Senhores acadêmicos,
No limiar de 1930, no dia em que colavam grau no salão de honra da Faculdade de Direito de Porto Alegre os bacharelandos do ano anterior, um jovem advogado, com a única e incerta, mas para ele imensa autoridade de orador da turma, fazia publicamente a sua primeira profissão de fé. Era, estou bem lembrado, um hino entusiástico aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que, sob o lema recente “Representação e Justiça”, constituíam o acento tônico da época. Liberdade, Igualdade, Fraternidade! Dir-se-ia que a poeira doirada que se tinha feito montanha através dos séculos, a tímida luz bruxuleante que se convertera em clarão do incêndio – não porém incêndio que destrói, senão incêndio que ilumina as bandas do futuro – o anseio indeciso que fora programa de apóstolos, cruzada de mártires, estava em vésperas de converter-se em ideal de todos os homens de boa vontade.
Não eram somente os visionários os que pregavam o seu advento sobre a terra; não eram somente os pontífices arrojados do progresso os que anunciavam o dia em que o homem não mais seria o lobo do homem, em que as raças baixariam o nível dos seus prejuízos e as fronteiras, em lugar de advertências ameaçadoras de soberanias vigilantes em pé de guerra, haviam de transformar-se em meros traços de finalidade geográfica, para que um oceano de fraternidade inundasse a terra confundindo todos os homens num imenso e largo amplexo.
Assim falou, com a infalibilidade dos seus 23 anos, o jovem orador da turma de bacharelandos da Faculdade de Direito de Porto Alegre, naquela noite de janeiro de 1930. Assim provavelmente falaram em Recife, em São Paulo, na Bahia, em Belo Horizonte, na Metrópole, todos os oradores de turma daquele ano que se abria para o Brasil sol: o signo dos grandes entusiasmos e das grandes esperanças.
Quem os ouvisse e se deixasse contagiar por esses arrebatamentos haveria de presumir estivesse bem próximo o advento dos três substantivos mágicos da Revolução Francesa e não hesitaria mesmo em considerar o velho sonho milenar de confraternização universal como algo próximo a cumprir-se.
Destino de uma geração
Quinze anos, quinze anos que tiveram a densidade de séculos e a velocidade dramática das épocas em que se faz história, passaram sobre esses entusiasmos e sobre essas esperanças.
Que foi feito dessas esperanças? Que foi feito desses entusiasmos?
Basta ter um pouco de sensibilidade para sentir, um pouco de emoção para se comover, um pouco de nervos para vibrar, para compreender, na enormidade de sua significação, o que tenha sido o drama dessa geração.
Pobre geração! Foram bem duros os dias que teve de enfrentar.
Por mais que se procure retrospectivamente, ao longo dessa larga estrada que guarda o segredo das idades, uma época de maiores aflições e de maiores desmoronamentos no recesso das almas, poucas encontraremos que lhe sejam comparáveis.
Bíblias, dogmas, constituições, sistemas, programas, imagens e idéias, homens e ídolos em cujo culto plasmamos a nossa formação, tudo foi atingido pela subversão, tudo andou ameaçado por esses ventos maus que espalharam por toda a parte, entre agonias, estertores e ranger de dentes, os germes do desespero, do desânimo e da destruição. Foram dias atribulados em que só se sentiriam felizes os amoucos da força, os apolíticos, os analgésicos, os indiferentes, enquanto os que pensavam e consideravam e meditavam os problemas contemporâneos haviam de viver na tristeza dos que tateiam nas trevas em busca de rumos salvadores.
Este foi, pelo menos, o destino que a vida reservou ao jovem orador da turba de bacharelandos de 1930. Elejo-o a ele e não a outro, no retraçar o itinerário médio dessa geração, não porque ele tenha sido mais importante do que os outros, ou porque os seus dramas e os seus desalentos apresentem mais intensidade do que os dramas e os desalentos dos seus contemporâneos. Nada disso.
Trata-se aqui de menos. Trata-se apenas de depor com conhecimento de causa sobre um assunto em que, já agora, não se deve depor de outro modo. De resto, como evitar esse personagem, se nunca pude fugir ao seu convívio e à sua por vezes incômoda companhia? Por mais que buscasse afugentá-lo de mim, por mais que o maltratasse com julgamentos implacáveis, nunca me deixaria em paz, jamais me concederia grandes intervalos de trégua. Os seus anseios haviam de ser os meus próprios anseios, os seus desalentos os meus próprios desalentos, as suas aspirações as minhas próprias aspirações.
Ah, as aspirações do orador de 30!
Se todos os moços dotados de espírito público, ao deixar os bancos da Faculdade, nutriam a vaga esperança de influir um dia nos destinos do país através de mandatos populares, ele tinha para isto uma razão considerável: nenhum dos oradores de turma da Faculdade de Direito de Porto Alegre falhara na vida pública. Foram quase todos, senão todos autênticos triunfadores. Nada demais, portanto, aspirasse também ele vir a figurar mais cedo ou mais tarde no rol dos ministros e secretários de Estado, senadores e deputados que a Faculdade preparara para a vida pública. Nenhum falhara; ele também não falharia. Custasse o que custasse, teria de honrar as tradições de sua Escola.
