Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Oliveira Lima > Oliveira Lima

Discurso de posse

DISCURSO DO SR. OLIVEIRA LIMA

Cabem-nos certamente alguns dos defeitos por que somos acoimados. Como raça e como povo – latinos pela cultura, portugueses pelo sangue, brasileiros pela nacionalidade – do que não podemos, entretanto, ser facilmente acusados é de ser minguada a nossa admiração pelo talento, pelo valor e pelo sucesso. Ela é antes fácil e ruidosa. O pior, porém, é que, constituindo a admiração, quando consciente e fundamentada, a projeção do epicurismo intelectual, os que procuram a harmonia das faculdades espirituais tanto quanto o equilíbrio da vida material, podem, pelo efeito de uma conhecida lei física, ser naturalmente levados a encurtar o reconhecimento, que é a projeção da ternura do coração. Não creio, contudo, incompatíveis as suas manifestações e se, como para alguns sói acontecer, a admiração é característica dos talentos inferiores e o reconhecimento distintivo das almas pusilânimes, aceito de bom grado uma e outra qualificação, para dizer-vos, senhores, quanto me alegra e quanto me honra vir hoje expressar-vos meu maior reconhecimento pela minha eleição para membro da Academia Brasileira e dar largas à minha admiração pelo mais notável dos nossos historiadores, porquanto foi o mais valente trabalhador da história nacional.

Quando, muito novo ainda, eu estudava Paleografia na Torre do Tombo, de Lisboa, tendo por mestre José Basto, um dos auxiliares de Herculano na obra grandiosa dos Portugaliae Monumenta Historica, costumava ansioso esquadrinhar nos maços de papéis bolorentos, de caracteres semi-apagados, debaixo da poeira dos séculos, algum documento que na minha prosápia juvenil julgava dever ser decisivo para a solução de qualquer dos enigmas da nossa história, que os tem, conquanto date de ontem. Ora, era com viva surpresa e não menos vivo desapontamento que, em quase todos aqueles papéis, se me deparava a marca discreta do lápis de um pachorrento investigador que me precedera na faina, e que verifiquei não ser outro senão Francisco Adolfo de Varnhagen. Atribuindo o seu nome ilustre à cadeira que a vossa benevolência aqui me concedeu, escolhendo-o, pois, para meu patrono – mais carecera de um padroeiro, para usar da linguagem tradicional, que tão bem corresponde ao personagem e até ao espírito começo de século – celebrando agora sua memória, faço mais do que instintivamente recorrer a um modelo, traduzo uma saudosa impressão da primeira mocidade, além de prestar uma das mais merecidas homenagens que reclamam os fundadores do nosso patrimônio intelectual.

Modelo também poderia chamá-lo, como diplomata e homem de letras que foi, e mais prezando esta qualidade do que aquela, no que aliás revelava o bom-senso germânico que herdara, porque, ao passo que a literatura se torna cada vez mais árdua pela soma de conhecimentos que requer, a diplomacia torna-se cada vez mais fácil pela soma de predicados que dispensa. Não é maldizer da diplomacia lembrar que, mercê da maravilhosa facilidade de comunicações, do devassamento da vida política pelos jornais, da virtual cessação de todo o sigilo de Estado, da colocação dos cargos públicos ao alcance de todos os cidadãos, não mais permanecendo privilégio de uma casta, de outras circunstâncias ainda, ela deixou de ser uma arte para tornar-se uma profissão. Os diplomatas dependem agora tão de perto e descansam tanto sobre o chefe da sua corporação, gozam assim de tão pouca iniciativa e autonomia, que já foram irreverentemente tratados de meros tocadores de certo instrumento antimusical, que Rossini tinha em horror, e que a gravidade acadêmica me dissuade de mencionar.  Pelo contrário, o historiador moderno carece de ser, além de um erudito, um artista; de descobrir, ele próprio, as fontes, analisar-lhes o valor, saber aproveitar o manancial que delas brota, quando ainda livre de impurezas, e arrecadá-lo em vasos do mais puro cristal por ele mesmo facetado.

Nas páginas eloqüentes dedicadas por um acadêmico francês, o Duque de Broglie, a Victor Duruy, lê-se o que deve ser hoje o historiador, como tem de combinar a sagacidade da verificação com o talento da exposição, aliar a circunspeção do pesquisador à habilidade do narrador, o que, demandando em rigor para aplicar-se à evolução de um povo ou de uma nacionalidade tempo mais que o de uma vida e inteligência mais do que a humana, convida à elaboração das monografias e, como conseqüência, produz a dispersão da matéria histórica. Não há, com efeito, quem não esteja convencido de que o século atual será irremediavelmente o século dos especialistas. Aquelas palavras de Broglie são tanto mais dignas de meditação quanto é bem verdade o que antes afirmara Augustin Thierry, um dos mestres da moderna história francesa, que a direção intelectual dominante no século XIX seria a necessidade da história.

O século em que há pouco entramos encontra bem aproveita¬dos todos os recantos desse campo, cuja vastidão contudo desafiava a das savanas imensas por onde vagueou o espírito errático de Chateaubriand, que foi o primeiro a torná-lo pitoresco. Aplicando ao próprio gênio o aforismo baseado na curiosidade mental de sua época, revelou-se o mesmo Thierry um magistral conhecedor dos tempos sumidos, um conhecedor como na língua portuguesa só se encontra análogo em Alexandre Herculano – sóbrio, vigoroso, animado, apoiando diretamente nos textos primitivos e nos documentos originais as suas informações precisas; até liberal intransigente de julho, como foi Herculano em política um ferrenho cartista.

Caberia Varnhagen dentro da categoria delineada pelo ilustre duque? Teria sido um erudito e um artista, um Niebuhr e um Beule? Se não, aproximar-se-ia ele sequer daqueles representantes eméritos do gênero severamente histórico, que não faz concessões extraordinárias às galas do estilo, e na consciente gravidade põe seu maior encanto?  Na forma acadêmica, tal como a consagraram os franceses, é inevitável o gasto de leves e mal disfarçadas ironias. Nós, porém, não estamos empenhados neste momento na recepção de um novo membro da nossa Companhia, nem no elogio de um companheiro de ontem, cujas fraquezas de escritor – quem deixará de tê-las? – ou cujas antipatias de gostos literários estejam presentes e vivas. Glorificamos um morto, de longa data, que já a ninguém faz sombra e não mais é discutido. Não se trata de um predecessor a criticar, mas de um padroeiro a canonizar. Seriam assim inconvenientes as ironias, sobre serem descabidas. Lembrados de que Varnhagen foi, sem contestação, o criador da história pátria, se não em sínteses luminosas pelo menos na comprovação essencial, é tão¬-somente com respeito que devemos encarar essa figura saliente da nossa literatura, posto sejamos forçados pela justiça a salpicar das reservas indispensáveis em todo estudo a nossa legítima admiração perante ela.

O fato é que os fastos literários se não ufanam entre nós de um historiador parecido com qualquer dos espíritos superiores de cujos nomes fiz menção. Francisco Adolfo de Varnhagen foi por certo o mais notório e o mais merecedor dos estudiosos do passado brasileiro: foi um ardente investigador, um infatigável ressuscitador de crônicas esquecidas nas bibliotecas e de documentos soterrados nos arquivos, um valioso corretor de falsidades e ilustrado colecionador de fatos. Porém o dom admirável de comunicar vibração às turbas desaparecidas, que caracteriza um Michelet, ou a extrema habilidade de reconstituir com um aglomerado de pormenores, um caráter humano, ou dele deduzir uma lei da evolução, que particulariza um Taine, os não possuiu o autor da História Geral. Faltava-lhe, para isto, mais do que uma faculdade psicológica aguçada por sólida e moderna preparação científica, a ingente obra crítica que aqueles outros escritores contavam a ampará-los.

