JOAQUIM MIRONGA
O sol estava querendo sumir, quando eu encostei a porteira. Pulei da sela e amarrei, no moirão, o ruço pedrês - bicho malcriado, reparador, mas de espírito. No lombo desse pagão eu comia doze léguas, de uma assentada. Olhei a frente da casa, pus a mira no alpendre e não vi ninguém. - Uai, Joaquim, aí tem coisa! - Entrei bem sutil, reparando duma banda e outra.
- Patrão velho, na hora em que eu estava arreando o pedrês, tinha chegado perto de mim, dizendo: - Olha lá, Mironga, não me vás sair um perrengue!
- Perrengando, perrengando, meu branco, eu entrei lá dentro. Vossemecê há de ver, com o favor de Deus."
- Olha o café, Joaquim, sem te cortar a conversa - disse um caboclo meão, de chapéu de couro e sisigola. E estendeu o coité fumarento, onde parecia ainda borbulhar o líquido.
Na varanda da frente, a gente do retiro estava reunida para ouvir o Joaquim, Era tempo de vaquejada e todo o dia havia um caso novo, uma chifrada de marruá, uma passagem bem feita com algum garrote bravo. A varanda era comprida, defendendo-a do mau tempo a grande cimalha, apoiada em colunas de madeira lavrada. Presas a estas, duas ou três redes, tecidas de seda de buriti, embalavam o sono da camaradagem, que ruminava o jantar depois de um dia fadigoso, em que o gado na verdade dera que fazer.
Demais, esse gado de beira do rio Preto não era caçoada. E nesse dia, no cerrado do Periquito, os vaqueiros toparam uma rês alevantada, que fez o diabo.
Mas o Joaquim não era homem de ficar quieto assim, de barriga para o ar, como qualquer tiú ao sol. Era preciso animar a rapaziada na véspera de qualquer trabalho mais difícil.
Para o dia seguinte, o patrão tinha marcado uma campeação no cortado do Garapa, onde havia um cambaúdal de meter medo. E as reses velhacas sovertiam-se lá dentro, que só mesmo o capeta podia com elas.
Quando ia ficando lusco-fusco, o povo campeiro chegava para a banda de fora, atiçava o fogo e pegava a contar casos, a passar em revista os sucessos de vida de cada um.
Mironga, vaqueiro meio maduro, era respeitado por sua justa fama e pelo conceito de que gozava junto ao patrão.
- Como ia dizendo, encostei a porteira ao batente e entrei sutil.
O pátio estava soturno. Nem viva alma. Isso no tempo das guerras bravas da era de quarenta e dois. Patrão velho andava amoitado. Amoitado é um modo de dizer, porque ele dormia, lá vez em quando, num rancho de palmito no meio do mato, mas zanzava de uma banda para outra o dia inteiro, sem perder de vista a casa do retiro onde estava a família. Eu não lhe deixava a costela: vivia rente com ele para o que desse e viesse, porque, Deus louvado, nunca me desprezou, e nós da família servimos até à morte a gente do patrão, isso desde meus velhos.
Quando entraram lá na cidade as forças do defunto coronel Joaquim Pimentel para agarrarem os rebeldes, patrão velho teve aviso. Ele era homem de opinião e não fugia assim com dois arrancos. E demais disso, a patroa estava chegadinha a ter menino, esse pedação de moço que vocês veem aqui hoje - Sô Neco.
Um dia, nós já tínhamos jantado na fazenda e eu tinha descido [ara o quarto dos arreios, quando, a entrada que vem da Barra da Égua. olhando pelo caminho afora, eu enxerguei uns cavaleiros chegando devagar, como quem não conhecia bem o lugar e - desconfiava de alguma coisa. Subi arriba e mostrei os cavaleiros ao patrão.
- Aquilo não é senão escolta e é para prender Vossemecê.
Para que falei, meu Deus! foi uma trabuzana levada em casa. A patroa tomou um susto muito grande e desandou a chorar; as mucamas trançavam pelos quartos, correndo.
Com pouca dúvida, acenderam o círio bento junto da imagem do menino Jesus e a patroa tirou reza, acompanhada das mucamas e dos negrinhos. Patrão velha não saiu do alpendre. Gritou pelos companheiros e da negrada.
- Hoje é dia - disse eu cá comigo.
Tudo quanto era clavinota, trabuco e bacamarte saiu para fora. Qual, gente! nem eu gosto de lembrar desse tempo!
Sô moço, sô Juca, filho mais velho do patrão ainda não tinha, a bem dizer, nem buço de barba. Era espigadinho e animado. Eu sei quanto me custava ter mão nesse menino nos dias de vaquejada. Não havia garrote que ele não quisesse esperar na ponta da vara, nem cavalo xucro de que ele não quisesse tirar a nica. Ia já beirando pelos dezesseis anos, mas não mostrava.
