Mais uma vez, Sr. José Américo de Almeida, se cruzam os nossos destinos. Ontem, num modesto trem da Leopoldina. Hoje, no limiar ilustre da Casa de Machado de Assis. Ontem, sob as vestes quase andrajosas de uma capa de romance provinciano. Hoje, com a vossa presença de capa e espada, nesses trajes auriverdes que no século XVIII foram introduzidos aliás na Academia famosa, cujo modelo serviu à nossa, juntamente para democratizar uma instituição, onde os trajes suntuosos dos príncipes começavam a humilhar os trajes modestos dos que só tinham o gênio para se cobrirem de gala. E como sois um modelo de autêntico democrata e o hábito não faz o monge, não são os alamares de acadêmico que vos dão hoje uma glória tão tardia. Foram as vestes quase andrajosas do vosso grande livro que deram glória antecipada ao vosso fardão de hoje.
Esse ontem, acima invocado, já conta a bagatela de quase quarenta anos. Precisamente 39 anos, bem passados a ferro e fogo, de uma das existências mais ardentes, e mais marcantes, de nossa vida política e literária.
Permiti que, mais uma vez, evoque, em poucas palavras, esse remoto episódio de nosso primeiro encontro. Era o verão de 1928. Subindo à tarde para Petrópolis, de fuga à canícula – pois as nossas praias guanabarinas, por mais belas que sejam, desconhecem a doçura ventilada da vossa branca e tão amada Tambaú, entre o sussurro dos coqueiros e o manso marulhar das ondinas atlânticas – sentei-me ao lado do meu velho amigo Carlos Delgado de Carvalho. Como crítico então militante no palco das pátrias letras – antes de passar às alienígenas e finalmente ao silêncio prudente das galerias anônimas –, fui logo tirando da inevitável pasta o inevitável livro recém-recebido. Mostrei-o ao meu vizinho de banco, e lhe disse:
Veja o triste fado dos críticos literários. Em vez de ler um livro que me ensinasse alguma coisa da vida ou do pensamento humano, ser forçado a folhear esta Bagaceira provinciana (disse-lhe mostrando o título do livro desconhecido), ainda por cima embrulhado em vestes tão esdrúxulas, pois o romance vinha de fato encapado em uma espécie de camiseta listrada de branco e vermelho, que oscilava entre blusa de jóquei e bandeirinha de quermesse...
Ainda não havia, entretanto, acabado o desfile, pela janela, das velhas árvores da Quinta da Boa Vista e já me interessava a leitura. Pela altura de Triagem, empolgado, dizia ao meu companheiro que o tal provinciano... Não me lembro o que lhe disse então. Hoje diria – fogo na roupa, bacana, brasa ou estouro! E no alto da serra, tinha devorado o livro quase todo, impaciente por chegar em casa e extravasar no papel o entusiasmo que sucedera ao desalento anterior à leitura! Por que tanto entusiasmo? Não sei. Um pouco pela surpresa do contraste: esperava um traste e o livro me saía uma obra-prima. Um pouco porque nunca soube fazer crítica racional e sim passional. Nunca consegui ser juiz e apenas leitor apaixonado e irritado, amando ou desamando o que era forçado a ler e contando apenas, aos outros, o que me segredara o amor ou o desamor das páginas lidas. Por isso mesmo nunca seria capaz de escrever, como por vezes pedem – ou me pediam –, uma História da Literatura Brasileira. Odi et amo non judico poderia ter sido escrito no pórtico de uma vila que nunca cheguei a possuir, nem mesmo em sonho, nos castelli Romani, perto da de Horácio...
Um pouco, enfim, porque o romance desse desconhecido paraibano trazia para o ambiente literário que então respirávamos desde 1922 alguma coisa de novo, de realmente novo. É tão raro esbarrar na vida, em alguma coisa que nos dê a sensação de algo nuevo!, alguma coisa que rompa com a rotina do cotidiano, do convencional, do déja vu dos psiquiatras, que chega a ser um tipo de alienação mental.
É desses esbarros que nasce o amor, quando encontramos assim de surpresa aquela ou aquele que se haviam separado de nós, no céu de Platão, e a quem reencontramos, no plano das afinidades eletivas nesta terra, em que são bem mais frequentes os desencontros, que os encontros. É desses choques imprevistos que nascem os casamentos felizes, como brotam também as obras-primas da mão dos poetas ou dos artistas plásticos. A surpresa é sempre o segredo da juventude. Como a Arte. E quase sempre o caminho da felicidade. Quem perde o espírito de surpresa se encontra no limiar da morte. Viver bem é saber surpreender-se com tudo e com todos, como as crianças, para quem o sol que nasce cada dia nunca é o mesmo que o sol da véspera. Daí o horror da monotonia, o mais inumano dos suplícios humanos.
