Caetano Veloso: Londres e São Paulo
Antonio Carlos Secchin
No livro As flores do mal, de Charles Baudelaire, 1857, há uma seção de 18 poemas dedicados à cidade, mais especificamente a uma cidade, Paris. A metrópole deixa de ser cenário e transforma-se em personagem, uma nova musa, tão atraente ou terrível quanto suas predecessoras, humanas ou divinas. O conjunto se intitula “Quadros parisienses”. Lemos no poema “O cisne”: “A forma de uma cidade muda mais rápido do que o coração de um homem”. Não apenas “la donna”, “la città” è mobile. Sim, a cidade é móvel, volúvel. É feita de gente, cimento, vidro, ferro, mas também é construída por memórias, sonhos, pesadelos e palavras. Em “O sol”, Baudelaire vai “tropeçando em palavras como nas calçadas”. Às vezes, as evocações da memória, e das palavras e das imagens que as reconstituem, podem doer mais do que o efeito de uma pedrada. Ainda Baudelaire: “Minhas lembranças são mais pesadas do que socos”.
Neste ciclo, se falará de cidades erguidas com palavras. Curiosamente, todos os quatro poetas a serem estudados têm relação não só com as cidades, mas com a música. Caetano é compositor; João Cabral foi musicado por Chico Buarque; Gullar, além de ter poemas musicados, escreveu letras para alguns compositores; e até Bilac entra nessa roda, pois é o autor da letra do Hino à Bandeira, salve o lindo pendão da esperança! E, como a música popular elegeu seus metros mais constantes (redondilha menor, 5 sílabas, redondilha maior, 7), observem que até os nomes dos poetas se enquadram nesse parâmetro: João Cabral de Melo Neto, 7 sílabas; Ferreira Gullar, Olavo Bilac, Caetano Veloso, 5. Quem não aprecia o metro popular poderia argumentar que o nome completo de Bilac é um solene verso de doze sílabas, o alexandrino “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”. Nesse caso, eu retrucaria, dizendo que o nome de Caetano também é um perfeito alexandrino: Caetano Emanuel Viana Teles Veloso. Vejam como são fluidas as fronteiras entre o que é popular e o que é clássico, pois os nomes podem transitar com liberdade nas duas direções.
Passemos, porém, a Caetano e sua relação com as cidades, mais especificamente Londres e São Paulo. Na plaquete Sobre as letras, de 2003, organizada por Eucanaã Ferraz, o artista declara que todas as suas letras são autobiográficas, até as que não são. Em outro momento, afirma: “Amo a palavra CIDADE. Amo cidades. Me sinto um ser urbano”.
Examinemos, então, o que significa a experiência urbana em terra estrangeira, Londres, e a experiência em terra estranha, São Paulo, uma vez que o poeta provém de Santo Amaro, na Bahia. Experiências do imigrante e do migrante.
Vamos ao primeiro relato, o do exílio involuntário em Londres, entre 1969 e 1971, por imposição do regime militar. A tradução da letra foi feita especialmente para este encontro pelo poeta e acadêmico Antonio Cicero.
Londres Londres
Vagando sem destino por aí
Por Londres Londres linda vou sozinho
Atravesso as ruas sem temer
Todo o mundo abre-me o caminho
Ninguém há que eu conheça e cumprimente
Só sei que todos abrem-me o caminho
Estou sozinho em Londres sem temer
Vagando sem destino por aí
Enquanto meus olhos
Procuram discos voadores lá no céu
Ah, domingo e segunda, outono passam por mim
E gente apressada mas tranquila
Pessoas se dirigem a um guarda
Que aparentemente acha agradável agradar
Ao menos viver é bom e eu concordo
Ao menos ele aparentemente acha agradável
É tão bom viver em paz e
Domingo, segunda, anos e eu concordo
Enquanto meus olhos
Procuram discos voadores lá no céu
Não escolho olhar para rosto algum
Não escolho caminho algum
Apenas me acontece estar aqui
E é legal
Grama verde, olhos azuis, céu cinza, Deus abençoe
Dor silenciosa e felicidade
Eu vim para dizer sim, e digo Mas meus olhos
Procuram discos voadores lá no céu. (Disco Caetano Veloso, 1971)
O início – “Vagando sem destino por aí, / Por Londres Londres linda vou sozinho”– não deixa de evocar o começo de uma canção de 1967, em cujo título, aliás, ocorre a mesma duplicação de um único substantivo, “Alegria, alegria”: “Caminhando contra o vento/ sem lenço e sem documento/ no sol de quase dezembro/ eu vou”. Mas quantas diferenças! Há um tom dionisíaco nessa canção, a partir do título, “alegria”, do discurso afirmativo – “eu vou” – , da celebração cromática (“os olhos cheios de cores”) e até do registro térmico – a temperatura “tropicalidamente” agradável da primavera (“sol de quase dezembro”), à qual se opõe o frio outono europeu duas vezes citados em “London London”, marcado pela tonalidade cinza – branco e preto da Inglaterra, de um lado, contraposto à profusão do arco-íris brasileiro.