Oh! meu São Sebastião advogado dos aflitos! quando me acode à lembrança essa era amaldiçoada, sinto a modo de um travo na boca.
Resfolegou forte o Mironga e, tirando o cigarro da fita do chapéu, bateu fogo, puxando fumaça.
A camaradagem, mudando de posição e concertando-se nos lugares, murmurava:
- Esse Joaquim é da pele, é da pele do diabo! ele já tem visto coisas!
Vocês sabem, continuou o Joaquim, que a frente da fazenda, além dos muros de pedra, tinha o cercado feito com toras de madeira de lei. Aquela segurança toda era por não deixar o gado romper, quando investisse, na arrancada. Valeu-nos Deus que era assim. Estivemos engambelando a escolta um dia e metade de uma noite, debaixo do fogo. A soldadesca era toda de cavalaria, mas não era gente curraleira e, por isso, não conhecia nossas batidas. Não foi custoso mitrar aqueles diabos. E esse rio Preto - bem que eu gosto dele! - foi a nossa salvação, ele passa nos fundos da fazenda, fechando uma manga de potros separados das éguas.
Anoitecemos e não amanhecemos na fazenda. Com o escuro, ganhamos uma trilha pela manga abaixo - eu, patrão, patroa, meninos, mucamas, toda a gente de dentro; os campeiros e os negros ficaram entretanto a soldadesca, rebentando as pipocas toda a hora.
Você lembra, Pio, daquela canoa em que o patrãozinho caçou anta rio abaixo?
- Ora! Pois então!?
- Foi nela mesmo que estivemos passando o povo para a outra banda, eu no varejão e Basílio no remo. Quando chegamos do outro lado, adeus escolta! Não havia ponte, nem vau. Se eles quisessem nos perseguir haviam de atravessar o rio a nado, ou, quando não, rodear as cabeceiras, porque as nossas canoas ficaram muito bem escondidas do outro lado.
Ganhamos, sem maior novidade, a barranca fronteira e pousamos num retiro da outra banda, a duas léguas do rio.
- Até eles passarem também, temos tempo - dizia comigo.
- Sô moço, sô Juca, desde a hora da saída, ficou meio estrudido, sempre de cara fechada. Ele tinha teimado muito com o patrão velho, querendo ficar. Dizia que aqueles demônios de caramurus não haviam de tomar conta da fazenda assim, com dois tiros e meio. Mas o patrão ficou brabo com ele e não lhe tirou mais os olhos de cima até passarmos o rio. O patrão sabia que o mocinho não era brinquedo e que, se não lhe tivesse mão, era bem capaz de voltar para a fazenda e puxar briga com os caramurus da escolta.
Arranchamos no retiro e a família toda, acomodou-se, como Deus foi servido. O patrão estava acostumado a lidar sempre e aproveitou o tempo para cuidar da criação empastada naquela redondeza.
Nisto as coisas principiaram a apertar.
A gente que tinha ficado do outro lado do rio tomou conta da fazenda depois de uma resistência grande. Quem pôde fugir fugiu; o restante que não morreu na briga ficou agarrado pela escolta. Os ladrões do inferno já tinham carneado muita rês boa da fazenda e acabado com a capadaria do chiqueiro. Essas coisas chegaram ao conhecimento do patrão e o fizeram ficar irado. A patroa ia tendo mão nele todo o dia porque ele virava, mexia, daqui para li e falava sempre em acabar com aquilo de uma vez morrendo ou dando uma lição àqueles excomungados.
Há muita gente traiçoeira neste mundo como vocês sabem. Um desalmado desses que Nosso Senhor já chamou a si - Deus te perdoe! deu denúncia do retiro onde estava o patrão. Com pouca dúvida nós soubemos que na Tapera a umas quatro léguas do retiro, estava se ajuntando um magote de caramurus para virem prender o patrão. Esses diabos tinham uma sede na gente do patrão, porque diziam que ele fora o rebelde mais destemido destas beiradas.
Patrão ficou desatinado de raiva. Quis por toda lei dar caça aos caramurus, mas a patroa ficou de tal modo que nós estávamos vendo a hora em que ela caía para trás, morta. Por isso, o patrão não teve outro remédio senão ir tenteando, como Deus ajudava. Vendo que nós éramos cercados de uma hora para outra e que uma desgraça ia acontecer. Ele me chamou a um canto e disse:
- Joaquim, eu fiz tenção de não cair nas unhas daqueles diabos e não ir parar na cadeia. Mas as coisas estão muito feias. Se não fosse a dona... Olha: disfarça de qualquer jeito e entra na Tapera, assim como quem vai de passagem. Assunta bem e apanha as tenções deles. Vê quantos são, se estão bem armados... Tu não és tolo e sabes bem o que eu quero. Precisamos saber o que eles pretendem, para nós podermos desmanchar a esparrela...
