Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Oliveira Lima > Oliveira Lima

Discurso de recepção

Discurso de recepção por

RESPOSTA DO SR. SALVADOR DE MENDONÇA

Senhores:

Estamos em casa de Camões.* O velho alquebrado, que o Telmo de Garrett viu pela última vez “no alpendre de S. Domingos em Lisboa, tão mal trajado, tão encolhido, e que ao cabo da navegação lá foi num lençol para Sant’Ana”, tem hoje templos como este, e campeia na praça pública sobre colunas e pedestais, revestido da armadura que abrigou o coração mais aceso no amor da Pátria e na luz da Fé, na mão o livro cujas páginas libertaram da lei da morte uma nação, na fronte a coroa de louros com que uma raça inteira o sagrou símbolo de seus destinos e de sua glória.

Passaram todos. Passou o Infante Pensador que dos penedos de Sagres devassou os mistérios do Mar Tenebroso, alumiando-o com a cruz de Cristo até surgir do horizonte a terra de Vera Cruz e dos céus do Sul a constelação do Cruzeiro. Passou o Rei Venturoso, que da janela do Castelo da Pena, de onde, diz a lenda, vigiava a volta das naus da Índia, viu duas rotas, a da África e Ásia e a do Brasil, e abriu à idade moderna três continentes. Passaram ou movem-se ainda na meia claridade que pode ser a antemanhã da glória ou o cair da noite do olvido, os braços fortes dessas empresas magnas, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, Afonso e Matias de Albuquerque, D. João de Castro e Vidal de Negreiros, Cochim, Ormuz e Goa, os Guararapes e a Campina do Taborda.

Só ele perdura e vai galgando os séculos como a luz que se não apaga desses fanais que no meio das trevas mais densas guiam os navegadores nas vias insondáveis do futuro. De que valeu à fama de D. Manuel o ser maior e mais útil que os três contemporâneos que enchem com os seus vultos o início dos tempos modernos, Leão X, Francisco I e Carlos V? De que valeu haver antecipado Lutero, e pedido com a embaixada de Tristão da Cunha à Roma do Renascimento quanto bastava para evitar o Cisma e a Reforma?

De que lhe serviu ter nos Paços da Ribeira Garcia de Resende, Bernardim Ribeiro e Gil Vicente, e no Restelo o padrão primoroso de Belém? Passou, e a história chama-o por favor o Venturoso. Se até já se ousa dizer que, saídos de tal tronco, cuja fronde cobria a Ásia, a África, a América e a própria Europa, somos uma nacionalidade desvirilizada por vício de origem!

Não, nós vimos do período heróico da grande Nação Portuguesa, e no dia em que a Pátria ia morrer em Alcácer-Quibir, em que pese ao maior engenho português de nossos dias, cuja obra perene desmente o próprio asserto, não expirou com a Pátria o cantor dos lusíadas, mas salvando-a em suas estrofes imortais trouxe-a fulgurante da luz de seu estro pelas idades afora e deu-lhe alma para a um tempo quebrar na Europa o jugo de Espanha e expulsar do Brasil os holandeses.

É que ao período heróico de nossa raça sucedera o período do ideal, e do ideal mais que da heroicidade vivem e se engrandecem os povos. Fora blasfemo quem o contestasse na casa de Camões, que ora nos hospeda. E se já não somos o Reino Unido de Portugal e Brasil, porque entre o outono e a primavera estão sempre o inverno e o estio, podemos com a íntima fraternidade dos ânimos libertos das leis naturais considerar-nos ainda a República Unida das Letras Portuguesas.

