Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Afonso Arinos > Afonso Arinos

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Olavo Bilac

RESPOSTA DO SR. OLAVO BILAC

Não, meu ilustre confrade! A Academia Brasileira não procurou apenas no autor de “Pedro Barqueiro” e do “Assombramento” uma “como reminiscência de Eduardo Prado”.

Os que vos confiaram a posse da cadeira patrocinada pelo nome do velho Rio Branco quiseram honrar-se, chamando para a sua companhia o escritor fundamente “nacional” que compôs os admiráveis contos de Pelo sertão, e quiseram também afirmar o seu amor pelas tradições – esse culto que o vosso antecessor erradamente acreditou desaparecido da alma brasileira, e que também vós, com um susto que a placidez do estilo acadêmico mal disfarça, sem razão supondes estiolado, como uma planta melindrosa a que falta o carinho do horticultor.

Os da Academia, já estamos todos longe da idade, em que o trato do machado do lenhador é mais agradável à mão do que o trato da esteva do arado. Os que ainda não temos quarenta anos já estamos perto desse marco da sisudez, que assinala a crise mais séria do espírito de um homem, – salvo naqueles espíritos excepcionais, não sei se felizes ou infelizes, que, quanto mais vivem, mais se comprazem em mofar da gravidade da vida, dando-lhe piparotes na caraça austera. Nesta companhia, podeis amar o passado sem receio. É esse um amor que só pode fazer bem, – quando não imobiliza a gente no empedramento da mulher de Lote. As tradições, que tanto prezais, têm aqui dentro quem lhes renda o culto devido. E esperamos mostrar-vos que também lá fora não falta quem as ame.

O vosso respeito do passado, – conhecem-no bem os que vos leram e lêem, no livro e no jornal, e conheço-o ainda melhor, eu, que o estudei e admirei, em saudoso período de intimidade: e é para mim um consolo e um orgulho o lembrar aqui o tempo amável e ocupado, trabalhoso e suave a um tempo, em que vivi convosco, há anos, no velho seio de Minas, perlustrando caminhos sepulcrais, restaurando idades perdidas, ressuscitando almas defuntas.

Foi em Ouro Preto, na anciã Vila Rica. Tivemos ali meses de uma vida singular, intensamente vivida, cheia de completos prazeres intelectuais, – que só podem ser bem contados aqui, a uma assistência escolhida e culta como esta, capaz de compreender como dois homens em pleno viço da mocidade puderam passar semanas e semanas entre os vivos, não os vendo nem ouvindo, e só tendo ouvidos e olhos para um estranho mundo de sombras e de fantasmas.

Bem vos deveis lembrar... Enquanto pelas ruas de Ouro Preto, naquele ano trágico de 1893, os vivos comentavam com calor os episódios da revolta naval, e os bombardeios, e as prisões, e as loucuras, – nós dois, mergulhados no passado, conversávamos com espectros. Toda a gente do século XVII, – capitães-generais, ouvidores, milicianos de El-Rei, aventureiros, traficantes de pretos, frades e freiras, tiranos e peralvilhos, fidalgos brilhantes e pobres bateadores de ouro e cateadores de cascalho, garimpeiros, senhores e escravos, damas de casta orgulhosa e imundas pretas descalças, ricos proprietários e contrabandistas farroupilhas, – toda essa gente acudia ao chamado da nossa curiosidade, e, saltando das casas arruinadas do Padre Faria e de Antônio Dias, evadindo-se do mistério dos arquivos, repovoando as ruas cheias de escombros, vinha reviver conosco a sua antiga vida pitoresca.

Logo cedo, pela íngreme Rua Direita, íamos ter à larga praça do Palácio. De um lado ficava a imensa Casa da Câmara, alto cubo salpicado de janelas, tipo acabado da arquitetura colonial, com os varões de ferro da cadeia embaixo, e, em cima, a torre severa abrigando o sino ancião, a antiga campana de rebate, que servia outrora para transmitir ao povo humilde, com a sua voz temida, a cólera ou a bênção, ambas paternais e pesadas, dos representantes de El-Rei.