Remontando mesmo mais longe, dentro do século findo, do que a Michelet e Taine, Thierry escudara-se com os pacientes trabalhos dos beneditinos e com os resultados das pesquisas das Academias, e Alexandre Herculano, ainda que abrangendo a sua produção um longo esmiuçar de monumentos históricos, sentia-se arrimado aos faustosos mas excelentes frutos da atividade da Academia de História e da Academia das Ciências. No Brasil, apenas hoje, graças justamente ao labor indefesso de Varnhagen, a estudos especiais como os de Norberto de Sousa sobre a Conjuração Mineira, do Dr. José Higino sobre o período do domínio holandês no Norte e do Sr. Lúcio de Azevedo sobre os jesuítas no Grão-Pará, e ao impulso prestado às monografias, dissertações e comparações de documentos pelas associações de que são modelos o Instituto Histórico do Rio de Janeiro e, em menor escala, os Institutos de Pernambuco, Ceará, Bahia, São Paulo, etc., poderá um sincretizador tentar firmar numa vista de conjunto a sua concepção particular do desenvolvimento pátrio.

O traço dominante da individualidade de Varnhagen é a paixão da investigação histórica, à qual subordinou todas as suas manifestações de escritor. Ele traz-nos à memória o faiscador atraído pelas palhetas do ouro ou o garimpeiro hipnotizado pelos diamantes, esquecido da beleza da paisagem em que labuta por descobrir os tesouros da terra, cego diante da formosura da perspectiva e da transparência da atmosfera, que seduziriam o pincel de um pintor, surdo ao sussurro das folhas e ao canto das aves, que acordariam o estro de um poeta. Se compunha um drama como o Amador Bueno,  Varnhagen escolhia um ponto controverso da história pátria, aproveitando em sua plenitude a legenda que a sua crítica não podia acolher sem ressalva.  Se esboçava uma novela como a Crônica do Descobrimento do Brasil,  fazia-o, segundo declarou,  para vulgarizar o primeiro documento histórico relativo ao Brasil, que foi a carta descritiva de Pero Vaz de Caminha: por “achar que a forma do romance era o melhor meio de adaptar ao gosto de todos a história do país”. Se reeditava os nossos épicos, Basílio da Gama e Durão,  ou outros dos nossos poetas no Florilégio, buscava sobretudo um pretexto para escrever-lhes as notícias biográficas – as melhores que até agora temos – e rechear as publicações de notas eruditas. Se traçava algumas páginas sobre Arquitetura a propósito da igreja de Santa Maria de Belém, não o impulsionavam tanto sentimentos de arte como o desejo de aproveitar mais uma contribuição para fixação de épocas históricas.

A carreira diplomática, da qual percorreu todos os graus, ofereceu-lhe principalmente ensejo para indagações as mais valiosas em arquivos e livrarias. Da Torre do Tombo, em Lisboa, extraiu documentos sem número e sem par.  Dos de Simancas está cheia a primeira edição da sua história do Brasil,  servindo-lhe aqueles de que então se não aproveitou, para, quando na América do Sul, preparar o ensaio sobre a ocupação holandesa do norte do Brasil e escrever a famosa defesa de Vespúcio. Em Viena delineou a história da Independência, ainda inédita e atualmente em mãos do nosso consócio Sr. Barão do Rio Branco, em grande parte sobre as informações diplomáticas do Ministro austríaco no Rio de Janeiro, admiravelmente colocado para seguir a trama íntima dos acontecimentos como representante de uma corte parente, e possuindo no próprio selo da família real portuguesa uma natural informante na pessoa da arquiduquesa Leopoldina. Ninguém contestará que este rol de serviços seja superior ao que podem apresentar muitos diplomatas, mesmo saídos de fresco do torvelinho de negociações espinhosas. Mais vale em todo caso escrever história com autoridade do que ajudar a fazê-la sem capacidade.

Varnhagen é um exemplar precioso para a justificação da célebre teoria de Taine, da raça, do meio e do momento, que os exageros dos discípulos não lograram desacreditar.
Nascido em São Paulo, era, porém, filho de um alemão, mineralogista distinto que restaurou e administrou a conhecida fábrica de ferro de Ipanema e que com Eschwege, Debret, os Taunay e tantos outros, fazia parte do grupo de europeus do Norte, ao qual o Brasil deveu um inestimável concurso intelectual nos começos de sua existência como nação independente. Da raça germânica recebeu ele em legado o amor ao trabalho aturado, a paciência na elaboração de uma obra, o cuidado na exatidão dos resultados, que a sua educação de engenheiro só podia ter fortalecido. Vindo para Portugal aos oito anos, criou-se entre aquela geração do Panorama, ávida de regeneração mental, seduzida pela evocação do longínquo passado nacional, dominada pela grande corrente de curiosidade histórica de que falava Thierry. Os primeiros ensaios de Varnhagen, depois das Reflexões críticas, encontram-se precisamente no mencionado órgão da propaganda romântica – tomando esta expressão no seu sentido mais largo e mais levantado – colaborado por Herculano, Oliveira Martins, Rebelo da Silva e tantos ilustres escritores do tempo. O meio e o momento, portanto, não podiam ser mais propícios ao desabrochar dessa vocação de historiador, cuja corola ainda desmaiada se volvia, sequiosa de luz e de calor que lhe avivassem as cores, para o sol magnífico que doura cada dia o píncaro do monte Pascoal.

A educação literária em Portugal, nas condições apontadas, não impediu, antes contribuiu para que “a pátria de nascimento e de opção”  lhe ocupasse exclusivamente o espírito desde que encetou a carreira das letras. Não falando já das Reflexões críticas à edição pela Academia das Ciências do Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, do qual ele daria mais tarde nova e correta edição,  o primeiro trabalho que lhe devemos foi em 1839, aos 23 anos de idade, a publicação do Diário da navegação ao Brasil, de Martim Afonso de Sousa, escrito pelo irmão Pêro Lopes, enriquecida com curiosas anotações.  Depois contam-se por dezenas os manuscritos referentes ao Brasil que salvou da destruição, os papéis históricos que livrou do esquecimento. Desde a Narrativa epistolar, do padre Fernão Cardim, até à Descrição do Maranhão, de Heriarte,  é um nunca acabar de subsídios valiosos fornecidos por Varnhagen ao estudo dos nossos três séculos de vida colonial. Era como se ele tivesse avocado, para cumpri-la, uma tarefa que de ordinário se reparte por uma porção de sociedades de descanso mútuo.

A fundação do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, no próprio ano da sua estréia na literatura histórica, veio a propósito para estimular-lhe o zelo e provocá-lo a redobrar seus esforços de escavador, já recompensados pela Academia de Lisboa com a admissão para sócio. Também o seu espírito era perfeitamente o de um acadêmico do século XVIII, com a compreensão mais larga das cousas da inteligência dada pela cultura moderna. Nem lhe faltavam aquelas birras literárias, aqueles melindres profissionais tão característicos, e que nele deram nascimento a várias, conhecidas e instrutivas polêmicas, azedas umas, urbanas a maior parte, com Abreu Lima, com o Visconde de Santarém, com D’Avezac, com Richard Major, com João Francisco Lisboa, com Netscher, com Antônio Henriques Leal. Não havia competidor que lhe inspirasse receio, nem sumidade que o fizesse recuar. O seu talento de polemista era, contudo, fraco, sob o ponto de vista literário; nada do sarcasmo cru de um Camilo ou da ironia alada de um Otaviano. Varnhagen tinha a falta de espírito de qualquer privat-docent de Bonn ou de Heidel¬berg, que não possuísse sombra da ciência de escarnecer de Heine ou do penetrante talento de motejar de Schopenhauer. A zombaria era-lhe estranha. Quando tentava ter graça, metendo alguém a ridículo, nada mais conseguia do que fazer-nos sorrir da sua insipidez. Esgotando a argumentação sem nunca fulminar o adversário com um raio de indignação ou submergi-lo numa tempestade de galhofa, descendo às últimas minudências pelo hábito de insistir nos detalhes, os seus ataques e defesas tornam-se enfadonhos pela ausência de todo cunho artístico, mais parecendo desenxabidos arrazoados de praxista que vibrantes desabafos de escritor.

Varnhagen era não só suscetível e de índole combativa, como afeito a apaixonar-se por uma tese e especialmente por um personagem. Na História das lutas dos holandeses no Brasil, extensa monografia de real merecimento, constituiu Vidal de Negreiros o objeto do seu louvor, mostrando para com João Fernandes Vieira uma viva antipatia. A sua grande, absorvente e mais antiga afeição histórica foi, porém, Américo Vespúcio, cuja importância de navegador, seriedade de correspondente e fidelidade de narrador defendeu com grande cópia de argumentos históricos e geográficos, citações de textos e comparações de roteiros no trabalho geral sobre história do Brasil, em trabalhos especiais,  e na resposta à análise crítica contida no parecer do eminente Mr. D’Avezac sobre a História Geral.

