DISCURSO DO SR. MIGUEL COUTO
SENHORES Acadêmicos:
Nem tão velho sou, nem tão alto estais mas em verdade me aproximo do vosso recinto entoando intimamente o cântico de Simeão: fulminai-me agora, Senhor; se não sois Deus, sois deuses, e já que me recolhestes na vossa imortalidade... posso morrer.
A convivência do sofrimento ensina a humildade, e lembra na lição de cada dia que o homem, nem ao menos uma sombra senão apenas “o sonho de uma sombra”, como advertiu Píndaro ao hierônica dos Píticos, se contente com o que é e não suba com os olhos aonde não alcançar com a mão. Edificado neste sentimento, só um desses colapsos que se rasgam às vezes nas consciências e cegam os que se presumem de mais fortes atiraria comigo à vossa porta; bati e abristes, e ante o esplendor de vossa perfeição reparei nos meus andrajos, já tarde para fugir, porque esta morada se fecha sobre os passos dos que nela entram. E não me recusastes, estou certo, porque a vossa imanente ultravisão descortinou a meu lado o vosso antigo companheiro.
Apolo, deus da Medicina, apadrinhando o modesto obreiro da sua arte, “deorum immortalium consecrata”, e como não podíeis deixar de aposentá-lo, agasalhastes-me também. Resta agora que, mais generosos do que os vossos irmãos mais velhos, não nos expulseis de novo do Olimpo...
Quero dizer, meus Senhores, que como médico me apresentei aos vossos sufrágios, ao médico os concedestes e só o médico tendes na vossa presença. Retirai-me os atributos da Medicina e nada mais me resta; desde que me entendi, a ela dediquei os meus pensamentos e depois todos os meus atos, e se neste empenho até hoje me consumo só nele me retempero: para ela os meus anseios, as minhas aspirações e o meu trabalho; tinha pena e teria remorsos de distrair em outros cuidados o meu tempo, não que ela fosse zelosa, e daí quem sabe se o não seria e me negasse depois os seus favores? O seu amor é talvez mais agro do que doce; não há, nem pode haver, maior gozo do que o daquele a quem foi dado uma vez reproduzir a passagem do “Suave Milagre” e aparecer ao moribundo como se fosse o próprio Cristo, dizendo com a mesma unção e o mesmo poder: – Aqui estou. Não há também maior angústia do que a daquele que vai sentindo escapar-se dos seus braços retesados, numa atração inexorável para a voragem, a criatura que, mais com os olhos do que com a boca, clama pela vida que lhe confiou e cujas últimas células agonizantes ainda pedem vida, vida, vida!
Descontando as mágoas nas alegrias foi ela me seduzindo e cada vez mais me escravizando; da minha parte nunca lhe faltei com a fidelidade, como não se falta à mulher que se ama verdadeiramente; isto é, para que ocultar pecadilhos veniais. Um dia, sem querer, abri uma janela, sempre cautelosamente cerrada, que do nosso ninho tranqüilo debruçava sobre a habitação ruidosa de uma dama suspeita, ou antes, suspeitada pela vizinha. Dela dizem que os fluidos e amavios que se desprendem dos seus olhos como chispas, dos seus lábios como mel, da sua cútis como aroma, do seu corpo como formosura, ainda não encontraram energia de moços que lhes resistisse, e neste caso quem é aí capaz de se confessar velho?
Presos nas suas maranhas irisadas, como as do atocalto, ela se deleita em os tecer e entretecer, e, tangendo a lira, em fazê-los a seu talante sonhar acordados e cantar sonhando. Não é decerto indiscrição apontar, porque todos estão vendo, esquecidos sobre as vossas vestes solenes de acadêmicos, os fios róseos e amarelos da sua teia... Enfim, como ia narrando da aventura, ela não saiu da sua janela, nem eu passei da minha, e foi um lapso; mas, oh mal feliz! este abrir de olhos deixou nos meus uma tal confusão traidora que, não sendo de ciúmes a minha amada contudo, no dia seguinte estava a janela fechada a sete chaves. Eis porque da rede polícroma que tão bem sabe urdir e lançar, qual insigne tecedeira, a Literatura, só me alcançaram os fios pretos através dos quais não diviso senão as dores e as doenças. A mim, pois, ninguém me virá afrontar com o verso de Eurípides:
Carpinteiro, por que não serras a madeira?
Desde que me admitistes em vossa companhia, sentenciastes que as letras médicas também são letras, e certas boas letras. Que página existe na língua francesa mais clássica, mais leve, de uma sutil claridade de anticrepúsculo, do que a Introdução à Medicina Experimental de Claude Bernard, ou mais empolgante na sua forte eloqüência magistral do que a Introdução à Terapêutica, de Trousseau, ou mais sublime pela doçura da sua filosofia do que o Discurso de Pasteur? A Clínica Propedêutica, de Francisco de Castro, já não foi comparada pelo sabor às obras de Latino Coelho e Alexandre Herculano?
Dos médicos acadêmicos, Osvaldo Cruz é um dos quatro ou seis grandes nomes históricos da nossa terra; de Afrânio Peixoto como de Austregésilo, de Francisco de Castro como de Aloísio, o mesmo é dizer que as letras são um adorno do sábio, ou que a sabedoria é um realce do escritor. Só eu então entro exclusivamente como médico, e ainda bem que a Academia não precisa dos meus serviços, nem é obrigada a classificar a sua festa de hoje entre as “esculápias”.
