Como os poetas que já cantaram,
e que ninguém mais escuta,
eu sou também a sombra vaga
de alguma interminável música.
Cecília Meireles
Agradeço a todos os membros da Academia Brasileira de Letra que me honraram com seu voto, possibilitando que eu acedesse a esta Casa para nela ocupar a cadeira de número 19. Agradeço também àqueles que, manifestando outra opção no pleito do dia 3 de junho, igualmente contribuíram para chancelar os procedimentos regimentais das sucessões acadêmicas.
A cadeira 19 figura entre as poucas a jamais haverem sido ocupadas por um escritor preponderantemente voltado à ficção ou à poesia. Não obstante, fui buscar a epígrafe deste discurso num poema de Cecília Meireles, ganhadora póstuma do Prêmio Machado de Assis, da ABL, em 1965. Versos que, se de um lado, com resignado lamento, parecem confinar os escritores à contingência de uma “sombra vaga” “que ninguém mais escuta”, por outro nos alçam à condição de elos necessários a “alguma interminável música”. Ainda que não alocados no pódio de solistas, participamos de um concerto para muitas vozes - e talvez seja esta uma das mais nobres missões da Academia: convocar à vida os nossos mortos, despertar contra o esquecimento as palavras represadas no sono dos livros, fazê-las fluir para que venham integrar-se à “interminável música” da literatura.
O fundador da cadeira 19 foi Alcindo Guanabara, que escolheu como patrono Joaquim Caetano da Silva. Dom Silvério Gomes Pimenta ocupou a vaga de Guanabara, e foi sucedido por Gustavo Barroso. A Gustavo Barroso seguiu-se Antônio da Silva Melo, substituído por Américo Jacobina Lacombe. O sucessor de Lacombe foi Marcos Almir Madeira.
Cada um desses nomes se relacionou de modo bastante peculiar com o universo das letras, dificultando uma pretensão de todo novo acadêmico: a de lastrear um fio condutor que o destino porventura houvesse tramado para enlaçar com alguma coerência pessoas e obras de natureza tão díspar. Ainda assim, examinando a bibliografia do patrono e a do derradeiro ocupante, e tentando aproximar essas extremidades cronológicas da cadeira, pude constatar entre Joaquim Caetano e Marcos Almir ao menos uma clara convergência, sobre a qual falarei no final do discurso.
Duas vias se franqueiam a quem estude a produção dos acadêmicos: uma, abastecida em fontes primárias, na prospecção direta de suas biobibliografias; outra, que não exclui a anterior, baseada no conhecimento dessas vidas e obras já no âmbito da própria dinâmica sucessória, ou seja: nas análises que os novos titulares foram consecutivamente formulando a propósito dos membros que os precederam. Além de se marcarem como ritual de passagem, os discursos revelam não só os valores pelos quais um acadêmico é acolhido, mas também a releitura que o recém-ingresso opera do legado cultural de sua cadeira. Nessa operação podem ocorrer deslocamentos de hierarquias e de prioridades. O que hoje se minimiza na avaliação de um escritor talvez seja exatamente o aspecto que amanhã nele mais se releve. Passaremos a ler, portanto, um outro autor, que, do antigo conserva o nome, mas é dele diverso ou até antagônico. Por existirem camadas potenciais de sentido na obra literária, cada época irá trazer à tona aquelas que mais lhe digam respeito, como espelho em que verá impressa a sua própria face.
A escolha dos intelectuais que compuseram o primeiro conjunto acadêmico, como observou Joaquim Nabuco, efetuou-se através de um amplo consenso interpares, e não mediante candidaturas avulsas; tal processo de constituição, seguramente, ainda terá sido preferível ao estabelecimento da imortalidade por meio de ato do Executivo. Igualmente pelo livre arbítrio do quadro inicial de membros procedeu-se à indicação dos patronos, recrutados entre escritores mortos e, em boa proporção, de reconhecido mérito. Desse modo, os fundadores, antes de serem, eles próprios, sucedidos no fluxo do tempo, desfrutaram da rara oportunidade, num viés quase borgiano, de gerar quem lhes antecedeu. Os patronos forneceram séculos de passado a uma Academia com meses de vida.