Do outro lado, o Palácio – um fortim, cuja presença causava espanto naquela praça tão calma, e a cujas seteiras, ameias e barbacãs o apuro da pintura nova não conseguia tirar o aspecto ferrenho e hostil. Era no rés-do-chão dessa fortaleza, remanescente da era colonial, que estava instalado o arquivo público de Minas: era ali o cemitério das idades mortas, o campo-santo das nossas origens. Esse arquivo tem hoje, graças justamente a esforços vossos, outra instalação, destinada a salvá-lo de uma ruína que teria de pesar na consciência dos modernos como o remorso de um grande crime; mas, naquele tempo, a tristeza e a ancianidade da instalação diziam bem com a ancianidade e a tristeza do depósito. Entrávamos, com respeito, abafando o pisar; e, assim que começávamos a folhear os grossos livros encapados em couro, uma poeira sutil começava a encher o imenso e triste salão. Foi ali que respirei largamente isso a que o mais desmoralizado dos chavões dá o nome de pó dos séculos... Era um pó que parecia sair do fundo de ossuários remexidos, um pó impalpável e invisível que era como o bafo úmido e tênue do respirar dos in-fólios comidos das traças.

À medida que íamos virando as páginas, cobertas de uma escritura quase hieroglífica, miudinha e certa, retalhada de barras caprichosas, com fantasias de recorte nas maiúsculas e voltas faceiras nas vírgulas acaramujadas, as nossas impressões exteriorizavam-se; e, no pó finíssimo que pairava em torno de nós, percebíamos vagos cheiros indefinidos, que se casavam ou contrastavam, harmonizando-se, como as notas de uma concertina de aromas: havia o cheiro fresco dos vales, das montanhas, dos ribeirões de águas cantantes, de todo aquele seio de natureza virgem pesquisado pelas caravanas da conquista; o cheiro úmido de terra cavada, e das gupiaras cheias de gorgulho; o cheiro apagado e caricioso do incenso das sés e das sacristias; o cheiro da mandioca macerada com que as damas faziam brancos os cabelos... E, não raro, subia e dominava todos os outros um cheiro acre de sangue, uma exalação de mortualhas podres, de cadáveres de mineiros soterrados nas minas, de garimpeiros rebeldes esquartejados pela justiça, de pretos famintos e de reinóis insubordinados, corridos a pontaços de lança pelos dragões de El-Rei... Assim, no estudo dos tempos mortos, consumíamos as horas; e ou fulgurasse lá fora, em dias lindos, a luz do sol, ou, em dias de chuva, se emaranhassem no céu as cordas da água, a vida que nos preocupava não era a do povo que trabalhava ou vadiava nas ruas, mas a das gerações que se tinham ido da terra.

Quando saíamos, os espectros saíam conosco, colavam os seus passos aos nossos, sentavam-se conosco à mesa do hotel, acompanhavam-nos nas peregrinações pelos arredores cobertos de ruinarias. Nunca me esquecerei de um cair de noite, que nos surpreendeu certa vez, fora de portas, na derrocada Rua da Água Limpa... Com o vir da sombra, um mistério indizível encheu a paisagem, e um calafrio de mudo terror e um sopro de além-túmulo sacudiram a natureza. As figueiras bravas cresciam desmedidamente e tomavam formas estranhas; as gameleiras bracejavam como avantesmas; havia gemidos no rolar dos calhaus que os nossos pés topavam.

Uma lua imensa, imensa e redonda, pairou no céu escuro, como um broquel de prata pregado num muro negro, e espalhou a sua luz melancólica sobre a solidão. E, ao vosso lado, pisando aquela estrada que tantas gerações haviam pisado séculos atrás, ouvindo a vossa voz que me falava com trêmula ternura e vibrante paixão dessas vidas apagadas, compreendendo e amando o amor com que vos aferráveis à veneração dos povoadores da vossa terra, – eu tinha a ilusão de levar comigo, não um bacharel de 1893, mas um daqueles cavalheiros de 1720, que terçavam armas e galanteios na roda do Capitão-General D. Pedro de Almeida e Portugal.

Quem ia comigo não éreis vós, mas um dos vossos antepassados da veneranda Paracatu, daqueles que também, como Dom João de Castro, viviam e morriam pola ley, polo rey e pola patria; e, ao clarão do luar, uma pluma ondeava sobre a pala do vosso chapéu; o vento brincava com os folhos da vossa camisa de rendas e sacudia as abas do vosso gibão de seda; e pelas pedras tinia arrastada e nervosa, suspensa do talabarte de veludo, a bainha do vosso espadim...

Mais tarde, meu ilustre confrade, quando, apurado o vosso talento, começastes a produzir, – reconheci que aquele amor das tradições não era um tic da adolescência, uma preocupação passageira do vosso espírito. No livro e no jornal, a vossa literatura, de que daqui a pouco tratarei, foi sempre um claro espelho em que se têm refletido esse “tradicionalismo” e esse “nacionalismo”, a que agora mesmo destes o nome um pouco vago de “americanismo”.