Desconhecendo os estilos desta Casa, de estilistas, não sei se me cumpria incluir no meu discurso um exórdio, carregado da respectiva dose de retórica; sem ela, todavia, era necessário este preâmbulo, porque pelo hábito de auscultar a voz dos órgãos fui adquirindo essa segunda audição que torna audíveis os pensamentos mais recônditos, e nitidamente ouvi perguntarem-me à entrada, como no sermão do Advento: “Tu quis es?” quem és tu? Quid dices de te ipsum? que dizes de ti mesmo? Crede, meus Senhores, que procurei responder com a maior isenção, malgrado o comentário do Grande Padre, com a sua maior malícia, “que ninguém há tão reto juiz de si mesmo, que ou diga o que é, ou seja o que diz”.
***
Afonso Arinos nasceu em Minas Gerais, numa cidade distante quase um mês do litoral; levou toda a sua infância uma vida andeja pelo centro da sua província, chegando aos oito anos a fazer centenas de léguas até Goiás e daí ao Rio de Janeiro, segundo relatou em interessante livro seu respeitável pai, que é hoje o mais alto representante da magistratura mineira. Foi, portanto, o ar do sertão que lhe dilatou os alvéolos; do sol quente do sertão o primeiro raio de luz que lhe feriu a retina; falas sertanejas foram as que primeiro lhe cantaram aos ouvidos, e o panorama do sertão e os costumes do sertão o envolveram como a atmosfera até à adolescência.
De volta de São Paulo, onde fez o curso de Direito, Coelho Neto e Olavo Bilac o vão encontrar em Ouro Preto, aos 21 anos, com a sua alma sertaneja tão virgem como nos primeiros tempos, extasiando-se na volúpia das mesmas cousas que alvoroçavam outrora a sua inocência de infante. A Coelho Neto recita confidencialmente contos inéditos de um amigo, mas pela sua palavra perpassa uma tão intensa vibração nervosa, que o grande romancista o interrompe em meio exclamando: – “Isto é seu e de ninguém mais, é seu.” Já eram contos do sertão. Olavo Bilac, que achou prudente interpor entre a sua pele e a “legalidade” um espaço suficiente, e lá foi ter à hospitaleira Vila Rica, disse-vos aqui mesmo, na linguagem de que tinha o segredo, como eram os óculos de Arinos:
Enquanto pelas ruas de Ouro Preto, naquele ano trágico de 1893, os vivos comentavam com calor os episódios da revolta naval e os bombardeios e as prisões e a loucura, nós dois, mergulhados no passado, conversávamos como espectros. Todas a gente do século XVIII, capitães-mores, generais, ouvidores, milicianos d’El Rei, aventureiros, traficantes de pretos, frades e freiras, tiranos e peralvilhos, fidalgos brilhantes e pobres batedores de ouro e cateadores de cascalho, garimpeiros, senhores de escravos, damas de casta orgulhosa e imundas pretas descalças, ricos proprietários e contrabandistas farroupilhas, toda essa gente acudia ao chamado da nossa curiosidade, e saltando das casas arruinadas do Padre Faria e de Antônio Dias, evadindo-se dos mistérios dos arquivos, repovoando as ruas cheias de escombros, vinha reviver conosco a sua antiga vida pitoresca.
Assim, as influências complexas e desencontradas, sedutoras ou hostis do meio escolar, na idade de cera, quando ainda existe a anarquia das tendências, o estado anfíbolo da vontade, a receptividade das idéias e dos vícios ambientes, passaram por ele como as tormentas pelos jequitibás das nossas florestas, comparação que só pode ser ressuscitada para Afonso Arinos. Ele viveria no tempo de Alexandre sem entortar a cabeça e ao lado de Dionísio não daria encontrões nos objetos para se fingir de míope. Era precoce e íntegro na preservação de sua personalidade, inconfundível, inteiriço, ou, para repetir a frase inscritível com que o célebre apuliano definiu estes predicados – todo em si mesmo; e se assim foi na manhã da vida, assim continuou em pleno sol, nado e alto, quando a foice traiçoeira o veio ceifar. A esta imunidade moral chama-se caráter, e o dele ainda tinha para realçá-lo a naturalidade, a simplicidade e a bondade da gente da sua terra.
A obra de Afonso Arinos é a representação perfeita da sua alma. Doutrinava Descartes que a alma é o pensamento e assevera Bergson que é a memória; eu se não temesse o paradoxo diria que a alma é o inconsciente. As excitações, externas ou internas, à medida que são sentidas, deslizam para um tabernáculo, onde também vêm se agrupar as que não chegam ou quase não chegam à percepção, e umas e outras aí jazem por tempo indefinido no limiar da consciência como esquecidas ou dormentes. Que não morrem, prova, entre milhares, o seguinte caso registrado por Carpenter: uma menina abandonada é recebida por caridade na casa de um pastor protestante, que tinha o hábito de passear de meio a meio de um corredor lendo em voz alta textos gregos e hebreus da Bíblia, ao que ela prestava a mesma atenção que nós lhe prestaríamos; pois um dia, já adulta e vivendo em outras paragens, é presa de alta febre, e ei-la agora em delírio a declarar fragmentos desses trechos, tão mal ouvidos e tantos anos hibernados. Em Jorge Soares, tipo admirável de paranóico, Coelho Neto se aproveita do mesmo conceito para desenvolver as alucinações da psicose.