É, pois, na casa ou templo de Luís de Camões que ouvimos o claro elogio de Varnhagen, patrono do digno homem de letras que esta ilustre companhia recebe hoje em seu seio.
O dia é de historiadores do Brasil, porque acredito que onde parou a obra investigadora do autor de nossa História geral, há de recomeçá-la e excedê-la nosso ilustre confrade.
No dia de Natal do ano de 1867 nasceu, na cidade do Recife, Oliveira Lima. Pelas janelas da casa não entraram “o sopro da gloriosa natividade”, o som poético dos cânticos da fé e o adejar de asas de anjos, de que Rostand cercou o berço de Bornier.

Estavam mudas as liras, e pouco se viam os luares. À noite, porém, perpassaram as sombras dos avoengos de 1710 e de 1817, e inclinaram-se para o berço do recém-nascido, e narraram-lhe não sei que segredos e martírios. O que entrou às lufadas por portas e janelas, foi a atmosfera quente desse dia de verão, pejada dos fragores da guerra, do som da marcha dos Voluntários da Pátria, do bulício dos cais em que, sob as bênçãos e aclamações do povo, embarcavam as levas de brasileiros que de todos os pontos do Império corriam aos campos do Sul, maculados pela invasão de estranhos. Os que hoje reputam quase morta esta nação, ou atribuem desusado poder tóxico aos 35 anos de senilidade monárquica e de puerícia republicana, ou não conheceram esses dias em que corria nas veias deste povo o sangue generoso que só o patriotismo pode escaldar: era pela Pátria, e só por ela, que morriam contentes do sacrifício dezenas de milhares de cidadãos que nos deram Riachuelo e a Passagem de Humaitá, o Passo da Pátria e o 24 de Maio.

Estes primeiros ares bebeu o recém-nascido. Nosso confrade até surgir na arena pública desfruta a mesma dita de que se ufanava Gambetta, a dita dos povos felizes e das mulheres honestas, a de não ter história.

Mandado educar em Portugal, teve a boa fortuna de ser o discípulo predileto de Oliveira Martins, com quem deve ter aprendido, se é que tais cousas se aprendem, a observar com justeza e a escrever com calma, nesse estilo direto e claro, que constitui sua forma literária, e devera ser a forma preferida dos bons espíritos. Só isto sei, e é que só claramente se exprime quem claramente sabe o que vai dizer.

Na diplomacia teve dois grandes mestres: o Conselheiro Car¬valho Borges, que à prudência vigilante do chefe de missão unia a cultura das letras clássicas, e o Barão de Itajubá, um dos tipos mais completos de diplomata que até hoje entraram para o Registro da Chancelaria Brasileira.

Ensaios nas folhas públicas? primeiras librações de asas, comuns às águias e aos patos? Quem os não teve? quem as descurou?

Oliveira Lima nunca escreveu versos; creio que, à exceção dos Lusíadas, todos os poemas são para ele como o Colombo, de Porto-Alegre, para os ledores de nossa literatura, terra incógnita à espera do homônimo que a descerre. Como um velho pensador meu amigo, que não admitia monólogos e apartes no teatro, porque só falavam a sós os mentecaptos ou os ameaçados de loucura, Oliveira Lima acha pouco natural que se escreva em verso, porque a linguagem dos vates nunca foi linguagem falada. Seu espírito é positivo e reto; para ser geométrico falecem-lhe as linhas curvas. Sua característica é a sinceridade; só diz o que acredita ser verdade, e di-lo sem rodeios, na forma explícita de sua convicção. Creio que preza a música medianamente e à contemplação da natureza prefere o estudo dos fenômenos sociais e o exame da colméia humana.

Trouxe-nos no estudo de Varnhagen íntimo a confidência de que o erudito investigador da pátria confeccionava tão bons pudins como escrevia livros. Neste rol das qualidades negativas de nosso ilustre confrade, desejo consignar que é sobremaneira deficiente na arte de confeiteiro, nunca soube lidar com massas; ainda que quisesse, não poderia ser, como seu homônimo e comprovinciano, general nem furriel das mesmas, e é tão incapaz de temperar um bolo como de ser autor de tortas diplomáticas, em que a República tem produzido mestres insignes.