Nem patronos nem fundadores foram alvo de saudação acadêmica individualizada. Assim, uma sessão que comportasse o elogio do antigo ocupante só poderia forçosamente ocorrer quando da primeira substituição de um fundador, celebrada em 30 de novembro de 1898. O eleito, João Ribeiro, assumiu a vaga de Luís Guimarães Júnior e foi recebido por José Veríssimo. Naquela noite, inaugurou-se a cerimônia das orações de posse e resposta, desencadeando-se o protocolo discursivo que até hoje vigora, reiterado nas 181 recepções subseqüentes à admissão de Ribeiro.
Da herança de Joaquim Caetano da Silva, patrono da cadeira 19, quase nada se encontra à disposição do leitor de hoje. Sua única imagem corrente, acessível na página eletrônica da Academia, revela um homem de ar austero, em tudo consoante ao retrato que faríamos de um fiel e probo funcionário do Segundo Reinado. Nasceu em Cerrito (atual Jaguarão), Rio Grande do Sul, em 2 de setembro de 1810. Dos 16 aos 27 anos morou na França, onde, se graduou em Medicina. Retornando ao Brasil em 1838, ei-lo professor de Português, Retórica e Grego do Colégio de Dom Pedro II. No ano seguinte já se tornaria reitor da instituição, tendo nela implementado, em 1841, uma pioneira reforma curricular, com ênfase na área das humanidades.
Especialista em Geografia, disciplina que elevou à categoria de ciência na grade do ensino colegial, Joaquim leu em 1851, diante do imperador Pedro II, uma “Memória sobre os limites do Brasil com a Guiana Francesa”. No mesmo ano, ingressou na carreira diplomática, como encarregado de negócios na Holanda. Em 1853, na cidade de Haia, participou das tratativas dos limites brasileiros com Suriname. É de 1861 sua obra principal, redigida em francês: L’Oyapoc et l’Amazone, onde retoma e aprofunda, num alentado estudo com mais de um milhar de páginas, as argumentações da “Memória” de dez anos antes. Em 1900, o barão do Rio Branco, apoiado nos subsídios de Caetano da Silva, terminaria por obter, num foro internacional, a vitória que selaria em definitivo o conflito de nossas fronteiras com a Guiana Francesa.
Na condição de inspetor geral de Instrução Pública, Joaquim Caetano criticou, num relatório de 1863, a qualidade do ensino brasileiro, denunciando que “o aparato era grande, grande era também a despesa e o resultado pequenino”. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Entre 1869 e 1873 dirigiu o Arquivo Nacional, então denominado Arquivo Público do Império. Faleceu em Niterói, no dia 28 de fevereiro de 1873. Seus restos mortais, no entanto, não repousam em solo fluminense, no cemitério de Maroí, Niterói, onde Caetano foi sepultado. Encontram-se na Fortaleza de São José de Macapá, numa urna abrigada pelo Museu Histórico Joaquim Caetano da Silva – justa reverência àquele que ajudou a incorporar ao território brasileiro uma zona litigiosa, hoje parte integrante do estado do Amapá. A gratidão do Brasil para com o geógrafo e diplomata materializou-se ainda num decreto do Executivo, de 15 de junho de 1959, pelo qual foi concedido crédito de 15 milhões de cruzeiros para a Comissão do Monumento a Joaquim Caetano da Silva, a ser erigido em Macapá. Seu nome foi atribuído a uma avenida no centro do Oiapoque, e, no berço gaúcho, a uma Sociedade Cultural. Parodiando o clichê, podemos dizer que as homenagens a Caetano se estendem do Oiapoque ao... Jaguarão. Mas é forçoso constatar que o importante papel por ele desempenhado nas áreas da educação e da diplomacia permanece insuficientemente reconhecido. A razão para isso talvez consista no fato de que o mármore, o cimento e o bronze não são os melhores materiais para imortalizar um escritor. O grande monumento que se pode erguer à sua memória é de natureza mais modesta e frágil, cabe na palma da mão. Esse monumento, que em sua precariedade física se sobrepõe a todos os outros, se chama livro. E o maior tributo que se presta a um autor consiste em repô-lo sem cessar na vida, através das reedições que o fazem perpetuamente contemporâneo de novos leitores.