“Vespucci, que chegado ao ocaso da vida começara enfim a viver sossegadamente, foi depois de morto alvo de ataques injustos e acrimoniosos. Sua memória tornou-se a vítima inocente da própria fama que de princípio lhe fora dispensada. Não sigamos mais este miserável sistema que consiste em vilipendiar a honra dos pequenos para exalçar a glória dos grandes e, esclarecendo a história das viagens de Vespucci, advoguemos uma questão a um tempo de justiça e de moralidade.”

E se bem o disse melhor o fez. Os dois trabalhos especiais dedicados ao navegador florentino são incontestavelmente de grande valia pelo intuito com que foram elaborados, pelo método que seguiram e pela riqueza de erudição que ostentam. Em nenhum dos seus livros talvez existe tanta abundância, um tal luxo de ilustração histórica. Percorrendo-se esses dois volumes esguios tem-se a impressão perturbadora de uma floresta dos trópicos, densa e perfumada, onde tudo se nos afigura estranho, cujas árvores parecem formar uma trama contínua pontilhada de orquídeas esquisitas, mas onde acabássemos por orientar-nos perfeitamente. São eles extensivamente aproveitados em obras monumentais como a de Justin Windsor,  pois que Varnhagen é um dos raros brasileiros cujas opiniões gozam de incontestável autoridade fora do nosso mundo intelectual.

Apesar de, por um efeito seguramente de simpatia reflexa, interessar-me vivamente pelo bom nome de Vespúcio, não me aventurarei a decidir do pleito em que o nosso historiador se empenhou unguibus et rostro. Li muitas das peças do processo e, se fosse juiz chamado a proferir a sentença, diria em sinceridade que a questão da autenticidade das primeiras navegações de Vespúcio, particularmente da viagem de 1497 com a conseqüente descoberta da terra firme, parece-me uma destas questões aventadas para nunca serem decididas. A nossa Academia poderia em peso tentar a solução desse problema do século XV sem conseguir encontrar-lhe o x. O famoso Dicionário da Academia Francesa ainda pode antever sua terminação, dada a perpetuidade da instituição que o está executando. A questão Vespúcio, entretanto, mais se complicará com o andar dos tempos: pela sua perplexidade ela é uma das muitas que nos fazem duvidar da veracidade das premissas de que a história costuma tão solenemente tirar suas conclusões.

Em Varnhagen superabundava em erudição o que escasseava, como disse, em espírito propriamente filosófico. Qualquer orientação que a sua inteligência pudesse ter manifestado de começo para a consideração das causas dos acontecimentos – e por algumas páginas dos seus primeiros trabalhos vê-se que tal preocupação lhe não foi alheia – desviou-se na continuação pela insistente pesquisa de documentos para o restabelecimento da verdade dos efeitos ou fatos. Durante sua longa residência em Portugal, ao tempo da sua convivência com Garrett, José Estêvão, Frei Francisco de São Luís, que lhe dispensava uma paternal afeição, e os outros corifeus da grande geração portuguesa da primeira metade do século, e ainda depois da sua transferência diplomática para Madri, foi que ele mais se devotou a estudos propriamente literários. Data de 1849 (Madri) a edição das Trovas e cantares ou mais provavelmente o Livro das cantigas do Conde de Barcelos, a qual Inocêncio qualifica de “inegável e valioso serviço à literatura em geral e mui particularmente à portuguesa”.  Em Lisboa e Madri publicou (1850 e 1853) os três tomos do Florilégio, cuja introdução é julgada excelente, ao ponto de a considerar um crítico da autoridade do Sr. José Veríssimo “a fonte da nossa história literária à qual teria Varnhagen aí assentado o critério geral”. É verdade que sobre aquelas páginas reveladoras repousam os trabalhos críticos posteriores, mais avultados e mais acabados, que retomaram o fio abandonado pelo grande trabalhador no seu prurido de descobrir novas informações, nele mais forte do que o deleite de enfeixá-las com garbo.

Dir-se-ia que mais tarde lhe roubou todos os momentos a pura investigação, até estendida aos domínios da pré-história americana, da qual já se havia ligeiramente ocupado no opúsculo Sumé, lenda mito-R religiosa, anteriormente publicada no Panorama. Para ser contudo um arqueólogo ou um etnógrafo de valor igual ao do erudito histórico que era, faltava-lhe a base que só podia haver-lhe fornecido uma instrução especial, compatível aliás com o meio e o momento em que se educou a sua inteligência, mas que ficara um tanto fora da esfera peculiar de atração do seu espírito. As suas informações sobre os selvagens são por via de regra fidedignas, porque se apóiam no testemunho dos antigos autores que de contínuo manuseava; porém as suas reflexões sobre etnogenia brasileira, condensadas no livro L’Origine Touranienne des Américains Tupis-Caribes et des anciens Égyptiens indiquée principalement par la philologie comparée, não passam de divagações de diletante. Varnhagen possuía todavia uma condição vantajosa para uma serena e despreocupada observação das hipóteses que constituem ainda hoje o melhor do haver desse ramo dos conhecimentos humanos. Único talvez entre os escritores brasileiros da sua geração, nunca revelou simpatia pelos indígenas.

Conta ele na Réplica apologética que, ao ser apresentado em Portugal pelo pai a D. Pedro I, entrevista da qual resultou o alistamento do jovem Varnhagen nas fileiras liberais, na campanha do Duque de Bragança contra D. Miguel, o ex-Imperador do Brasil reparara na sua elevada estatura, ajuntando “que era do sangue paulista”. O sangue dos bandeirantes e o sangue alemão que de mistura lhe corriam nas veias, não podiam gerar o sentimentalismo sobre que assentou em boa parte a corrente indianista da nossa literatura. E como teve sempre a coragem das suas opiniões, mesmo se apodadas de pouco humanitárias, sustentou-as com convicção quando vinha a propósito, e com vivacidade ao travar a tal respeito com o ilustre prosador maranhense João Francisco Lisboa a polêmica de que ficou por memória o folheto Os índios bravos e o Sr. Lisboa.

Varnhagen era francamente antiindianista, como logo o notou D’Avezac, estranhando que em vez de começar sua História pela dos aborígines, ele a começasse pela de Portugal, da terra dos colonizadores, da qual o Brasil assim formava o mero desdobramento peculiar no ultramar.  Era antiindianista em tudo, menos na linguagem, na qual dava caloroso abrigo aos termos americanos, ao passo que acusava os negros de haverem estragado no Brasil a língua portuguesa. Os índios no estado selvagem lhe não mereciam, porém, simpatia alguma; todos os encantos de Atala não quebrariam sua frieza. Sem odiá-los como raça nem pretender exterminá-los como parte pouco desejável da população nacional, nenhuns direitos lhes reconhecia que valessem, perante as exigências da civilização européia, aquilo que o poeta Rudyard Kipling com tanto sucesso denominou o White Man’s burden. Devera antes ter nascido anglo-saxão quem tão firmemente exibia o orgulho do branco, tão gostosamente lhe zelava os foros, tanto lhe enaltecia os serviços.

No seu íntimo Varnhagen não acreditava nos brandos esforços da catequese para amansar os índios, elevá-los à vida social, “reabilitá-los”, como dizia a espécie de Romantismo que não preferia o puro estado natural. No chamado Discurso preliminar (ou Os índios perante a nacionalidade brasileira), ele o declara mesmo: contava tão-somente com a força para contê-los, “avassalá-los”, repeli-los quando preciso, obrigá-los a tornarem-se úteis trabalhando em benefício dos invasores para o progresso material, que por fim lhes aproveitaria também. Não podemos, no entanto, acusá-lo de inabalável escravocrata. Sujeição dos índios era para ele equivalente a redução na importação dos africanos, cuja emancipação lenta e gradual acabou por advogar com animação, após ter pretendido substituir a servidão indígena à escravidão negra. Para combater o seu desprezo fundamental pelas raças inferiores atuava o fermento da sua fé, visto haver ele sido um crente num meio em que o voltairianismo estava na moda, assim como se revelou um conservador esclarecido e adiantado num tempo em que o epíteto de liberal andava comumente atribuído aos que afixavam idéias revolucionárias. A sua ascendência era assaz fidalga para permitir-lhe essa postura meio reacionária; a sua natureza assaz altiva para dispensá-lo de cortejar uma falsa popularidade, baseada no esquecimento das suas tradições de família e das suas predileções morais.