É este vasto fundo do inconsciente, o qual pela quietude parece antes um sepulcro, que governa os atos mais conscientes, mais deliberados, mais voluntários e os juízos mais seguros; é ele que guarda o segredo das nossas inclinações e corporifica a nossa personalidade psíquica; nele se nutrem os sentimentos e se amassam as idéias, a tal ponto que seria lícito dizer que estas sobem quase elaboradas do subliminal à consciência, e que a própria imaginação criadora não passa de mera metamorfose. Neste subconsciente dinâmico, acumulador de material e fonte de energia, reside o ser autêntico, muito cioso do seu livre arbítrio mas realmente escravo de todas as suas antigas sensações sedimentadas. Fora disto só há indivíduos mórbidos e os artificiais, os de romances, como as diversas personagens do bovarismo, ou esse gentil-homem feito às pressas, Monsieur Jourdain, todo atrapalhado no ensaio da sua declaração: “Belle marquise, vos beaux yeux me font mourir d’amour.”
Que são em Arinos as suas fugas para o Interior, as suas deambulações irreprimíveis, senão atos de um automatismo psicológico mal policiado, e que é a sua obra capital senão a revivescência das sensações inclusivas e iteradas, vertidas dia a dia no seu eu subconsciente e aí perturbadas pela continuidade do protoplasma? Quando novas, de gênero diverso, vieram chegando pelo estudo, pela experiência, pela observação ativa, já aquele se achava por assim dizer coagulado, e era uma força oculta que dirigia esses estudos em um dado sentido, isto é, no seu sentido. Como todo homem de letras, Arinos devorava livros por diversão e gáudio do espírito, mas de fato só cultivou com afinco a História do Brasil... colonial, porque era essa vibração externa que afinava com a interior, misteriosa, impalpável, e só do uníssono resultante lhe poderia advir a euforia moral que todos procuram no trabalho.
Daí nasceu a tradição do seu patriotismo excepcional, do seu nacionalismo obsidente, jungida ao seu nome como um sinônimo e tão indiscutível como um verseto. Que fez Arinos para o amarrarem a esta lenda? Cantou e cantou, como ainda ninguém, os sertões da sua terra, – como se o Brasil estivesse exclusivamente nas suas selvas e nos seus campos e não também nas suas cidades e nos seus mares, e como se o ideal de uma pátria grande, próspera e invejada se realizasse no Brasil cristalizado nas suas matas e nas suas furnas, nos seus indígenas e nos seus caboclos! Não, não façamos esta injustiça a Afonso Arinos; o seu sertanismo estava somente na sua subconsciência, não penetrado no pallium augusto senão para receber a forma lapidária da sua prosa, e lá da velha Europa, onde costumava se acolher, tendo da pátria a essa distância uma visão esférica, como diria Mário de Alencar, ele só a desejava cada vez mais espessa na crosta de civilização que a reveste.
Sem admitir com Flaubert que o pensador não deve ter nem crenças, nem pátria, nem nenhuma espécie de convicção social, estou em afirmar que se a obra de Arinos obedecesse a uma segunda intenção, por muito digna como a do patriotismo, mas subtraída da espontaneidade fecunda que lhe deu o sopro, certamente não seria essa que admiramos. Patriotismo é cada um trabalhar no seu ofício com a maior fé; tão bom patriota é o soldado que dá à pátria o sangue como o operário que lhe dá o suor, o sábio cujo nome se projeta na sua história como o lavrador para sempre ignorado, o artista que a envolve no seu gênio como o escritor que sobe com ela aos visos do pensamento. Arinos parece maior patriota porque servindo à Pátria com as suas letras a serviu com tão intenso amor, que ao cabo tanto ele se orgulha dela, quanto ela do seu filho; e se o regionismo atravessa toda a sua obra, é que nunca lhe abandonou o cérebro aquela menina de Carpenter a avivar nele o hebraico e o helênico das sensações da sua infância.
Não tive tempo de indagar para vos transmitir, nem penso que levásseis a curiosidade a este ponto, qual seria a religião de Arinos... nas cidades; nos campos sei eu, ou sabemos nós que era panteísta e adorava a natureza em todas as suas expressões, desde a erva rasteira à árvore portentosa, do humilde inseto ao jaguar indômito, e também o céu, o sol, o rio, a montanha, todo o horizonte em volta; transportando-a para a tela com o respeito, o afeto e a piedade de um anacoreta, de cada trecho fez uma obra-prima inimitável. Ouvi as suas palavras: “Ninguém pode, ninguém que tenha a alma sensível aos espetáculos da natureza ou à poesia das eras já mortas, poderá deixar de recolher-se, de concentrar-se em fundas cogitações ou em caroáveis devaneios ao vingar a grande vértebra do Espinhaço...” É assim que ele olhava a natureza e não consentia que ninguém, a menos que de humano só tivesse o gesto e o peito, a olhasse de outro modo; e, pois que era recolhido e concentrado, como diante das cousas sagradas, que a contemplava para pintar, os seus quadros impressionam como os hieráticos de Rafael ou Miguel Ângelo.