Havia, é certo, a possibilidade de fazer carreira em outras modalidades da vida pública: na Magistratura, na Diplomacia, na cátedra e até mesmo na Literatura. Mas, em verdade, o nosso bacharel tinha as suas prevenções, senão contra a literatura, contra os literatos. A falsa imagem de homens a viver em torres de marfim, fora da realidade, guedelhudos, punhos arrancando das mangas do casaco, a gola do sobretudo alastrada de caspas imemoriais tornaram-no quase alérgico para o termo. Por isso amava a literatura em segredo. E, se lia como um desamparado, para desespero dos que lhe policiavam a formação e justamente se alarmavam com esta sua tendência para a inutilidade social, no meio a um tempo burguês e puritano em que teria de desenvolver a sua atividade, fazia-o menos pela Literatura em si mesma, do que com o propósito de servir-se dela como instrumento de sua carreira política. Porque antes e acima de tudo o nosso orador queria ser homem público. Presidente ou ministro, senador ou deputado, prefeito ou conselheiro municipal, mas homem público em todo caso.
Portanto, o que ele tinha a fazer não era recolher-se a torres de marfim, mas pôr-se em contacto com o mundo e com a vida, considerar os negócios públicos como um prolongamento dos seus próprios negócios, contribuir de um modo ou outro modo em favor dos interesses comuns. Demais, a vocação da vida pública é que estava de acordo com a sua índole e os seus pendores. Daí as lutas em que andou empenhado. Daí as derrotas que teve de sofrer. Daí, enfim, a prisão, o exílio e o ostracismo sempre a lhe rondarem o rasto dos passos.
Exílio e ostracismo
Mas, fato estranho na sua singularidade: hoje ele não maldiz nem o exílio, nem o ostracismo. Antes egoisticamente os abençoa. Bendito exílio, abençoado ostracismo! Um e outro, impedindo-o de aspirar a situações eletivas, fizeram-no, em compensação, descobrir do outro lado de si próprio um dos aspectos do seu temperamento até então apenas vagamente entrevisto, mas sempre represado: a vocação literária. O bem que lhe fizeram os homens, as situações e os acontecimentos que inconscientemente o ajudaram a descobrir esse mundo de infinitas belezas e possibilidades que ele teimara em desdenhar. Banido, proscrito, depois da descoberta desse outro lado de suas possibilidades, tudo havia de mudar. Agora, quando entrava em seu gabinete de leitura e de trabalho, nos permanentes ou nos que as circunstâncias improvisavam, ninguém mais feliz do que ele, nem mais rico, nem mais opulento, nem mais importante, nem mais poderoso. Porque nem César com todo o seu poder, nem Creso com toda a sua riqueza conhecerão jamais o que seja o júbilo do escritor, o grande como o pequeno, nos momentos fugazes da criação.
Escritores e escribas
Pena é que esses momentos sagrados nos homens de pequeno talento durem tão pouco e a vida cobre tão caro as suas dádivas. Dando ao escritor sensibilidade para gozar a aventura das próprias criações, comunica-lhe, em troca, fraquezas que o expõem às paixões e ambições humanas a que as naturezas perfeitamente equilibradas são imunes. Passada a hora sagrada da criação, o escritor é um homem como outro qualquer, exposto mais do que ninguém aos assaltos dos demônios exteriores e sobretudo aos do pior de todos os demônios: o demônio interior.
Astuto, chicaneiro, malicioso e corruptor como é, em confronto com o demônio interior, chega a nos parecer simplório o velho diabo das fábulas medievais. Ao lado das sutilezas, chicanas, nuanças e sofismas daquele, faz este bem triste figura.
O tempo que ele leva a corromper o velho Fausto! E como se consome no conto “O Mandarim” para induzir a plástica resistência da vítima a apertar o botão fatal! Onde a necessidade daquela argumentação erudita para quem não tinha as virtudes dos monges da Tebaida? Em verdade, herdar a fortuna de um mandarim que se não conhece, que nunca se viu, um mandarim velho doente e encarquilhado com a condição de dar-lhe morte instantânea e suave lá nos confins da China, a milhares de léguas de distância, com a mais tranqüila certeza de impunidade, nem chega mesmo a constituir um problema em nossos dias. Em se tratando de mandarins e de milionários, por muito menos e mais complicadas condições haveria gente hoje capaz de hecatombes.
Menos exigente é o demônio interior. A arte feiticeira com que se aproxima de suas vítimas! Como sabe falar-lhes à vaidade, à ambição, à cobiça! Como sabe oferecer mundos inenarráveis em troca de pequenas transigências e capitulações!
Ai, porém, dos que capitulam! Ai dos que transigem! Nunca mais conhecerão os verdadeiros estados de graça das horas de criação. Continuarão com a técnica, o virtuosismo, a habilidade, mas perderão a chama interior. Tudo lhes será perdoado, menos a transigência com as suas verdades ou aquilo que eles acreditem no fundo do coração serem as suas verdades essenciais. Lá fora poderão ser capazes de todas as transigências, tolerantes com os outros e consigo mesmos, mas quando se recolherem à mesa de trabalho hão de sacudir, com a poeira das vestimentas, a poeira das fraquezas e revestir-se de uma dignidade sacerdotal. Do contrário estarão perdidos. Já não serão escritores. Serão escribas.
História de uma resistência
O nosso jovem escritor conheceu – se os conheceu! os assaltos do demônio interior. Mas, tenho a impressão, ou talvez a ilusão, de que soube resistir com alguma galhardia. Quando perguntaram a Sieyès o que fizera durante a Revolução Francesa, ele limitou-se a responder: Eh, bien, j’ai vécu! Porque viver naqueles difíceis tempos já era alguma coisa. Não, não creio que o orador de 30 tenha apenas vivido. A prova aí está nos seus livros. Muitas vezes terá pecado por escrever com prudência, outras por esmaecer cores e tintas que desejava carregadas, mas no que tange com suas verdades fundamentais, presumo que se tenha conservado de certo modo igual a si mesmo. Sorrirá hoje de muitas de suas demasias, já não sustentará com a mesma ligeireza e desenvoltura teses e julgamentos que lhe pareciam definitivos e acabados.