Nos anos de convivência diária, em que nem todas as horas pertenciam ao serviço público, votamo-nos várias vezes, – perdoem-me a confissão e a denúncia, – a um jogo de azar. O pior é que o não fazíamos, como a mor parte dos jogadores, por mera diversão: púnhamos no jogo muito interesse e como as paradas se faziam à distância, em Nova York, em Londres, em Lisboa, experimentávamos em Washington as sensações, mais fortes e intensas, da antecipação do ganho ou da perda, como raro as terão sentido os jogadores de profissão. Era o caso que nos chegavam aos centros cultos uns catálogos de livros raros, que eram o nosso constante tormento. Os que se julgarem estremes do pecado da cobiça de livros raros, que nos atirem a primeira pedra. De conformidade com as economias disponíveis nos bolsinhos do Secretário e do Ministro, e o grau de preferência que um e outro davam a esta ou àquela obra, formávamos as listas dos pedidos ao agente comprador, marcando-lhe os limites em que por conta de cada um se podia adiantar para a aquisição das obras; até certo limite caberia a um e dentro de outro limite pertenceria ao outro. Com que ansiedade eram esperadas e lidas as cartas do agente! E esse jogo de azar não foi destituído de surpresas. De uma vez, no leilão do Marquês de Valada couberam a um só duas edições em quarto das obras completas do Padre Antônio Vieira; de outra, ao disputarmos ambos a posse do Tratado da Esfera de Pedro Nunes, entrou na partida a augusta mão de um monarca e fomos honrosamente vencidos.

E tendo dito todo mal que sei do ilustre confrade, devo em compensação declarar que, ao conhecê-lo de perto, descobri nele muitas qualidades e partes excelentes. Ao mencioná-las começarei por chamá-lo espelho de casados... sem filhos. Em vez de adorá-los para gozo dos prazeres do amor paterno, Oliveira Lima chama filhos os livros que dita à sua nobilíssima companheira. Aliás, essa cooperação era inevitável. Suponho que a ilustre companhia conhece a inominável caligrafia do elegante escritor: a própria “letra de gala”, como denominava o saudoso Itajubá aos melhores esforços de nosso confrade nesse ramo de conhecimentos humanos, é pura e simplesmente ilegível. Sem essa cooperação os votos dos compositores e dos revisores de cousas impressas já lhe teriam aberto as portas do céu. Essa cooperação, porém, da esposa tão ilustre pelos dotes do coração como pelos talentos e erudição que a tornam digna consócia dos labores intelectuais do mais promissor dos nossos historiadores, deve ter dado à obra de Oliveira Lima o matiz delicado e gracioso que lhe falharia por certo a quem em criança se alimentou da medula do leão, e, cerrando demasiado os olhos às branduras e aconchegos da vida, votou-se em corpo e alma ao trabalho como se este resumisse toda a felicidade: para ele basta que resuma todo o dever.

Quando entrou na liça, já vinha armado cavaleiro. A vigília fizera-a em terra de irmãos, onde rompera as primeiras lanças.

Em 1894 Pernambuco foi o auto de batismo do historiador e nos Aspectos da literatura colonial, saídos à luz em 1896, aparece menos o crítico literário que o investigador das cousas pátrias. Foi assim dessa vez, e será sempre assim quando o assunto for brasileiro. No Secretário d’El Rei, que reputo sua obra mais literária na forma, se o comediógrafo vier à luz na rampa, o historiógrafo será quem recolha os aplausos por haver traçado com mão firme o perfil de Alexandre de Gusmão.

Nos Estados Unidos, que publicou em 1899, o discípulo de Oliveira Martins revela a mestria com que há de estudar e escrever de terras e povos estranhos, com a imparcialidade e a clareza de vista que o fadaram para os empreendimentos históricos.