Esta qualidade, quando mesmo não estivesse acompanhada da excelência da vossa obra literária, já bastaria para que a Academia Brasileira vos chamasse. Não foi, portanto, apenas “uma como reminiscência de Eduardo Prado” o que procuramos em vós. E nem compreendo que possa haver semelhança entre a vossa entrada triunfal nesta companhia e a entrada hesitante do estranho – cliente ou pedinte, – que vistes, em gravura, no átrio do palácio senhorial.

Entrando aqui, entrais em casa que já era vossa; e, se alguma causa deveis estranhar, é somente que a companhia não tenha enviado ao vosso encontro mais digno introdutor. Se a Academia não tivesse a desventura de perder Eduardo Prado, viríeis preencher outra vaga qualquer; e não ficaríeis muito tempo lá fora: – nós, em tão minguados anos de vida coletiva, já temos perdido tantos companheiros, que parece haver nisso um dos divertimentos habituais da morte irônica, zombando do titulo de Imortais, com que nos condecora o bom humor das ruas...

O que é preciso confessar é que, se já não existísseis para escrever o elogio de Eduardo Prado, seria preciso fazer o que Voltaire aconselhava, com irreverência, em caso de outra ordem: – seria preciso inventar-vos.

Nós bem sabíamos que o estudo desse interessante homem de letras, tão discutido e tão pouco conhecido, só poderia ser feito por quem tivesse vivido de par com ele, na intimidade do lar e na agitação da vida pública. Para quase todo o país, o fino artista que havia em Eduardo Prado viveu e morreu sem relevo: o que a multidão sabia é que ele era um homem elegante e um panfletário político. Dois motivos de suspeição.

Ter dinheiro e saber gozá-lo, correndo o mundo, estudando e comparando civilizações, fartando-se de arte, tendo trato familiar com gente ilustre, criando “interiores” de luxo, – são cousas que o comum dos homens (tão baixa é a natureza humana!) não perdoa facilmente aos privilegiados. O artista, que vive assim, dá sempre, ao juízo errôneo do público, a impressão de um dilettante, trabalhando por desfastio, escrevendo por luxo, pensando por brinco, – mais ou menos como os reis que se distraem do seu mister pintando aquarelas ou estudando sânscrito, e como as rainhas que descansam do enfaro da etiqueta arrepanhando sobre a cintura a cauda do manto, pondo sobre o vestido de brocado um avental de linho grosso, e indo, ao calor do fogão, fazer experiências de química culinária...

Além disso, Eduardo Prado, que por longos anos, depois da publicação das suas admiráveis Viagens, se conservara afastado da agitação da publicidade, estudando ou gozando em paz, com sobriedade e bom gosto, na Europa, só voltou à atividade literária e política em uma época de febre intensa, durante uma dessas crises em que há rufos de febre em todos os pulsos e estos de paixão em todas as almas, e em que parece desaparecer a linha que separa o acampamento regular da sensatez do abarracamento confuso da loucura. Eram raros, então, os que podiam concordar com o violento escritor dos Fastos da Ditadura Militar no Brasil; e eram mais raros ainda os que podiam, sem concordar com ele, ter a calma precisa para reconhecer a sinceridade da sua intervenção e desculpar a aspereza dos seus ataques. Por isso, essa intervenção foi irritante.

E, mal compreendido em suas opiniões, mal julgado em seus atos, e absolutamente desconhecido no seu papel encantador de fino homem de letras, Eduardo Prado ficou sendo, para os energúmenos e para os superficiais, um moço rico e chic, monarquista por espírito de contradição, católico por elegância e motejador por índole. Essas injustiças são freqüentes: se fosse possível converter em areia palpável todos os erros do critério humano, essa areia bastaria para aterrar todos os mares que cobrem a face do planeta e para elevar-se em desmarcadas montanhas, que cresceriam no espaço perturbando as leis eternas do equilíbrio universal...

Veremos depois que o escritor d’A ilusão americana exagerou bastante os perigos do que ele chamava e do que vós mesmo chamais a nossa “desnacionalização”. Mas todos os que lhe prezavam o talento e o caráter devem agradecer-vos desde já a clara energia com que o defendestes da balda de mau brasileiro. Tive e tenho para mim que Eduardo Prado foi sempre um firme, um puro e excelente brasileiro, no Brasil e na Europa, no sertão e no boulevard.