Ao contrário do patrono, discreto funcionário na órbita do poder imperial, Alcindo Guanabara, nascido em Guapimirim, Magé, estado do Rio, em 19 de julho de 1865, destacou-se como jornalista imerso com desassombro nas grandes questões nacionais, por ele retratadas de forma candente e partidária. O risco de um tal procedimento reside no fato de que, pela ausência de salvaguarda crítica, o ímpeto ao partidarismo compulsório pode induzir-nos a embarcar na plataforma errada. Guanabara, declarando-se hostil à abolição da escravatura, acabaria tomando o trem no sentido oposto ao da História. Certa inconstância na escolha da plataforma, aliás, parece marcar a trajetória desse nosso publicista, fornecendo-nos a imagem de um indivíduo versátil, antes propenso a transigências eventuais do que propriamente defensor de convicções irremovíveis. A fama de tal flexibilização de valores remonta, provavelmente, ao famoso episódio em que Alcindo, instado, às vésperas da Semana Santa, a escrever editorial sobre Jesus, teria argüido: “A favor ou contra?”. Não sendo, talvez, verdadeira, a anedota propagou-se, por verossímil. Em prol de Guanabara circulou a atenuante de que não formulara a pergunta movido pela cobiça de propina vultosa em caso de ataque à figura divina, e sim pelo desejo de evitar atritos com José Carlos Rodrigues, proprietário do jornal e seguidor do protestantismo anabatista.
Antes de abraçar o jornalismo, Alcindo deixou inconclusa a Faculdade de Medicina. Trabalhou como inspetor no Asilo dos Menores Desvalidos e como faxineiro na Gazeta da Tarde, de José de Patrocínio, onde travou contato com Raul Pompéia e Luís Murat. Num dia em que a redação estava em greve, redigiu sozinho todas as matérias do jornal, conquistando no mesmo passo a admiração de Patrocínio e um emprego na folha. Defendeu com vigor a causa abolicionista, mudando de opinião aos 22 anos, quando, após romper relações com José do Patrocínio, passou a dirigir a folha escravagista Novidades. Em artigo estampado dois dias após a promulgação da Lei Áurea, justificava seu ponto de vista, argumentando que a extinção da escravatura desencadearia uma incontrolável convulsão social: “Nós gastamos boa parte da nossa atividade fazendo sentir que a abolição radical devia trazer conseqüências funestíssimas ao país; e agora que ela está feita pela pior das maneiras, seremos talvez o único jornalista que assim pensa! mas pensamos que essas conseqüências serão inevitáveis e fatais.”
Posteriormente, sem ambigüidades, engajou-se na causa republicana, trabalhando no Jornal do Comércio e no Correio do Povo. Deputado na Constituinte, reelegeu-se em 1894, na segunda legislatura republicana. Três anos depois, seu nome, bem como os de José Veríssimo e José do Patrocínio, constaria de um documento em apoio a Cuba, no turbulento período em que o país caribenho lutava pela consolidação de sua independência. Ainda em 1897, Alcindo, opondo-se a Prudente de Morais, recebeu a pena de confinamento na ilha de Fernando de Noronha, de onde saiu graças a habeas corpus impetrado por Rui Barbosa. Guanabara persistiu na oposição com o jornal A Tribuna, fundado em 1898. Transformou-se em voz situacionista na presidência de Campos Sales (1899-1902), quando criou A Nação e colaborou em O Dia. Ocupou o cargo de redator-chefe de O País, até 1905. Fundou A Imprensa, onde liderou a campanha por Pinheiro Machado. Eleito para o Senado, morreu no dia 20 de agosto de 1918, alguns meses após o início da legislatura.