Como objeto de estudo, entretanto, em sua expressão como origem dos “mitos dos tempos heróicos da nossa história”, os índios nunca deixaram de atraí-lo.  A criação, no Instituto Histórico, da seção etnográfica é-lhe devida, e bem assim sustentou a conveniência de fundarem-se cadeiras da língua tupi. Dando ele próprio o exemplo, adquiriu no campo da lingüística americana, como em todos que cultivou, uma sólida competência, que a outros bastaria para satisfazer a ambição de saber, se bem que nada houvesse aí 1evado a cabo de notável ou de singularmente interessante. Contudo, escreveu Richard Burton na introdução sobre índios brasileiros da sua tradução de Hans Staden, que foi Varnhagen o primeiro a esclarecer a confusão etnológica que reina nas obras dos escritores anteriores, de quem dependera Southey.

Se não era um homem de ciência como Humboldt, tampouco era Varnhagen um estilista como Renan. Escrevia com gravidade, com correção, por vezes com fluência, mas sem elegância nem brilho. Quando mais apurada, isto é, quando se eleva ou mesmo se empola para condizer com o assunto, ou para traduzir os sentimentos nobres que animam, a sua linguagem perde toda a agilidade sob o peso dos atavios que, embora pouco graciosos, não seriam ainda assim julgados excessivos e de mau gosto se por causa deles não ficasse emperrada a expressão do autor. Nos tempos da colaboração no Panorama, particularmente na Crônica do Descobrimento do Brasil, enxerga-se na sua forma a preocupação dos termos apropriados, novos ou obsoletos, mas concretos e diretos, que distingue a linguagem sua contemporânea, e foi particular objeto da escola romântica, no tocante à exposição. Pode até apodar-se de excessiva essa tendência no referido trabalho de mocidade, obscurecendo ou antes embaraçando por momentos a narração, tal é a cópia dos vocábulos técnicos usados, peculiares à navegação de outrora.

Como o trabalho incessante o tornava um progressivo, alguns senões do escritor corrigir-se-iam pelo tempo adiante e aperfeiçoar-se-ia a sua redação, ganhando em distinção. De resto, a freqüência da leitura dos clássicos desde a juventude, ajudada pelo constante folhear, durante toda a vida, de documentos dos séculos de português mais castiço, e igualmente pelo natural efeito da reação devida ao esforço que sobre si próprio exercia para se não deixar influenciar pelos outros idiomas em que compunha, conservou sempre à sua linguagem uma boa vernaculidade que a recomenda, mesmo nas ocasiões em que a forma se torna mais frouxa. E como poderia deixar de ser purista, de desvelar-se pela dignidade do estilo, mediante a autonomia do vocabulário, um discípulo do Cardeal Saraiva, cujo amor à língua portuguesa foi tanto que, julgando desairosa a sua tão próxima descendência de um idioma comparativamente novo como o latim, com grave escândalo dos filólogos, lhe foi procurar ascendência entre os idiomas célticos falados na Lusitânia, posto que enriquecidos com aquisições do latim culto ou das línguas neo-romanas?

Varnhagen tinha, entretanto, em si a melhor das condições para ser um escritor – tinha idéias. No panegírico do eminente fisiologista Claude Bernard, a quem sucedeu na Academia Francesa, Renan aventa que um grande pensador é sempre um grande escritor, porque a bela e adequada expressão dos pensamentos, levantados é por assim dizer instintiva. Ora, Varnhagen é mais do que um cronista erudito. Entra de direito na categoria dos escritores da variedade a que os alemães dão o nome de história pragmática, a saber, a história que não é propriamente a filosófica, ou que dos acontecimentos deduz as leis que governam na sua marcha as sociedades humanas, mas que vai além da simples exposição dos fatos, acompanhando-os de reflexões e considerações sociológicas. “História geral da civilização do Brasil” intitula-se no prefácio o seu trabalho de conjunto, ajuntando o autor que tal civilização era, no seu entender, fruto da invasão européia e herói nacional nenhum outro senão o invasor.

Nas próprias polêmicas Varnhagen guardou sempre certa elevação de linguagem, porque nele era natural a elevação das idéias, que nem buscava divulgar mediante o sacrifício das suas convicções às inclinações ou caprichos do momento entre a maioria, despindo-as, portanto, da originalidade; nem tampouco procurava revestir de singularidade com fórmulas impraticáveis e excêntricas. Suas idéias eram práticas e sãs, para o que decerto influíam não só disposições hereditárias – o fundo ancestral de bom senso alemão a que já fiz alusão, tão predominante que ia por vezes de encontro ao meio – como as lições bebidas na larga residência em países estrangeiros, longe dos enredos políticos, e em dilatadas viagens feitas ao serviço diplomático do seu país ou com o fito de realizar indagações históricas, dando-lhe ininterrupta ocasião de exercer sua faculdade de observador inteligente.

Sobre agricultura, sobre comércio, sobre indústria, exarou a meio dos seus escritos um sem-número de ponderações sensatas e aproveitáveis. No domínio agrícola ocupou-se em pequenas monografias dos meios de melhorar a indústria do açúcar, o tratamento do fumo e o fabrico dos charutos, e bem assim do cultivo do café e do trigo. No terreno político, uma ponderação sua me acode agora, na qual corajosamente insiste repetidas vezes e que na rotação dos acontecimentos volveu à atualidade, como no tempo da mocidade de Varnhagen, decorrida ao som do eco persistente das revoluções movidas pela quimera separatista, excrescência do ideal federalista que inflamava os corações: a da necessidade da imolação do sentimento de provincialismo ao de patriotismo. “Ao provincialismo, escreveu ele,  associam-se apenas idéias de interesses provinciais, quando principalmente as de glória andam anexas ao patriotismo, sentimento tão sublime que faz até desaparecer no homem o egoísmo, levando-o a expor a própria vida pela pátria, ou pelo soberano que personifica o seu lustre e a sua glória.” O seu centralismo chegava a fazê-lo aconselhar fortemente a fundação de uma Universidade Central Brasileira no centro de Minas, no intuito certamente de unificar o sentimento nacional.

Esmaltadas de idéias, não podem jamais ser monótonas as suas produções. A grande cópia de conhecimentos históricos e literários que Varnhagen possuía e da qual ele mais do que ninguém estava capacitado, por outro lado impede a sua obra de ser alguma vez banal ou enfadonha. A sua probidade profissional levava-o não só a informar-se de quanto existia publicado e inédito sobre um determinado assunto, como a indagações locais, topográficas, para uma mais apurada percepção e explanação dos fatos. Foi assim que visitou os montes Guararapes e percorreu os pontos mais notáveis da prolongada luta com os holandeses, que seguiu no encalço dos bandeirantes até os frescos planaltos de Goiás e os abafados pantanais de Mato Grosso; não ia como Chateaubriand à Palestina e a Granada em busca da sensação aguda do extinto, nem como Flaubert ao Egito em sôfrega busca da cor local, mas como um sisudo cronista militar e político em procura da compreensão completa do terreno, para mais exata reconstituição das cenas da guerra e das aventuras colonizadoras. E não só possuía ele saber e consciência, como o faro, a intuição que precede a corroboração, e que é mais do que a plenitude, é a pedra de toque do talento do historiógrafo. Na mencionada Crônica do Descobrimento do Brasil, por exemplo, Varn¬hagen, muito antes das recentes e pouco conclusivas inquirições neste sentido, confessa repugnar-lhe imputar ao mero acaso a descoberta das terras de Santa Cruz, abordando francamente os motivos posteriormente invocados.