Se não custa ao verdadeiro escritor comover pelas cenas que tumultua, pelos martírios que inventa, pelas paixões que desencadeia abalar, agitar, aguilhoar pela simples descrição de uma paisagem, é privilégio que eu não sei a quantos se distribui; em geral admira-se quando muito a técnica, a propriedade, o arranjo, o colorido, mas no fim a emoção é morna se não é nula; porque lhe falta o movimento que gera o calor; nas de Arinos tudo é movimento e vida. Quem lê a “Atalaia dos Bandeirantes” detém-se de quando em quando para reparar com um profundo hausto o fôlego suspenso das grandes comoções. Reparai no primor que é este lance:
Para trás do Rosário vai empinando a colina das Cabeças, e mais ao longe, elevando ao céu as suas arestas, projetando no espaço a sua sombra imensa, a grande serra, mãe das minas; a que estende ao povoado seus contrafortes como braço de apoio, a que abriu aos primeiros povoadores, aos aventureiros famintos o ubre nutriz de seus filhos e veieiros. É esta a divisora das águas. Ligando o alto das Cabeças às extremas do Padre Faria; debruçando para o fundo do palácio dos capitães-generais as ladeiras do morro de São Sebastião; escancarando nas Lages os seus enormes rasgões; soltando daqui e dali duas fontes claras e múrmuras; enchendo o vácuo com a sua massa negra, a serrania sobranceia a cidade, e mostrando na lombada os seus arraiais em ruínas, fala à imaginação, como a figura dolorosa daquela mãe divina transformada em rochedo. “Ah! é bem esta. Sim, és tu, Níobe colossal e desventurada, a cujo seio apojado de ouro se agarravam outrora, vorazes, os povoados teus filhos, ora mortos a teus pés. E tu choras sempre; teu pranto desce pela encosta em torrentes claras e o tempo não o secará.”
Dentro das suas paisagens move-se o lídimo sertanejo, cujas plantas nunca se feriram nas rijas pedras das cidades e cujos olhos jamais viram letra impressa que lhe fosse por eles macular a alma extreme. Fere, entretanto, no primeiro momento, nos contos de Arinos, flagrante contraste entre a sua índole e a das suas personagens. As suas páginas de maior ternura são as que se referem a cousas inanimadas.
Que encanto que é a descrição da “Cadeirinha” secular, esquecida no fundo de uma sacristia, com os dois painéis pintados em madeira e representando cada um formosa dama de antiga estirpe. Nesta “os mesmos bicos alvos de renda que, acompanhando a curva do decote, pareciam recortar o moreno jambeado daquele colo de sultana, os mesmos bicos alvos de renda estavam a dizer, sobre o doce palor amorenado do colo, que a dama dos olhos ardentes tinha escondidas no canto dos lábios a doçura da ambrósia e a peçonha das serpentes”; da outra “um certo arregaçado das narinas, uma ponta de ironia que lhe voejava na comissura da boca breve e enérgica, tudo isso mostrava estar ali naquele painel representada uma mulher meridional e vivaz, pronta ao amor apaixonado ou à luta odienta”. Quem ao mirar a cadeirinha “não fará reviver na imaginação uma das cenas galantes da cortesia antiga em que através da portinhola cortada de caprichosos lavores de talha passava um rostozinho enrubescido e dois olhos de veludo a pousarem de leve sobre o cavalheiro de espadim com quem a misteriosa dama cruzava na passagem”?
E a beleza majestosa do “Buriti Perdido”, velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista: “Porque ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram? Se algum dia a civilização ganhar esta paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que lhe serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças, nos versos sublimes de Eurípides, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição, comprando teu direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que sabes tão bem comunicar.”
Entretanto, quando descreve um homem, ou mesmo uma mulher, estes têm invariavelmente o coração obdurado e a alma negra. Pedro Barqueiro de uma feita estendeu três homens da escolta que o perseguia, e em seguida caminhou sobre o outro, “e quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como boi sangrado. Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora do outro”.
Na “Esteireira” a tragédia saiu tão forte que Arinos precisou vir defendê-la contra os que a achavam inverossímil. Era uma mulata de estatura regular, cheia de corpo, de braços fortes e cadeiras largas; tremiam-lhe as nádegas quando andava. Vivia amartelada de ciúmes contra uma dócil rapariga por causa de amores que colidiam em Filipinho, pardo de peito largo e saliente, o qual trazia sempre à ilharga um grande e pesado facão e na consciência a carga de muitas mortes. Um dia a esteireira convida a amiga para um passeio e a meio caminho saca de uma navalha e com mão intrêmula e rápida corta a carótida da infeliz companheira, que estava unida a ela, abraçada à sua cintura, na garupa do animal. “Caíram ambas, e Ana, a esteireira, não querendo que na estrada houvesse grande mancha de sangue, encostou os lábios ao lugar de onde ele irrompia aos cachões, e, carnívora, esfaimada, chupou, chupou por muito tempo, carregando depois o corpo da desventurada para bem longe, onde um desses precipícios, cavados pelas enxurradas, o recebeu no fundo da sua fauce.” Daí foi buscar o amante e fugiram, mas encontraram logo adiante o destacamento chefiado pelo cabo Marianão. “Filipinho deu um salto para a frente, ao mesmo tempo em que se ouviram estampidos de tiros. Dous corpos caíram pesadamente, e os soldados recuaram, vendo Marianão varado pela faca de Filipinho, que cavalgava o valente soldado, estendido de costas.
O mulato, debruçado sobre o corpo do soldado, mordia-o, esfaqueava-o misturando com o dele o sangue da própria ferida. Ana saltava, rangendo os dentes qual canela-ruiva. Novo estampido se ouviu; a rapariga levou a mão ao seio, recuou dois passos e tombou, ao través, sobre os corpos de Filipinho e Marianão.”