Há um gesto reiterado no texto londrino: o olhar em busca de discos-voadores. Ora, em vez de atentar para a paisagem urbana – as ruas, os prédios –, Caetano atenta para a paisagem transcendental, ou seja, na cidade, ele procura exatamente o que não está na cidade, deseja ver o que ali não se apresenta: os discos voadores, ainda de mais dificultosa visualização devido à barreira de um céu cinza e turvo. A referência à cor verde da grama poderia igualmente caracterizar parques de outros lugares do planeta. Quase uma inútil paisagem para quem se interessa pela paisagem celeste. Pode-se perceber uma confissão do desenraizamento, no tom algo melancólico de um estar ali arbitrário, contingente. Cito na tradução de Antonio Cicero: “Não escolho caminho algum / Apenas me acontece estar aqui”. Se a grama se vincula a raiz e proximidade, o disco voador aponta para altitude e distância, para algo de uma inalcançável natureza; ele representa a máxima alteridade: é o extraestrangeiro radical, porque extraterreno.
A letra de Caetano não demonstra nem afeto nem hostilidade frente a Londres: apenas uma resignada disponibilidade para o acaso, e a percepção de uma bem-comportada, civilizada, indiferença dos outros para com ele. Cito: “Ninguém há que eu conheça e cumprimente/ Só sei que todos abrem-me o caminho”.
Nas interseções entre vida e obra, seria interessante recordar uma crônica de Caetano Veloso publicada no Pasquim em dezembro de 1969, anterior, portanto, ao disco, de 1971, em que afirma praticamente o mesmo: “Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados. E deixam o caminho livre. Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso”. Há um “eles”, um grupo, sem rosto, sem corpo definido, na letra de música e na crônica, mas a crônica intensifica o despertencimento à paisagem londrina, na declaração “eu não estou aqui”. Ora, ele está ali, mas eu diria que ele “não está nem aí”. A sabedoria da frase popular “não estou nem aí” indica que de fato nós moramos onde o desejo nos projeta, embora com frequência paguemos caro o aluguel de um endereço errado, pois nem sempre ocorre a confluência entre o espaço real e o espaço do desejo. Lugar desejado? Por exemplo: Santo Amaro da Purificação. Dele diz o poeta, na canção “Trilhos urbanos”: “O melhor o tempo esconde/ Longe, muito longe,/ Mas bem dentro aqui./.../Cana doce, Santo Amaro/ Gosto muito raro/ Trago em mim por ti”. Antiexemplo, Londres, onde recorre a uma língua estrangeira para falar da cidade estrangeira. Duplo exílio, geográfico e linguístico. Na letra ele não se dirige a ninguém específico, apenas escuta. Quem fala são as pessoas locais, conversando com o policial. Deslocado naquele mundo, devaneia em direção a outro mundo, o extramundo, o disco-voador.
Aliás, pela acepção primeira da palavra “cidade”, ousaria dizer que Caetano etimologicamente esteve em Londres, mas nunca esteve na “cidade” londrina. O termo provém de “civitate” (do mesmo radical de civilidade, civilização, cidadão), mas a “civitate” latina não significava originariamente o espaço, e sim o conjunto de cidadãos que se agrupavam em determinado lugar ou estado. O espaço físico dessa aglomeração denominava-se “urbe”. Depois, numa operação semântica metonímica – uma parte pela outra – o sentido de “civitate” se ampliou, deslocou-se do habitante para o território, e acabou relegando a segundo plano a palavra “urbe”. Mas, se “urbe” hoje pouco se emprega como substantivo sinônimo de “cidade”, persiste vigorosamente na modalidade adjetiva, pois “urbano” é bem mais frequente do que “citadino”. Do ponto de vista etimológico, Caetano esteve na “urbe”, mas não na “civitate”. Se recorrermos ao mais antigo dicionário monoglota da língua portuguesa, o de Antônio de Moraes e Silva, na edição de 1813 encontramos um comentário lapidar: “A Cidade por excelência se entende daquela onde estão os que falam”. Portanto, apenas os que fazem soar a voz é que de fato compõem a cidade primordial. E a voz caetana, como vimos, não se integrou a esse coro londrino.
