DUAS REVOLUÇÕES
Como aconteceu isto? Por que emergi de minha obscuridade, do isolamento compulsório da praia de Tambaú para esta evidência?
Minha vida teve muitas direções; acompanhou-me, porém, uma constante, qualquer que fosse o caminho percorrido. Uma exigência da própria natureza que, não se afeiçoando a outros prazeres, se recreava nos livros, adquiriu a paixão da leitura e concebeu muito cedo a ânsia vã de criar.
Começou por uma ingênua profecia. Eu era menino de engenho e, numa tarde de domingo, meu irmão mais velho me levou a cavalo pelas casas dos moradores espalhados no sítio. Parávamos em cada terreiro e ele mandava que me perguntassem o que era que eu queria ser. Ensinado, eu ia dando a resposta, sem saber o que dizia: – homem de letras.
Ainda não sabia ler e já visionava estas esferas.
Nomeado Procurador Geral do Estado, com 24 anos incompletos, passei a levar uma vida retirada, colocando-me à altura dos velhos desembargadores, minha veneranda companhia no Tribunal de Justiça.
Aproveitei esse recolhimento para sistematizar minhas leituras e fazer uma educação literária. Depurei a frase e, como Augusto dos Anjos, no Pau d’Arco, longe de influências deformadoras, construí um estilo próprio.
Incumbiu-me o Governo do Estado de redigir um memorial sobre o plano de obras contra as secas, iniciado por Epitácio Pessoa, com o fim de evitar a suspensão de que estava ameaçado pelo seu sucessor.
Coligi os dados e, ao cabo, dispunha de material para um livro de ensaios. Foi minha estreia de escritor: A Paraíba e Seus Problemas.
De tanto manipular esses temas, dos elementos físicos aos agentes internos, do ecológico ao social, ficou-me uma reserva que não pudera inserir no plano originário. Eu tinha mais o que dizer e essa disponibilidade procurava outro meio de expressão. Era a substância de um romance: A Bagaceira. Recuei, para ver tudo a distância, com uma aparência mais simbólica.
Depois tornei-me político, mas a Literatura fazia-me falta. Quando fui Ministro de Estado, meus relatórios, escritos pelo próprio punho, também viravam livros: O Ministério da Viação no Governo Provisório e O Ciclo Revolucionário do Ministério da Viação.
Não consentindo minhas responsabilidades certas manifestações, só ao deixar a pasta liberei duas novelas que moravam na minha cabeça: Coiteiros e Boqueirão.
No exercício da Política não perdi o estilo. Como senador, recebi, num debate, este aparte, meio irônico, meio cordial: “Só posso entender que V. Exa. esteja falando, vamos dizer, literariamente.” Minha réplica foi esta: “Só sei exprimir-me literariamente, mas mesmo assim, digo o que penso. Não tenho outra forma falando ou escrevendo.” Combatendo, ainda no Senado, o parecer da Comissão de Finanças que recusara apoio ao auxílio concedido pela Câmara à Sociedade de Escritores, assim me manifestei no plenário: “Quero dizer aos meus companheiros de Comissão que, se estivesse presente, teria divergido de sua orientação, pelo apreço que devo à inteligência do meu País, ativa e desamparada. O espírito precisa sobreviver.” Com essas e outras palavras derrubei o parecer.
Minhas orações iriam também dar livros: A Palavra e o Tempo e Discursos do Seu Tempo.
Quando levantei a voz pela liberdade de expressão, na entrevista de 24 de fevereiro de 1945, aleguei que estava representando minha posição de escritor.
Não sei como Rui Barbosa, com sua abundância verbal, se defendeu, no discurso do Jubileu, de ser literato.
Foi essa devoção que me deu a chave da imortalidade. A Política, como diria Napoleão, foi o destino; as Letras foram a vocação.
À SOMBRA DE 1930
Não sou, certamente, o esperado, o candidato ideal entre tantos valores que ainda estão do lado de fora. Fui entretanto o eleito. Suponho que dois títulos influíram para esta opção: o de homem público e o de homem de letras. O remanescente dos revolucionários de 1930, que já se foram quase todos, e o pioneiro de uma nova fase do romance do Norte. Só essa significação histórica iria prevalecer; eu era um portador já raro dessas expressões do tempo.