É de todos conhecida a história narrada por dois dos mais insignes membros desta casa, Arinos e Rodrigo Octavio, do “nababo dos tempos coloniais” Felisberto Caldeira, senhor da extração dos diamantes no território da Demarcação, nas Minas Gerais, e perseguido depois até à última miséria e ao extermínio pelo famigerado Marquês de Pombal. O belíssimo conto de Arinos é um instantâneo que apanha assinalada festa no solar do contratador. “O salão apresentava um aspecto de corte, da época. Do teto alto, oitavado, com fresco de um dos artistas que a fama dos diamantes atraía ao Tijuco, pendiam dois grandes lustres de cristal, onde as velas de cor formavam irisações cambiantes. Aclaradas pela fulguração da luz destacavam-se, no teto, figuras mitológicas.” De repente, no auge das danças e quando a velha D. Pulquéria, oferecendo-se, pedia um bocadinho só da sarabanda, entra um vulto estranho e comunica ao ouvido do Intendente a chegada do novo Governador, o Conde de Bobadela, ao mesmo tempo que lhe põe nas mãos uma lista enorme dos que seriam logo embarcados para a metrópole como contrabandistas.
Pelo buraco da fechadura uma jovem de peregrinas graças, sobrinha do contratador, seguia a cena que se desenrolava no interior do gabinete, onde logo se reuniram o Intendente e Felisberto Caldeira, e, súbito, forçando a porta, arrancou da cabeça, num gesto atrevido, as pérolas de coifa, a gargantilha que afogava seu pescoço de mármore, e arrojando-se aos pés do Intendente clamou: “Eis o que quer El Rei, eis o que querem a corte e o general: o ouro e o diamante destas terras, as riquezas destes povos. Tomem! Carreguem! A influência dos Caldeiras inspira receios à conservação da colônia; seus grandes cabedais despertam cobiça e inveja. Mas, deixem-se estar os srs. Ministros d’El Rei, com os Caldeiras se hão de avir.”
Esta menina como vedes, a mais mimosa flor da cultura sertaneja, botão de rosa mal aberto, se ainda não é a Esteireira, tem-lhe o estofo.
No “Assombramento”, a página mais impressionante de Arinos e uma das melhores da nossa literatura, um arrieiro testo, a arrentar bravatas, insiste em fazer noite numa tapera de longos anos abandonada às almas perdidas que a habitavam em penitência. Tomado de mil alucinações visuais e auditivas, sem mais atinar com a saída no meio das trevas, arrasta-se por toda a casa a cravar a faca no vácuo, a dar tiros em vultos imaginários que o enfrentam, até que rola de grande altura no solo, através das tábuas carcomidas do assoalho. Pela manhã é encontrado mal ferido, ainda a fazer juras com as mãos crispadas: “eu mato, mato, mato”.
Quem lerá a “Garupa” sem sentir pela espinha o mesmo “friúme” que atormentou toda a vida Benedito Pires? E que dizer da horripilante “Feiticeira”?
Eis na realidade uma série de cousas tétricas mas inevitáveis; a vida do sertão, com o seu movimento pendular, é forçosamente monótona, e o sertanejo naturalmente pacato e pachorrento, tipo talvez interessante para quem desde o berço nunca o viu de outro modo; entretanto, pelas artérias deste ente frio e apalermado corre um sangue facilmente esquentável até à ebulição e somente nessa temperatura, que se é a do heroísmo é também a da ferocidade, merecia recontada por Arinos.
Será talvez pelo mesmo motivo que não se encontra em toda a sua obra um só caso de amor. Não se amam porventura os sertanejos? Oh, como não! Amam-se, porém, como todo o mundo, e haverá alguma coisa mais monótona do que o amor, com os seus idílios derramados, os seus infalíveis arrufos e os seus madrigais de realejos sanfoninados, desde Adão e Eva? Abrase-se o amor até o ciúme candente, e então, sim, teremos a mulata furibunda, golpeando a carótida da rival e bebendo-lhe o sangue. Nos Jagunços, é certo, surge a ameaça de um amor bucólico, mas a pobre menina ficou ali estirada pela faca do outro valentão que a queria.
Há um ramo da Etnologia que se ocupa dos costumes e tradições dos povos; é uma ciência com os seus processos, os seus métodos, as suas leis, pela qual se recompõem as migrações das raças, os seus caminhos ao longo da superfície do globo, as suas estâncias e as recíprocas influências regionais. Como toda a ciência, ela exige de um lado a observação nua dos fatos e do outro a sua exposição crua, como fundamento das operações do espírito que lhe fixam o cunho. O assunto, porém, por vários aspectos e sobretudo pelo aspecto sentimental, era um veio inexaurível para todas as fantasias literárias e que, como obras mais da imaginação, não era lícito exigir a verdade absoluta e muito menos leis nem métodos. Em Portugal, depois de dar o Romanceiro, onde se encerra a Adozinda, primorosa jóia de Garrett, forneceu as Lendas e Narrativas e no Brasil, que madrugou nesta estrada, produziu o indianismo de Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Gonçalves Dias, José de Alencar, e iniciou com o último a corrente do nacionalismo.
À pura etnologia melhor serve quem menos a dilui em letras; ela se compõe de lendas maravilhosas, tradições imemoriais, dramas misteriosos, encantamentos, mitos, autos, cantos e danças populares de todas as espécies: xácaras, baladas, melopéias, seguidilhas, diálogos, serenatas, reisados e cheganças, feiras e noivados, em versos de vários metros, mas em geral curtos – a endeixa, a redondilha e o heróico, enfim de tudo isso que se denomina hoje “folk-lore”, com menosprezo de expressões vernáculas, como o romanceiro ou cancioneiro e mesmo etopéia, cujos étimos gregos traduzem literalmente os do vocábulo inglês.