Não tem, porém, por que renegar os livros que escreveu. Secos e áridos como são, arrancados linha a linha, página a pagina, capítulo a capítulo, ao território de uma imaginação rebelde à ficção e à fantasia, se não chegam para compor a história de uma resistência heróica nos anos de exílio e de ostracismo, bem ou mal constituem a crônica de uma resistência.
Como não lhes reconheço outros méritos, apraz-me acreditar tenha sido esse o título que mais legitimamente o tenha recomendado à vossa ilustre e cobiçada Companhia.
Eis por que hoje aqui me encontro, srs. acadêmicos, um pouco atordoado, alongando-me neste exórdio, menos pelo prazer de falar de mim mesmo, do que pela necessidade de convencer-me da perfeia identidade entre o acadêmico de agora e o orador da turma de bacharéis de 1930. Para quem, como eu, não acredita no mito do homem isolado, e na máxima ibseniana de que o homem mais forte é o homem mais só, mas sim nos prodígios da cooperação e da solidariedade humana, na ventura da convivência e da compreensão, a investidura que ora me conferis era o máximo a que, como escritor, podia aspirar.
Sentido de uma data
Como se me não bastasse a satisfação da investidura e a honra de substituir nesta Cadeira a Alcides Maya, a maior glória literária do Rio Grande do Sul, quis ainda uma estranha coincidência que o dia de tão esplêndido triunfo, 20 de setembro de 1945, ocorresse numa data duplamente grata ao meu coração.
Vinte de Setembro, dia memoravelmente associado à República de Piratini, a mesma que inscreveu em sua bandeira a legenda “Liberdade, Igualdade, Humanidade” como que antecipando a verdadeira e permanente vocação do Rio Grande contra o centralismo, a tirania e o absolutismo, assinala o momento mais alto na história do meu querido Estado natal.
1945 é o ano que marca o centenário de nascimento de Eça de Queirós e bem sabeis o que isso significa para mim e para a minha geração.
Cansado, como todos nós, do prosaísmo do nosso tempo, que assistia entre desesperos e desencantos ao desmoronar do velho edifício social do Ocidente, solar de séculos que abrigou gerações e gerações mais felizes do que a nossa, sem atinar com o modo de salvá-la, Miguel de Unamuno teve um dia esta idéia genial: propôs à cavalheiresca Espanha uma cruzada ao túmulo de D. Quixote, certo de que ao influxo do seu idealismo incontaminado ainda seria possível fazer alguma coisa e grandes coisas. O que Unamuno pedia é que se fizesse alguma loucura, mas uma loucura capaz de escandalizar os acomodatícios que não reagem contra a nova ordem que ameaçava tragá-los, precisamente pelo seu irredutível apego às atitudes prudentes e sensatas.
A nossa geração, assim o creio, fez melhor. Já não se tratava só da Espanha. Tratava-se de todo o Ocidente. Precisávamos de alguém que, tendo o idealismo de D. Quixote, não fosse isento de malícia e astúcia. Para isso só Eça de Queirós. Invocamo-lo em nossas horas amargas e ele nunca nos faltou. Acudiu sempre ao nosso apelo, ensinando-nos e orientando-nos. Quando desesperávamos de uma instituição, ele nos aconselhava: “O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta de uma instituição, e a instituição alui-se.”
Então rimos, e isso nos salvou. Quando parecíamos imprudentes, pagando caro as nossas temeridades, ele nos confortava: “Para ser ponderado, correto e imóvel há tempo de sobra na velhice.” Enfim, nunca nos decepcionou. Esteve sempre à frente de nossa geração, que os vivos já não sabiam ou não queriam dirigir. Só uma coisa não quis ou não pôde ensinar-nos: o segredo do seu estilo.
O estilo de Eça! Aquilo é a um tempo Música e Geometria, Dança e Poesia, Poesia e Arquitetura. Fluido, claro, translúcido, vitamina do macio como berceuse e capaz também das ressonâncias do bronze, submisso a todos os gêneros, nunca houve, em tempo algum, à disposição de um artista, mais maravilhoso instrumento de realização de beleza e de vida no espaço bi-dimensional do papel.
Ai de mim, que não consigo com a minha rude prosa de ensaísta alçar-me à altura do meu biografado. Ai de mim que não conseguirei celebrar condignamente a glória dos meus antecessores nesta Cadeira em que venho quebrar a harmonia da continuidade.
Astros e planetas
Isto, entretanto, a pouco monta. As Academias, como já o proclamava o velho Anatole France, são como os sistemas planetários, com astros e planetas, onde tudo brilha de um brilho próprio ou de empréstimo, comunicando a muitos dos seus membros a importância que recebem de outros. Estes vivem da própria luz e do próprio calor. Aqueles da luz e do calor que lhes vêm dos astros.
Minha posição nesta Casa – não me faço ilusões – está de antemão demarcada: serei planeta. Um planeta que vem nutrir-se da luz e do calor que espero nenhum de vós há de me regatear, da luz e do calor que me virão dos meus antecessares, estes sim, legítimos astros cuja luz repercute na terra muito tempo depois de desaparecidos, que todos eles, tanto Basílio da Gama, o patrono da Cadeira, como Aluísio Azevedo e Alcides Maya, seus primeiro e segundo ocupantes, viverão pelo tempo dos tempos de seus próprios fulgores.
Basílio da Gama, o poeta de O Uraguai, evoca desde logo dois dos mais altos momentos da nossa história: o Romantismo e a Inconfidência Mineira. Não foi inconfidente; foi, porém, o precursor, o legítimo precursor da Inconfidência.