O profundo amor às letras, amor que lhe absorvia todo o tempo além do dedicado à rotina oficial e vicissitudes diplomáticas nas várias capitais do Pacifico e da Europa em que esteve acreditado, junto talvez com aquele intenso sentimento da própria valia, o qual, conforme aponta Joaquim Manuel de Macedo no curto e indiferente necrológio proferido no Instituto Histórico do Rio, se convertera por fim num orgulho intolerante e irritável que não admitia oposição,  combinaram-se para afastá-lo constantemente do campo sedutor da política, tão acessível ao seu mérito e tão simpático à grande maioria dos seus, dos nossos compatriotas.

Tão longe dela se conservou Varnhagen que, sendo um laborioso e um polígrafo, o qual até sobre caça discreteou, apenas escreveu em 1849 e 1850 duas magras brochuras políticas, e em 1856 alguma cousa sobre colonização agrícola, questão de preferência social.

Poupou-se destarte algumas decepções, posto que delas não houvesse ficado isento. Nos últimos tempos da sua vida – não posso infelizmente dizer na velhice porque Varnhagen morreu com 62 anos – queixava-se de ter “o ânimo quebrantado”. Já notastes, senhores, como é familiar esta frase entre nós, onde os escritores têm poucas pugnas a sustentar para abrirem seu caminho, e a estima dos entendidos e os favores do Estado quase sempre os recompensam? O desânimo não é só devido à escassa resistência do nosso temperamento. É que alguma cousa existe de pior do que a hostilidade: é a apatia da multidão, a frieza do meio, a impossibilidade de chegar à grande massa, de granjear a verdadeira popularidade, a que é trazida pela ação do intelecto.

A energia e a paixão que no entanto residiam em seu caráter e que deixava de malbaratar nas discussões partidárias, reservou-as Varnhagen para a defesa de algum tema histórico que sofresse contradita e a apologia ou o vitupério de algum personagem histórico que, em sua opinião, não ocupasse o devido lugar no juízo da posteridade. Mais do que Vespúcio, mais do que qualquer figura humana, amou ele, porém, a terra que lhe foi berço, o seu Brasil, e tanto mais o estremecia, quanto lhe não fora mui fácil seguir a nacionalidade da sua predileção. Filho, como sabemos, de estrangeiro engajado no serviço da colônia, depois nação independente, levado menino para Portugal, aí tendo seguido todos os cursos, havendo-se alistado no exército português e estando até prestes a ser nomeado capitão de engenheiros, parecia que a pátria de nascimento lhe devera ser indiferente. Não assim – reivindicou-a pela inteligência e pelo coração, ofertou-lhe as primícias do seu talento, e a custo de muito esforço pessoal, logrou, aos 25 anos, fazer-se reconhecer como brasileiro.  O que para tantos outros fora puro presente do acaso, para ele foi uma árdua conquista, que mais lhe fazia querer os despojos da vitória, a saber, a sua carta de naturalização e o lugar diplomático que imediatamente deveu à generosa proteção do Imperador D. Pedro II, sempre pronto em animar o culto das letras.

Também ao Brasil e só ao Brasil consagrou Varnhagen o melhor da sua imensa atividade intelectual. Abrasando-se na exaltação patriótica promovida pela realização da Independência, ao ponto de proclamar horror ao cosmopolitismo que devia ser a conseqüência da sua educação, e até querer transportar a capital para o interior, a fim de não se desnacionalizar pelo contato inevitável de um porto com os estrangeiros, ao Brasil levantou, num movimento de sincero entusiasmo, o monumento – o termo não é hiperbólico – da História geral. Os caboucos encheu-os com essas dezenas de publicações nas quais se comprazia, como D’Avezac, Harrisse e outros historiadores de detalhes e descobridores de fontes, em transbordar o excesso de sua erudição, esclarecendo aqui um ponto, retificando ali outro, além discutlndo uma hipótese, aventando nova, ou defendendo uma opinião. Dir-se-ia que o perseguia a idéia de perder seus apontamentos nas constantes remoções a que o compelia a vida diplomática; tanta era a pressa de comunicar ao público o que lhe ocorrera, tanto o dominava um constante desejo de conversar com os seus leitores.

Com aquelas publicações avulsas, sempre úteis e sempre interessantes, organiza-se a mais curiosa das bibliotecas, com volumes de todos os formatos; bulindo em não sei quantos assuntos, escritos em português, em espanhol, em francês, em alemão, pois que ele conhecia e redigia em uma porção de línguas vivas e mortas, impressos nos mais variados lugares, em Lisboa, em Estocolmo, em Madri, em Caracas, em Viena, em Lima, na Havana, em Santiago. Seja-me lícito entrar em todos estes pormenores bibliográficos, já que deles era tão amigo o escritor de que, mercê da vossa insigne benevolência, me estou ocupando.

A feitura da História das lutas com os holandeses foi primeiro empreendida por um móvel de patriotismo, para reanimar algumas coragens desfalecidas ante as dificuldades com que se apresentava a guerra com o Paraguai, rememorando a lição admirável do século XVII, que é ainda hoje a página mais pura e mais tocante da nossa história Que melhor prova de patriotismo podia outrossim Varnhagen dar, do que concentrar o vigor mental de que fora dotado, sobre a ressurreição gráfica do passado da sua terra? O amor do passado é comum às nações que farejam sua decadência, para as quais constitui um regresso a tempos melhores, aos tempos da grandeza e da epopéia, e bem assim às nações em via de progresso, para as quais representa a necessidade de unidade, da continuidade histórica, dos antecedentes próprios, da tradição.  O réveil napoléoniste correspondeu em França à primeira orientação; a segunda encontra nos Estados Unidos o seu exemplo mais frisante.

O estudo da história pátria é, pois, muito mais do que uma tarefa simpática e agradável: é a satisfação de uma tendência da alma nacional. O passado não só envolve a tradição, como gera o incentivo da ação pela lembrança dos feitos gloriosos de outras gerações, que com a distância do tempo perdem as asperidades e imperfeições, e mais gloriosos parecem ainda na sua idealização vaporosa não se lhes conhecendo as sombras nem os defeitos. Assim, na pintura, por efeito da perspectiva, esfumam-se os contornos, esbatem-se as cores, corrigem-se as desigualdades e uniformiza-se a visão.  Além disso, o passado pesa com todo o seu peso sobre o presente, engrinaldando-o com a messe das suas virtudes e manchando-o com a recordação dos seus crimes. O historiador que, exalçando-as, evoca as primeiras e, vilipendiando-os, tenta corrigir os segundos, faz obra de moralista e merece mais do que a admiração, tem jus à veneração pública.

Os sentimentos de honestidade profissional e de eqüidade social eram em demasia arraigados no caráter de Varnhagen, para que ele se esquivasse a tão bela missão, cujo cumprimento empresta relevo ao seguimento da sua sábia narração. Nas próprias palavras dele a história deve ter por intenção “formar e melhorar o espírito público nacional”, e foi sem tergiversações que desempenhou este papel de moralista, na acepção mais elevada da palavra, a saber, do historiador que faz servir a história de ensinamento para os seus contemporâneos, porque, como Varnhagen disse algures, o presente não é mais do que a repetição do passado.

O escritor que se segrega da sociedade para na solidão de seu gabinete chamar de novo à vida o passado, com os seus personagens, os seus dramas, os seus horrores e as suas glórias, e com esse encantamento visa a realizar não só uma primorosa reconstrução artística mas uma nobre tarefa de pensador, corre muito o risco de falsear sua missão pela ignorância em que forçosamente cai das necessidades morais do presente. Para prevenir este mal, é mister conservar o interesse ligado ao mundo mental. Varnhagen não podia sofrer das conseqüências de semelhantes circunstâncias, porque a sua vida intelectual é inseparável da sua vida pública.

Com efeito, não pode¬mos esquecer que, se foi principalmente, essencialmente um homem de letras, ele foi oficialmente um diplomata. Sua atividade neste campo não pode, portanto, ser passada sob silêncio.