Conheci-o em Paris, nessa falada garçonnière da Rua Casimir Périer, pequeno domínio em que imperava a tirania do severo Humphrys, – esse famoso mordomo que, com certeza, nos seus mais ambiciosos sonhos de glória, nunca imaginou que o seu nome ainda viesse a soar em cenáculos de imortais. Cousas da vida! se há príncipes cuja popularidade acaba em casas de jogo, também há de haver criados de quarto cuja rama chegue até às Academias...

Quantos brasileiros ilustres passavam por aquela casa! Havia o segundo Rio Branco; havia o fogoso Silveira Martins; havia Domício da Gama; e havia (para não alargar demais o surto das recordações) esses dois ilustres velhos, Ferreira Viana e Lafayette, que não são da Academia (ai da Academia!) e de quem, traduzindo mal um bom verso, posso dizer que “se nada falta à sua glória, eles fazem falta à nossa”...

Em noites de recepção, os brasileiros – e é preciso notar que Eduardo escolhia com escrúpulo os seus íntimos – enchiam o salão, a biblioteca, a sala de jantar e até a sala de banho e a copa. Havia um aposento agraciado com o título de sala de fumar. Mas a dignidade era apenas honorária: nessas noites fumava-se em todas as salas. Fumava-se e falava-se. Fumarada e falatório nunca hão de faltar onde houver brasileiros... Às vezes – era janeiro e a neve caía lá fora – a acumulação da gente, a febre das conversas, o ardor das disputas e o fumo dos cigarros transformavam a casa numa gruta-do-cão, de ar irrespirável; a coluna de azougue do termômetro, espantada, punha-se a subir vertiginosamente a escadaria centígrada, parando exausta no patamar tropical.

O castelão corria a abrir as janelas; e só quando via as calçadas da rua e as fachadas dos outros prédios cobertos de neve, é que eu me lembrava de que estava tão longe da Pátria... Ali vivia o Brasil, às vezes acerbamente julgado, mas sempre infinitamente amado. Deixai lá! também a pancada pode ser demonstração de amor, e demonstração agradável, porque, como diz o nosso bom povo, pancada de amor não dói... Até quando erra, o amor é o amor.
Claro está que ninguém poderia melhor do que vós, meu prezado confrade, vir dizer à Academia e ao Brasil quem foi Eduardo Prado.

Nos últimos tempos, combatestes juntos, na imprensa, o combate que julgáveis bom. As vossas penas brilharam juntas nas colunas do Comércio de São Paulo, – e até os que, como eu, repeliam as vossas conclusões, esses mesmos admiravam o talento, a graça e sobretudo a sinceridade com que lutáveis ombro a ombro, como hoplitas de uma mesma falange. Além disso, como acabais de mostrar, tínheis sondado bem fundo a alma do vosso correligionário, estudando-o na vida íntima, na franqueza da existência rural, na sua simplicidade de homem bom, amigo das plantas inocentes, dos insetos, das aves e das gentes rudes. As belas páginas, cuja comoção acabais de comunicar a quantos aqui vos ouviram, vão ser o início da glória do vosso antecessor.

E a Academia, cujo fim principal – talvez um pouco presunçoso, mas em todo caso nobre, – é ir estabelecendo, através das idades, pouco a pouco, várias cadeias de espíritos, revivendo uns nos outros e perpetuando a uniformidade dos ideais brasileiros, – a Academia vê com orgulho que por Afonso Arinos foi bem compreendido e amado aquele que tão bem compreendera e amara o Visconde do Rio Branco.

Agora, antes de vos dizer todo o bem que penso do que nos tendes dado como romancista e cronista, permitireis, meu caro companheiro, que eu vos declare não achar bem fundado o receio tantas vezes manifestado pelo vosso antecessor e por vós, de que a atrapalhação das nossas cousas políticas possa trazer a desnacionalização da nossa gente. Não quero saber, devo dizê-lo já, quais sejam precisamente as vossas opiniões em política. Em primeiro lugar, isso pouco importa à Academia, à qual, como ao Paraíso e ao Inferno, por diversos caminhos se pode igualmente chegar.

Há aqui lugar para todos os credos: e sob esta cúpula... de empréstimo, que devemos à gentileza fraternal do Gabinete Português de Leitura, ortodoxos e heterodoxos podem trocar o beijo da paz. Depois, não vejo bem que haja, para qualquer de nós, a necessidade de opiniões políticas; isso é uma bagagem pesada demais para quem se quer elevar às serenas regiões da Arte; e o alpinista, que deseja chegar ao cume do Monte Branco, contenta-se com um alpenstock e um pedaço de corda, sem se sobrecarregar com o fardo inútil de uma caixa de bufarinheiro. E há ainda a considerar que espero estaremos de acordo sobre o que vou dizer...