Falei em 1930 e provavelmente estou sendo interpelado por uma curiosidade que superestima o documento humano, o conhecimento pessoal desse episódio de nossa Sociologia Política.
É um tema que não tem ingresso nesta Casa sem se isentar de toda e qualquer tendência. Sinto-me em condições de depor; meus princípios respondem por essa imparcialidade.
Não sou capaz de pensar que minha presença aqui seja uma consagração daquele evento: bem sei quanto divergem suas interpretações.
Podia ter sido, realmente, uma revolução, no seu sentido amplo, com um conteúdo reformista, em vez de simples mudança do poder, para, restaurada a legalidade, recair tudo na mesma. Não passou de uma simples revisão, sem alterar os costumes, nem a estrutura. Apenas substituindo grupos e deixando alguns traços positivos, como o voto secreto, o voto feminino, a justiça eleitoral, a previdência social e a erradicação do caudilhismo nordestino.
Devemos, porém, reconhecer que, se a Revolução de 1930 não mudou a face do Brasil, inaugurou uma política diferente, pela participação das massas. As alianças do centro e a política de governadores seriam abaladas por essa intervenção.
O sindicato teria sua hora, aliás, sem um programa trabalhista, sem nenhum programa ideológico.
A representação de classe, que poderia ter sido outra tônica da República Nova, foi manipulada pelo personalismo político, baixando o nível da Câmara dos Deputados. Deu algumas boas figuras, mas o comum era o desclassificado.
Com a queda dos velhos quadros e o apoio coletivo, até o desencanto, tudo favorecia a reforma solicitada pelas campanhas mais ativas que precederam a eclosão armada.
Faltou o centro regulador e as linhas divergentes deixaram de funcionar com a eficácia manifestada em outras circunstâncias. Chocaram-se tenentes e “carcomidos”, prejudicando a obra comum. A Constituinte, incolor e ambígua, refletiria essa disparidade.
O que mais importa para se formar um juízo do processo discricionário é o estudo da figura central que deveria encarnar uma mentalidade definida.
Alguns tenentes egressos do exílio tinham trazido uns fumos de esquerdismo. O lema “representação e justiça” era vago e limitado. O Clube 3 de Outubro deixou de cristalizar um programa. E não havia ainda uma concepção da Democracia moderna. A vanguarda do movimento nutria tão pouco idealismo que, quase sem exceção, apoiou o totalitarismo em 1937. Nada de fator econômico como móvel do golpe; tudo se originou da ruptura do eixo Minas-São Paulo, que monopolizava o Governo da República. Desfeitos esses elos, organizaram-se novas forças que venceram pelas armas, apelando para um Estado aguerrido.
Getúlio Vargas era o contrário do gaúcho exuberante que dominava pela sedução pessoal. Faltava-lhe tudo na aparência física e nas próprias maneiras para representar a imagem de um condutor. Deixou de adquirir uma expressão. Para o povo era o Chuchu, isto é, o sem sabor, o neutro. Assim o apelidavam, menos pelo formato do que pela desconfiança na ação. Por sua simplicidade, seria também o Gegê, o íntimo, o inofensivo, o bonzinho. Encolheu-se. Omitiu-se. Um conselho secreto, de que eu fazia parte, tomava as deliberações mais importantes. Só se afirmaria, muitos anos depois, no exercício do poder pessoal. E mesmo aí o culto da personalidade seria simplesmente publicitário e fotográfico.
Era uma natureza complexa, difícil de definir, por sua versatilidade. A melhor forma de dirigir é fazer-se compreender, ser claro e direto, com rapidez e decisão.
Faço-lhe justiça. Já lhe tracei o retrato no meu livro A Palavra e o Tempo, reconhecendo-lhe “o sorriso indulgente, a simplicidade no viver, o apego aos amigos que não se atravessassem em seu caminho, a facilidade de reconciliação, a paciência e a probidade pessoal”.
Vejam como ele era. Aprecio algumas particularidades que explicam melhor a sua formação. Lidei com ele muitos anos e sempre o observei, interessado em decifrá-lo. Perdura sua fama, mas pouco se sabe de sua personalidade.