A relação (não-exaustiva) de tantos títulos de periódicos em que Alcindo Guanabara atuou fornece um pouco da dimensão superlativa de sua figura no meio jornalístico do país. Para melhor lhe dimensionarmos a importância, basta dizer que na História da imprensa no Brasil, de 1967, Nelson Werneck Sodré, num impressionante índice onomástico, arrola nada menos do que 1940 nomes; desses, apenas 13 são citados 20 ou mais vezes; Alcindo Guanabara é um deles. Foi, aliás, precisamente em louvor ao poder da imprensa que Alcindo escreveu uma de suas mais vibrantes páginas, publicada em O País, de 3 de novembro de 1904: “É graças a ela [imprensa] que o pensamento se liberta, que o espírito humano se emancipa de preconceitos/.../, que a prepotência dogmática se atenua e que o livre exame surge, como alicerce e fundamento de uma nova moral social/.../. O panfleto, clandestino e anônimo, é ainda uma arma de rebelião; o jornal só vive numa atmosfera de liberdade”.
Estampava a manchete do jornal A Razão, no dia seguinte à morte de Alcindo: “Uma perda insubstituível no nosso patrimônio moral. O falecimento do maior dos jornalistas brasileiros”. A matéria detalhava: “é sobretudo como jornalista que o nome de Alcindo Guanabara se perpetuará na nossa história. A sua pena maravilhosa representava, por si mesma, o próprio jornal, porque produzia tudo de quanto ele precisasse, desde o artigo de fundo até ao noticiário de polícia”. Curiosamente, nem A Razão, nem A Notícia, tampouco o Jornal do Comércio sublinharam o fato de Guanabara ter pertencido aos quadros da Academia Brasileira de Letras, preferindo reverenciá-lo como um grande jornalista subtraído pelas lides políticas, e lamentando que a atividade parlamentar houvesse, já há alguns anos, abafado o escritor em prol do deputado. Alcindo Guanabara tornou-se nome de colégio estadual, de rua, e já o foi de sua cidade natal, que voltou a chamar-se Guapimirim.
A produção de Alcindo encontra-se resgatada, ainda que parcialmente, graças a uma iniciativa do Senado Federal, que republicou em 2002 - um século após a edição original - o livro A presidência Campos Sales. Apesar de Guanabara proclamar-se, orgulhosamente, jornalista, é inegável que se sobreleva uma dimensão literária, no sentido estrito, em alguns textos de sua lavra, a exemplo da conferência “A dor”, pronunciada em 1905. As conferências sobre temas abstratos ou genéricos, aliás, estiveram em grande voga no início do século XX. Vários membros da Academia aderiram à atividade, que, ao que consta, era bem remunerada e visava sobretudo ao público feminino. Citemos, entre as contribuições mais destacadas, as de Olavo Bilac, com as Conferências literárias, de 1906; de Medeiros e Albuquerque, cujos Pontos de vista vieram a lume em 1913; e de Coelho Neto, autor de Falando, de 1919.
Alcindo Guanabara proferiu o elogio fúnebre de Machado de Assis na Câmara, em 1908. De seu elogio póstumo e acadêmico incumbiu-se o sucessor, arcebispo dom Silvério Gomes Pimenta, empossado em 28 de maio de 1920. Se Guanabara já fora controverso em vida, continuou a sê-lo em morte. A recepção a dom Silvério ficou a cargo de um desafeto do falecido jornalista: o escritor Carlos de Laet, monarquista e católico. Dom Silvério, elegantemente, realçara as qualidades do antecessor e ainda tentara localizar, em seus escritos, declarações ou indícios que lhe contradissessem a arraigada fama de ateu. Mas Laet, polemista de verbo afiado e verve ferina, insinuou, com demolidora ironia, tratar-se de um curioso caso de conversão religiosa post-mortem, e, omitindo o nome de Alcindo, destilou toda a causticidade do famigerado episódio do “a favor ou contra Jesus Cristo”.
Dom Silvério, nascido em Congonhas do Campo em 12 de janeiro de 1840, tornou-se não apenas o primeiro prelado a ingressar na Academia, mas também, em 1890, o primeiro sacerdote consagrado bispo na vigência do regime republicano. Negro, de família humílima, órfão de pai aos 4 anos, foi caixeiro e sapateiro. Estudou graciosamente em escolas religiosas. Aos 16 anos já ministrava aulas de Latim; algum tempo depois, dedicou-se igualmente ao magistério de Filosofia e História Universal. Na docência do Latim, teve entre seus alunos Augusto de Lima, futuro membro da Academia Brasileira de Letras.