1922 tinha sido uma surpresa para nossa vida intelectual. Daí o seu rejuvenescimento. João Ribeiro, o velho crítico e humanista sempre novo daquelas eras, advertira os parnasianos mais ilustres de então, que eles se repetiam e com isso mostravam a hora de sair de cena. Os novos impacientes de então – e ai dos jovens que não sejam impacientes, por mais que só pela paciência – nos diz a Sabedoria eterna dos Livros Sagrados – é que podemos possuir as nossas almas –, os novos de São Paulo irrompiam dos horizontes cansados de repetições infindáveis, com suas surpresas mirabolantes. Como hoje começam a surgir novos, com surpresas ainda mais mirabolantes, sinal certo de que estamos vivendo vésperas e não dias seguintes, auroras e não crepúsculos, por mais sanguinolentas que sejam as cores dos horizontes de hoje. Se isso ocorre no plano dos acontecimentos universais, sem que saibamos ao certo se a loucura dos homens de hoje vai chegar às auroras do amanhã depois de carnificinas universais e suicidas – também ignoramos se as surpresas literárias dos jovens da geração que brota serão tão fecundas, em nossas Letras e Artes, como foram as que nos surpreenderam em 1922. Naquele momento o foram, contra a expectativa e o matraquear dos “sapos” da lagoa de águas paradas, que eram as nossas Letras de então, antes das surpresas trazidas pelos modernistas.
Toda surpresa, porém, tem um reverso: a precariedade. O imprevisto se converte logo em decepção, quando lhe falta a raiz, de perenidade, que distingue a novidade autêntica da simples originalidade decorativa. As revoluções são sementeiras de reações que tantas vezes agravam, pela volta exagerada ao passado, os males contra os quais se desencadearam. Isso que vale para o terreno político, também vale para o terreno literário. E como sois, Sr. José Américo, desses espíritos anfíbios mal comparando, como as baleias, mamíferos das grandes águas oceânicas, e palmilhais tão bem as selvas da beleza literária como os ásperos caminhos das lutas mais fogosas, colocastes a vossa rumorosa e mesma sensacional estreia na fronteira literária entre a revolução. Fostes um insigne reacionário nas Letras, como íeis ser um insigne reacionário na Política. Desencadeastes, em 1928, uma onda de reação contra a revolução de 1922. Mas uma reação – entendamo-nos que por sua vez se ia converter em ação revolucionária do futuro. O Modernismo de 1922 – pelo próprio caráter polêmico de que se revestira, de modo inevitável, pela luta contra o chamado passadismo – se concentrara especialmente no aspecto demolidor e, por conseguinte, no espírito sarcástico e na ênfase do desmedido, do desordenado, do chocante, contra a preocupação do equilíbrio, da medida, da beleza harmoniosa, da obediência às regras do “bom senso” e do “bom gosto”, de secular memória lusitana e à influência do helenismo em nossas Letras, desde o advento do espírito parnasiano, na década de 1880. Daí ter sido Coelho Neto o bode expiatório da primeira geração modernista, porque um dia se lembrou de classificar-se a si mesmo como “o último dos helenos”. E de nortear seu estilo pela obediência à vernaculidade clássica, mesmo ao versar temas nacionais, já que fora ele, na década de 1890, juntamente com os Afonso Arinos ou os Valdomiro Silveiras, a iniciar, em nossas Letras, o regionalismo moderno, de que íeis ser, Sr. José Américo, o mais ilustre dos renovadores, em pleno Modernismo.