Depois dele, a reação, a força, o degredo e a morte emudeceram as vozes que pregaram e anunciaram o advento da liberdade em terras do Brasil. Mas a força não paralisou a sua marcha, porque a idéia de liberdade não conhece ergástulos, nem cadeias, nem baraços, nem fogueiras. Zomba das prisões, dos ferros, dos tiranos e das tiranias. Não a envenena a cicuta, o oceano a não afoga, os leões a não devoram, o raio a não fulmina. E ainda que se entregasse a terra às chamas e à destruição ela haveria de renascer sobre as cinzas e os escombros.
Precursor do naturalismo
A Cadeira para a qual a Academia, em sua fundação, destacou o grande patrono, não poderia ter como primeiro ocupante senão um escritor que, pela sua brasilidade e o seu nativismo, estivesse à altura de Basílio da Gama. E este, ao tempo, havia de ser e só podia ser Aluísio Azevedo.
Como Basílio da Gama, Aluízio Azevedo também foi um precursor. Com a vantagem de surgir no momento exato: nem antes, nem depois.
Se ao tempo da plenitude do Romantismo convocar os brasileiros para refletir sobre o Brasil em termos de Naturalismo e Realismo era uma heresia semelhante à do grego que propôs aos seus contemporâneos da geografia de Ptolomeu a concepção de uma terra redonda, com todos os transtornos que a nova concepção haveria de acarretar nas várias modificações da vida grega, ao tempo de Aluísio e de suas mensagens e Realismo começavam a cansar, mesmo no Brasil, essas figuras irrealizadas de índios, de bandeirantes e de criaturas diáfanas que o Romantismo tomara de empréstimo aos castelos medievais. Atentava-se agora para os problemas sociais que a Abolição da escravatura acabara de gerar.
A obra de Aluísio Azevedo foi como um toque a rebate para estas novas realidades. E constitui ainda hoje um quadro mural impressionante dos nossos cortiços, das nossas casas de pensão, das nossas ruas e vielas, animadas de uma recente população de mulatos e cafuzos jogados de repente à marginalidade da vida brasileira. São painéis cuja vigência o tempo não destruiu. Têm movimento, têm vida, intensidade e colorido. E tudo é Brasil.
Observava Joaquim Nabuco, numa de suas mais brilhantes generalizações, que nós, brasileiros e americanos, pertencemos à Europa por nossas camadas estratificadas e à América pelo sentimento novo e flutuante do nosso espírito; que tal situação perdurará enquanto aquelas prevalecerem sobre este, enquanto não se apagar em nós a lembrança de nossa comum origem européia.
Tenho minhas dúvidas quanto ao rigor dessa generalização. Pelo menos quanto a Aluísio Azevedo sei que ela não colhe. Aluízio era profundamente americano. Americano? Não. Profundamente brasileiro e só brasileiro. Da Europa recebeu o método do Naturalismo. Mas o objeto de suas cogitações, o seu ambiente específico eram exclusivamente brasileiros.
A vida e os sistemas
Aliás, o autor de O Cortiço é um escritor difícil de ser submetido a generalizações e sistemas.
Tenho, sob este aspecto, suponho ter, alguma autoridade para depor. Um dia, como sabeis, decepcionado de nossos métodos de interpretação da Literatura Brasileira, sobretudo do método unitário e cronológico que lhe era quase invariavelmente aplicado, em detrimento de altíssimas expressões de nossas culturas regionais, propus se considerasse o Brasil não como um continente cultural, mas como um arquipélago com sete ilhas de cultura autônomas e diferenciadas: a Amazônia, o Nordeste, a Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e a Metrópole. Lá onde predominassem o mesmo clima, a mesma geografia, as mesmas formas de produção, os mesmos estilos de vida, lá encontrar-se-iam núcleos culturais homogêneos e diferenciados.
Estava eu portanto, com minhas ilhas bem definidas – geográfica, histórica, política, social e economicamente bem caracterizadas – e podia agora situar os nossos escritores, sobretudo os grandes nomes de província que nossas histórias literárias injustamente relegavam para segundo plano, em suas respectivas regiões culturais.
Todo ótimo, tudo perfeito. Onde situar, porém, Aluísio Azevedo? A que núcleo filiá-lo? Não havia confiná-lo em nenhuma das ilhas do meu arquipélago, que ele de todas transbordava. Que fazer? Dá-lo por não existente, à maneira dos sistemáticos em face da primeira dificuldade dos seus sistemas? Já se vê que não o fiz. Por isso mesmo sinto-me à vontade para reconhecer que a minha interpretação da Literatura Brasileira, de algum proveito para a compreensão da maioria de nossos escritores, está longe de esgotar a nossa cultura na multiplicidade e complexidade de suas formas.
O que me consola é que não sou o primeiro construtor de sistemas a perceber a impossibilidade de confinar a vida nos limites das construções racionais. A vida não é sistemática. Transborda dos sistemas. Ou, como dizia Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica: “A vida transborda do conceito.” Que o digam os sistemáticos do século XIX, os sistemáticos de todos os tempos. Literatura é vida e a vida não a esgotam os sistemas.
Alcides Maya
Se, por um critério estrito e limitado, não é possível situar a personalidade de Aluísio Azevedo, como escritor, em nenhuma das ilhas do meu arquipélago, outro tanto não ocorre com Alcides Maya, que o sucedeu nesta Cadeira. Alcides Maya é bem, à sua época, o representante típico do núcleo cultural rio-grandense.
Regional, sem prejuízo de sua universalidade, e eminentemente universal, sem prejuízo de sua profunda brasilidade, ninguém como ele para a iconografia do núcleo de cultura rio-grandense no arquipélago cultural do Brasil. Outros terão representado o Rio Grande do Sul com o mesmo vigor neste ou naquele sentido. Mas o Rio Grande, no seu duplo aspecto regional e universal, só ele. De todos os escritores rio-grandenses foi o mais universal.
