O MINISTÉRIO DA SAÚDE PÚBLICA
Numa sessão magna em que não figura sobre a mesa, solene e ameaçador como nos dias ordinários, um exemplar do Regimento, mas apenas flores tímidas e mudas, ou que só falam pelo seu perfume, aproveito-me da circunstância para dar o exemplo da desobediência ao nosso compromisso e invadir o domínio proibido da política.
Aliás, não sei se avanço uma heresia afirmando que os médicos, pela natureza dos seus estudos, deviam ser entregues a essa função, de que estiveram em todos os tempos despojados pelos juristas. Dirão estes: Que faz a política? Faz leis e aplica - ora isto é conosco. Retrucarão os médicos Faz leis para quem? Para os homens, ora isto é conosco - que melhor os conhecemos, na sua fisiologia, do corpo e da alma, no seu caráter, nas suas fraquezas e nas suas necessidades. Ao demais, que é o Estado, que são os Estados, nas cinco partes do mundo, ao juízo dos próprios estadistas... na oposição, e dos críticos, e dos filósofos, e da nobreza, do clero e do povo, que vêm a ser senão eternos doentes, a pedir a todo instante remédios e mais remédios? Ora, isto é conosco ... Nós sempre nos contentamos com os doentes - homens e cedemos de graça os doentes - Estados, mas ao menos que aqueles fossem nossos.
A nós nos toca premuni-los contra as doenças e curá-los. O Estado tem tantas ocupações e preocupações, que bem nos podia conceder a tarefa de velar pela saúde de seus habitantes, com a iniciativa, a autonomia e a plenitude correspondentes à responsabilidade, à complexidade e à dificuldade dessa missão.
Quando na nossa terra um chefe do governo em momento de inspiração, dir-se-ia divina, consentiu que um médico da maior capacidade fosse não o ministro, o ditador da saúde pública, assinou com esse ato, ao mesmo tempo, a reabilitação do Brasil.
Falta-nos, porém, completar a obra fecunda de Osvaldo Cruz, a qual se reabriu, como já foi dito, os portos do Brasil aos estrangeiros, ainda deixou por assegurar a vida, a saúde, o vigor dos seus naturais.
Ora, na transformação política por que vão passar todos os povos, muito se enganará quem não previr que só os fortes e capazes serão contados; a nós perguntarão pelo que fizemos e vamos fazer dos incalculáveis tesouros que a natureza enterrou no nosso solo, não para ser abandonados pela inércia, mas redistribuídos em frutos pelo trabalho. E, como esta inércia já ficou demonstrada que é doença, e doença evitável e curável, só responderemos dignamente, apresentando-nos com o desígnio inflexível da extinção das nossas doenças da inércia: o impaludismo, a ancilostomíase, o morbo de Chagas, a leishmaniose, - a que se há de juntar o analfabetismo. Ainda bem que a higiene no que toca a estas endemias, que dizimam ou desvirilizam os nossos patrícios, já chegou à sua fase matemática e o problema do saneamento do nosso país se contém dentro de fórmulas algébricas. Este, creiam, é o primeiro elemento da defesa nacional: solo fecundado é solo defendido.
De uma coisa podemos todos estar certos, é que esta campanha ou nunca será realizada ou só o será por um homem, sábio e enérgico, iluminado pelo fogo sagrado do seu sacerdócio, e capaz pelo prestígio de interessar todos os médicos brasileiros nesta cruzada; muitas cabeças podem pensar, mas só um braço manda. A execução de um tão vasto plano não há de ficar subordinada às flutuações da política, para sair aos arrancos, alto e mal, sem diretriz; ao contrário, a sua expressão gráfica é uma linha reta.
No nosso sistema político, o presidente da República, verdadeiro ministro de todas as pastas e chefe de todos os serviços, na impossibilidade de se especializar em todas as especialidades, precisa ter ao seu lado, nos postos técnicos, um técnico de valor, que não será na ordem hierárquica um terceiro, um quarto, um quinto, um subchefe, porque a sua responsabilidade é a de comando. Daí veio que a República nunca teve, nem terá, ministros civis nas pastas militares.
Enfim, neste momento, mais do que nunca se afirma como uma necessidade nacional a criação do Ministério da Saúde Pública, de já muito reclamada e ainda há dias aconselhada pela voz oracular de Rui Barbosa; o chefe de Estado a quem couber a glória de o instituir não encontrará dificuldades em o prover; escreva em quatro retalhos de papel estes nomes: Carlos Seidl, Afrânio Peixoto, Carlos Chagas, Artur Neiva e tire a sorte; o que sair será o digno generalíssimo dessa campanha.