Pois o fato é que essa primeira geração modernista, de 1920 em diante, se ocupou, de modo particular, com o problema estilístico. Não há dúvida que o estilo é a Arte e não a Natureza. É a obra e não o homem, que me perdoe a memória ilustre de Buffon. Ou, antes, é o homem na Arte, isto é a obra. Enquanto o estilo é apenas o homem, isto é, antes de nascer a obra, representa apenas um valor potencial. É uma aspiração, uma predisposição e quando muito uma promessa. O estilo é o homem, apenas enquanto a obra se encontra em estado de gestação na mente do artista. Ou então quando marca o leitor ou o espectador ou mesmo o intérprete. Nesse ponto todos nós, leitores, espectadores, intérpretes, críticos, somos estilistas. Estilistas, em sentido lato. Mas o estilo, em sentido próprio, só nasce com a obra. Só existe, realmente, quando encarnado na vida que o autor infundiu ao novo ser, surgindo de sua intenção criadora. Só então é que nasce o estilo propriamente dito. O estilo é a obra. É a intenção que se converteu em expressão. É a potência criadora que se transformou em ato. É a atualização de uma vocação. É a obra, depois de nascida. A forma exterior em que se concretizou um puro impulso, uma forma interior que morre geralmente frustrada, na maioria dos homens. Pois todos nós somos poetas ou romancistas frustrados. Sem estilo. Os verdadeiros e poetas são os criadores de estilo, isto é, de obras, que passam a ter uma vida independente de seu autor. Exatamente porque são um estilo. Adquiriram uma autonomia ao serem criadas. E só possuem essa autonomia, só adquirem uma vivência independente de seu autor, porque são um estilo. Se forem apenas um verbalismo oco ou um formalismo plástico convencional ou de uma originalidade também convencional – e não há pior convencionalismo do que o anticonvencionalismo oco –, se assim for, a obra morre ao nascer. Era um produto sem estilo, sem vida própria. O estilo ficou no autor, no homem que pensou ter vocação para criar um estilo. E não tinha condições senão, quando muito, para ser um estilo frustrado. E não há fauna literária mais perigosa do que a que se compõe de estilos frustrados, de estilos sem obra, de estilos que não deixaram de ser o autor para ser a obra.
Fostes, Sr. José Américo, o criador de um novo estilo. Daí a vossa importância na história de nossas Letras modernas. Vosso estilo não era apenas vossa personalidade. Como o de Os Sertões excedeu de muito a pessoa de Euclides da Cunha. E por isso é que sua obra se libertou do seu autor e hoje vive por si. Como tendes de admitir que A Bagaceira já não é só vossa. É de todos. E desde de 1928 vive uma vida à vossa. Sois hoje a obra d’A Bagaceira. Não mais A Bagaceira obra vossa. É o destino de todas as obras-primas da humanidade. A Ilíada é maior que Homero, como A Divina Comédia é maior que Dante. E embora convenhamos que a vossa obra, por mais importante que seja, não faz parte da constelação das obras universais e perenes, ninguém nega que seja uma pedra branca imortal na história de nossas Letras e por isso mesmo obedecendo ao critério que fez de Os Lusíadas algo de maior do que Camões. As obras autênticas são como os filhos de grande personalidade. Uma vez formados, o mais que devemos desejar é que não se voltem contra nós. Estou certo que A Bagaceira não repudia o pai. Mas também há muito que passou a residir em casa própria... A culpa é vossa. Quem vos mandou criar um estilo novo? Quem vos mandou, com Augusto Frederico Schmidt e com Jorge de Lima, no campo anexo ao vosso da Poesia, formar uma trilogia, que iria fazer do ano de 1928 uma data semelhante à de 1922? Se nesta foi lançada a primeira pedra da nova escola que iria colocar-se irreversivelmente na sequência que vai do Classicismo ao Concretismo ou pelo menos ao Neomodernismo em nossas Letras – em 1928 se levantava o primeiro andar do novo edifício. Os fundamentos eram os mesmos, o da renovação das Letras modernas brasileiras, por uma nova visão da vida e, por consequência, na mão de criadores de um novo estilo de obra de arte. E se a primeira geração modernista, de que o nosso Manuel Bandeira ia ser o precursor e Mário de Andrade o verbo literário encarnado, procurara um estilo novo para se exprimir, a vossa se caracterizou precisamente pelo oposto. Não o procurastes. Foi ele quem vos procurou, como a sombra segue o corpo. Vínheis, com os dois outros companheiros de 1928, na onda dos vossos predecessores imediatos. A batalha do contra fora desencadeada pela primeira leva dos novos aventureiros da Revolução. A trilogia do ano 1928 era uma reação por ser um novo passo. Não por ser um retrocesso. Vínheis reagir contra o convencionalismo, contra a fidelidade, contra o mimetismo, em que ameaçava mergulhar a onda inicial. Vínheis reagir, pela manifestação de um estilo novo, não procurado, menos original e mais natural, contra o perigo dessa forma detestável de academicismo, que é o do antiacademicismo convencional. Quando as revoluções se repetem ou se monotizam é que começam a se esvaziar e a estimular as reações criadoras. Essa reação criadora, herdeira e renovadora do movimento de 22, é que viestes fazer, Sr. José Américo, junto a Schmidt e a Jorge de Lima, quando lançastes de surpresa A Bagaceira, como de surpresa surgiram, nesse mesmo ano, o Canto do Brasileiro e “Essa Nega Fulô”.
Estava dada a partida da segunda fase do movimento modernista. E vós, ilustre desconhecido da véspera para este Sul pretensioso e ingrato com tudo o que o Norte nos dera nos movimentos literários anteriores, íeis lançar uma nova pedra na lagoa agitada pelas primeiras pedras de 1922, mas ameaçando voltar à antiga placidez convencional.