A universalidade de Alcides Maya! Era a sua qualidade predominante, se é que se pode falar em qualidades predominantes onde tantas excelem. Poucas vezes terá surgido no Brasil um instrumento mais preciso, um mecanismo mais dútil, mais pronto e mais exato na captação do tempo e das idéias. Inteligência cartesiana, feita para pensar em grande e capaz de clarificar e sistematizar o próprio caos, observá-la em ação constituía um espetáculo edificante que fazia honra à espécie humana.
Estou ainda a vê-lo, tal como o vi pela última vez, metido no seu robe-de-chambre cor de cinza, um pala de campanha enrolado ao pescoço, lá fora o minuano a associar e ele a discorrer sobre os temas de nosso tempo, de todos os tempos, as horas a dispararem como minutos, os minutos a voarem como segundos. E dizer-se que esse feiticeiro do mundo das idéias gerais não era mais nem a sombra do Alcides Maya moço, apolíneo, que inundara o seu tempo com o ruído do seu nome. E dizer-se que o Alcides que eu tinha agora à minha frente mal evocava a figura de recorte aristocrático, tipo flamengo e trajar impecável, a quem em nossa primeira mocidade, fatigados de nosso politeísmo de demagogos e caudilhos, atribuíamos as virtudes ideais dos personagens que as biografias recolhem para a admiração definitiva da posteridade. Ainda assim que grande e luminoso espírito!
E que pena não ter havido um Eckermann para recolher as conversações desse pequeno Goethe, cuja obra escrita de sentido universal, Crônicas e Ensaios, Através de Imprensa e Machado de Assis, apenas deixou entrever o infinito de suas possibilidades.
Infelizmente, quanto a isso nada mais há a fazer. Perdemos o melhor Alcides Maya universal da causerie e das improvisações geniais. Mas o Alcides regional, esse continuará bem vivo na lembrança dos rio-grandenses, através das páginas imperecíveis de Ruínas Vivas e Alma Bárbara.
De resto, nada melhor do que fixar os traços característicos de sua obra em face dos característicos do núcleo cultural rio-grandense, nos seus contrastes e afinidades com os demais núcleos culturais do País, para perceber até que ponto o autor de Tapera e Ruínas Vivas, no plano literário, foi o legítimo e autêntico representante de sua terra e de sua gente.
O regionalista
Não há uma só página na obra regional de Alcides Maya em que não reponte o Rio Grande e a paisagem, essa incomparável paisagem dotada de uma beleza tranqüila que repousa os sentidos e desafronta dos medos telúricos, onde tudo convida o homem a comungar com a natureza e a fazer dela um objeto de culto e de devoção panteísta. Ali, o perigo cósmico não nos sobressalta. Ao contrário, tudo são campos a perder de vista, maciamente recobertos pelo tapete verde e ondulado de nossas queridas coxilhas. De quando em quando, no topo das coxilhas mais altas, surgem, entre figueiras, umbus e renques de cinamomos, as casas das estâncias, brancas, verdes, azuis, em toscas imitações de castelos medievais preparados para a eventualidade de todas as lutas. Em torno, o silêncio, a paz, a amplidão. Manchas de gado ao longo dos aramados, capões de mato boiando no côncavo das coxilhas. Ao menor ruído, o galope de um cavalo, o guincho de uma carreta, o ronco intruso de um motor, um aboio distante, as perdizes irrompem de dentro das macegas em vôo rasteiro e ruflante, as avestruzes correm assustadiças de um lado para outro, o gado alça a cabeça por cima dos aramados, tornam-se mais estridentes os gritos dos quero-queros.
Neste cenário virgiliano de pastores e rebanhos, o homem alonga o olhar em derredor e não encontra obstáculos intransponíveis a barrar-lhe a paisagem; grita e a voz não lhe é devolvida, provocante e escarninha, no eco das montanhas. Havia de ser um dominador, enfeitiçado pela terra; um dominador que, enamorado pelas coisas que o cercam, assim como respeita e acata a organização social das suas fazendas e estâncias, ama a natureza de trabalho que lhe corresponde e ao qual se dedica com a graça e a agilidade de quem pratica um desporto.
Daí o seu individualismo, o seu narcisismo e por vezes o seu caudilhismo, que é, no fundo, a exacerbação do seu individualismo. Daí ainda as sagas regionais, onde só há espaço para a celebração daqueles temas que fazem a delícia do galpão: o rodeio, a doma, o cavalo, a china, a bravura, o estoicismo, a tapera, o entrevero, o rancho, a cordeona, as carreiras em cancha reta, e sobretudo a guerra.
Alcides Maya, em Ruínas Vivas, dá bem a medida deste estado de alma, através da figura simbólica de Miguelito, o jovem gaúcho que centraliza a narração.
Miguelito, à beira do fogo, às horas de mate e de prosa, olvidava-se a ouvir todos aqueles episódios, descritos no bravio dialeto sugestivo dos acampamentos fronteiriços: escutava, com paixão, atento, evocativo, fazendo gestos inconscientes de quem carrega sobre o inimigo. Alheiava-se de todo por instantes e só voltava a si do devaneio quando no ambiente alguma praga estourava rubra de ódio contra os legalistas... E as suas distrações eram continuas; ora, ao encher a cuia, a água extravasava, com indignação geral, desmanchando a erva, queimando-o; ora, ao receber de alguém o pega-brasas de arame retorcido, esquecia-se de depô-lo no rescaldo, conservando-o nos dedos crispados, como uma adaga.
– Que lástima para ele não ter nascido nesses tempos de peleia.