Mas, se houver desacordo, o mal não será grande; já um santo Padre da Igreja, num momento em que a sua santidade cochilou, disse que até no céu há por vezes desavenças entre os anjos; e esta nossa tristíssima terra, meu caro amigo, no dia em que todos os homens se pusessem a pensar do mesmo modo, ficaria de uma insipidez intolerável.

Vós mesmo reconheceis a falibilidade das previsões humanas. Nós todos, quando queremos marcar um roteiro certo à marcha dos homens e das cousas, arriscamo-nos ao erro daquele Sébastien Morder, que, em 1770, escrevendo, com o título de O ano 2240, um grosso livro em que previa e traçava com uma segurança imperturbável o progresso da humanidade, nem sequer suspeitou a possibilidade da revolução que, daí a 19 anos, tinha de abalar a França...

Esses enganos são comuns: não é tão fantasista, como parece, aquele apólogo do sábio que, por ter os olhos pregados na Via Láctea longínqua, caiu no poço que tinha tão perto dos pés.

O que mais aterrava o espírito patriótico de Eduardo Prado era o espetáculo da intolerância política que encheu os primeiros anos da República. Naquelas arruaças, naquele ódio ao estrangeiro, naquele confuso gritar de gargantas, que nem sabiam o que queriam dizer, viu ele o anúncio temeroso de um naufrágio nacional. Susto vão e vão temor. As nossas trovoadas de estio, que são as mais bulhentas, são também as que mais depressa se desfazem. Aquele tumultuar de paixões indefinidas acabou logo. Também alguma vez se há de permitir que os loucos tenham um dia de desafogo, e saiam pelas ruas a desabafar o seu entusiasmo. Se essas evasões dos hospícios, tão freqüentes em todas as partes do mundo, pudessem exercer uma influência eficaz e demorada sobre o destino dos povos, não haveria um só povo organizado; todo o planeta, desde a fita abrasada do equador até a zona gelada dos pólos, seria um imenso manicômio, e já não haveria motivo para que o Brasil se envergonhasse de não ter juízo, num concerto vesânico de tal extensão. Mas não creio que Eduardo Prado atribuísse tanta importância a tais desatinos.

O pudor com que ele evitava que o seu criado (aqui temos de novo o famoso Humphrys!) lesse os jornais do Brasil e viesse a ter ciência das vergonhas que se passavam na pátria do amo, era um gracejo pueril. O criado, por não contrariar a indignação do amo, não deixaria talvez de verberar, com alguns grunhidos de censura, a facilidade com que apeamos do trono o venerando Sr. D. Pedro II; mas, no íntimo, estaria pensando mais na sábia composição do menu daquele dia do que na desventura do Monarca brasileiro. Os criados da Europa têm visto tanta cousa! Todos eles, ou todos os seus pais e avós, leram o Contrato social... Há poucos dias, quando, em certo país da Europa, uma nova dinastia rebentou da sangueira de uma tragédia regicida, as velhas nações monárquicas não malsinaram em voz alta a origem pouco limpa daquela florescência dinástica. Se a tivessem malsinado, o novo rei poderia, como já foi lembrado, dizer aos outros: “Atire-me a primeira pedra aquele de vós que tiver o trono limpo de todo o sangue criminosamente derramado!...” Entre essa maneira, realmente expedita, mas bem pouco bela, de substituir um rei por outro, e a forma, igualmente sumária, mas pacata, pela qual substituímos um Imperador por um Presidente da República, suponho que há muitas léguas de distância moral...

Não creio que haja regímens bons ou maus para a formação e a fixação do caráter e da grandeza de um povo. E não sei como possamos ainda agora, – homens de um século que há de ver a vitória do socialismo, – dar um sentido preciso a qualquer destes vocábulos: – monarquia ou república. A aspiração política da humanidade de hoje não cabe dentro de um círculo partidário; e o pensamento humano, cansado de controvérsias fúteis, sonha um progresso definido e claro, que os velhos rótulos dos partidos não exprimem. A República não podia destruir o que não estava feito. A verdade é que as boas ou as más palavras dos agitadores, as boas ou más ações dos que governam com preocupações de partidos, têm uma influência quase nula sobre a sorte dos povos. E, em geral, todos os grandes reformadores tornariam a morrer de espanto, se, tendo ressuscitado, pudessem ver os frutos das idéias que semearam.