Já havia, em Pernambuco, Gilberto Freyre levantado a voz desse Nordeste que iria de então em diante constituir, tanto em nossas Letras, como em nossa Ciência, como em nossa Política, um dos dados imediatos e fundamentais da cultura e da nacionalidade brasileiras contemporâneas. José Lins do Rego procurava reconciliar o regionalismo tradicionalista do futuro autor de Casa-Grande & Senzala com o Modernismo paulista e carioca, acoimado por ele de “mimetista”. Os ares já começavam a transmitir os rumores de um descontentamento ou de um preparativo bélico que vagamente recordava as tentativas frustradas de Franklin Távora, no sentido da criação de uma “Literatura do Norte”, que a crítica autorizada e insuspeita de Sílvio Romero, como bom sergipano, se havia encarregado de sufocar no berço.
Quando o vosso livro imprevisto foi jogado, como a espada de Breno, no prato da balança Norte-Sul, um resultado inesperado se produziu: em vez do prato Sul subir, ao novo peso do prato Norte, ou o prato norte permanecer onde estava, pelo desinteresse do Modernismo sulista, isolando-se os dois pratos da balança, equilibraram-se ambos, de modo surpreendente. A espada do novo Breno não vinha a ser uma opção, mas uma fusão. O Norte, ainda desconfiado, vinha trazer ao Modernismo sulista a sua contribuição, o seu peso forte. E vinha a ser um peso de tanta substância, que foi o Modernismo todo, como escola e movimento, que saiu ganhando. Foi toda a Literatura Brasileira que se enriqueceu de um valor irreversível, de um estilo novo que o grande analista insigne da Literatura Cavalcanti Proença, tão prematuramente desaparecido, iria estudar a fundo na última obra que deixou de sua lavra.
Íeis ainda ensaiar de novo nos Coiteiros e no Boqueirão o voo de vosso avião literário. Mas é uma tendência de nossas Letras ao longo dos séculos – de que O Guarani ou Os Primeiros Cantos, Os Sertões ou Canaã foram as provas comprovadas – que os nossos grandes autores dão logo o melhor do seu gênio em suas obras de estreia. Há exceções, sem dúvida, porque a Arte é uma eterna surpresa e um desmentido constante às pretensões dos críticos, de verem leis e ritmos onde há apenas a liberdade de espírito, que sopra sempre onde quer, como o próprio Espírito de Deus, de que aliás o espírito de cada criador humano não é mais do que um pálido reflexo. Era pois o Nordeste literário que o nosso famoso romance trazia como novo comensal para o ágape das letras modernas de 1928, como desde 1902 Euclides da Cunha o lançara, violentamente, maltrapilho e descabelado, na sala de visitas envernizada de nossa Sociologia. E viria a ser esse mesmo Brasil bravio e inconformado, autêntico e intimorato, temerário mesmo que dois anos mais tarde iríeis também lançar, como um garrote indomado, na nova arena política que o ano de 1930 ia abrir no curso de nossa história.
Como ministro de 1930, tendo de atender aos apelos de todo o Brasil, nem por isso se apagou em vossa alma a voz de vossa região calcinada e sofrida, que sempre palpitou em vosso coração como símbolo da vossa indefesa brasilidade. Eis como numa dessas páginas palpitantes da vossa pena exuberante, a única que me permitirei citar de vossa obra considerável, por ser mais significativa da vossa personalidade e do vosso estilo – eis como descrevíeis, certa vez, a vossa paixão de nordestino:
Sou aquele que, um dia, era ministro da Viação e foi designado, na ausência temporária do titular da Pasta da Fazenda, para substituí-lo. Nesse momento, o Nordeste sofria e eu não encontrava meios para atenuar seus sofrimentos. Para não me sentir humilhado diante de vossa magnanimidade (pois se dirigia a nordestinos), farei todas as confissões. Mal entrei no Ministério, mandei vasculhar os cofres. Só havia dez mil contos disponíveis e raspei-os. Todo o dinheiro que houvesse eu tiraria, fosse como fosse, para matar a fome dos brasileiros. Para mim, tudo mais podia se acabar, na hora em que os brasileiros morriam de fome. Redigi o decreto-lei de abertura de crédito e corri ao Catete para que o chefe do Governo assinasse. No dia seguinte, voei ao Ceará, por falta de outro transporte, num avião da Marinha, que se perdeu no mar, deixando dois Ministérios acéfalos: o da Viação e o da Fazenda. Declarou-se a seca e eu conhecia essa história. Eu tinha uma alma irmã da vossa. Sem verba para socorrer o Nordeste, mais uma vez atormentado pelas desordens de sua Natureza, sentia a angústia dessa inação forçada, como um ferrete na alma e na carne. Mas a Providência conduziu-me até onde poderia encontrar o milagre da salvação. Cheguei sem ser esperado e tive uma recepção que nunca mais me sairá da memória. A das multidões famintas que já tinham invadido vossa alegre e graciosa capital, como sombras que a empanavam, nesses seus dias de mais sol. Entranhei-me pelo sertão, mergulhando em fogo vivo. Já era a hora da debandada, do fluxo humano a derramar-se na odisseia das retiradas. A terra desventurada esvaziava-se, nesse transe, vaga após. Vi a raça que se desgarrava, fugindo, sem culpa, de um castigo do céu, do mais terrível dos céus. O vaqueiro que deixava o seu cavalo morrendo e marchava a pé. As mães que se matavam e os filhos de fome, dando-lhes o seio sem leite. Família de vinte e mais pessoas, porque, nessas horas de precisão, ressurgia um patriarca macabro, como os rebanhos semimortos que se protegiam do sol, à sombra dos juazeiros.