Tempos de peleia! Para Miguelito só essas coisas tinham importância; só elas eram dignas de respeito. Em matéria de Literatura os contos bárbaros dos gaúchos que se sentavam à roda do fogo, numa espécie comemorativa dos acampamentos tártaros, esgotavam-lhe as aspirações.
Desafrontado de superioridades, exceto da superioridade do estancieiro da morada caudilheira, havia de ser por isso mesmo, à semelhança dos seus, um distraído e um indiferente com relação às subtilezas e distinções vigentes em outras terras.
No simplismo do seu vocabulário de máscula ressonância, ao estrangeiro, fosse ele uruguaio, argentino, alemão, inglês ou italiano, confundia numa só designação: gringo. É, aliás, como dividem o mundo os homens da campanha: de um lado os privilegiados, os patrícios; de outro, os prejudicados, os gringos. Na divisão do Brasil e dos brasileiros o mesmo simplismo: dentro do Rio Grande do Sul, os que sabem montar a cavalo, empunhar uma lança e pelear, os superprivilegiados, os gaúchos; para além dos limites daquelas coxilhas, de Santa Catarina ao Amazonas, os baianos.
O ciclo colonial
Seria o gaúcho tão indiferente a tudo quanto ultrapassasse os limites de suas coxilhas que, apesar de um século e quase um lustro de colonização alemã do Rio Grande do Sul e setenta de colonização italiana, mal advertiria nas transformações que ambas operaram na fisionomia social da província. Mal teria tempo, com efeito, de perceber, que nesses 121 anos as alterações não podiam ter sido mais amplas. Neste período o Rio Grande industrializou-se e a indústria adquiriu uma importância quase igual à da pecuária: o estilo de vida foi profundamente modificado, como modificados foram os usos e costumes regionais; a família patriarcal, de tipo feudal e autoritário, deu lugar à família do tipo europeu da fase industrial, isolada, democrática e privativista.
O homem da campanha mal percebia que na região dos vales e dos rios, para além das suas coxilhas, surgira um novo tipo de civilização, situado na confluência das imigrações açoriana, alemã e italiana, um novo tipo de cultura, mais voltado, por contraste, ao universal do que ao regional.
Realmente, tudo mudou. Este outro Rio Grande, atual, medularmente transformado, apenas entrevisto, mas ainda não plenamente revelado à luz da consciência brasileira, porque os estados de alma de um povo nunca se formam de improviso, no momento exato em que se produzem os fatos capazes de gerá-los, começou na Feitoria Velha, em São Leopoldo, há cento e vinte e um anos. Situa-se na Feitoria Velha, na casa que é hoje de nosso Patrimônio Histórico, por terem ali se abrigado os primeiros colonos, no seu desembarque, e que fica a dois passos – permitam-me que eu com orgulho o relembre – da casa que serviu à professora pública Maria da Glória Viana para as suas primeiras aulas de brasilidade aos novos brasileiros descendentes de imigrantes – o marco divisório, o ponto de interseção entre duas épocas, entre duas civilizações: uma de caráter militar e pastoril, outra de caráter nitidamente agrícola-industrial. Fixa-se precisamente ali o núcleo central de um novo tipo de evolução, que deveria modificar por completo o primitivo aspecto da província. O que significou o ciclo colonial, iniciado com o estabelecimento dos primeiros colonos da Feitoria Velha, um dos sítios mais cheios de conteúdo histórico para o Rio Grande, é fácil perceber. Na zona colonial, cortada de rios e de montanhas, diversa, portanto, da zona de campanha, transmudou-se por completo a primitiva feição do território.
Onde antes tudo era selvatiquesas, paludes e florestas compactas, encontram-se agora panoramas geométricos, disciplinados, ao jeito das paisagens européias. O colono domesticou a terra, facilitando a integração. Tão forte este poder integrador, que os primeiros imigrantes, ao cabo de algum tempo de permanência no novo meio, não só não cogitavam de retorno à pátria de origem, como ainda conclamavam os irmãos de além-mar a virem instalar-se na nova Canaã, fazendo lembrar com seus apelos a exortação do Gênesis: “Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai, e vem para a terra que eu te mostrarei.” Daí uma importante conseqüência etnográfica: a imigração em grande escala, que veio plasmar, nas retortas de cruzamento da Província, o tipo racial, rijo de corpo e de alma, em cuja contemplação não há quem não sinta revigorada a crença na grandeza do nosso destino.
Claro está que ao espírito de Alcides Maya, feito para a interpretação dos fatos sociais, não escapariam estas transformações. Entretanto, ele, o homem da fronteira, da região e da tradição, o primeiro a impor o regionalismo como etapa indispensável à compreensão do todo brasileiro, nunca se sobressaltou com o ciclo colonial e suas possíveis repercussões. Agora o que ele não queria e não tolerava, positivamente não tolerava e não queria, é que, por incúria nossa, o ciclo colonial viesse a ameaçar o velho tronco de nossa formação luso-brasileira. Por isso preveniu, clamou e advertiu. Clamou contra as tentativas de germanização do sul do Brasil, como já clamara contra o autoritarismo dos caudilhos e o separatismo.
Contra as demasias do regionalismo que ameaçara degenerar em separatismo, escreveu em sua mocidade as páginas de fogo de O Rio Grande Independente. Contra as tentativas de germanização de nossa cultura escreveu durante a guerra passada as páginas mais candentes de Crônicas e Ensaios.
Não foram vãs as suas advertências.
Se houve, ou chegou a haver, algum risco de secessão, certo não foi nos últimos tempos o do Rio Grande do Sul querer separar-se do Brasil, mas o do Brasil por motivos que prefiro calar, querer separar-se do Rio Grande.