Realmente, quem apenas considera o litoral do Brasil, esquecendo o resto, pode sentir o medo de uma dispersão da nacionalidade. Alguns pontos do litoral ainda são o que eram no tempo da Monarquia: – sede de acampamentos comerciais, onde o desejo de enriquecer é instigado pelo desejo de ir gozar lá fora a riqueza acumulada. Mas, para lá desta faixa de praias, na zona imensa que o trabalho anima, no sertão que vai transformando os hóspedes em filhos, – a nacionalidade cria raízes tão fundas e tão fortes, que o seu extermínio só pode ser feito com o extermínio da própria terra. A terra tem encantos e proveitos que seduzem, e esses encantos e proveitos fazem mais do que as nossas teorias. O trabalho, a família, a beleza do céu, a fartura do solo mudam os indiferentes em amantes.

As raças estranhas vão sendo absorvidas, como as águas das chuvas que regam os campos; e a raça futura (se é possível, ainda em ilações tão claras como esta, adiantar alguma cousa sobre o futuro) será uma raça fortemente brasileira, conservando a doce e amada língua que tratamos. Porque vós mesmo o dissestes há pouco: Eduardo Prado, com todos os seus terrores da desnacionalização, passou os últimos dias de vida entre colonos que já esquecem o falar e os costumes da pátria, pelo falar e pelos costumes paulistas... Quanto ao perigo de conquistas, vindo de nações fortes e cobiçosas, parece-me, quando muito, uma ameaça fantasista, como a dos lobisomens e papões com que se amedrontam as almas das crianças mal comportadas.

O Brasil está longe de ser a China da América. E, se uma dessas aventuras, cuja possibilidade não nego em absoluto, pudesse ter uma escassa probabilidade de passageiro êxito, – essa mesma energia nacional, que se está concentrando e apurando no interior do Brasil, zombaria do atrevimento do invasor.

O povoamento do Brasil fez-se da periferia para o centro: a sua nacionalização faz-se do centro para a periferia. As raças fortes começam a conquistar-nos pelo trabalho e pelo amor; e já estão começando a ser conquistadas por esse mesmo amor e por esse mesmo trabalho. No dia da afronta, o sangue seria um só, e uma só havia de ser a resistência. Não nos alarmemos com fantasmas; já não estamos na idade em que o amor do trabalho e o cumprimento do dever só se estimulam com o medo do castigo ou com a promessa da recompensa. Duvidar de si mesmo já é para um homem a metade da derrota; para um povo é a queda completa. Felizmente, o “pessimismo” é quase sempre uma doença apenas literária. Dizer mal da pátria não é desprezá-la: é fazer literatura à custa dela.

Graças à elevação do vosso espírito, e à saúde moral que sempre tivestes, – essa triste doença não vos atacou jamais, meu caro confrade; – e se em vosso trabalho de jornalista tem havido algum susto ou desalento, em vosso trabalho de artista das letras só tem havido confiança e coragem.

A prova mais bela e forte de que a nossa nacionalidade não corre perigo, temo-la vivendo e brilhando em vós, em vosso claro engenho, em vossos livros de um tão puro nacionalismo. E não quero falar daquilo que, saído de vossa pena, anda espalhado por jornais e revistas, nem dos dois romances “brasileiros”, que, como artista exato que sois, ainda conservais no tear sujeitos ao paciente lavor e à pertinaz polidura que fazem as obras perfeitas. Basta-me o lindo volume de histórias e paisagens do sertão, com que estreastes.

Já disse que a vossa literatura é um espelho em que se reflete o vosso tradicionalismo. Mas não é só isso o que se traslada no cristal brilhante. Há em vossa literatura, ao lado de muita saudade, muita esperança: larga ponte, batida de sol, lançada entre o passado e o futuro.

O amor do passado vibra às vezes no assunto e palpita sempre no estilo. Este é sempre puro e antigo, temperado pela suavidade que a língua dos nossos maiores adquiriu ao passar da velha para a nova pátria. Não sois dos que pensam que o progresso do idioma deva ser feito à custa da sua pureza primitiva, passando da garganta do pardal para a garganta do sabiá, era justo que a escala musical se abrandasse, adquirindo o quebro langoroso que lhe veio redobrar o encanto. Mas nem todos os sabiás se têm contentado com esse acréscimo de meiguice e graça. Infelizmente, muitos sabiás conhecemos nós, que, quando se põem a cantar na copa das velhas palmeiras de Gonçalves Dias, mostram possuir na garganta mais solecismos do que gorjeios... Vós, não.