Em longas peregrinações, pelo deserto pedregoso e afogueado, ia encontrando a natureza espectral e a morte rondando um mundo inteiro. Atalhei essa evasão. Prendi a maré desordenada em campos de emergência, até que fosse escoada para as obras em organização, além do retirante, um montão de cegos, aleijados e macróbios, da mendicidade que já não tinha a quem pedir. Nesses imensos arraiais, alguns de perto de cem mil almas, onde reinou a moralidade mais severa, contrastando com a história de outras secas, chegou a florescer felicidade e lirismo nos corações que não se estiolaram. Houve noivados. Dei enxovais de casamento.*
Nesta página admirável está retratada, de corpo inteiro, a vossa figura tríplice de nordestino, de homem de letras e de homem público, numa simbiose indissolúvel.
Aí vemos a paixão pelo vosso povo sofredor e sofrido; a capacidade estilística em traduzir essa paixão em palavras tão candentes como o sol de fogo que o estiolava; e, finalmente, o homem público, que não se limitava a sofrer com os que sofrem, nem apenas a contar maravilhosamente os seus sofrimentos, mas em tomar as medidas enérgicas e práticas para minorá-los. E até mesmo para fazer florescer, no deserto calcinado dos esqueletos ambulantes, a flor do amor, os noivados, os casamentos, a perpetuação da vida! Pois o nordestino, por mais que a morte aperte o laço que o garroteia, não deixa nunca de amar a vida e de a perpetuar prodigamente.
Já então, em 1930, uma vez lançado inopinadamente o vosso nome no tapete da glória literária, todo o mundo veio a saber que éreis um velho, mas ainda jovem estudioso das coisas provincianas, e já havíeis mesmo publicado um volumoso estudo sobre A Paraíba e Seus Problemas, que havia passado inteiramente despercebido à miopia do nosso sulismo crítico. De modo que, ao ser vitoriosa, em 1930, essa onda do tenentismo e do nortismo, que Juarez Távora e seus companheiros vinham projetar no Norte, ao encontro das cavalhadas gaúchas que subiam do Sul, o vosso nome surgiu na crista da onda, como o mais típico representante desse espírito nordestino que tão fundamente iria caracterizar o Brasil de hoje.
Vejo, nesse espírito nordestino, uma nota dominante e típica: a primazia do caráter sobre todas as demais faculdades mentais. Pelo caráter é o homem todo que se afirma e não esta ou aquela qualidade. É a forma interior da pessoa humana. Sua unidade substancial. É o traço de união das partes dispersas cuja soma constitui o sinal distintivo de nossa personalidade. É ele que nos torna unos ou múltiplos, fracos ou fortes, serenos ou angustiados, varonis ou efeminados. É o cimento de nossas pedras interiores. Sem ele, somos apenas parcelas isoladas. Nosso indivíduo se converte em pessoa, para utilizar a tão discutida distinção maritainiana, na medida aglutinativa do nosso caráter. Pois bem, tomando o povo brasileiro em bloco, o caráter nordestino é o cimento do nosso humanismo coletivo. E como sois um exemplo típico do caráter nordestino, vosso destino, Sr. José Américo, é de ser, por natureza, um antimacunaíma. É tão fácil lidar com os macunaímas como é difícil lidar com os antimacunaímas. E por isso dizem não ser muito fácil o convívio convosco. Do pouco que, infelizmente, tenho tido, não posso afirmar nem desmentir o que dizem as más línguas...