Estas meigas flores campesinas resumem na sua naturalidade toda a sua beleza, e perdem o encanto e o perfume ao menor toque; é como se se avivassem ou esbatessem os tons de uma rosa. Cousas há que não se imitam; o civilizado tem o espírito tão diverso do dessa gente simplória, enquistada na candura das suas terras, que já não é pouco compreender-lhe a poesia, porém emendá-la ou antes remendá-la é que não conseguiria nunca sem deixar à mostra a ponta do retalho; semelhante poesia pode ser lírica ou melancólica, picante, chistosa, patética, trágica ou épica, alteando-se até às rapsódias de Homero, mas tudo isso a seu jeito, e nenhum dos grandes líricos ou épicos ou trágicos lhe poria o dedo sem deformá-la nos seus traços, sem expô-la no seu recato, sem poluí-la na sua singeleza ou escurecê-la na sua limpidez.
A primeira qualidade de quem se entregar a estes estudos é a paciência, a paciência de procurá-los onde as suas fontes se acantoam, e depois um desprendimento tal que o torne incapaz de macular uma narrativa ingênua ou desfigurar uma poesia rústica com uma só palavra, ornando-se ou desornando-as por amor da sua arte ou da sua pessoa. Como estas qualidades culminavam em Afonso Arinos, o seu livro das Lendas e Tradições não tem superior em nenhuma literatura. Quando o tempo lhe não permita campear ou mesmo campeando esquecia-se horas perdidas em colóquios com a gente do sertão, deliciando-se na singeleza da sua alma, estimulando desafios para apanhar a agilidade natural de sua inteligência arisca ou fingindo-se distraído para surpreendê-la e reouvindo as mesmas cantilenas e as mesmas histórias com que o embalaram as velhas mucamas de sua casa.
O sertão não era para ele um prazer, um passatempo, um hábito; era a bem-aventurança elísea ou antes uma religião, a que de tempos a tempos, movido por ímpeto irresistível, havia de render culto; não ia de pés nus ou de alparcatas, empunhando a auriflama ou abordando-se no cajado do peregrino, nem entoava em coro a litania, porque não era Jerusalém o seu destino; porém jamais cometeu a heresia de comparecer no grande templo com as mesmas roupas impregnadas do pó indigno das cidades, senão com a sua andaina de ganga, os seus coturnos amarelos, o seu chapéu de couro de grandes abas e um bastão tosco.
Uma vez, numa das suas romarias de longas jornadas, acompanhando rapsodos e tocadores, deparou já ao cair da noite um enorme jequitibá – a que se chamava a catedral das florestas, – em cujo tronco se abrira uma grande cava; então o bardo Catulo, nela penetrando, declamou plangentemente uma ode heróica à natureza mater, enquanto o violeiro Pernambucano, entre todos os da fama famosíssimo, dedilhando as primas e o bordão, compunha um hino à lua, que vinha tímida, esquiva, vagarosa se esgueirando por trás das frondes do arvoredo. Era demais; descobrindo-se e pedindo silêncio, Arinos caiu numa espécie de êxtase, que durou enquanto não se perdeu além das serranias o último eco do improviso cerimonial.
Este sentimento, arrancava tão profundamente da sua alma que, por mais infantil que parecesse, a todos infundia respeito; nem ele era capaz de brincar ou consentir que brincassem com estas cousas. Como todo o crente, desejava impor à sua crença a força de propiciá-la. Dias depois da série de conferências sobre lendas e tradições brasileiras, numa das quais fez representar em cena aberta o Auto da Nau Catarineta, ofereceu no seu palacete à alta sociedade paulistana um baile da maior suntuosidade e requintada opulência, e a meio da noite, quando os salões regurgitavam das mais belas damas, cujos alvos colos nus desapareciam sob rocais de pérolas ou constelações de diamantes, e homens enfarpelados em irrepreensíveis casacas se ombreavam, entrou uma turma de legítimos e retintos caboclos, de chapéu na cabeça e sem colarinhos, para dançar o verdadeiro, o clássico, o incorrupto “cateretê”; e ao se retirarem deste quadro, no qual não sei se o poeta das Geórgicas ainda acharia que a “púrpura d’Assíria não altera a brancura da lã”, ele próprio, com aquela sua linha finamente aristocrática, os conduziu até ao topo da escada, apertando a mão de cada um. Neste aperto de mão ia uma renúncia ostensiva, um repto, o desprezo do fiel ao chamado respeito humano.
Amando por esta forma o sertão, tendo-o estudado tanto e ainda melhor o descrito, ninguém jamais viu Arinos, nos seus livros, nos seus artigos, nas suas conferências defender ou sequer insinuar uma idéia de progresso para essas terras abandonadas e essas gentes primitivas. Era medo que pegasse. Ramalho Ortigão repetir-lhe-ia apóstrofe que lhe coube na deleitosa ficção de Fradique Mendes: “Você é um monstro, Fradique. O que você queria era habitar o confortável Paris do meiado do século XIX, e ter aqui, a dois dias de viagem, o Portugal do século XVIII, onde pudesse vir regalar-se de pitoresco e de arcaísmo... Confesse que é o que você queria.”