A primeira nomeação na carreira veio-lhe em 1842, de adido à Legação em Lisboa, donde passou em idêntica categoria para a Legação na Espanha, em 1847, sendo no mesmo ano promovido a secretário e em 1851 a encarregado de negócios.  Em Madri demorou-se até 1858, o que perfaz dezesseis anos de serviço nas duas capitais da Península, que empregou no revolver dos arquivos e no preparo da primeira edição da História Geral, coroando um monte de pequenos trabalhos. Ninguém, penso, se queixará de que durante esse período Varnhagen ocupasse seu tempo mais nos cartórios que na chancelaria, ou por outra, que combinasse e mesmo preferisse os estudos históricos à fofice diplomática, e os ensaios literários à ociosidade burocrática; pois não me consta que houvesse então outra questão pendente entre as cortes de Madri e do Rio de Janeiro, além de umas tediosas reclamações espanholas, por apresamentos de navios, e outras não menos tediosas reclamações brasileiras por fornecimentos não satisfeitos e efetuados por particulares a forças estacionadas no Rio da Prata, datando todas de dezenas de anos e afetas a uma comissão mista, sendo as negociações a elas pertinentes conduzidas pelo ministro espanhol no Brasil.

Eu bem sei que a diplomacia não se compõe só de negociações importantes, felizmente raras; que o ramerrão é muito mais natural, e que o trato constante dos agentes de uma nação com os representantes políticos e sociais da outra nação se impõe como um dos meios de fomentar as relações internacionais, de desmanchar quaisquer atritos supervenientes, de tornar mais íntimo o conhecimento dos dois países e conseguintemente mais enraizada sua recíproca estima.

Varnhagen era por demais inteligente e bem educado para descurar esta parte necessária do ofício, a chamada representação, começando por facilmente ganhar pelo seu merecimento de escritor as boas graças dos cultores mais insignes das letras castelhanas de então, e granjeando depois entre a aristocracia madrilena a nomeada de perfeito homem de salão, a qual tem que ser apanágio comum dos diplomatas e o é sempre que corresponda a uma condição nacional.

Em 1859 começou a estada de Varnhagen na América do Sul com a promoção a ministro residente para o Paraguai, depois de restabelecidas as relações do Império com essa República e de concluído o tratado de 12 de fevereiro de 1858, pelo qual foi aberto a todas as bandeiras o rio Paraguai “sob condições iguais e mui favoráveis ao comércio geral”.  Como prova de boa amizade acabava outrossim o Governo Imperial de interpor seus bons ofícios para não degenerar em séria divergência a dissidência aberta entre o Paraguai e os Estados Unidos da América, que foi amigavelmente ajustada. Curta foi porém a residência de Varnhagen em Assunção. Abafando na atmosfera de sangue e de pavor, qual a produzida pelo despotismo do primeiro López, abandonou certo dia o posto, sendo em janeiro de 1861 acreditado em Venezuela, Nova Granada e Equador.

A nossa ação diplomática entrara francamente na quadra da sua maior expansão. Fechado o ciclo das revoluções que durante mais de meio quarto de século tinham embaraçado o firme estabelecimento da monarquia nacional, e iniciada a política de desenvolvimento material que pediam o aproveitamento dos nossos recursos e a capacidade da nossa produção, o Governo Imperial procurava pelo impulso de ministros como Uruguai, Abrantes, Rio Branco, geração de homens de Estado de que Cotegipe foi o último grande representante, solver nossas questões de fronteiras e assegurar nossa hegemonia no Rio da Prata. A aplicação de semelhante política implicava nossa hegemonia em todo o continente meridional, e o seu abandono só poderia coincidir com o desprestígio e abatimento do Brasil. No prosseguimento dessa tarefa de estreitar os vínculos internacionais na América Meridional, assinara-se com a República de Venezuela, a 5 de maio de 1859, um tratado sobre limites e navegação dos rios Amazonas e Orenoco. O objeto principal da missão confiada a Varn¬hagen era, porém, “promover a demarcação da fronteira entre os dois países e, para complemento do tratado, celebrar o acordo conveniente à navegação fluvial, o qual ficara dependente de regula¬mentos fiscais e de polícia”. 

Tendo demais chegado a ajustes com as Repúblicas limítrofes do Peru e Venezuela, pretendia com boa razão o Governo Imperial negociar também um tratado com a República de Nova Granada (hoje da Colômbia), baseando-se no uti possidetis e não indo mais adiante das questões que tinha a Espanha com Portugal por esse lado da fronteira de seus domínios.

A proficiência de Varnhagen em tudo quanto se relacionava com a geografia histórica e colonial, exarada mesmo em algumas memórias sobre nossas questões de limites,  tornava-o singularmente apto para a tarefa de que fora incumbido. As negociações com Venezuela foram contudo adiadas por circunstâncias alheias a sua boa vontade no desempenho da missão; as com Nova Granada, semelhantemente, não tiveram andamento, e em 1804 já o encontramos residindo em Lima e acreditado simultaneamente no Peru, Equador e Chile.

Tinham surgido pouco antes algumas dificuldades com o Governo de Lima sobre a aplicação da convenção fluvial de 22 de outubro de 1858, resultantes da subida do rio Amazonas por dois navios de guerra peruanos empregados também no transporte de mercadorias. O incidente ficara resolvido com a justa interpretação de que em semelhantes casos os navios de guerra se não prevalece¬riam das suas imunidades, nem ficariam isentos das medidas fiscais e de polícia, aplicáveis, com as devidas deferências nacionais, aos navios mercantes, aos quais, de nacionalidade peruana, era entretanto desde logo franqueada a navegação do Amazonas, mesmo não estando ainda acordado o sistema de polícia fluvial e de fiscalização previsto no ato internacional.   A indiscriminada abertura do Amazonas aos pavilhões de todas as nacionalidades, alcançada mormente pela admirável campanha na imprensa, de Tavares Bastos, cujo saudoso nome vai aqui ser tão justamente glorificado, a breve trecho simplificaria muito a natureza e reduziria consideravelmente a importância destas questões, por tanto tempo salientes em nossas discussões internacionais. 

Neste caso prendiam-se elas especialmente com o receio nutrido pelo Governo Imperial de que as facilidades concedidas pela República do Peru ao comércio estrangeiro dentro do seu próprio território interferissem com a afirmação da soberania nacional no território brasileiro por causa do trânsito nos rios que decorrem das regiões andinas para o Atlântico. Ainda conservava um resto de vitalidade a política dos tempos de isolamento colonial.

As questões de facilidades comerciais na região amazônica juntaram-se, para dar pasto à atividade diplomática de Varnhagen ao tempo da sua residência efetiva em Lima, questões na fronteira e  questões de fronteira; sem que no entanto se mostrasse aparente¬mente tão absorvente o seu conjunto que o impedisse de ali publicar a sua primeira grande defesa de Américo Vespúcio, conhecida entre os bibliógrafos pelo Vespúcio de Lima, para diferençá-lo do de Viena, isto é, da ulterior defesa mais detalhada e comprovada. Quando mesmo porém ignorássemos as negociações melindrosas que aqueles incidentes motivaram, se não poderia inferir desse fato que a vida oficial de Varnhagen no Peru fora sem graves cuidados, porque, do que se vê em sua vida, ele tinha o privilégio de interessar-se sempre pelos seus queridos assuntos históricos a meio das maiores preocupações políticas, e até distraindo-se com o prazer de tais estudos das contrariedades que os outros assuntos pudessem acarretar-lhe.

No Chile, igualmente o encontramos por esse tempo, em plena ebulição determinada pelo conflito destas Repúblicas com a Espanha, publicando a sua contribuição, mais tarde reeditada em alemão,  para a fixação da verdadeira Guanahani de Colombo, memória apresentada à Faculdade de Humanidades da Universidade de Santiago. O conflito hispano-pacífico-americano daria ensejo a que Varnhagen, de ordinário refratário a pôr-se diplomaticamente em evidência, estrito posto que não passivo cumpridor das instruções do seu Governo, se tornasse notável por uma comunicação oficial que honra o seu espírito de justiça, confirma a sua independência de caráter e lança viva luz sobre o seu americanismo, mas que foi julgada pouco oportuna, incorreta ou demasiado expansiva – qualquer destes três termos parece-me apropriado ao ponto de vista adotado pelo nosso Ministério de Estrangeiros. A nota estava, é quase escusado dizer, concebida nos termos mais corteses: a linguagem diplomática aos nossos representantes fora afeita a zelar as tradições de polidez e timbrava em seguir os bons modelos.