Seja como for – fácil o vosso trato, de antes quebrar que torcer, como a memória que deixastes dos vossos tempos de lutador político –, o fato é que representais também na arena política um dos ângulos (e é certo que sois um anguloso e nunca um sinuoso) de um novo triângulo. Na Literatura, fostes, com Augusto Frederico Schmidt e com Jorge de Lima, o triângulo literário iniciador da segunda etapa do Modernismo brasileiro. Na Política e na Sociologia formais, com Gilberto Freyre e com Hélder Câmara, um novo triângulo, tanto a casa grande como a senzala, imortalizadas por Gilberto Freyre, e a cidade colonial – isto é, o povoado, assinalado por Nelson Omegna, constituem os três elementos sociais da realidade regional nordestina, de que vindes a ser, depois que José Lins do Rego tão cedo nos deixou, o mais típico dos representantes na casa de Machado de Assis.
Vejo novas personalidades, três encarnações humanas desses ângulos fundamentais, da realidade regional nordestina: o espírito da casa-grande, isto é, da tradição patrícia, representado por Gilberto Freyre; o espírito da senzala, isto é, o elemento popular, representado pela figura de Hélder Câmara, o novo Dom Vital; e o espírito do povoado, do arraial, do grupo político, que tão bem representais. Voz do patriciado de outrora; voz do povo de hoje; voz do civismo de sempre, eis o que vejo na estrutura institucional desse espírito nordestino. Essa fusão de uma tradição aristocrática culta e autoritária, com o impulso expansivo de um povo de fibra indomável, de religiosidade profunda, de humanidade ardente e convicções inabaláveis, combinados com a vivência cívica que vem das velhas Câmaras Municipais, tão bem estudados por João Francisco Lisboa ou por Afonso Taunay, e de que viestes a ser, em nossa política, uma voz que se fez ouvir de modo estentórico – essa tríplice fusão é a marca indelével de uma consciência nordestina, destinada a ser um elemento decisivo no cimento aglutinador de nossa unidade nacional, que será uma rosa-dos-ventos de todos os nossos quadrantes nacionais ou não manterá por muito tempo esse milagre de nossa história política.
Sois um exemplo vivo do que o civismo pode fazer na história de um povo. Como sois, por isso mesmo, o exemplo do que hoje se chama engajamento dos intelectuais. Cada vez mais se politiza a vida da inteligência, como cada vez mais se exige, para a complexidade da política moderna, as mais altas expressões da inteligência.
O Leste e o Nordeste, como o Norte em geral, sempre nos deram, desde a Monarquia, o exemplo dessa participação dos homens de talento criador na obra dura da política militante, de José de Alencar a Gilberto Amado, de Rui Barbosa a Jackson de Figueiredo. Sois um deles, e certamente dos mais meritórios, nessa integração harmoniosa do Norte, do Sul, do Centro e do Litoral, de que está surgindo o Humanismo brasileiro.
Que trouxestes à revolução política de 1930? Algo de selvagem, de sem-modos, de rude, de telúrico. Fostes o espalha-brasas, o desbocado – não de palavras sujas com que os vossos continuadores do Modernismo nordestino imundaram as nossas Letras desde então –, mas de verdades duras, de franquezas candentes, de que desde as campanhas épicas de Rui Barbosa estava desabituada nossa política de boas maneiras. Com Monteiro Lobato nas letras pré-modernistas, e um pouco também nas ideias políticas, deixastes de lado as cerimônias e imprimistes à política revolucionária de 1930 um estilo despenteado, como ao de Euclides da Cunha chamou Joaquim Nabuco.
Essas maneiras de sertanejo mal polido, em suas atitudes cívicas, de pão-pão-queijo-queijo, contrastando aliás com a máxima polidez em nossas atitudes sociais, na vida privada, essas maneiras frustras encobriam, ao mesmo tempo, uma grande timidez e uma grande audácia. Por mais incrível que pareça, sois um tímido, Sr. José Américo, que não troca por nada a solidão sonora das praias paraibanas. Mas sois, ao mesmo tempo, um aventureiro que não enjeita parada, quando se trata de pegar o touro à unha. E o touro iria ser, em breve, no vosso destino político, a tentação do poder absoluto. Fostes, em 1937, no momento em que os propósitos democráticos do movimento de 1930 se converteram numa ameaça autoritária e ditatorial, o representante do mais autêntico civismo popular. Saístes a campo, sem medo de nada como representante desassombrado da Democracia realista, contra a plutocracia e a demagogia autoritária.