O aspecto tranquilo aparentava uma calma, às vezes, trágica. Era tido como homem frio. Puro engano. Pude surpreender sua emotividade. A forma mais aguda, se estava contrariado, era o assobio, andando e assobiando, dentro do gabinete, de maneira quase imperceptível como um sopro de fadiga. Quando arqueava as sobrancelhas ou passava a mão na face estava intranquilo. E os olhos para cima era um sinal de dúvida. Se chegava a arroxear-se, estava preso de uma paixão reprimida. Jamais alteou a voz; não sabia gritar com humildes nem com poderosos. Nenhuma impulsividade. Havia um furor secreto que lhe mudava as feições.
Nada de estudado, de espalhafatoso, de solene. Só tinha de ostensivo a gargalhada, solta, longa, rasgada, virando a cabeça para trás. Raro contava anedotas, mas gostava de ouvi-las, mesmo as mais livres, para dar essas risadas.
A palavra, se não desagradava, nem sempre produzia efeito oratório, por sua monotonia. E de improviso tinha dias infelizes. Podia convencer as multidões, mas não as eletrizava. Os discursos não eram seus: apenas dava o roteiro. Hoje compreendo essas coisas; até Kennedy, o intelectual, confiava esse trabalho aos secretários.
Não era o tipo reservado que se julga. Ocultava, discretamente, o pensamento para não ser discutido. Nisso, sim, era hábil. Uma vez Osvaldo Aranha, o irrequieto, o encantador, surpreendeu-nos num colóquio e ficou admirado de vê-lo abrir-se tanto comigo. Como eu usasse de franqueza, ele também abandonava as reservas. Suas conveniências eram desprezo pelos homens. Confiava em poucos e errou muito confiando.
Não era também um calculista. Ao contrário, esperava tudo das circunstâncias, deixando que as coisas seguissem seu rumo, até amadurecerem ou se retirarem da cena. O tempo era seu melhor serviçal. Daí, as flutuações e o adesismo ao fato consumado. Cozinhar em água fria era um estilo que não deixava de agravar algumas crises.
O que mais lhe valia, acima de toda a tática, era o apego ao poder. Para mantê-lo possuía-se de uma prudência ou, antes, de uma resignação acima dos seus brios de homem forte.
O tom quase apagado era um sintoma de debilidade que lhe abatia o prestígio de chefe, nas horas difíceis, apesar da bravura pessoal. Só tinha medo dos acontecimentos.
Além disso, por um complexo que o inibia de certas exterioridades, mesmo de viajar, talvez pela míngua da estatura, agia quase sempre por interposta pessoa. Seu lado negativo provinha dessa esquivança. E só assim se explica tanta brutalidade praticada no Estado Novo sem o seu conhecimento.
E não vacilo em desfazer uma lenda: a de sua habilidade política.
Deverão objetar que isto é um absurdo. Como poderia ele, sem essa arte, deter o poder, ilimitadamente, interrompendo um sistema de temporariedade democrática? Tinha sorte para galgar as posições e era destituído de qualidade para conservá-las. Foi assim em 1930, sempre em crise, a ponto de ter-se cogitado de sua substituição por uma junta de civis e militares. E arcando com o levante de São Paulo que se sublevou, por um erro de psicologia política da revolução que já estava fraca e não caiu porque os interventores defendiam também as suas posições. Eram todos os Estados contra um.
Deu trabalho elegê-lo presidente, em 1934, por já estar desfalcado de influência. Dois dos seus ministros andavam com a mosca azul. Eleito, reconstituiu-se, mas entrou logo mais a perder substância. Lá veio a Aliança Libertadora, que não foi vitoriosa porque os políticos envolvidos na conspiração suspeitaram em tempo do seu tom vermelho e descartaram-se.
Em 1937, sofrera tal desgaste no Governo que perdera a base parlamentar e o apoio dos grandes Estados. Foi preciso que o ministro da Guerra desse um golpe de força derrubando as instituições para mantê-lo no Catete.
Feito ditador, seria deposto em 1945 sem um tiro solidário. Nem todos os poderes concentrados o consolidariam. E em 1954 estava liquidado. Desesperou e foi levado ao suicídio por estar desamparado de qualquer meio de defesa.
Grande líder do povo que cumulou de benefícios, desse povo que lhe deu a incomparável vitória de 1950, era inapto para manobrar a máquina política e as forças organizadas que garantem a estabilidade. Enquanto teve o que dar, deteve no meio do caminho as massas que poderiam marchar para a esquerda.
