essa gente de cabeça chata e perna fina." O insulto do promotor ali estava para remoê-lo por dentro.

Todos defendiam a sua raça. Todos reconheciam como sagrados os seus compromissos de sangue. O velho Cordeiro jurara ódio aos alemães. O velho Treptow jurara ódio aos brasileiros. Eram todos solidários com sua gente. Até o major talvez não procurasse fugir à responsabilidade, vacilando entre o governador e o presidente: tratava-se apenas de conciliar dois homens do mesmo sangue, da mesma terra. Karl Wolff defendia os Muckers, defendia Hitler, defenderia com bravura os seus dolicocéfalos loiros de olhos azuis, contra tudo, contra todos, contra os fatos, contra a própria evidência. Que desprezo não devia nutrir por ele, Geraldo, ao ver o seu recuo, a sua covardia. O próprio Ben Turpin, um vagabundo, um aventureiro sem princípios, um fanático da liberdade, ficava com Mussolini, porque Mussolini era de sua raça, do seu povo. Para isso não precisava de razões.

Só ele, Geraldo, um covarde. Que estranha natureza a sua, que lhe não permitia odiar em nome dos outros! Ter outras simpatias e aversões que não as suas? Os próprios ódios do pai nunca pudera endossá-los. O velho odiava os regatões, seus concorrentes desleais. Ele os amava, em segredo. Seu pai movia guerra de morte ao dono do seringal vizinho, porque no fundo o achava parecido com seu pai. Eram iguais na ação e na violência. Sim. Era o sangue dos nhengaíbas que lhe corria nas veias. Como sua mãe, não distinguia entre brancos, judeus, sírios, pretos e caboclos. Aceitava ou repelia instintivamente a cada um individualmente, mas não sabia compreender um ódio universal contra um povo, uma raça. Mas com quem estaria a razão e a justiça? Quem andaria certo? Devia ser os outros. Eles eram a maioria. Quem não aceita os ódios e as simpatias dos seus antepassados deve ser covarde. Mas, então, ninguém era como ele? Talvez Lore pensou Geraldo. Quis duvidar, mas não pôde. Sim, Lore pensava como ele. Talvez não gostasse de judeus, mas a sua simpatia não ia ao ponto de querer queimar as obras de arte que eles produziam. Quando chegariam os tempos em que a humanidade se decidisse a cancelar os ódios do passado para começar uma vida nova?

Os mosquitos continuam o seu coro. O vento amainou. A chuva começa a cair. Geraldo já não ouve a trovoada do bolão. A chuva bate nas vidraças. Ele se lembra que desejara a chuva, intensamente. Vieram-lhe à memória os pardais. Eles talvez grasnavam para que o canto dos artistas não os humilhasse. Tinham também entre si compromissos de sangue. Lembrou-se ainda da estátua coberta de incrustações de pardais. Talvez aquela chuva lavasse a estátua. Não, não lavava. Precisava um chuva mais forte, uma rajada de água. Aquela era muito fraca. Batia de mansinho na vidraça. Apenas descarregava a eletricidade da atmosfera. Ele já podia respirar mais aliviado. Pensava em Lore. Ela lhe ocupava quase todo o campo do pensamento. Agitava-se contra um fundo confuso e móvel: florestas tropicais, o rio imenso, vultos esfumados.

A madrugada encontrou-o perdido no meio de seus fantasmas. E, embalado ao ritmo morno desses pensamentos, Geraldo adormeceu.

(Um rio imita o Reno, capítulo 8, 1938.)