Era, por isso mesmo, inevitável a vossa derrota. Mas uma derrota que mais valia do que qualquer vitória mal conquistada. Éreis o Davi de uma causa perdida de antemão, ante os novos ventos ditatoriais, que já começavam a rondar os nossos horizontes. Do fundo de vossas lentes de ultramíope escrutáveis melhor os mais longínquos pressentimentos do futuro do que todos aqueles que se prezavam de não precisar de óculos para ver bem. Pressentistes então a onda que se aproximava e tentastes a aventura temerária de buscar no voto do povo a legitimidade do poder, como fora a ilusória ambição dos revolucionários de 1930, especialmente os que desceram do Norte como uma avalanche irresistível, que vos trouxe na crista da onda.
Aliás, vossa derrota de 1937 – e até hoje murmuramos a cada momento, lembremo-nos de 1937, mesmo que seja em vão – iria ser ainda mais ressaltada em seu sentido profundo pela vitória de 1945. Pois não só de derrotas fecundas se compõe a panóplia das vitórias autênticas. Há vitórias que são vitórias mesmo e não derrotas disfarçadas. Essa ia ser a vossa, quando ganhastes a mais bela vitória de vossas lutas, a da liberdade de imprensa. Quem não se lembra daquela vossa memorável entrevista, em que, desafiando toda a máquina montada da censura, tivestes a candura infantil de murmurar, ante o espetáculo de um cesarismo periclitante: o rei está nu.
No caso se tratava dessa falsa realeza de todos os tempos, a realeza caricata da censura prévia. Lançastes então um novo Grito do Ipiranga, perante o qual desmoronaram, sem remédio, os falsos ouropéis de um dirigismo governamental da informação pública e do pensamento, que veio abaixo, ao som do vosso grito, como um castelo de cartas.
Tínheis sido o enfant terrible da revolução de 1930. Vossa presença dera àquele movimento o único sentido que podia colocá-lo, e de fato o colocou, como uma curva realmente marcante em nossa história política. Posso dizê-lo à vontade, porque não fui dos que o apoiaram. E se não o fiz, é que não creio em processos violentos como método de progresso social. Só creio nas revoluções cotidianas e invisíveis, que hão de operar as grandes transmutações de estruturas do mundo moderno, feitas pelo povo e pela mocidade. Desaconselhando então os golpes, como que já previa, a trinta anos de distância, que uma virada à esquerda, como fora a de 1930, seria a justificativa remota para as futuras viradas à direita. Posso, pois, falar à vontade, embora sumariamente e sem entrar no terreno da política partidária, sobre o que representou, naquele momento, vossa presença na crista da onda revolucionária. Ocupando uma pasta de caráter técnico como a da Viação, vínheis ser o homem sem papas na língua, que diz as verdades tanto a amigos como a inimigos. Vínheis ser o porta-voz desse povo do sertão que pela primeira vez era ouvido nos conselhos governamentais. Vínheis ser a entrada do Nordeste na liça política, a proclamação da moralidade administrativa como base do civismo, assim como a presença das Letras na Política, não apenas como elemento decorativo, para abrilhantar as bancadas nos palácios dos governadores, mas como uma conclusão lógica das premissas lançadas por vossa entrada espetacular no campo literário. Se fostes realmente o iniciador de uma nova fase do Modernismo, foi precisamente porque trouxestes, para a revolução formalista dos lançadores do movimento, uma substância de brasilidade, de sertanismo, de problemática social e talvez, acima de tudo, de gravidade patética, que faltara aos modernistas da primeira hora. Estes tiveram o mérito excepcional de romper com o convencionalismo estilístico e acadêmico. Mas, precisamente porque assumiram uma posição polêmica, perderam-se demais no sarcasmo e na acrobacia. Fostes vós que infundistes na revolução modernista o sentido de tragédia, sem a qual nenhuma Literatura se torna autêntica. Porque a vida é naturalmente trágica. E se os tempos decisivos, como os do século em que vivemos, são particularmente trágicos, que dizer dos povos em via de conquistarem uma independência real, depois de vencida a etapa da independência nominal? E é essa a posição de nossa civilização e de nossa cultura. Estamos passando da independência nominal para a independência real. E daí para a interdependência universal. Se o Modernismo de 1922 teve uma importância tão grande no plano das Letras, como a revolução de 1930 no plano da Política, é precisamente porque ambos os movimentos, quaisquer que tenham sido nossas posições naquele momento, em face deles, se colocaram de modo irreversível na tomada de consciência de uma civilização e de uma Cultura que passavam, como ainda passam, do Nominalismo ao Realismo. E no caso a tomada de consciência da cultura precedeu a da civilização. A Arte, mais uma vez, foi o modelo da Natureza segundo o paradoxo de Oscar Wilde. 1930 ia imitar 1922.
Em 1928 vínheis operar nossa participação na revolução literária, através de uma reação radical: o lançamento da nota trágica numa revolução, que tanto os partidários como os adversários ainda mantinham do plano da galhofa, ou da piada. Vossa reação foi a do homem do povo, que tudo faz com seriedade, que leva tudo a sério, mesmo quando canta.