O temor de conflitos de jurisdição constitucional levantados pelos Estados é ilusório e irrisório e chega a ser ofensivo; admitir que haja um governo capaz de rejeitar o serviço gratuito, desinteressado e humanitário da medicina e da higiene em beneficio do seu Estado, simplesmente porque esse serviço vem da União, é descontar muito baixo o patriotismo dos seus governadores e o seu bom senso. Mais distantes ficam a Índia e o Brasil da América do Norte e nem a opulenta e orgulhosa Inglaterra nem o nosso país repeliram as comissões do Instituto Rockfeller que aqui e lá tomaram a seu cargo a profilaxia de certas doenças.
Felizmente este problema interessa profundamente o atual governo, se não estou autorizado a dizer que o Sr. Presidente da República comunga nestas ideias, posso adiantar em nome da comissão que designastes para estudar e promover os meios de prevenir e debelar as doenças endêmicas no interior do Brasil, e que ainda hoje teve a honra de ser recebida em conferência por S. Ex., que a sua preocupação obsessiva nestes assuntos não é menor do que a nossa. Da parte do nosso Presidente Honorário, o Sr. Ministro do Interior, - lede-lhe o relatório ainda ontem publicado, - chega a haver em certos pontos uma tal conformidade de pensamentos com o da comissão, como se de fato nos tivéssemos antes entendido.
Enfim, meus senhores, tudo nos dá a esperança de que havemos de levar a cabo a missão que nos pertence de sanear o território nacional das doenças endêmicas que o infestam e o depreciam.
(Medicina e Cultura, 1932.)
PENSAI NA EDUCAÇÃO, BRASILEIROS!
Verdade ou lenda, conta Chateaubriand, no Génie du Christianisme, que no mosteiro de Trappa, os monges, obrigados ao mais rigoroso mutismo, só o interrompiam para dizer ao se encontrarem: pensai na morte, irmãos! Esta fórmula fria e cortante de desprendimento ensina na sua rigidez a necessidade de uma consciência vigilantes e pura ante as incertezas da hora extrema. O futuro historiador há de assinalar que existiu também no Brasil uma instituição de homens perseverantes e sonhadores, de boa vontade e de má sorte, que se reuniam através do tumulto indiferente, para exclamar: pensar na educação, patrícios! E, assim, como a exortação cisterciana, refletida durante séculos, como um reboo, no silêncio dos claustros, talvez se tenha impregnado nas suas paredes esterroadas, mas jamais conseguir traspassá-las, e o que retumba cá fora é o uníssono de vida! vida! vida! numa insofrida ânsia do gozo, ou, não importa, numa soluçada renúncia no sofrimento, assim também toda a pregação feita neste recinto, com a mesma fé monástica e “não menos certíssima esperança” perde-se lá fora, diluída na vozearia de uns e abafada no celeuma dos outros. Contudo, eu ainda venho bradar hoje, com a mesma unção patriótica dos que me precederam: pensai na educação, brasileiros!
Creio que tal qual aconteceu com os outros grandes problemas nacionais - a independência, a abolição, a república, que pareciam resistir à mais intensa propaganda, e de surpresa receberam a solução definitiva, assim se dará com o da cultura. Tudo está esclarecido e preparado para o golpe supremo que espera o seu Pedro I, a sua Isabel, o seu Deodoro; o herói deste heroísmo haverá de repetir para o Brasil o grito que aos olhos atônitos dos coevos, como uma mutação em cena aberta, de uma nação ridicularizada e quase presa fez uma das maiores potências do mundo “De hoje em diante não haverá mais no Japão nenhum inculto’.
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A IGNORÂNCIA REPRESENTA ATRASO, POBREZA E INFERIORIDADE DE UMA NAÇÃO
Estão todos os historiadores acordes em atribuir o êxito mundial do império asiático à educação do povo. Gustavo Le Bon conta no seu admirável Le désequilibre du monde: “Quando no dia 27 de Maio de 1905 a grande esquadra do império russo foi completamente destruída em algumas horas, em Tsushima, pelos encouraçados japoneses, o estupor foi universal; com efeito, subitamente se tornava evidente que, contra todas as ideias circulantes, o ínfimo Japão, conhecido apenas há meio século, tornara-se uma grande potência. Aliás, em todas as batalhas anteriores, os russos, conquanto sempre mais numerosos, haviam sido invariavelmente batidos. Perguntando ao então embaixador japonês em Paris, o Sr. Motono, qual a causa desta superioridade, respondeu-me o eminente homem de Estado: “O desenvolvimento atual da minha Pátria é fruto da educação ministrada ao povo quando um levante o tirou há pouco do feudalismo. Esta educação, inteligentemente escolhida, foi orientada para desenvolver também a qualidade de caráter legado por nossos avós”.