COMO ME FIZ ROMANCISTA
Este discurso será de confidências, tudo o que tenho para oferecer na hora da iniciação.
Direi agora como me fiz romancista; recebido como tal, devo esta justificação.
Foi uma fuga, evadindo-me de minha austeridade, para um espetáculo profano. Estabeleci outra convivência, imaginária, livre de compromissos, como uma desintegração.
Procurando ser natural, regressei às impressões da infância, que devolveu elementos nativos para engajar na minha estória. Experimentaria essa pressão dos fenômenos mais sensíveis esbatidos pelo tempo, para perderem sua vulgaridade.
Compareceu o espectro que mais se fixava: o antagonismo regional. Grupos sociais atritando-se em encontros eventuais.
Seria a consciência dos primeiros ambientes em toda a sua pureza. Simples reflexos que eu teria de estilizar como quem sonha o sucedido.
O campo estava aberto. O Modernismo fora demolidor e desunira-se antes de realizar o tipo de literatura idealizado, menos intelectual e mais objetivamente brasileiro. Veio Macunaíma, de Mário de Andrade, com sua riqueza folclórica e sua imaginação formal, mas ressentindo-se do fundo de ingenuidade daquele grande espírito que tanto se distinguiu pela capacidade crítica e pelos achados poéticos.
Poetas, sim, o Modernismo deu dos maiores, principalmente os líricos e parnasianos convertidos, alguns aqui presentes, cada qual sendo ele e sendo muitos, pelas renovações maravilhosas.
Chegou a minha vez. O Norte precisava estar presente. Eu valeria por minha emancipação, ainda que fosse selvagem: os sentidos decidiram.
Liberta de disciplinas, sem ligar ao encadeamento rotineiro, a composição tornou-se irregular, em recortes, saltando de um ponto a outro, só demorando no que representasse um papel.
Estranhou-se a dessemelhança entre a linguagem do autor e a dos personagens. Eu fixara um estilo, adquirira uma ética de expressão e não iria abandoná-la para arremedar o povo. Permaneceriam as linhas de minha formação e eu utilizaria, nos diálogos, para ser mais autêntico, a fala comum, cada qual com o seu timbre.
Garimpando e disciplinando, preocupado em não incorporar o material impuro à minha estrutura artística.
Deixei que os outros elaborassem uma gíria plebeia ou que redigissem como quem está aprendendo a falar, confundindo primarismo com infantilidade.
Acharão que falta vida interior. Não cuidei disso. Como analisar estados de consciência em seres vulgares, vazios de reflexão? Tudo era instinto e força da Natureza; não havia o que revelar, senão repentes da energia material.
Mas não faltou a pintura do caráter que pode ser modelado, como a matéria mais grosseira. E a honra sertaneja teve seus momentos épicos.
O preconceito tem uma individualidade, como a avareza em Balzac.
Lúcio cultiva seus problemas. O que parece inibição é o complexo de consanguinidade como freio dos impulsos amorosos. O conflito entre pai e filho é um agravante do espírito deformado por leituras espúrias. Pirunga passa por uma prova que só a Psicologia poderá avaliar: é testemunha passiva dos flagrantes de suas frustrações. Valentim, o mais castigado, é a virtude tradicional, na sua aspereza, uma espécie de homem já desaparecido. Soledade não conhece o medo e se rende à violência, lição da vida pastoril. Para sobreviver no meio perturbador usa, instintivamente, das armadilhas do sexo. Só a Beleza lhe daria o que a sorte tirara e aceita a nova condição sem remorso que seria arrependimento. Dagoberto, esse senhor, dentro dos seus limites, material e feudal, integra tudo em seu domínio, até a virgindade.
Reconheço que esses tipos são o que há de mais inacabado e faço um apelo à imaginação dos leitores para que completem a escultura.
Romântico é que não. O que parece romantismo é a enormidade do natural. Começa lento e, aqui e ali, a ação se precipita. Mas, mesmo no auge, o tom é excitante, sem se intumescer. E o que se afigura irrealidade é a Natureza bruta, tudo tão estranho que se torna inúmero. A cavalgada que já foi julgada fantástica não passa de uma lembrança das minhas próprias proezas, emparelhando e fazendo os cavalos desembestarem, um acompanhando o outro, num desafio. Não é um enxerto, mas desfecho, como as corridas em Naná de Zola e em Ana Karenina de Tolstoi, conforme notou um grande crítico.