Outra é a perspectiva da questão urbana em São Paulo.
“Sampa” foi gravado em 1978, e a relação de artista com a cidade se iniciou em fins da década de 1960. Trata-se de uma rememoração, de uma experiência decantada pelo tempo. “London London” foi escrita no calor da hora, ou, como era outono europeu, no frio da hora. Correspondeu a um flash ou sequência de selfies de Caetano ao longo de um passeio silente e solitário. Podemos considerar a canção como página de um diário, enquanto “Sampa” seria página de um livro de memórias. Londres foi tratada pelo nome “oficial”, London, enquanto, já numa conotação de intimidade, São Paulo sequer é referida pelo nome, mas pelo apelido: Sampa. Essa intimidade se intensifica pela relação próxima e direta com o “tu”: “Quando eu te encarei”, a cidade como alguém com quem a gente conversa, diferente do tratamento em terceira pessoa, distanciado, da letra londrina.
Leiamos o texto (grifos e negrito meus):
SAMPA
1 Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João,
é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas,
da deselegância discreta de tuas meninas.
Ainda não havia para mim Rita Lee,
a tua mais completa tradução,
alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João.
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto,
chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto,
12 é que Narciso acha feio o que não é espelho,
e à mente apavora o que ainda não é mesmo velho,
nada do que não era antes quando não somos mutantes.
E foste um difícil começo, afasto o que não conheço,
e quem vem de outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te de realidade,
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.
19 Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas,
da força da grana, que ergue e destrói coisas belas,
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas,
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços,
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva.
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba,
[mas possível novo quilombo de Zumbi,
e os novos baianos passeiam na tua garoa,
26 e novos baianos te podem curtir numa boa. (Disco Muito, 1978)
Proponho uma divisão em 3 partes, assinaladas na folha: versos 1 a 11 – relação inicial com a cidade; versos 12 a 18, questionamento dessa visão inicial; verso 19 em diante, relação atual com São Paulo, ou melhor, com Sampa. É uma letra-mosaico, composta de numerosas referências e alusões à cultura paulistana em fins da década de 1960, no campo do urbanismo, da MPB, da poesia, da ficção, do teatro.
A referência é mecanismo de caráter explícito: avenidas São João e Ipiranga (o centro velho de São Paulo), a cantora e compositora Rita Lee, o mito de Narciso, a figura histórica de Zumbi dos Palmares.
A alusão, marcada em itálico na página, é velada, oblíqua: um palimpsesto, em que uma palavra contém um referente embutido para além do referente imediato dela própria. Creio que ela “funciona” melhor quando não impede a fruição do texto, atuando somente como uma suplementação de sentido, ou seja: quem a percebe tem a fruição intensificada, mas quem não a percebe, ainda assim, não está alijado da compreensão primeira daquilo que é dito. Exemplo claro: a “dura poesia concreta de tuas esquinas”, verso 4: o cimento frio da urbe, ainda assim portador de certa – dura – beleza – e, numa segunda camada, a da alusão, o movimento da poesia concreta. As alusões estão assinaladas em itálico: verso 4: a poesia concreta; verso 14: o conjunto musical Os Mutantes; verso 16: Santo Amaro ou Salvador, que corresponderiam ao sonho feliz de cidade; verso 18, “o avesso do avesso do avesso do avesso”, expressão atribuída a Decio Pignatari; verso 22: poetas de campos, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos; verso 23, o Teatro Oficina, grupo dirigido por José Celso Martinez Correia que, em 1967, encenou O rei da vela, de Oswald de Andrade; verso 23, deuses da chuva: alusão a Jorge Mautner, que, em 1962, publicou Deus da chuva e da morte; e provavelmente aos “Demônios da Garoa”; verso 24, três alusões: Pan-América, romance de José Agripino de Paula, publicado em 1967, “túmulo do samba”: “São Paulo é o túmulo do samba”, frase infeliz de Vinicius de Moraes, que foi cobrado a vida toda pela declaração, e peça “Arena conta Zumbi”, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, com música de Edu Lobo, autor de “Upa, neguinho”; verso 25: Os Novos Baianos, grupo musical que surgiu em 1969.