A língua que trabalhais não veio até vós, recebendo enxurradas em desvãos de matas suspeitas; veio de longe, sim, mas por frescos e limpos álveos, aceitando afluências de águas transparentes, enriquecendo-se com o tributo de mananciais bem batidos, e guardando a clareza e a simplicidade nativas. É velha e viajada, mas legítima: e por isso mesmo preciosa, como os vinhos velhos e os velhos livros. Quando falam os vossos heróis do sertão não falam como puristas: usam a sua linguagem pitoresca e ingênua, cheia de barbarismos sempre coloridos e expressivos.

E foi justo que lhes não désseis esse falar alambicado, meio selvagem e meio coimbrão, que os romancistas da geração passada punham na boca dos seus índios de opereta, sempre apaixonados por meninas do reino, e fazendo-lhes declarações de amor em que havia, misturados, urros de onça e suspiros de bonifrate. Mas, quando leio os diálogos dos vossos heróis, ou as suas narrativas tecidas de expressões que fulmina¬riam de puro espanto o velho Rodrigues Lobo, – cuido sempre ver, ao lado, o leve sorriso indulgente do escritor castiço, que sois, anotando e saboreando a novidade daquele dizer errado e gracioso...

Nos assuntos, o vosso respeito do passado sugere às vezes ao vosso estilo trechos de uma ternura infinita. Ides por uma rua solitária de cidade em minas. Encontrais uma casa humilde. Entrais. Aparece-vos uma velha mulher e aqui está como a descreveis:

“Um leve ruído faz-me voltar o rosto e ver, então, emoldurada pelas ombreiras da porta, ao fundo, uma estranha figura de mulher, vestida de algodão muito branco, com o torso pendido a uma dor intensa, sopitada a custo, e a fisionomia cansada, emurchecida, repuxada de rugas, onde mal se adivinham os olhos sem brilho, quase inexpressivos, a não ser um quê muito fugaz de carinho, que neles boiava ainda como uma flor desprendida da haste e ia quase fenecida, flutuando na superfície de um lago dormente.”

Quando vos separais desse destroço de uma outra idade, resumis assim a vossa compaixão enternecida:

“Que página sentida escrevestes, ó intérpretes do coração humano, que doa mais do que a só vista desse pergaminho mudo, engelhado no rosto da velhinha! Essa dor infinda e resignada, essa dor desamparada e humilde naquele despojo humano, é mais dolorosa do que a do mito imortal de Prometeu...”

Mas não amais a velhice apenas nas criaturas humanas: também a amais nas cousas, que envelhecem mais devagar do que a gente e ficam por mais tempo expostas à irrisão ou à indiferença dos incompassivos. Vós o dizeis:

“O encontro de algum objeto antigo tem sempre para mim alguma cousa de delicado e comovente... Móveis ou telas, papéis ou vestuários, – na sua fisionomia esmaecida, no seu todo de dó, – eles me falam ao sentimento como uma música longínqua e maviosa, em que se contam longas histórias de amor...”

Diante de um velho cravo, “primoroso na fábrica, incrustado de bronze e ornado de lavores de talha na madeira negra”, ficais a mirá-lo com amor, perguntando:

“Que lânguida açafata ou melindrosa sinhá-moça, cravo centenário, esflorou o marfim do teu teclado, desfiando o ritmo grave de uma dança solarenga, ou, a furto, a denguice feiticeira de um fado vilão?”

E, logo depois, diante de uma cadeira bichada e desconjuntada, vista num fundo lôbrego de sacristia, escreveis:

“Morre, desaparece que talvez – por que não? – a tua dona mais gentil, aquela para quem tuas alcatifas tinham mais delicada carícia ao receber-lhe o corpinho mimoso, aquela que recendia um perfume longínquo de roseira de Chiraz, talvez te conduza para alguma região ideal, dourada e fugidia, inacessível aos homens... Desaparece, aniquila-te, ou foge, cadeirinha! Lá, naquela mansão bem-aventurada, pegarão teus varais, não lacaios de libré, mas alvos mancebos de vestes brilhantes e olhar atrevido. Esses conduzirão através de nuvens a criatura feiticeira que encantou o seu tempo e que deixou impressa no tabuado de teu fundo, ó cadeirinha de outras eras, como uma carícia eterna, a lembrança do contato de um pé taful, calçadinho de cetim.”

Ora, aqui está o meu companheiro de pesquisas nos arquivos de Vila Rica – aquele esbelto mancebo, em quem uma vez, num sonho fugaz, ao cabo de um passeio pela Rua da Água Limpa, julguei ver um fidalgo reinol, dos que dançavam o minuete na corte do Conde de Assumar...