A região é o que está à vista, o único motivo disponível. Valoriza-se o caráter local para a obra de integração, sem desconhecer o que há de comum entre os homens.
A paisagem intervém como uma espécie invasora. Está posta em cena porque regula uma geografia de contrastes, os vaivéns de um clima volúvel e misterioso. Veste-se e é um elemento poético; desnuda-se e não representa apenas a fisionomia da estação; é um cenário. Mesmo sem atividade, no seu natural, é sempre definidora.
A imagem, também excessiva, de um lirismo que se impregnaria nessa literatura, brota das coisas vivas. Como evitá-la? Tudo é sol; tudo é feito de clarões.
Não tive ideia de fazer um romance social, e saiu assim. O problema não foi posto, nada foi intencional, como na ficção de Graça Aranha, a sátira política, a ostentação filosófica, a tese que não se dissolve no entrecho.
E de repente essa paixão se converte em piedade. É, sem querer, uma denúncia e um grito de reforma agrária.
O romance do Nordeste seria, assim, todo amargo. Só dois de seus obreiros, José Lins do Rego e Jorge Amado, sentiriam, como Flaubert, a falta de divertimento. Um daria Fogo Morto e o outro se lançaria na sua nova fase, deliciosamente, vitoriosa.
Minha arte tinha de ser sincera como minha pregação.
Restam, ainda, os segredos que se escondem na paisagem, nos gestos, num suspenso. São nomes, cores, cheiros, sombras. E o mais sugestivo é o que se traduz em símbolos.
O que houve de minha parte foi ousadia, numa hora ainda indecisa. Apontei o caminho, contento-me com a minha atitude cronológica.
O Modernismo teve o seu desenvolvimento e esse, sim, é que foi o fenômeno. Uma construção diferente evoluiu. Fiquei atrás. Da mesma forma que não posso ser traduzido, não sou imitado. Sou, estupidamente, pessoal.
Sucederam-se estreias sensacionais. Apareceram romancistas completos. E nunca esse gênero foi tão popular no Brasil.
O Modernismo foi um dia e aí está o romance moderno na sua maturidade: cariocas, paulistas, gaúchos, mineiros, baianos, pernambucanos, cearenses, maranhenses, piauienses, quase todo o Norte com esse novo padrão.
A Bagaceira passou. Ficou só na história literária e com o reconhecimento que ainda se traduz como na dedicatória do grande Guimarães Rosa: “A José Américo de Almeida que abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro.”
Não reparem ter falado tanto em mim; sou intérprete de outra revolução.
A GALERIA INSIGNE
Venho ocupar uma Cadeira que tem como patrono um nome legendário: Tobias Barreto. É uma vida que já faz parte do meu quadro votivo, como medida do seu tempo. E é a pessoa, mais que a obra, o que me impressiona, por ser figura de um drama.
A origem obscura era uma condição de humildade e o temperamento reagiu. A força do espírito julgava-se injustiçada e rebelou-se. Ferira-lhe o coração enamorado o preconceito de raça; o objeto do seu lirismo amoroso fora-lhe negado. Pode-se avaliar o que isso representou como fermento de um estado de revolta. Tudo seria provocação de um destino contraditório, de virtualidade e insucesso.
A vida prática não correspondia às suas ambições; situava-se num nível que não distinguia relevos.
Podia-se apostar. Falharia como homem prático, na Política e na Advocacia.
E era um voluptuoso e um amante da vida. A mulher, a canção e a rua constituíam seus encantos. Só a música o satisfez; as outras alegrias eram amortecidas por um convencionalismo casmurro.
Faltou-lhe equilíbrio e foi o brigão. Uma sátira pesada, da velha polêmica, servia de desabafo.
Tentou, como compensação, um meio de ultrapassar-se e só a primazia intelectual lhe daria esse brasão. Utilizando suas faculdades, iria agigantar-se. O talento prodigioso, próximo do gênio, dispunha de todos os instrumentos para essa ascensão.
Recife foi seu primeiro palco. Lá encontrou Castro Alves que o esperava para belos desafios, com o entono e a agilidade dos repentistas do povo.