Esse sentido trágico da vida que comunicastes ao Modernismo de 1922 era o mesmo que dois anos mais tarde trouxestes à nossa Política. A vitória inesperada da revolução, com que nem mesmo contavam os revolucionários, ia deixar o êxito sem frutos, se Lindolfo Color ao Sul e vós mesmo ao Norte não tivésseis aberto dois canais decisivos para encaminhar o fervor que despertou no povo a esperança de melhores dias. Se Lindolfo Color ia abrir o caminho das leis sociais, com que se canalizavam as esperanças do proletário urbano, na fase de industrialização em que já se encontrava então o Brasil, ia ser vossa a voz do povo do sertão, da massa rústica e esquecida, cujo abandono já Euclides da Cunha denunciara no seu livro patético. E vossa tríplice intervenção, literária em 1928 e política em 1930 e 1945, se operou sob esse mesmo signo patético, sob o qual se desenrolou toda a vossa vida.
Não é naturalmente aqui nem o momento nem o recinto adequado à análise de tais acontecimentos. Quis apenas, na hora em que nesta Casa das Letras se consagra vossa glória nacional, relembrar a importância capital que, por três vezes ao menos – uma no plano literário e duas no plano político –, teve a vossa intervenção rumorosa em nossa vida pública, com civilização e com cultura. Muitos poucos se podem orgulhar de tal brasão... Por isso mesmo é que – desde a vossa segunda e dramática intervenção em nossa vida política, e depois de demonstrardes, de novo, a vossa capacidade de homem público no Senado e no Governo de vossa pequena mas gloriosa província –, por isso mesmo é que vos recolhestes, como novo Cincinato, à reclusão quase monástica, mas arejada de brisas marinhas, do vosso retiro em Tambaú. Solidão e silêncio que vos permitiram, depois de tantos anos de lutas incessantes e intimoratas no plano da ação política e literária, não dormir sobre os louros, mas ao contrário, iniciar uma fase de vossa trepidante vitalidade nordestina. Voltado para o passado e para dentro de vosso próprio espírito, em livros sucessivos de memórias, discursos e meditações, o balanço que ides fazendo em nossa própria existência e no fundo de vossa consciência é um testamento precioso de sabedoria e de experiência, que torna tão fecunda a vossa aposentadoria como foram as vossas façanhas de outrora no campo das Letras e do civismo.
Madeleine Delbrêl, num desses livros que marcam uma época e rasgam novos horizontes às nossas vidas, Nous autres, gens des rues – tanto mais quanto só foi publicado depois de sua experiência de uma vida cristã a mais autêntica, toda vivida no meio dos mais autênticos marxistas seus amigos –, Madeleine Delbrêl nos legou, entre inúmeras outras sentenças luminosas, esta frase inesquecível: “La solitude n’est pas l’absence des hommes. C’est la présence de Dieu.”
Como só na solidão é que encontramos verdadeiramente a Deus, essa solidão só é fecunda quando não representa uma fuga, mas uma participação. Se temos Deus conosco, podemos estar divinamente sós no meio das massas mais compactas. Se não temos Deus conosco, podemos viver solitários, no mais deserto dos desertos, que só teremos dentro de nós o deserto.
Vosso deserto, Sr. José Américo de Almeida, nesse silêncio e nessa paz de Tambaú, que tive a ventura de partilhar ao menos uma vez, por algumas horas inesquecíveis, vosso deserto é a mais povoada das solidões. Se nele habita a mais cruciante das saudades, nele também vos acompanham, como companheiros da mais perfeita fidelidade, as evocações do dever cumprido, sem nenhuma deserção, ao longo de oito décadas de uma vida por todos os motivos exemplar. Bem sei também que nessa solidão habita o Hóspede que torna férteis todos os desertos, como marca indelével que vos ficou da adolescência de seminarista, e como tão bem o conta o vosso biógrafo José Rafael de Menezes, no belo livro que acaba de dedicar à vossa vida e à vossa obra.
Ao sussurro dos coqueiros que embalam, à noite, o vosso sono, e ao marulho das ondas que vêm beijar na praia os vossos pés, como símbolo de gratidão de vossos irmãos nordestinos que sempre amparastes em seu calvário, Deus habita a vossa solidão. E por isso, nesse epílogo de uma vida tão nobre e tão embebida do nosso povo e da nossa terra, vossa solidão é um mundo de almas que vos cercam e vosso silêncio do Tambaú noturno é a presença daquele que abençoa a mansa despedida de uma vida tão fecunda, tão bela, tão vivida.
28/6/1967