Na Europa, ocupada palmo a palmo pelo homem, Arinos se consolava da monotonia do bulício, percorrendo velhas catedrais e afundando-se nos museus e antiguidades, que são como florestas lardeadas nas civilizações; mas aqui, sem o seu sertão integral, desde o indígena silvano até o solo agreste, onde afogar as suas saudades? onde se defender dos homens? onde reconstruir o seu altar? Se ele o sonhasse esse sonho seria um pesadelo do qual sairia em atordoamento onírico para tomar o seu fogoso Sultão, e a toda brida atravessar cidades e cidades infindas, chorando a catástrofe suprema e irremediável.
Contudo, era Arinos um acabado “Gentleman”, assim na fidalguia das maneiras como no apuro do porte, e eu emprego o termo inglês porque ele é insubstituível para resumir o conjunto de dotes que compõem o homem da sociedade; poderia dizer um cavalheiro, se a palavra já não encerrasse reticências e mesmo desadjetivada não tivesse decaído um tanto nos costumes. Ninguém com mais abundância de graças na arte difícil do galanteio respeitoso e fino, apropriando e dosando a frase de espírito, a anedota leve, a resposta esfuziante, a ponta de erudição; do outro lado, inexcedível conhecedor teórico da indumentária em geral, ninguém como ele a reduzia a prática com tanta distinção e medida, parecendo preocupado naquele “espírito dos trajes”, que o inefável filósofo emblemático do Sartor Resartus opunha ao Espírito das Leis. Intimamente os considerava uns trapos.
O meu primeiro encontro com Arinos deu-me num relance a visão perfeita da sua personalidade. Foi há cerca de três lustros, numa recepção em casa daquele que havia de inaugurar depois a nossa Embaixada em Portugal; a sua figura, como a tendes presente, se impunha logo: em corpo alto e reto, de boa carnadura, sem adiposidades, proporcionado, um semblante nazareno, um tanto pálido, por vezes um tanto triste apesar do seu sorriso natural e dos lampejos de vivacidade que a todo o momento faiscavam dos olhos penetrantes; jamais vi outra fácies por onde se devassasse tão fundo e tão rápido o interior; não foi para ela que Raimundo Correia escreveu o “Mal Secreto”. Tal fisionomia, tal cérebro, tal coração, – a máxima inteligência unida à máxima bondade projetando-se à flor do rosto. Atraído para o seu círculo aí o apreciei quase uma noite na latitude do talento e na variedade da cultura.
E, para o mostrar num dos seus feitos mais originais, permiti que vos refira o seguinte episódio: a certa hora, já íntima a reunião, foram umas mocinhas pedir-lhe que dissesse uma das suas histórias sertanejas, instando em tanta maneira que ele não teve remédio senão ceder, e então contou como um caipira entendia a criação do mundo; só me lembro agora que no quarto dia foi fabricada uma espingarda de cano torto para matar o veado na curva, e o sexto destinado desde manhãzinha até à noite a fazer os elefantes. As meninas riram-se a bom rir... e os mais velhos também.
Há escritores que estão integralmente nas suas obras e só por elas hão de ser avaliados, são os de hábitos solitários; uns, retraídos, não gostam de falar; outros superiores, não acham com quem falar; uns, avarentos, escondem as suas idéias; outros, caprichosos, não as deixam mal vestidas; os tímidos emudecem por inibição, os melancólicos por desânimo; uns, porque dão à luz com sofrimento, evitam-no pelas ruas; outros, desconfiados da própria língua e da alheia, bebem o exemplo de Santo Agatão que, sob a fé do Padre Miguel Bernardes, trouxe três anos uma pedra na boca para aprender a calar, e não desdenham o conselho de Xenócrates de entupirem os ouvidos contra as más idéias... que são quase todas. Nesta grande classe entram Flaubert, Amiel, Raimundo Correia... Ao invés, outros há que nunca seriam aferidos somente pelas suas obras, por mais numerosas ou transcendentes, porque neles o potencial sobreexcede à produção; a estes o papel não chega ou o tempo não chega para o papel; incapazes da meditação sozinhos, não têm idéias; os seus pensamentos não são reflexíveis, são reflexos; as suas belas frases são réplicas, a sua obra são ditos, repentes, centelhas espalhados ao vento, improvisados em tunas, para os tunantes, em mesas de jornais para os jornalistas... e outras mesas. Mão oculta que os seguisse e fosse apanhado todo este tesouro abandonado, colheria uma literatura. Destes gênios da palestra quantos não estão cintilando agora na imaginação dos que me ouvem! Tal classe não é menos numerosa, e só dos nossos apanha desde Paula Ney e Artur de Oliveira até o Barão do Rio Branco, Guimarães Passos, Artur Azevedo, Emílio de Meneses.
Os primeiros vivem isolados ou quando muito com um amigo, irmão em sentimentos, como Machado de Assis e um dos maiores e mais puros espíritos desta Casa; os outros nunca estão sós, possuem o que se chama em biologia quimiotaxia positiva: atraem e aglutinam os circunstantes e podem ser diagnosticados pela nossa reação de Widal – um para tantos. Arinos pertencia ao segundo grupo; se não lareava nas boêmias tinha o espírito boêmio, dispersivo e perdulário, e afinal, que é o sertão que o viu nascer e formou à sua imagem, senão uma vasta boêmia, desde a choupana de adobe do caboclo até o velho casarão do fazendeiro? A sua inteligência transbordava, metade do dia gastava em enchê-la e a outra em esvaziá-la, porém como a sua assimilação era prodigiosamente rápida, e a pena tão morosa, esvaziava-a ao ar e ao léu.