Foi ele, com efeito, o portador do hugoanismo, levado da Bahia; estava, no entanto, longe da sublime exaltação do êmulo adolescente. Nada mais oposto à Poesia que a sua substância; só o amor lhe tiraria do sangue algumas chispas mais vivas.
O condoreirismo era um sinal dos tempos; antes de desembarcar, já fervia nos trópicos.
Nenhum dos dois lograria imitar Victor Hugo, o poeta da família, que, no dizer de Valéry, ainda vive pela forma, em seus grandes caracteres. A influência não passaria do ritmo altiloquente e de oposição e antítese. O monstro da “musa vociferante”, da demagogia em verso e de romances ocos e retumbantes tinha momentos de sinceridade que comoviam o mundo. Castro Alves foi dessa estirpe pelo humanismo, pelo idealismo, pela inspiração épica, pelas mais puras paixões da Pátria e da liberdade. Tobias Barreto teria outra categoria no campo do pensamento.
Seu mundo seria limitado: Sergipe, Bahia, Pernambuco. Quando voltou de Escada estava refeito para outra encenação. Chegou para o concurso como um elemento caído do céu, luminoso e turbulento. Era um ajuste de contas, menos contra pessoa, do que contra um mundo que não o reconhecia.
Sua curiosidade mental inquietava-se. Tantas hipóteses e nenhuma resposta. Corria uma nova preocupação filosófica, uma onda de materialismo mais pretensioso, de falsa investigação científica. O darwinismo encontrara na Alemanha o estímulo de Ernest Haëckel, que lhe deu outra dimensão. Tobias Barreto professou esse sistema efêmero que se tornava atraente por suas raízes. Faltou-lhe, no entanto, base para o seu desdobramento. Tentou depois uma conciliação impossível do monismo evolucionista com o kantismo, decepcionado pelas causas mecânicas e tocado do saudosismo espiritualista.
Foi um divulgador, nem sempre em primeira mão, pois Recife se convertera num centro cultural, a irradiar pelo Norte.
Jurista, grande jurista é o que ele foi. Estudou essa ciência em suas fontes, na evolução e no campo correlato. Pôde renovar o seu conceito. A doutrina assimilada era retocada e ainda desenvolvida. Foi como Montesquieu, que, sendo um pensador, se tornou, sabiamente, um gênio do Direito.
E foi, notadamente, o educador, embora negando tudo do Brasil. Essa face do seu espírito deu-lhe o primado a que aspirava.
Excelente expositor, propagou ideias com uma vibração comunicativa. O estilo era cheio de claridade, de uma nitidez substancial, sem o tom oratório ou dramático do seu tempo.
Faltou-lhe simpatia humana, mas tornou-se, pela movimentação da cultura e insistência da propaganda, o líder de uma área da inteligência do Brasil. Ganhou adeptos que se fanatizaram. Esse círculo de adesão foi chamado Escola do Recife, talvez impropriamente, porque a cultura no Brasil já não tinha fronteiras.
O segredo de sua popularidade foi viver em camaradagem com os alunos. Seu orgulho não prejudicava essa simplicidade. Esquecendo a importância de lente, era rueiro, andava pelos hotéis e mostrava-se por toda parte, dando uma espécie de audiência pública numa livraria amiga. E franqueava a casa às visitas.
Herói de suas convicções, fizera grandes amigos e maiores inimigos. Acabou na miséria. Caiu doente, tratou-se à custa de subscrições e foi morrer em casa alheia.
Lutara muito pela glória mas não fora feito para a felicidade.
Retratei o patrono com uma tinta diferente, sem as implicações de outras análises. É enorme a cabeça, mas preferi o corpo inteiro para algumas pinceladas.
E que direi do meu antecessor? A Cadeira 38 tem um signo de superação. Deveria ter rodas para correr na frente. Graça Aranha, o primeiro detentor, foi o herói de suas atitudes. Como o mestre Tobias Barreto, seria o inconformista. Mais agitado do que agitador. Grandes frases, fosforescente e apegado à tradição doutrinária, comandou a reação, mas nunca deixou de ser um romântico. Faltava-lhe virgindade para essa experiência.
Mas que grandíssimo escritor! E rico de seiva primorosa.
Santos Dumont, que apenas sobrevoou esta Casa, tendo desaparecido antes da posse, foi outro reformista, herói de sua aventura. A paixão do voo dirigido era uma forma de genialidade.