Entrevejo ainda um rastro baudelairiano no verso 21, “da feia fumaça que sobe apagando as estrelas”, pois, no poema “Paisagem”, que abre os “Quadros parisienses”, encontramos “os rios de carvão a galgar o firmamento”.
Observe-se que que as evocações de “Sampa” não são, como em “London London”, genéricas – “um grupo, um guarda, eles” –, mas marcadamente concretas e particulares.
Retornemos à letra, em sua parte 1. “Alguma coisa acontece no meu coração”. Tanto ou mais do que a cidade, o poeta vai falar de sua reação, refratária ou amistosa, frente a São Paulo. Vai tentar avaliar-se e entender-se através do modo como avalia a cidade. Falará desse afeto ambíguo, dessa “alguma coisa”, que ele ainda não sabe bem o que é, e, para tentar descobrir , vai atravessar a avenida que liga o seu coração ao Centro, o coração da cidade, buscando uma ponte entre o coração humano e o coração urbano. Só quem admite nada ter entendido é que estará desarmado e disponível para tudo tentar entender. O caminho da compreensão de uma realidade a princípio feia, hostil, passa pela dissolução do maniqueísmo, pela relativização dos juízos condenatórios, muitas vezes taxativos e preconceituosos. Assim, a esquina é dura, mas tem poesia; as meninas exibem deselegância, mas é discreta... Aliás, li um comentário muito interessante no YouTube, a propósito de “Sampa”. Escreveu alguém: “Como pode uma música falar tão mal de uma cidade e agradar tanto os moradores dessa mesma cidade? Coisa de gênio, mesmo!!!” O autor do comentário não atentou para esse contínuo jogo de contrabalanços, no qual o que parece sombrio pode trazer no bojo uma faceta luminosa, que nem sempre cintila ao primeiro olhar.
A Parte 1, dos versos 1 ao 11, é a confissão do desconhecimento e da consequente recusa dessa estranha realidade urbana, marcada pela predominância de verbos no passado: cheguei, [nada] entendi, havia, encarei, [não] vi, chamei.
Na Parte 2, dos versos 12 ao 18, o poeta questiona a recusa e admite que o problema pode estar não no objeto, mas no observador, não na realidade que é vista, mas no ângulo restrito pelo qual ela era captada.
Na Parte 3, do verso 19 em diante, com os verbos no presente, surge sua relação atual e amistosa com o espaço urbano, fundamentada na aceitação antinarcísica das diferenças desse outro-cidade . É seu retorno à mesma cidade, mas que se tornou diferente pela mudança de olhar a ela dirigido. Haverá, portanto, na parte 3, a desconstrução da recusa inicial da parte 1, após essa recusa ter sido posta em xeque na parte 2.
A linha melódica de “Sampa” evoca incidentalmente a de “Ronda”, de Paulo Vanzolini, em cuja letra também se faz referência à Avenida São João, porém como cenário de crime passional. O notável, na canção de Caetano Veloso, é que a estrutura melódica também é tripartida: a melodia inicial da parte 1 é interrompida por outra precisamente no verso 12, assim como seu passeio pela cidade é interrompido pela reflexão. No verso 19, parte 3, ele retorna ao passeio – e a melodia também retorna à parte 1. Aparentemente, na parte 3, haverá o mesmo lugar e a mesma música, porém já modificados ou atravessados pela estranheza que soou na parte 2.
No final da parte 1, os versos 10 e 11, “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto/chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto” corresponderiam ao momento da eclosão do sintoma, do incômodo resistente face à força do real. Estabelece-se uma relação de causalidade: encarar a cidade, não ver o rosto – logo, aquilo que não me espelha necessariamente eu desqualifico como mau gosto. O problema parece situar-se lá, o mau gosto aparenta ser uma categoria externa e objetiva, estou certo disso.
Só que não.