O princípio ali contido é que não era consoante à política imperial.  O enviado do Governo de Washington, que veio ao Rio de Janeiro, com o único fim de saudar o Governo Brasileiro por essa manifestação de fervor americano, achou-se frente a frente com uma reprovação dela, e teve de deglutir suas congratulações.

Consideremos em particular este episódio, o mais interessante certamente da longa carreira de Varnhagen. Acreditado, como estais lembrados, nas três Repúblicas do Equador, Peru e Chile, o Ministro do Brasil resolveu mudar sua residência para Santiago no momento em que o conflito com a Espanha para ali se estendeu da sua primitiva sede. Fora esta em Lima, sendo ocupadas e desocupadas pelas forças navais da nação européia as ilhas de Chincha, sob o pretexto, tão extraordinário que foi desaprovado pelo Gabinete de Madri, de não haver ainda o Governo de S.M. Católica solenemente reconhecido a independência do Peru. O Governo Imperial declarou então que ofereceria com prazer a sua mediação aos governos dissidentes, e por isto mesmo guardara rigorosa neutralidade, em suas próprias expressões, não indagando sequer de que lado estava a justiça. Do conflito com o Peru, serenado e diretamente ajustado entre os dois países, surgiu contudo o conflito com o Chile.

Varnhagen chegava a Valparaíso no momento em que, apresentado pelo almirante espanhol ao Governo Chileno um ultimatum, acabava o corpo diplomático de pôr todo o seu empenho em evitar hostilidades e promover negociações. À sua chegada comunicou-lhe o decano daquele corpo (o Ministro norte-americano T.H. Nelson) as notas trocadas com o Almirante. 

A resposta pela qual Varn¬hagen se associou ao pensamento dos seus colegas, expresso em três notas coletivas, é que foi redigida em termos que o nosso Governo entendeu não perfilhar, sendo esta espontânea desaprovação recebida pelo Governo Espanhol como uma prova de não equívoca imparcialidade – decerto adivinhastes que esta frase de cautelosa redundância é da prosa oficial. O nosso historiador tinha qualidades negativas em diplomacia: era um impulsivo com rompantes de colérico e que se deixava instigar por considerações de eqüidade e de pundonor. Para ele a diplomacia não era a arte suprema de engolir desfeitas e disfarçar desaires. Achava-a compatível com a franqueza e a honestidade. Repugnava-lhe mentir, mesmo por conta de outros, e o que era justo não via muito bem porque devesse ocultá-lo. Numa linguagem mais direta e portanto mais tensa condenou, como já os seus colegas haviam condenado em termos mais emolientes, porém bastante expressivos, o proceder do Almirante Pareja em não dar cumprimento à letra das suas instruções, procurando um ajuste amigável das dificuldades pendentes antes de chegar a um rompimento.

A referida tentativa dos representantes diplomáticos das nações neutras ficou frustrada, e bem assim uma segunda a que igualmente se associou a Legação Brasileira, propondo depois de rotas as hostilidades a negociação de um armistício a fim de convencionar-se um arbitramento.

Não terei o mau gosto de escolher a ocasião não remota em que a Espanha foi despojada dos restos ainda dourados do seu opulento patrimônio colonial e para todo o sempre excluída da América como nação soberana, para ensaiar novas variações sobre o conhecido tema do bombardeio de Valparaíso. Quis apenas, em complemento do elogio de Varnhagen, recordar a sua atitude nessa questão, uma das que maior interesse levantaram no nosso continente, mesmo porque, na frase da nota coletiva de 24 de setembro de 1865 (anterior à chegada do Ministro do Brasil), deu-se o caso novo em lei internacional de ser apresentado um ultimatum antes de entabuladas quaisquer negociações. Bastará acrescentar, para melhor com¬preensão dos fatos citados, que a disposição do Governo Imperial, enxertando-se nas suspeitas levantadas e propaladas com a declaração de guerra ao Paraguai, se viu habilmente explorada pelos adversários da nossa pátria, sendo o seu sistema político culpado de nímia condescendência para com a monarquia européia, em detrimento da solidariedade americana e do bom direito internacional.

Aumentada a nossa representação diplomática, além dos Andes, ficou Varnhagen exclusivamente acreditado no Peru, onde ainda o ocuparam os oferecimentos de bons ofícios e depois os protestos dessa República contra o tratado da Tríplice Aliança, além das queixas motivadas pela forma por que o Brasil cumpria a neutralidade na guerra sustentada contra a Espanha pelo Peru e pelo Chile. Por seu turno teve Varnhagen de protestar contra as simpatias menos discretamente testemunhadas em favor do Paraguai pelo Presidente do Peru. Do bulício do Pacifico, a bem da literatura, foi o ilustre historiador destacado em 1868 para Viena, a substituir Araújo Gondim, que pouco antes sucedera a Domingos de Magalhães. As letras e a diplomacia faziam naqueles tempos como hoje muito bom consórcio, e da mesma forma que presentemente apontamos para um Joaquim Nabuco e um Rio Branco, na representação exterior brasileira de então eram numerosos os homens como Varnhagen, Ponte Ribeiro, Joaquim Caetano da Silva, Azambuja, que se aproveitavam das facilidades oferecidas pelos cargos que exerciam para estudar nas fontes a nossa história e reivindicar nossos direitos territoriais.

Na Áustria as questões diplomáticas eram nulas, e Varnhagen pôde empregar o melhor do seu tempo e os dez últimos anos da sua vida numa febril produção puramente intelectual. De Viena acham-se datadas muitas das suas contribuições para a elucidação da cartografia medieval e da Renascença e da história dos primeiros descobrimentos do Novo Mundo, que já sabemos quão respeitado o tornaram entre os americanistas, não sendo possível escrever hoje a respeito daqueles assuntos sem tomar em consideração suas observações, sempre valiosas por originais, provindo sempre de pesquisas pessoais e não da utilização do trabalho de outrem. Em Viena preparou as segundas e mais completas edições das Lutas e da História geral, e o seguimento desta. Entremeando o exame dos antigos globos e portulanos com o compulsar dos velhos cancioneiros, que na sua mocidade o haviam impressionado ao ponto de extorquirem do seu talento pouco poético o romance histórico em verso por título Caramuru,  em Viena, foram publicados o Cancioneirinho coligido do códice do Vaticano e os opúsculos sobre a literatura dos livros de cavalaria. Em Viena, finalmente, como se lá não bastasse para preenchimento de uma vida tão grande sucessão de trabalhos,  dirigiu cuidadosamente a reprodução dos raríssimos trabalhos filológicos do jesuíta Montoya – Arte, vocabulario y teatro de la lengua guarani  – sobre a qual Ferdinand Denis escreveu um dos seus últimos lúcidos pareceres apresentados à Société Américaine de France.

Eis como cooperava para o bom renome da nação que representava o ministro do Brasil na Áustria, cuja benemerência a tocante atenção do Monarca galardoara com o título de Barão e depois Visconde de Porto-Seguro, assim comemorando o fato fundamental da história brasileira, a descoberta que acordou para a vida civilizada o nosso formosíssimo país, naquele que com tão profundo conheci¬mento descreveu as fases da sua evolução. Repito, é como homem de letras mais do que como diplomata, que Varnhagen será conspícuo para a posteridade e relembrado na sua pátria, da qual foi o historiador até hoje sem rival.
Num discurso necrológico, pronunciado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, dizia o Sr. Joaquim Nabuco do nosso falecido consócio, Sr. Pereira da Silva, que fora um aperitivo para o estudo da história; ao que acrescentava com malícia muito acadêmica o Sr. José Veríssimo que aperitivo sim, mas com a condição de não se ir até o fundo do copo.