O célebre e fértil escritor japonês Kamakami insiste neste conceito no seu livro intitulado The real japanese question. “Ninguém contesta que os japoneses têm no seu país uma insaciável sede de educação, e que para aonde emigram levam consigo este anseio de conhecimentos”. Já o inspetor da imigração na Califórnia Antone Scar observara que “os rendeiros japoneses podem ter a seu serviço trabalhadores brancos e aproveitar-lhes os filhos nos trabalhos, porém, os seus próprios filhos esses enviam religiosamente ao colégio e nada há que prevaleça a este dever”. É a mesma observação do publicista Ray Stannard Baker: “Os japoneses em Haway, apaixonados pela educação, mandam os seus filhos para a escola até os verem inteiramente preparados (throughly prepared).
Ora, se com o sucesso feliz que assombrou o mundo o Japão imitou a Alemanha, exemplário das virtudes da cultura em todos os departamentos do saber humano, por que não seguirmos nós o modelo do grande Império do Sol Levante?
A sentença de Maurras precisa ser ampliada - não são só os livros que têm os seus fados, são também os povos. Entretanto, como se salvou o Japão quando lhe cobiçaram o território? Pela educação do povo. Como nos salvaremos nós? Com a cultura do povo, porque da cultura nasce a ambição, da ambição a atividade, da atividade a riqueza, da riqueza multiplicada a fortuna coletiva, e desta a confiança, a força, a durabilidade, a coesão.
Há um grupo social que não chega a formar uma raça, nem uma nacionalidade, e só em torno da fé religa os seus membros, esparsos pelo universo. Escorraçados de toda parte, como o Ahasverus da lenda, perseguido e martirizado, ele não só resiste há dezenas de milhares de anos ao aniquilamento, como impõe aos seus perseguidores a submissão de lhe obsecrar a esmola no momento amargo das aperturas. Por quê? Porque o judaísmo exige o estudo como um preceito religioso e nenhum judeu iletrado se conhece. Se cotejarmos as nações ignorantes e as cultas em igualdade ou proporção de habitantes, chegamos fatalmente ao seguinte postulado: O progresso de um país está na razão direta da cultura do povo.
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Não há, pois, mais rendoso emprego dos dinheiros públicos do que o destinado à cultura, assim como a ignorância representa o primeiro e maior fator do atraso, da pobreza e da inferioridade de qualquer nação.
O BRASIL ESPERA QUE CADA UM CUMPRA O SEU DEVER
A ignorância é uma calamidade pública como a guerra, a peste, os cataclismos, e não só uma calamidade, como a maior de todas, porque as outras devastam e passam, como tempestades seguidas de céu bonança; mas a ignorância é qual o câncer, que tem a volúpia da tortura no corroer célula a célula, fibra por fibra, inexoravelmente o organismo; dos cataclismos, das pestes e das guerras se erguem os povos para as bênçãos da paz e do trabalho: na ignorância se afundam cada vez mais para a subalternidade e a degenerescência. Imaginemos - quod Deos avertat - que somos surpreendidos um dia por uma irrupção inimiga. Que faremos? Do nada tudo até eliminá-la do solo sagrado. Por que, pois, a passividade ante as tremendas consequências da ignorância? Ou o Brasil a encara como uma calamidade nacional e lhe acode com o socorro imediato ou estará irremediavelmente batido na concorrência com as nações cultas.
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O ÊXODO DOS SERTÕES
Reputada folha que se publica em São Paulo, sob a direção do talentoso jornalista Cásper Líbero - A Gazeta - acusou-me há dias de estar incitando o Brasil à extinção do analfabetismo, promovendo assim o extermínio da agricultura, fonte primeira de sua riqueza.
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São os meus nobres colegas testemunhas de que, tomando por tema nestas sessões assuntos sociais correlatos com a Medicina, aquele que mais me tem ocupado, como médico, é a ignorância. Considero-a não só como doença, senão a pior de todas, porque a todas conduz; e, quando se instala endemicamente, como na nossa terra, assoma as proporções de verdadeira calamidade pública. É ela que reduz o nosso homem a meio-homem, a um quarto de homem, e a nossa população à metade ou quarto da realidade; ela, e só ela, é a responsável pelo relativo atraso da nossa Pátria, que não pode sofrer o confronto com outras, a cujo lado devia formar em pé de igualdade e ereta. Não se aponta no mundo uma só grande Nação de ignorantes.
Consinta-me, pois, a Academia, desde que é desta alta cadeira que de há muito venho sustentando tais conceitos, que sob a sua égide ainda agora os procure defender. Prometo ser breve, e não passar dos meus cinco minutos.