A Memória para a obra do 4o Centenário do Descobrimento do Brasil, com a qual alcançou o prêmio prometido aos contendores, e o Reconhecimento do Império, que foi dado à estampa em 1901, seguiram avisadamente a trilha encetada. Poucas literaturas possuem um Garrett, que em cada gênero deixou uma obra-prima.Como os deuses, os gênios lá se vão.

A idade nova é dos especialistas, e os especialistas só se formam com o trabalho aturado e diurno, com o percurso incessante da trilha já percorrida, com o quase labor de almanjarra, que prende a mediocridade num círculo vicioso, mas eleva o talento passo por passo, dia por dia, na espiral que aproxima o homem da divindade. Demais, a onda do pensamento moderno assoberba o maior engenho humano, e fio que no naufrágio, onde são poucas as tábuas de salvação, nenhuma suportará o peso de um enciclopédico.

O livro sobre o Japão, prestes a sair do prelo, deve ser uma bela respondência do livro sobre os Estados Unidos. O fino observador do como surgiu no curto espaço de um século, alentada pela só cultura da liberdade, a nação mais poderosa e mais rica da terra, nos virá dizer como dentre as ruínas e os entulhos do mundo asiático, pôde brotar a planta vivaz do governo representativo. Do Japão de Kaempfer e de Charlevoix ao Japão de nossos dias vai toda a transformação que o ilustre confrade nos vem patentear.

O Catálogo dos manuscritos acerca do Brasil existentes no Museu Britânico, cuja edição o Instituto Histórico tomou a si, será outra prova do meticuloso cuidado com que o nosso ilustre confrade aparelha a oficina de trabalho dos futuros historiadores do Brasil. A obra de Figanière, já de tamanho valor para os estudiosos, foi grandemente acrescentada e o resultado obtido pelo nosso consórcio sugere-nos a idéia de que no dia em que Oliveira Lima puder fazer na Torre do Tombo e nos outros arquivos de Portugal o que fez em Londres, possuirá o Brasil o material quase completo para a sua história.

Senhores, nas indiscrições desta hora, irei até o vaticínio. O digno homem de letras que hoje recebemos no seio desta companhia há de com o decorrer dos anos cobri-la de tanta glória no possuí-lo que bem poucos se lhe poderão avantajar. Estamos diante do vir probus nas letras e na ciência. A verdade é o seu culto; a pátria, sua religião.

Quando a liberdade inteira de comércio houver derrocado o último erro do protecionismo e as alfândegas do globo forem meros registros estatísticos da troca de produtos entre os povos cujos climas e cujos cérebros os produzirem mais baratos e mais perfeitos; quando as guerras, que ainda em nosso tempo dão testemunho de nossa barbaria, tiverem sido substituídas pelo arbitramento obrigatório e pleno entre as nações; quando os processos da indústria anglo-saxônica e a sua atividade maravilhosa tiverem permeado este continente e a alma latina houver afeiçoada a alma da raça, fisicamente mais forte, aos ideais da justiça e do belo; quando tiver surgido, graças a este conjunto de forças, a civilização que se está moldando na grande oficina americana da liberdade, temperada com o socialismo que solapa a Europa monárquica; depois que esta República, fruto prematuro de uma operação cesariana, houver retomado o caminho dos doutrinários da propaganda, que cabiam dentro da constituição do Império e deviam sair vitoriosos das urnas conscientes, graças à escola, à imprensa e à tribuna; depois que à restauração do caráter cívico do povo brasileiro se tiver fundamente arraigado o sentimento religioso pela escolha livre dos caminhos do céu mais numerosos que todos os que levam a Roma, então, quando a língua de Camões for a língua de 50 milhões de homens, na obra ingente do século que começa, há de alguém nos anais desta companhia somar com assombro os labores do ilustre consócio nas conquistas deste ramo da velha e nobre raça portuguesa.
Que no templo em que se faz o vaticínio o propicie o excelso padroeiro desta casa e real patrono de todos os crentes do Ideal.