Terei certeza? Por que, se afirmo que aquilo é mau gosto, preciso tanto insistir? “Mau gosto” por 3 vezes – quem sabe até para que, à custa da repetição, eu acabe me convencendo de que é verdade aquilo em que eu quero acreditar. Para tentar dissolver o incômodo, é necessário desconfiar dessa proclamação do mau gosto, essa pedreira no meio do caminho, atrapalhando a fluência de minha transa e de meu trânsito em direção à cidade. Tenho de justapor à minha convicção a pergunta: “Por que?”. Se eu não investigar “Por que estou afirmando isso?”, no caso, o mau gosto, permanecerei prisioneiro da versão de minha aversão, ou de meu próprio desconhecimento.
Na parte 2, o poeta desmonta o mecanismo protetor, de defesa, que consiste na desqualificação do outro para não ter que reprocessar os próprios valores, para não ter que arduamente dissolver suas autoverdades cristalizadas. Caetano formulou um “por que?” implícito, ao fim do verso 11, tanto que se segue, no verso 12, uma resposta explícita: “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Está em negrito o verso “e à mente apavora o que não é mesmo velho” para enfatizar que ele corresponde ao ponto central da canção: literalmente, é o verso ou a pedra lançada no meio do caminho do texto: verso 13, de um total de 26. Momento de movimento para o segundo lado. Desafio a ser vencido na passagem, ou ultrapassagem, de uma realidade a outra, da negação à aceitação de São Paulo. E se trata de um verso sintomática e sintaticamente perverso, cuja forma, num primeiro momento, nos espanta e incomoda, uma construção pouco usual, que tenderíamos a repelir: a anteposição repentina de um objeto direto preposicionado: “à mente”. De modo intuitivo nossa leitura busca a segurança da ordem convencional, em que o sujeito antecede o objeto. E, ao “corrigir” a sintaxe, caímos na armadilha e constatamos a força do que ali se diz: realmente, tudo que não é velho, logo, tudo que é novo, apavora, até mesmo um objeto direto fora do lugar. A forma do verso, deslocando o objeto para o espaço previsível do sujeito gramatical, endossa a desestabilização de lugares fixos, seja no mundo referencial, seja na ordem da própria sintaxe. O apego ao que já se encontra consolidado nos leva a não querer “nada do que não era antes” – o mundo é normativamente repetitivo, a menos que tenhamos a coragem de sermos mutantes.
O poeta efetua o salto, ele, que veio lá de Santo Amaro com um pacote pronto com a receita de seu antigo sonho “feliz de cidade”, de plena feli-cidade. Esse ideal paradisíaco que se abastece na origem, entendida como território idílico e sem fissuras – “oh, que saudades que tenho” – , se confronta com o doloroso aprendizado de que qualquer novo projeto de feli(z)-cidade não pode desconhecer a velo-cidade, a fero-cidade, e tantas outras “cidades” embutidas no coração da multipli-cidade.
Essa realidade indomável, em mutação, em que de uma coisa ele vê outra surgir, ocupa a parte 3, continuamente desfazendo imagens estáticas, em prol do “avesso do avesso do avesso do avesso”. Mas não se trata da aceitação pacífica do “vale tudo”, com simples inversão de sinal: onde era mau gosto, agora passa a ser bom gosto, porque nesse caso inexistiria uma perspectiva crítica e tampouco se sairia do lugar, apenas permaneceríamos inertes com os sinais trocados, substituindo o “não” da recusa narcísica pelo “sim” da aceitação passiva. Trata-se, ao contrário, da compreensão da tensa coexistência das contradições inerentes à dinâmica da vida. Exemplos: o dinheiro, capaz de gerar e destruir beleza; a fumaça, que compete com as estrelas, mas não consegue bloquear o brilho que emana dos poetas, mesmo no espaço da escuridão; a oficina, com a força de forjar uma floresta, ainda que artificial; a negritude, que, se de um lado se associa a túmulo do samba, de outro tem potência para trazer à tona a utopia libertária de Zumbi; e o poeta, que, sendo antigo, se apresenta, no fim do texto, como um novo baiano, porque conseguiu modificar-se, a ponto de se tornar outro baiano.
Sabiamente, ele aprendeu que, se Narciso desviar-se da projeção obsessiva de seu próprio rosto, aí então, dentro de um espelho acolhedor e vazio, pode caber uma cidade inteira.
Rio de Janeiro, 3 de abril de 2018