Celso Vieira foi o único que se voltou para o passado, exumando algumas glórias, com a sua paixão de biógrafo e sua mestria de escritor.
Meu predecessor, Prof. Maurício de Medeiros, era o que se chamava um homem representativo. Desempenhou seu papel dentro e fora do Brasil com muitos méritos.
Estudioso da personalidade, não me perdoaria um julgamento falso.
Mestre de sua especialização, foi o catedrático e o clínico dotado de espírito científico. A Psicologia procura um campo fechado e a Psicanálise explora as intimidades. É uma ciência que não fatiga, porque tem uma parte cênica.
O paciente é que se explica.
Estava habilitado a uma atuação mais aberta. Frequentou a imprensa para alcançar outro raio de ação e o que se exteriorizou foi, muito mais que o escritor, o colunista, com sua autenticidade. O professor continuou a dar aulas: não tinha segredos, confessava-se a toda hora e, se julgava, estava também sendo julgado.
A variedade dos temas demonstrava a extensão de sua cultura. Era o comentário ou a simples referência, mas também atingia a análise com profundidade e segurança.
Tinha uma base para a argumentação. E essa atividade fragmentária revelou mais uma faceta do seu talento; o temperamento entretinha-se com a discussão e surgiu o esgrimista. Era uma espécie de polêmica, quando não aparecia com quem, com os acontecimentos.
A idade não o esgotou. Foi até o fim com a sua reserva vital e o lustre do espírito, iluminado e afirmativo.
OS PROBLEMAS DO MUNDO
Ainda que não participe dos acontecimentos políticos, o intelectual tem de ser o espectador mais atento dos problemas do mundo. Já tive ocasião de dizer: “Ninguém se isola das condições gerais.”
É uma posição histórica. Filosofias que edificaram novos estilos de vida. Romances que mostraram a alguns povos a sua face oculta. Poemas que eternizaram lendas e tradições.
Olhando esse panorama, confesso meu otimismo. Sou um entusiasta do progresso político e social de nossa época.
O essencial é a paz, o elemento vital de segurança e sobrevivência. Também vislumbrei uma sombra que ameaçava envolver a civilização cristã. Delírios agressivos e o estado de pânico universal.
Tanto se armaram os blocos adversos que já se considera afastada a ameaça da terceira guerra. O emprego do equipamento nuclear seria o fim de tudo. E o medo que sempre foi amigo da paz está sendo agora o seu advogado.
Além disso, a posição da China, quebrando a unidade ideológica e impossibilitando a ofensiva conjunta, constitui um novo obstáculo à monstruosa aventura.
São ainda obscuros os destinos do mundo, mas recuperou-se a calma, salvo algum incidente que servisse de estopim nas áreas de atrito. E o pesadelo do Vietname. Passou o susto que nos trouxe o Oriente Próximo com mais um documento da inviabilidade do conflito geral.
A cooperação internacional, beneficiando regiões subdesenvolvidas, documenta índole benigna da era em que vivemos. Essa distribuição da riqueza pelos territórios da fome por um capitalismo mais sensível é um sistema de solidariedade e de equilíbrio econômico que poderá proporcionar uma convivência mais sincera.
O anticolonialismo, que se tornou explosivo, demonstra o mesmo caráter. A queda dos imperialismos é o último arranco contra a servidão, coroado pelo reconhecimento do direito de autodeterminação aos povos.
As últimas tentativas de reconciliação racial representam um imperativo do conceito da igualdade na sua forma mais coerente.
O ateísmo político conquista mais espaço; uma onda irreligiosa percorre todas as direções. Não é a fé que declina: esse dom está ainda mais vivo nos corações que habita.
A igreja voltou-se para as coisas deste mundo. Atualizou-se à luz do neo-tomismo e tornou-se atenta e serviçal.
Nada disso é novidade; são realidades que se valorizam em massa, por sua significação humana.
Só o problema da subsistência continua assustador. Seja o incremento demográfico, seja a falta de produtividade, seja a exaustão, seja o latifúndio, a fome poderá tornar-se mais devastadora que a guerra.
Observemos esse mundo em movimento. O trânsito não é fácil, mas a filosofia que diagnostica as crises indicará o tratamento da mais artificial que é a nossa.