Mas, ao lado dessas velharias animadas e inanimadas, o vosso livro canta belamente as novas gentes e os novos costumes que animam o sertão. Um poeta, amigo das árvores como todos os poetas, disse um dia que, quando encostava o ouvido ao grosso córtex de um tronco da mata, ouvia lá dentro as loas harmoniosas da selva, na sua circulação criadora e triunfal. Eu também, quando folheio o volume em que celebrais a vida sertaneja, ouço circular por ele, em hinos ardentes, a profecia de uma grandeza futura para a terra que tanto amais, – para a terra que tanto amamos.

Com que entusiasmo, com que admiração comovida, com que energia de pincel, com que colorido intenso de estilo, contais a nobreza de alma, a coragem heróica, os amores brandos ou impetuosos, os fogosos ciúmes, a abnegação rara, a paciente resignação, e também as grandes cóleras desses homens fortes e simples, que vivem para amar a vida e o trabalho, a natureza e a liberdade, a terra e o céu, na independência do seu orgulho, sob a proteção de Deus... e da faca que trazem à cinta! Estas poucas novelas, que enfeixastes em livro, são os Fastos da Alma Sertaneja... Aqui temos o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, farto de afrontar homens e feras, afrontando as almas penadas de uma tapera mal-assombrada, e enlouquecendo de angústia por ter contado demais com a energia de uma alma educada em superstições; aqui temos a linda Esteireira, “a flor do sertão”, de colo de nhambu e carnadura cheia de viço, – que se desgraça pelos zelos, apunhalando a rival, sugando-lhe o sangue como um morcego, e indo morrer ao lado do noivo, em luta épica com os soldados da escolta, como uma canela-ruiva acuada; eis agora o campeiro Manuel Lúcio, moço bravo e apaixonado, malferido de amor ingrato pela filha de um guarda-mor das minas, e deixando-se morrer de desengano e de desespero, sem frases, em um sacrifício que mal disfarça o suicídio; e, agora, Joaquim Mironga, a Dedicação feita homem, de cujos lábios, num estilo que é a um tempo música e pintura, gravura e palavra, cai a narração de um episódio das lutas políticas de 40, entre imperiais e liberais; e, enfim, o Flor, franzino e lépido, filho da mata, todo nervos e viço, domando pela coragem o facínora Pedro Barqueiro... E as vossas paisagens! que calor, que perfume selvagem, que eterna vibração de vida sabeis comunicar às palavras, quando nos falais das serras que como bom sertanejo galgastes, das matas que vistes, dos rios largos e dos vales frescos em que os vossos olhares namorados pasceram desde a meninice!

Ah! quem pode duvidar da força de uma nação qualquer, meu ilustre companheiro, quando essa nação tem gentes fortes como essas, e uma arte como a vossa para celebrá-la?! A existência de uma literatura como a vossa – littérature de terroir, como se diz expressivamente em França, – já é uma demonstração de força nacional, ativa e própria.

Há, em Pelo sertão, uma página encantadora, em que glorificais um velho buriti, “venerável epônimo dos campos”, mais idoso do que a nossa raça, perdido no meio de uma planície verde. É assim que lhe falais com ternura e admiração:

“Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípides, tu impedirás, poeta dos desertos, a própria destruição, comprando teu direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que sabes tão bem comunicar. Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça, como um monumento às gerações extintas, uma página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na mente de cada um dos filhos desta terra.”

Com essa página vossa, quero fechar o discurso de boas-vindas, com que vos recebo em nome desta companhia. Sim! a civilização há de ganhar a paragem longínqua em que vistes, solitário e soberano, esse buriti selvagem, mas não será levada por senhores duros, cujo coração careça de ser enternecido pelas queixas da terra conquistada. O vosso velho buriti viverá, não tolerado, e sim respeitado e amado; mas viverá menos do que o gênio da nossa nacionalidade, que, como ele, há de assistir a todo o ciclo do drama da conquista, dominando-o e dirigindo-o.

Esta esperança – e, mais do que esperança, certeza – da glória e da grandeza da nossa nacionalidade, é o sentimento que a todos nos anima, nesta casa que vindes honrar. Aqui as almas se congregam para prezar o passado e para esperar com confiança o futuro.
O vosso lugar estava marcado; e sobre ele paira a recordação dos dois espíritos, cujo fulgor tão belamente nos fizestes sentir e compreender há pouco. A herança caiu em dignas mãos. Sede bem-vindo.