Na bibliografia que deixou, destaca-se, de 1876, a Vida de Dom Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana e conde da Conceição. Dom Antônio ordenara Silvério Gomes Pimenta na cidade de Sabará, em 1862, e seria um de seus antecessores no bispado de Mariana. Em 1906, o papa Pio X elevou a diocese da cidade à categoria de arquidiocese. Dom Silvério, à época o nono bispo de Mariana, transformou-se, assim, no seu primeiro arcebispo. Sua obra, cujo padrão estilístico é comparado ao de frei Luís de Sousa, não foi contemplada com reedições, e tornou-se de difícil acesso, quer em alfarrabistas, quer em bibliotecas públicas ou particulares. Todavia, a devoção ao arcebispo foi bastante para perpetuar-lhe a memória numa cidade mineira, a antiga Saúde, situada na Zona da Mata, e que desde 17 de dezembro de 1938 se denomina Dom Silvério. Outro registro a não se negligenciar é o da viagem que, em 1919, Mário de Andrade realizou a Mariana. Além de protagonizar um célebre encontro com Alphonsus de Guimaraens (poeta que, certamente, mereceria ter figurado entre os membros da Academia), Mário também visitou o arcebispo.
Menos de 24 meses ocupou Dom Silvério a cadeira 19. Falecendo em 30 de agosto de 1922, foi sucedido em 7 de maio de 1923 por Gustavo Barroso, de 34 anos. Apesar de jovem, Barroso já se havia candidatado à Academia em diversas ocasiões. Sua vitória na quarta tentativa, além de premiar-lhe o tenaz temperamento, representou o reconhecimento acadêmico a uma trajetória inegavelmente precoce e operosa.
Nascido em Fortaleza, no dia 29 de dezembro de 1888, bacharelou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1911. A partir de então, e até 1913, foi colaborador do Jornal do Comércio. Aos 23 anos, estreou em livro com Terra do sol, que versa sobre paisagens e costumes do sertão cearense. Nesta que, para muitos, é sua melhor obra, assinou-se “João do Norte”.
Ainda está por ser feito um levantamento que dê conta dos inúmeros “Joões” (e alguns “Josés”) sob os quais, nas primeiras décadas do século XX, se ocultavam os verdadeiros nomes dos autores. Houve pseudônimos para todos os gostos e regiões: João do Rio, de Minas, do Sul; João das Regras e João dos Gatos. O português João Grave, que escrevera Gente pobre – cenas da vida rural, mereceu do brasileiro José da Costa Sampaio, autor de Gente rica – cenas da vida paulistana, uma dedicatória que se tornou antológica pelo fato de Sampaio tê-la subscrito com seu nome literário: “A João Grave, oferece José Agudo.”
Antes do ingresso na Academia, Barroso atuou, sucessiva ou simultaneamente, como professor da Escola de Menores; secretário do Interior e da Justiça do Ceará; redator da revista Fon-Fon; deputado federal pelo Ceará. Além disso, no que se constitui talvez em seu maior legado, foi o idealizador do Museu Histórico Nacional, que dirigiu (com pequenas interrupções) desde a fundação, em 1922, até falecer, no dia 3 de dezembro de 1959.