Os Jagunços, publicado em folhetins, foi escrito noite a noite, ao lado do tipógrafo à espera dos originais, enquanto ele indagava onde tinha ficado na véspera. Na sua prodigalidade, porém, dissipava somente o que era seu, o tempo, o talento e a saúde, e nunca tirava do alheio; da sua roda podiam sair todos sem olhar para trás, porque lhe repugnava à delicadeza austera o espírito fácil da mordacidade, a alfinetada venenosa, a insinuação traiçoeira, e, se porventura lhe escapava alguma ou outra pilhéria, que aliás não estava entre as contas do seu rosário, essa, podiam ficar certos, vinha sempre polida e asseada. O que encantava e prendia na sua conversação não era tampouco, como em outros, o paradoxo, o trocadilho, nem o inédito, o tumulto ou a volubilidade do pensamento; era a fábula, a novela, a aventura, o romance, o apólogo, que ele dizia gostosamente, esmiuçando os pormenores, e, se estava entre íntimos, expandindo a gesticulação abundante e meridional, e falando as mesmas falas das suas personagens e na mesma toada, graças aos resíduos da pronúncia sertaneja que lhe tinham ficado do longo convívio.
A enorme plasticidade da sua arte permitia-lhe aplicá-la a todos os gêneros do espírito apesar do desalinho no trabalho. Possuía perfeitamente a sua língua como vocabulário e como ritmo; aprendera a amá-la nos clássicos onde ela se encontra em estado de pureza, e conquanto lhe não regateasse à vaidade feminina os adornos da feição moderna, nunca faltou com o respeito, como dizia o Tácito, “à sua modéstia e ao seu pudor”. As línguas, à semelhança das correntes d’água, vão se conspurcando no seu curso com os detritos que das margens se desagregam para o álveo, e quanto mais os povos que as falam caminham no progresso material em que porfiam tanto mais, e mais depressa, elas se mascavam; a vida intensa não consente lazeres para as coisas mínimas e pouco a pouco cada idioma vai se tornando um esperanto. São os bons escritores, oh! os raros bons escritores! que lhes guardam a incorruptibilidade e a nobreza; no metal em que fundem as suas palavras derramam eles a substância mesma de que são feitos, – os sonhadores a sua fantasia, os arrebatados a sua violência, os céticos o seu desengano, os maus a sua maldade, os bons o seu coração, e desta sorte a transparência ou a obscuridade da frase, a harmonia, a ênfase, a rudeza, o artifício, a pompa asiática não passam de sintomas. O estilo é o espelho da alma e o de Arinos refletia à toda luz uma alma tranqüila e boa.
Há duas espécies de bondade, – uma que faz o bem, com os olhos e ouvidos para o Alto e não se esquece de pedir logo o recibo com todos os selos, para a cobrança dos juros acumulados; a outra que faz o bem pelo bem que logra, porque sente o mal alheio como próprio; a primeira é um negócio, quando muito um mau negócio; a segunda é sempre um sofrimento. Se as criaturas fossem boas ou más, pelo estudo, e só tivessem no gozo e nos proventos o seu destino, a maldade seria a única cousa no mundo a ensinar, pois numa humanidade desumana e má o bom é desde logo um vencido ou pelo menos um torturado. Vi cartas íntimas, datadas da Europa, em que de tão longe Arinos fazia minuciosa distribuição de benefícios e de lá os enviava também em objetos; na véspera da sua derradeira viagem, quando foi a Belo Horizonte despedir-se de seus Pais, saltou numa estação próxima para visitar em humilde choça palhiça duas pobres velhinhas que o tiveram outrora nos braços; nessa noite, contou-me sua veneranda mãe, não pôde dormir pensando nelas, e exclamando: – “Coitadinhas, estão tão acabadas que decerto não as vereis mais...” E não viu. Ainda vos haveis de lembrar daquela feita em que, lendo nesta sala o seu drama O Contratador de Diamantes, quando ia repetir o hino com que no auge da emoção se despedia da Pátria estremecida o condenado Felisberto Caldeira, preso e algemado, contemplando o romper da aurora por entre aquela paisagem maravilhosa que tanto amara e que estava vendo pela última vez, Arinos estacou subitamente, lívido, aflito, num esforço enorme para conter o pranto, mas este afinal o venceu, sufocando-o em convulsões, enquanto as lágrimas golfavam como punhos.
Estes grandes espíritos são como certas plantas: umas prosperam sob as nossas vistas, rompendo hoje da haste um renovo que é amanhã vergôntea, desatando pouco a pouco a folhagem, enverdecendo mais e mais a clorofila, e abrindo afinal a florescência, quando ostenta toda sua beleza radiante; outras também germinaram e subiram, e desabrocharam em ramos e ramagens e desabotoaram em flores, mas estavam fora do caminho quotidiano, e ninguém viu, ninguém soube senão uma manhã inesperadamente, pela flagrância do perfume. Assim Afonso Arinos; a sua presença foi uma aparição; não chegou, surdiu; quando debaixo de uns contos deliciosos deram com o seu nome, perguntaram todos de quem seria aquele pseudônimo.
Ninguém vira nascer nem crescer esse exemplar de planta agreste, que surgia com tanta formosura embalsamando de suave aroma o ambiente. Então os que amam estas cousas, e vós os primeiros, foram buscá-la, e se acercaram dela e a cumularam de carinhos e, mais digna de um jardim, a trouxeram para o nosso jardim de Academus... Um dia amanheceu vazio o seu lugar, a sua ausência foi uma desaparição.