O êxodo dos campos para as cidades, no Brasil como em todo o mundo, hoje e sempre, obedece a fatores inelutáveis e universais, que são principalmente a prosperidade adquirida no trabalho rural, a atração irresistível das cidades, com os seus progressos e o seu conforto, a volubilidade e a insaciabilidade próprias do homem, etc. Mas, a vida campestre também chumba ao solo com as suas seduções e graças inefáveis, em todos os tempos cantadas pelos poetas. Para não citar senão o maior, as Bucólicas e as Geórgicas são um contínuo hino panteísta às maravilhas das doces campanhas - dulcia arva, onde é feliz aquele que chegado à velhice conserva os seus campos e eles lhe bastam.
Fortunate senex! ergo tua rura manebunt
Et tibi magna satis
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O que se observa no Brasil é que as cidades se enchem principalmente de ádvenas, de certos elementos migratórios que num país ávido de braços nunca penetraram nos campos nem sabem manejar a enxada ou a picareta ou entulhar a semente, e flanam pelas ruas de mãos atrás.
Os nossos sertanejos em geral têm o enojo das cidades e as fogem, sem compreender a vida senão no paraíso dos seus prados e das suas montanhas. Instruídos, o seu trabalho triplica, aperfeiçoa-se e rende. É um erro nos tempos que correm ainda apelar-se para o homem-máquina; nos mais rudimentares misteres manuais a obra do ignorante não se compara à do culto. Assim seguramente acontece na agricultura. Iludidos ou cegos pela ambição, que é a primeira qualidade do homem, não é raro que experimentem as cidades; se prosperam, ainda bem, muito bem, graças a Deus; se não, voltam logo, desenganados e com cara de herege, que é a da fome, e continuam a sua faina no amanho da terra. Não foram os nossos patrícios, egressos dos campos pela prosperidade e a cultura, que edificaram essa formosa cidade de São Paulo, um dos maiores monumentos do Brasil?
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Porém, fixar nos sertões os nossos patrícios pela ignorância, que é uma humilhação, uma inferioridade, a privação de todos os proventos e de todos os gozos, do espírito, que nós desfrutamos pela cultura, podendo propiciá-la e somente para nosso maior lucro, parece inominável egoísmo. Os citas, se é verdadeira a palavra de Heródoto, furavam os olhos dos cativos para que melhor ordenhassem o gado; nós afundaríamos os nossos sertanejos na eterna treva para não abandonarem os campos.
Não seria preferível, então, importar outra vez os negros da Costa da África, como nova espécie de vitamina?
Entretanto, a emigração dos campos obedece às vezes a causas evitáveis. Pode-se dizer que nos nossos sertões, nunca entrou, de nenhuma forma e em dose nenhuma, a instrução e nas raríssimas escolas colocadas a léguas de intervalos, só é possível o ensino o mais elementar. O resultado é que os pais, empenhados na educação de seus filhos, os envia, à custa dos derradeiros sacrifícios e privações, para as cidades, que é onde se encontram estabelecimentos dignos de confiança. Deste aspecto do problema educativo, tão afogado de dificuldades, sobretudo pela imensidade do nosso território e extrema diluição da sua população escolar, tenho eu sempre cuidado com a maior perseverança. Nem todos aceitam a solução que proponho, conquanto pretenda exatamente evitar o abandono dos campos e localizar os seus habitantes.
Quanto mais medito nesta matéria, mais me convenço de que só à União pode ser entregue o encargo de levar o ensino aos nossos sertões; primeiro, pelo seu custo incomportável para os cofres, em geral onerados, dos Estados; segundo, pela vantagem moral de sua homogeneidade e sistematização; terceiro, pela vantagem administrativa da boa e nítida divisão de competências e esforços. Assim aos municípios, em geral de escassos recursos orçamentários, caberia ministrar a educação na sua sede, aos Estados na sua capital e à União - nos campos e nos sertões.
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Escreve A Gazeta: “Segundo noticiam os jornais, o Dr. Miguel Couto, como representante do Estado do Rio, na futura Constituinte, defenderá a sua antiga tese". Não tenha a menor dúvida o meu eminente e prezado amigo Dr. Cásper Líbero. Eu não aceitaria um instante o mandato, se não pudesse livremente propugnar a educação do povo - que “não há grande povo sem grande saber”, e o aperfeiçoamento da raça - que “o vigor da raça e o abatimento da raça representam os fatores mais importantes da grandeza e da decadência das nações”. Na nossa são os dois problemas fundamentais.
Conta Plutarco, na vida de Péricles, que indo o grande ateniense, o Olímpico, dissuadir Anaxágoras de se deixar morrer de fome, porque precisava ainda dos seus conselhos, replicou-lhe o filósofo: “quem quer a lâmpada acesa deita-lhe o óleo”.
É o que compete ao Governo, porque o Brasil não é só o dia de hoje, é o amanhã dos nossos filhos, e se a Pátria os quer fortes para defendê-la e cultos para elevá-la, cumpre-lhe não os esquecer um momento. Agora ou nunca mais.
(No Brasil só há um problema nacional: a educação do povo, 1927.)