Ao assumir a cadeira 19, já havia publicado cerca de 15 livros, e seu intenso ritmo de produção o fez atingir, em 1959, a espantosa cifra de 128 títulos. Gustavo Barroso foi um polígrafo, na plena acepção do termo: escreveu romances, contos, poemas, ensaios, biografias, memorialismo, lexicografia, textos sobre folclore, museologia, história e política. Sua faceta política, decerto, é a mais polêmica, em decorrência do anti-semitismo que dela transpira. Na década de 1930, foi ostensiva a participação de Barroso na ação integralista, onde se situava como o segundo nome do movimento, abaixo apenas do líder Plínio Salgado. Várias obras do período, da autoria de Barroso, concorreram para a divulgação e a apologia da doutrina. Na biografia elaborada por seu sucessor acadêmico, Antônio da Silva Melo, ressalta-se a incontida atração de Gustavo, desde a infância, pela vida militar e pelos princípios do comando e da autoridade. Mas, aceitando-se ou não a premissa de que no menino estaria o homem, deve-se por justiça reconhecer que sua vida, ensombrecida embora pelo equívoco do preconceito racial, não pode a ele ser reduzida. Quando aderiu ao integralismo, em sua vertente mais áspera, Barroso já se notabilizara por uma série de realizações como homem público e escritor. Foi um dos pioneiros no reconhecimento do valor cultural e literário dos cantadores nordestinos. Com Ribeiro Couto, fundou, em 1932, a Editora Civilização Brasileira. Em 1934, ministrou o primeiro curso de museologia do país, no Museu Histórico Nacional, instituição pela qual incansavelmente se bateu, dedicando-se à preservação da memória de um país acusado de desprezá-la. Igualmente profícuo foi o trabalho de Gustavo Barroso nos seus 36 anos de atuação acadêmica. Duas vezes presidente da Casa, em outras ocasiões secretário ou tesoureiro, já em 1923, recém-admitido, lhe fora atribuída uma delicada missão, da qual se desincumbiu com êxito: administrar a transferência da sede da Academia, do Silogeu Brasileiro para o prédio do Petit Trianon.
Próximo ao fim da existência, voltou-se, ternamente, para a Fortaleza natal, escrevendo, em 1957, a letra do hino da cidade: “No esplendor das manhãs cristalinas/ Tens as bênçãos dos céus que são teus/ E das ondas que o sol ilumina/ As jangadas te dizem adeus/.../ Onde quer que teus filhos estejam, / Na pobreza ou riqueza sem par, / Com amor e saudade desejam/ Ao teu seio o mais breve voltar./ Porque o verde do mar que retrata/ O teu clima de eterno verão/ E o luar nas areias de prata/ Não se apagam no seu coração.”
Vida e obra de Gustavo Barroso foram minuciosamente descritas por Antônio da Silva Melo, na sua oração de posse, realizada em 16 de agosto de 1960. Para se ter uma idéia da exaustividade da pesquisa, basta dizer que no volume XVII dos Discursos acadêmicos seu texto se estende por 104 páginas, das quais cerca de uma dezena dedicadas a patrono e primeiros ocupantes, e nada menos do que 90 ao antecessor. Consta ter sido o segundo mais longo discurso de toda a história da Academia, suplantado apenas pelo de Álvaro Lins. Silva Melo o pronunciou em versão condensada, porque, apresentado na íntegra, demandaria cerca de 4 horas de leitura.
A oscilação pendular entre jovens e idosos manteve-se, na cadeira 19, com a eleição de Antônio. Ele, aos 70 anos, substituía Gustavo Barroso, que entrara com 34, que substituíra dom Silvério, que entrara com 80, que substituíra Alcindo Guanabara, que entrara com 32.
Silva Melo nasceu em Juiz de Fora, no dia 10 de maio de 1886. Temperamento inquieto, curiosíssimo, voltou-se desde a adolescência para a área médica, e logo demonstrou insatisfação com a má qualidade do ensino de Medicina no país. Decidiu prosseguir os estudos na Alemanha. Em 1916, defendeu, em Berlim, tese intitulada “A influência do tório X sobre o sangue”. Especializou-se em clínica médica. A experiência mais dramática de sua vida provavelmente terá sido a de um naufrágio, quando o navio em que viajava de regresso ao Brasil foi torpedeado no Mar do Norte. Antônio salvou-se, mas tudo o que trazia - uma vasta biblioteca, seu laboratório, vários trabalhos inéditos - foi por água abaixo. Impedido de retornar à Alemanha, devido à deterioração das relações teuto-brasileiras na I Guerra Mundial, acabou permanecendo por mais dois anos na Suíça. Retornou ao Brasil em 1918. Foi aprovado em concurso para catedrático de Clínica Médica na então Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Aprofundou-se na área da nutrição e desenvolveu inúmeros estudos sobre as conseqüências da radioatividade no organismo humano. Deve-se a ele a divulgação dos efeitos benéficos das areias negras e monazíticas de Guarapari, região que freqüentou nos anos de 1930, e a que consagrou artigos de grande sucesso, publicados em O Cruzeiro, no Jornal do Brasil e no livro Guarapari, maravilha da natureza, de 1971. Nessa cidade, em preito de gratidão, Silva Melo é hoje nome de escola e de rua.