E se houve, por outro lado, o perigo da formação de minorias raciais, de populações vivendo à margem da vida nacional, brasileiras apenas pela certidão de nascimento e de batismo, mas germânicas por suas camadas estratificadas, esse perigo está passado e definitivamente passado. Já agora, nada há mais a temer, senão muito a esperar do completo desdobramento do ciclo colonial. Pode avaliar-se o que ainda virá a realizar, a julgar pelo já realizado. No plano político fez da colônia um modelo de democracia social. No plano econômico, mercê da fragmentação da propriedade e da inexistência de desigualdades sociais insuperáveis, parece indicar que no rumo de suas soluções está, até certo ponto, a chave da questão social brasileira, essa velha questão social brasileira que constituiu sempre o leitmotiv das cogitações daquele a quem venho, não substituir, mas apenas suceder nesta Cadeira.
Srs. acadêmicos:
Toda vez que corro o risco de emocionar-me invoco a ironia. Servidora volúvel e inconstante, represando muitas vezes as possíveis demasias de minha sensibilidade, ela é que me tem defendido dos ódios e ressentimentos que perturbam a harmonia dos espíritos e a serenidade dos julgamentos, ao mesmo tempo que me serve de escudo contra os assaltos imprevistos das comoções que abalam, das tristezas que pungem e dos regozijos que se desmandam.
Hoje, porém, sinto que a ironia me desampara. E não é para menos. Chegar a estas alturas, onde já se ouvem rumores de perenidade, trazido pelo sufrágio daqueles a quem a dignidade da investidura da lei da morte libertou, era privilégio que eu supunha somente reservado a um reduzido número de eleitos da vida e do destino, e não a mim, a quem destino e vida pareciam conjurados em preparar para a melancólica conformidade dos obscuros caminhos que o malogro de minhas mais antigas e legítimas aspirações me fariam percorrer. Pertencendo, como pertenço, a uma geração banida e atribulada, provavelmente a mais atribulada de todas as gerações – geração que entre duas guerras vem tateando na penumbra do ostracismo, atordoada, inquieta, proscrita, vendo ruir o mundo de desacertos e injustiças em que plasmou a sua formação, sem ver surgir, em contornos definitivos, a oportunidade de plasmar o mundo pelo qual há tanto tempo espera, custa-me ainda agora acreditar esteja chegado o dia de assentar-me ao vosso lado, como um dos vossos, para lutar convosco pelo restabelecimento, permanência e continuidade daqueles valores morais e espirituais que fazem, ao lado da justiça social, e só eles, a grandeza das nações.
Medalhas e condecorações
Eu deveria dizer-vos, pelo contraste entre o que esperava ser e o que sou, senão até por um banal dever de cortesia que me sinto imensamente alegre. Mas eu vos devo agora, mais do que cortesia: eu vos devo lealdade. E a lealdade manda-me confessar que minha alegria está toldada por difusas nuvens de tristeza. Sinto-me como certos condecorados de guerra, que por terem procurado nos perigos dos campos de batalha a compensação e a fuga de seus conflitos morais, viram os seus atos de desespero convertidos em heroísmo.
Com uma diferença: eles buscaram a morte, e eu, refugiando-me na Literatura, quis apenas um abrigo contra os perigos da vida.
Como aqueles, sentindo o peito queimar-lhes no momento em que recebem medalhas e condecorações conquistadas no desespero, ficam a pensar nos camaradas que as circunstâncias não favoreceram, precisamente porque eram mais calmos, mais conscientes e mais fortes, eu, por mim, estou pensando nos homens da minha geração que a nossa época triturou, nas vocações que se perderam, nos que não puderam realizarse na Literatura, nos que naufragaram na voragem da vida, nos que tombaram na luta, nos que sofreram prisões e vexames por amor às suas idéias, nos que capitularam com o coração sangrando, nos que reprimiram o entusiasmo, nos que se embotaram no indiferentismo, e nos mais desgraçados de todos, nos que possuindo uma consciência moral, se atordoaram no sibaritismo, afrontando o respeito dos outros para se desafrontarem do respeito que se deviam a si próprios. Penso em todos eles, na enormidade dos seus dramas, e não tiro nenhum motivo de orgulho de haver podido preservar-me igual a mim mesmo, através desses anos andados. Antes, sinto ímpetos de dobrar o joelho diante dos meus velhos altares, e de mãos postas agradecer a Deus a graça de me haver poupado, justamente a mim, o servo irremível da tentação, da timidez, do medo, da carne e do pecado, o menos forte de todos.
Épocas de opressão
Há quem não deplore o advento das épocas sem entranhas como as que acabamos de atravessar e as considerem mesmo como providências pelo muito que revelam a precariedade das virtudes humanas e a baixeza congênita da má argila que as contém. Não devíamos maldizê-las, dizem eles, mas saudá-las pelo seu sentido revelador, que impede sejam atropelados pela posteridade os ídolos de barro, as mediocridades travestidas de gênio.
Não, eu não penso assim. As épocas que desejo, as épocas que venero, as civilizações que admiro são aquelas em que o lado bom da natureza humana pode desdobrar-se em sua plenitude. São aquelas civilizações que criam para o homem todas as possibilidades de ele provar que foi feito à imagem de Deus, e não aquelas que só lhe exploram a cobiça, a paixão do poder, a hipocrisia, a fraqueza, o medo, a pusilanimidade. Entre umas e outras nenhuma natureza bem dotada pode hesitar. Só se comprazem com as últimas as naturezas enfermiças, os ressentidos, os pintores de cartões postais, os escribas, os pequenos artistas malogrados, os perdidos para a capacidade de amar e de admirar, que buscam no nivelamento compulsório e disciplinar da natureza humana o corretivo das desigualdades naturais que lhes pesam como opróbrio e injustiça.