Prosseguindo estas comparações sugeridas pela gastronomia, poderíamos dizer que Varnhagen foi e continua a ser a peça de resistência da nossa refeição histórica, o assado sólido, gordo, apetitoso na sua simplicidade, pois é cozinhado à velha moda portuguesa, sem adubos nem temperos franceses, com um molho leal e nenhum acompanhamento. Dessa peça, um artista menos escrupuloso ou mais destro corta uma lasca, condimenta-a, guarnece-a de túbaras e de cogumelos e apresenta um novo prato, menos substancial, porém grato ao paladar e falsamente leve para o estômago. O abuso de tais pratos, dizem todavia os médicos que predispõe à gota, a qual para os diletantes do espírito se chama a impotência criadora. Aquele que se alimenta de comidas nutrientes, mas singelas e sãs tem mais probabilidade de resistir aos anos com saúde, como resis¬tiu Varnhagen às inovações literárias, aos caprichos do estilo, às variações da forma, porque nele primava a preocupação do fundo, e porque resolvera manter-se firme a sua concepção histórica, que era a indagação do ponto verdadeiro, e obediente à sua norma literária, que procedia pela verificação da opinião aventada.

Relevai-me, senhores, semelhantes comparações culinárias. Varnhagen mais perdoaria, estou convencido, ele que era um excelente cozinheiro, justamente porque era um consumado amador da boa mesa. Referiu-me um dos secretários que com ele serviram na Legação de Viena que, quando fatigado de redigir, nada lhe assentava melhor para espairecer do trabalho, do que bater um pudim ou compor um pastelão. Note-se que os seus pastelões não eram daqueles cuja concepção e execução Mark Twain diz ser um escuro e sangrento mistério, mas produções que Carême perfilharia. Até neste gosto aparece-nos ele como a encarnação de um acadêmico de passados tempos, porque nós, os de hoje, vivemos tão depressa, andamos tão entontecidos pela sucessão dos acontecimentos e tão ferreteados pela ambição de conservarmo-nos em dia com a evolução das idéias e modo de sua expressão, que não temos mais tempo para tais desenfados.

Alexandre Dumas pai, que não foi acadêmico, porém tinha em si pano para meia dúzia deles, ainda podia afirmar que o Dicionário de cozinha que escreveu era o digno remate do seu milhar de volumes, e, chegada a ocasião, deleitava-se em pousar a pena para atar o avental branco e tentar a experiência das suas receitas. Como imaginarmos um Paul Bourget ou um Pierre Loti, com todas as suas preocupações psicológicas e perplexidades sentimentais, entregando-se a uma tão desanuviada tarefa? Para se achar prazer nesta como em outras distrações manuais, não a exemplo dos gentis-homens franceses do século findo que por luxo aprendiam um ofício, mas meramente por desfastio como fazia Varnhagen, o qual, segundo parece, se dava a vários misteres, sendo um habilidoso, requerem-se uma alta dose de satisfação profissional, perfeito desprendimento de esnobismo e ausência de inquietação intelectual  Todos estes predicados possuía o autor da História geral; era um orgulhoso, um simples e um forte. Não o esqueçamos, nós, os da geração contemporânea, cuja vaidade nem sempre é contrapesada pelas duas outras qualidades.

Tampouco devemos esquecer, agora, senhores, que com tão louvável afã acabamos de festejar no limiar do século XX o quarto centenário do descobrimento do Brasil e de dar balanço ao que temos realizado como contribuição para a história da humanidade, que foi, sessenta e quatro anos há, o digníssimo homem de letras cuja fisionomia moral procurei enaltecer esta noite, quem descobriu jubiloso e piedoso apontou à gratidão brasileira o túmulo de Pedro Álvares Cabral, esquecido e já ignorado na capela do Convento da Graça de Santarém. Como não bateria apressado o coração de Varnhagen decifrando na lousa gasta pelo perpassar de gerações de crentes, o singelíssimo epitáfio do ilustre navegador a cuja vista atônita primeiro se desvendaram as opulências da terra de Santa Cruz, e agora dorme o último sono na terra que Garrett chamou “pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de falas belas e de loureiros viçosos”.

Recordando com o poeta “que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência”,  é para consolar que a ação terrivelmente niveladora da morte haja confundido as ossadas do navegador e de pessoas da sua família; pois que de outro modo, apesar de ser quase uma impiedade, não poderia resistir a exprimir o voto que me acudiria aos lábios neste momento, de que, algum dia, quando formos verdadeiramente grandes, valorosos, tolerantes e bons, os restos de Pedro Álvares Cabral acompanhassem em uma nova peregrinação além-Oceano a trasladação, reclamada pela voz de um nosso consócio que foi um propagandista da República, do corpo do Monarca magnânimo que tanto prezou as cousas do espírito e a nação que governou, e do da sua santa companheira de trono, modelo de todas as virtudes.

Menos do que em Santarém o coração de Varnhagen, não exulta neste instante o meu coração, com poder associar o nome do descobridor ao do historiador do Brasil, cuja memória deve ser particularmente cara aos que respigam no mesmo campo, e a cuja vida honrada e tão exclusivamente proveitosa me coube prestar tributo que ele consideraria, posso jurar, a sua melhor recompensa porque, ouvindo-o, o aceitou e referendou o mais escolhido colégio eleitoral que poderia devanear um reformador do sufrágio – um colégio que é a fina flor da inteligência nacional.

A Academia Brasileira vive ainda sem mobília, em casas generosamente emprestadas.  Não nos procriou a munificência de um cardeal-ministro, nem nos perfilhou o carinho de algum ministro secular, mas animaram-nos as promessas da representação nacional.

A Academia espera algum dia morar em casa própria... em um próprio do Estado, que a tanto monta.  As belas-letras não podiam decentemente definhar à míngua de proteção oficial, sob a República, na terra que prodigalizou o seu ouro e os seus diamantes a D. João V,  o inventor da Academia Portuguesa; que agasalhou D. João VI, o fundador da Academia de Belas-Artes, e que foi governada durante meio século por D. Pedro II, o criador do Instituto Histórico e imperante que mais se ufanava de ser sábio do que de ser monarca.  É verdade que passamos da soberania constitucional de um só para a soberania coletiva e absoluta do Povo. O número dos protetores não deve porém ter feito mais do que crescer na razão direta do número dos reinantes.

Ficando nós a dever gratidão a tão crescido rol de padrinhos, dispersando-se portanto esse sentimento naturalmente fluido, corre menos o risco de perder-se a bela independência em que vivíamos, e na qual, como Cyrano de Bergerac, podíamos exclamar:

...moi, lorsque j’ai fait un vers, et que je l’aime,
Je me le paye, en me le chantant à moi-même!

Também seria um mal o excesso oposto. Chega-se a certo grau em que o abuso da independência se converte na improdutividade, em que o espírito tanto blasona de livre que se torna anárquico. A convivência nas Academias é, aliás, o remédio mais eficaz para tal perigo, porque reduz os exageros individuais de opinião fomentando a solidariedade pelo concurso de mútuas concessões. Quando nisto se cifrasse a ação acadêmica, já não teria sido inútil nossa organização. Ela, contudo, visa a fins mais positivos.

Conta Léon Gozlan ou um dos outros satélites que, despindo Balzac das suas chinelas, da sua bengala, do melhor do seu guarda-fato, são os verdadeiros responsáveis da nudez disforme mal disfarçada pelo famoso roupão que Rodin amassou, que na casa das Jardies o grande romancista marcara a giz nas paredes os lugares para os quadros de mestres e as tapeçarias de preço, nas quais, uma vez paga a dívida torturante, se transformariam os milhões produzidos pela publicidade dada às criações da sua imaginação prodigiosa. Esta é, pouco mais ou menos, nossa situação. Temos planos de grandes trabalhos coletivos, um programa soberbo para ser levado a cabo por nós e por nossos sucessos. 

Aí reside toda a diferença.  Balzac sucumbiu debaixo da faina gigantesca da Comédia humana. As academias não podem sucumbir, mesmo quando trabalhem muito, porque os obreiros nunca faltam. Seguem-se uns aos outros, concatenados pela tradição e pelo ideal comum. Não descuremos, porém, o nosso quinhão de trabalho, sob pena de sermos em excesso maltratados pelos acadêmicos do futuro. Canonizando nesta data o meu padroeiro, a Academia Brasileira ofereceu-se a si própria o exemplo de um labor ininterrupto que, como quase sempre acontece, os pósteros recompensaram da maneira mais liberal dispensando a Francisco Adolfo de Varnhagen, primeiro e último Visconde de Porto-Segu¬ro, o merecido epíteto de reformador, no Brasil, dos estudos históricos e dedicando-lhe, como diria a linguagem do seu tempo, um vistoso altar no templo da Minerva Americana.