Passando das areias monazíticas da praia às areias metafóricas da ampulheta do tempo, permito-me incluir, aqui, um pequeno excurso de natureza sentimental e biográfica. A vida me reservou a extraordinária felicidade de contar com a presença, na cerimônia de hoje, de meus pais, Sives e Regy, que se conheceram na década de 1940 no balneário de Guarapari, tão louvado por meu antecessor. O primeiro mar que vi foi o da praia espírito-santense de Marataízes. Homenageio assim, por extensão, o estado do Espírito Santo, em que, por casualidade, não nasci, mas onde aprendi a ler e iniciei, fascinado, essa viagem sem volta na direção da escrita e da leitura - nessa mesma terra capixaba que mereceu de um crítico severo, Osório Duque-Estrada, no livro O norte, de 1909, um fulminante juízo: “Não há literatos nem cultores da arte no estado do Espírito Santo”. Quatro anos após o drástico veredito, nasceria, em Cachoeiro de Itapemirim, aquele que seria aclamado como um dos maiores, senão o maior cronista do país: Rubem Braga.
Silva Melo fundou, em 1944, e dirigiu até o fim de seus dias - morreu no Rio, em 19 de setembro de 1973 - a Revista Brasileira de Medicina. Citam-se, entre seus principais livros, O homem - sua vida, sua educação, sua felicidade, de 1945; Mistérios e realidades deste e do outro mundo, de 1948; Nordeste brasileiro, de 1953; Estados Unidos - prós e contras, de 1958; Estudos sobre o negro, de 1958 e A superioridade do homem tropical, de 1967. A observar, em sua obra, a ênfase positiva atribuída à etnia negra e à cultura mestiça e tropical do brasileiro. Ainda que supervalorizando aspectos do instinto e da constituição física do homem dos trópicos, a posição de Silva Melo não deixa de ser bastante provocativa, a ponto de podermos interpretá-la como a trincheira bio-antropológica do discurso histórico-sociológico de Gilberto Freyre. Essas afinidades, aliás, já foram salientadas pelo cientista social Gilberto Vasconcellos, num simpático perfil que traçou de nosso antecessor: “foi o crítico da ideologia do colonialismo na esfera da medicina, ideologia essa que calunia o sol, o trópico e o homem mestiço. Ele negou peremptoriamente a tese equivocada de que o calor ou o clima quente seja um fator desfavorável à cultura e ao desenvolvimento da inteligência.” Esse traço contestador reflete-se em muito do que escreveu. O título de uma de suas obras - Estados Unidos, prós e contras - fez alguns leitores pensarem que ele se havia esquecido de encaminhar à gráfica o capítulo dos “prós”.
Silva Melo dedicou-se a uma pormenorizada investigação acerca dos mistérios deste e do outro mundo, para concluir que em nenhum dos mundos havia mistério algum. Américo Jacobina Lacombe, que o sucedeu na cadeira 19, não deixou de registrar no discurso de posse que, apesar do espírito incrédulo de seu antecessor, patente na exaltação da ciência como a única via da verdade, Antônio poderia servir de comprovação a um axioma de Elisabeth Leseur, segundo o qual não haveria ateu lógico. Para corroborar a afirmativa, Lacombe leu um trecho do livro mais conhecido de Silva Melo, O homem: “Fui invariavelmente levado à convicção de que os fantasmas não existem e que, portanto, não me devem amedrontar. Mas, apesar disso, continuo a ter medo deles./.../ Por essa simples razão nunca ousei dormir sozinho numa casa isolada, ou mesmo num quarto afastado de outros habitados. Eis a situação em toda sua ridícula simplicidade”.