Precisamos sentir o nosso tempo; somos dos mais novos e aparecemos como dos mais velhos.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Internamente, a análise dos fatos, sem a justificativa de estar fazendo História, resultaria num pronunciamento político, incompatível com este recinto. Limito-me a fazer votos pela preservação do que interessa mais de perto à inteligência que representamos: a liberdade de expressão.
O Congresso goza de imunidade para ter iniciativa e para as críticas. A representação merece esse privilégio. O que repugna é a demagogia, por sua insinceridade e seus venenos.
O objetivo da imprensa, como do rádio e da televisão, é informar e comentar esclarecendo. O espírito público equilibra-se nessa corrente de divulgação e poderá atingir a unidade, se não for ludibriado. Sendo controlado, o jornal desorienta, em vez de educar e organizar a opinião. O que se condena é o excesso de linguagem, é a falsidade, é a parcialidade ilícita. A simples doutrinação nunca seria criminosa.
A cultura dirigida ou sob censura perde a originalidade e o vigor, não passando de um padrão monótono. Os doutrinadores mais puros serão quanto mais afirmativos mais sinceros.
O operário também tem de ser ouvido para fazer valer os seus direitos.
Não se deve negar ao estudante a faculdade de opinar, preparando-se para ser no futuro uma consciência ativa.
Além dos exercícios espirituais, a Igreja entrou a manifestar-se. O estilo das Encíclicas descontenta os ricos e ela não tem o que dar aos pobres. Assim sua missão é patrocinar os humildes, excomungar o egoísmo, assistir aos perseguidos, impugnar as injustiças, censurar o luxo, que é sempre uma provocação e, sobretudo, vigiar os costumes. Essa ação será útil, se não tumultuar.
A essas franquias deve corresponder a disciplina aceita, segredo de organização e eficiência dos povos, sem degenerar em passividade ou indiferença. Como obediência legal e opinião livre.
Passou a fase aguda da segurança e restabeleceu-se a integridade constitucional. Consigno um voto de confiança na plenitude democrática.
A inteligência tem este compromisso. Não pode ignorar nem pode calar.
A palavra é a mais nobre faculdade do homem, não deve morrer na garganta.
HOMENAGEM FINAL
O momento era este. Quite com tudo mais, entreguei-me às atividades do espírito, agora com um novo estímulo.
Estou feliz. A verdadeira felicidade é o desejo satisfeito. Penetro nesta Casa como quem acha o seu lugar. Aqui não se sente o conflito das gerações. E cada qual guarda a sua independência, liberando-se a inteligência para variações mais fecundas.
A Academia não se estagnou. Acolheu adversários de ontem como a prova mais sincera do seu propósito de renovação. Multiplicam-se qualidades enriquecendo o colorido.
Ora, que direi mais aos meus confrades?
Katherine Mansfield gritou: “Meus ouvidos estão vazios.” Eu estava bem com o meu silêncio, mas já precisava de uma convivência, de sombra e luz, de companheirismo e inspiração.
Venho reanimar meus últimos dias. Não seria digno de uma vida longa se não aceitasse, em toda a sua plenitude, o tempo que ainda me sustenta.
A bagagem é nenhuma. Trago só o que a experiência não revogou, o que vale por sua continuidade e coerência.
Esta sala está cheia de paraibanos. Peço-lhes, meus conterrâneos, que não esqueçam os que vieram antes de mim, com mais direitos: Pereira da Silva, o simbolista que nunca deixou de ser um grande lírico da ternura e da melancolia. José Lins do Rego, que se desmanchou em romances famosos, a ponto de, quando teve de escrever suas memórias, já estar esgotado o segredo da vida, como disse Denis de Rougement, em Les Personnes du Drame: de Byron a Stendhal. Que falta ele está fazendo! Assis Chateaubriand, que continua a dominar os seus espaços com a mesma velocidade. O que ele tem são asas, a base terrena é um pouso do coração.
Também não esqueci o patrono de minha primícia romanesca, o Acadêmico Alceu Amoroso Lima. Ele falará com sua força de pensamento e sua sábia tolerância para as minhas convicções. Ficarei a dever-lhe e ao consagrado espírito do Acadêmico Adonias Filho, pela colocação do colar, a palavra e o gesto que me sagram nesta hora.
28/6/1967