- Vossemecê me conhece, meu amo. Fique sossegado. Eu arranjo as coisas.
A conversa ficou aí.
Comigo não se precisa de muita explicação.
Corri ao quarto e tirei minha capanga, minha companheira velha. Pus dentro dela pólvora, chumbo grosso e uma bucha de paulista. Num bolsinho de dentro, guardei um pedaço de fumo e palhas. - Estou pronto- ia dizer, quando dei com os olhos no Moisés, meu clavinote, que dormia enferrujado no canto. Pareceu-me que o pau de fogo falava – “Também quero ir, Joaquim”.
- Eu lhe fiz a vontade.
Areei a arma bem areadinha, limpei-lhe ouvidos, pus uma pedra nova embaixo do cão e carreguei-a. Ali por perto havia um jambeiro com frutas: apanhei uma e, depois de escovar bem a arma, joguei o jambo para o ar, lá em cima, meti a arma à cara e fiz fogo: a fruta espatifou-se toda.
- Está bom, sô Joaquim, disse comigo, você está meio turuna na pontaria! Isto é que serve.
Amarrei o clavinote nos coldres da sela, apertei bem o pedrês, corri os olhos no peitoral e na retranca, passei por cima da sela um pelego bom e apertei de novo o pedrês com a sobrecincha.
De arma de fogo eu não gosto muito mas minha vara de vaqueiro, minha vara de derribar, pior do que uma azagaia, essa eu não deixo! Desembainhei o ferrão da ponta e dei uma chuçada num portal. O ferro estava firme e amolado.
Esse arranjo todo pouco durou.
Apalpei, por último, meu rosário do pescoço e pulei no lombo do pedrês.
- Eta, mundo! Chegou a hora!
- Sô moço, sô Juca andava farejando esse negócio e me atormentou muito para eu contar a conversa que tive com o patrão. Rondou sempre por perto de nós, para ver se apanhava qualquer coisa. O menino mordia os beiços, arrancava os cabelos, esbravejava, fazia tudo para saber, porque ele queria ter uma embarroada com os caramurus. Eu nunca vi mocinho assim.
Uma coisa me dizia que esse menino ia fazer alguma. – “Hei de ir! hei de ir!”- falava ele, com dos dentes cerrados, batendo com a mão direita fechada na palma da mão esquerda.
- Hei de ir!
- Vossemecê não vai, nhonhô, porque meu amo não quer.
Ele desconversou e sumiu.
Quando eu já estava longe, ouvi um tropel de cavalos atrás de mim. Era sô moço que vinha num cavalinho castanho careta, corredor que nem um veado. O mocinho vinha debruçado pra frente, de rédea bamba e o cavalo parecia que roçava a barriga no chão na corrida.
No eu sair, sô moço já tinha o cavalo pronto, escondido. Ganhou o rasto e bambeou as rédeas. Não foi preciso mais nada.
- Ora, já se viu! Virgem Nossa Senhora, como é que está para ser?
- Não tem nada, Joaquim, vamos embora. Eu te mostro que já sou duro.
Cá dentro o caçarão me pulou de alegria, de ver a disposição do menino. Carreguei-o nestes braços e era a minha menina dos olhos. “Ora! lá se avenha! o que há de ser tem muita força” - pensei eu não tinha culpa da vinda dele. Só ele veio, é porque gosta deveras deste mulato velho.
- Está bom, Nhonhô, Vossemecê fica amoitado ali perto. Se os homens me prenderem ou me matarem, Vossemecê percebe logo, porque isso não demora. Então, Vossemecê percebe logo, porque isso não demora. Então, Vossemecê dá de rédeas pra trás e toca a bom tocar até chegar a casa, para avisar a meu amo.
- Hás de ver que eu já sou duro, Joaquim, Vamos embora.
Com pouca dúvida entramos em terra da Tapera.
- Pode ter algum espia por aí, meu patrãozinho. Vamos cortar pelo cerrado a fora e ganhar a estrada que vem da Boa vista: enganamos os diabos, porque eles ficam pensando que somos viandantes saídos do Vão.
Assim fizemos.
Antes de confrontarmos com a fazenda da Tapera, eu fiz sô moço entrar num capãozinho de mato e ficar aí amontoado. De lá ele via a casa e o curral da frente.
Entrei, como já contei, sem ver ninguém. Subi a escadaria e gritei: Ó de casa! - Uma porta abriu-se e um caboclo de beiço rachado apareceu, respondendo: - Ó de fora! Entre e vem tomar congonha, que está no coité.
(Pelo sertão, 1898)