Pertenço, julgo pertencer, aos que não perderam de todo a capacidade de amar e admirar. Conheço as minhas possibilidades, conheço também as minhas limitações. Não me magnifico daquelas, não me desespero destas. Não trago o fardo pesado de ódios e rancores. Já hoje, não sei de ninguém a quem não possa apertar fraternalmente a mão.
Ressentimentos, se os tive e tenho, foram sempre contra as situações que não me deixaram realizar o que porventura reste do lado bom de mim mesmo, e esses, creio, são irremovíveis e erradicáveis. Mas, se por ventura, amanhã me virdes renegar esses ressentimentos, duvidai da minha sinceridade, e por favor não jogueis contra mim as pedras do caminho. Dai antes combate à ordem de coisas que me obrigam à apostasia e à capitulação, porque então deveis estar também ameaçados, que a capitulação imposta a uns é uma ameaça contra todos.
Hora solar
Ainda bem que aqui chego na hora solar em que despontam de novo firmes esperanças de um mundo melhor. Dir-se-ia que acordamos de um pesadelo. Há por toda a parte uma ânsia geral de reconstrução. Removem-se os escombros, recompõem-se capitéis abandonados para dar começo à tarefa. Já não vivemos naquela apagada tristeza dos dias de antanho. Há sobretudo – o que é mais auspicioso – uma renovação no recesso das almas, sinais de vida e de vitalidade. Os tempos são outros, e os seus sinais inequívocos. Passou a época em que só triunfavam os amoucos da força, os críticos, os inorgânicos, os amorfos, os indefinidos. Agora a vez é dos orgânicos, dos afirmativos, dos que sabem no fundo do coração, como o sabia o orador de 30, que nem tudo nesta vida é definitiva e irremediavelmente prosaico; que rasteira e daninha, melancólica e funesta é a filosofia dos que não se rendem à evidência de suas belezas e perdem a capacidade de criar ideais, esquecidos de que estes não são como os frutos da lenda que sob as cascas douradas só continham cinzas, e por isto não admiram e não lutam e não experimentam a suprema ventura de vencer. Agora a vez é dos que sabem – sempre o souberam – que ofício doloroso, que calvário sem poesia, é a existência com o coração vazio da chama que comunicou a Prometeu a sublime audácia de escalar os céus, desafiando os deuses. Agora a vez é dos que sabem – sempre o souberam – que a existência só é um grande bem para os que jornadeiam, cheios de fé, à revelia das decepções transitórias, olhos para a frente e para o alto, no sentido daquela felicidade de que nos falava Renan e que consiste na integração com um dever ou com um sonho. Contra estes nada podem as insinuações de ceticismo deletério. Voltados para a beleza infinita que os olhos deslumbrados entrevam no panorama do futuro, não se detêm, vencidos, a escutar o dobre a finados sobre a lousa tumular das primeiras ilusões e jamais se lhes embota a crença em contacto com as realidades do mundo. As realidades do mundo servem-lhes apenas de direção, tornando o que antes era êxtase contemplativo, mero devanear no incorpóreo sem fronteiras da imaginação, quimera ou utopia sem nenhum contacto com as possibilidades ambientes, em idealismo consciente, amoldado às necessidades tangíveis da ação, que o tempo, a experiência e a reflexão cada vez melhor vão demarcando.
Até ontem triunfaram os críticos, os que se sentiam subjugados por tudo quanto representasse passado e tradição e por isso queriam o derribamento frenético desse passado. Agora é a vez dos orgânicos, dos que compreendem que o passado, antes de ser um bem ou um mal, é um fato indesviável, e não o renegam, senão naquilo que deve ser corrigido e renegado. Preservam-no naquilo que ele tem de preservável, para destruí-lo e retificá-lo naquilo em que tenha ultrapassado os limites de sua utilidade social.
Estes sabem o que querem. É impressionante como o sabem. A geração de 30, essa mesma geração que rompeu com sonhos indefinidos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, dominada por um vago humanitarismo, vem agora forrada por um saber feito de “sangue, suor e lágrimas”, sobre confraternização universal, Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Antes eram vagos substantivos, entidades abstratas e metafísicas de que tinham apenas o pressentimento.
Sabiam da injustiça social, mas não tinham nítida consciência dessa injustiça. Amavam a liberdade, mais pelo efeito moral da saturação inconsciente das palavras da época do que por efeito de opressões reais. Agora, porém, esses três substantivos já não constituem para eles entidades metafísicas. Sabem defini-los e adjetivá-los e os vem definindo e adjetivando em seus programas de paz social, com um rigor impressionante, uma clareza, uma precisão que o Brasil nunca conheceu anteriormente. Sabem principalmente que os três substantivos hão de ser adjetivados e realizados conjuntamente porque onde a definição e a realização de um deles falhar arrastará na sua queda as garantias dos outros, e sobretudo os benefícios da liberdade de pensamento necessária à dignidade da missão cultural que tem nesta Casa a sua mais alta, ilustre e desinteressada defesa.
Não, não podemos falhar. Os tempos podem, os tempos devem, os tempos hão de ser retificados. Lá nos campos da Itália, onde uma nova geração, ardente, impetuosa, ainda não contaminada de ceticismo, lutou e morreu, morreu e venceu para restituir-nos as crenças que corremos o risco de perder, há túmulos sagrados clamando contra o desalento, o derrotismo e o desespero. Se eles souberam morrer e vencer por um mundo melhor, saibamos ao menos viver para cumprir a mensagem que nos legaram.
A geração de 30, senhores acadêmicos, aguardava apenas a sua entrevista com o futuro. O futuro veio finalmente ao seu encontro. Que Deus a ajude a estar à altura de sua missão.