Américo Jacobina Lacombe assumiu a cadeira de Antônio da Silva Melo em 2 de julho de 1974, a cinco dias de completar seu sexagésimo-quinto aniversário. Nascido no Rio de Janeiro, cresceu no interior de um estabelecimento de ensino - o célebre Jacobina -, mas a saúde frágil o levou a prosseguir os estudos em Belo Horizonte, onde conheceria João Guimarães Rosa. Regressou ao Rio, concluindo, em 1931, a Faculdade de Direito, sem que jamais viesse a exercer a advocacia. Professou por toda a existência a religião católica. Freqüentou o Centro Dom Vital, tornando-se amigo de Jackson de Figueiredo e do padre Leonel Franca. Com Alceu Amoroso Lima e outros intelectuais, foi um dos mentores do projeto de criação, no Rio de Janeiro, da Pontifícia Universidade Católica.
Eram nítidas, em Lacombe, as vocações para o serviço público, a pesquisa e o magistério. Em 1939, foi nomeado diretor da Casa de Rui Barbosa, instituição em que trabalharia até o fim de seus dias, transformando-a num avançado e prestigioso centro de documentação. Seu talento, porém, não se revelou apenas na inegável competência e operosidade com que administrou a Casa; estampou-se do mesmo modo na qualidade de sua produção ensaística, centrada na História do Brasil, e no desvelo com que se votou a um gigantesco empreendimento na área jurídica: a publicação das obras completas de Rui Barbosa, ainda em curso, com 151 volumes editados, vários deles enriquecidos com prefácio ou notas do próprio historiador. Também em prol da memória de Rui, colaborou nos Escritos e discursos seletos (1960), da editora José Aguilar. Em excelente estudo introdutório, Lacombe defendeu com vigor o estatuto especificamente literário da escrita de Rui, contra os que nela enxergavam apenas traços convencionais da retórica forense.
Américo Jacobina Lacombe foi membro e presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Coordenou a cadeira de História, no Instituto Rio Branco, do Itamarati, e dirigiu, a partir de 1957, em substituição a Fernando de Azevedo, a famosa coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, referência indispensável em qualquer bibliografia que se elabore sobre o nosso país.
Dentre o que legou, sem falarmos nos inúmeros estudos avulsos dedicados a Rui, destacam-se: o livro de estréia, de 1942, Um passeio pela História do Brasil; a Introdução ao estudo da História do Brasil, de 1974, contribuição de peso na área da metodologia historiográfica; e Afonso Pena e sua época, de 1986.
Faleceu no dia 7 de abril de 1993, ainda na presidência da Casa de Rui Barbosa. A pesquisadora Isabel Lustosa evocou-lhe a figura num delicado artigo intitulado “Um homem admirável”. Após ressaltar, em breves linhas, alguns episódios da vitoriosa trajetória intelectual e administrativa de Lacombe, concluía: “A grande obra de Américo Lacombe é a Fundação Casa de Rui Barbosa. Sua vida, dedicou-a inteira a ela. Justo é que seja a Casa Rui também o seu memorial. Que ali fiquem, para a formação das gerações futuras, seus livros, suas anotações, seus arquivos. Que a memória deste homem admirável não se perca dispersa em bibliotecas estranhas”. O voto aí formulado acabou por materializar-se, e hoje a fundação é a guardiã do arquivo de um homem que tanto trabalhou como guardião da memória de todos nós.
Marcos Almir Madeira sucedeu a Américo Jacobina Lacombe em 19 de novembro de 1993. No início da oração, saudou Niterói, cidade em que nascera no dia 21 de fevereiro de 1916. Após examinar, numa síntese feliz, a vida, a obra e a herança do antecessor, encerrou o discurso com uma atilada análise da contribuição de Rui Barbosa à vida pública brasileira - e o epílogo não foi arbitrário, pois, ao lado da francofilia, o jurista baiano sabidamente ocupava o mais elevado patamar das afinidades eletivas entre Marcos e Lacombe.
Observa-se uma coincidência na biografia dos quatro últimos titulares da cadeira 19: todos, a seu modo, se irmanam por terem-se consagrado à idealização e/ou à manutenção de um consistente e duradouro projeto cultural. Gustavo Barroso criou o Museu Histórico. Silva Melo, em terreno mais específico, fundou a Revista Brasileira de Medicina. Américo Jacobina Lacombe dirigiu a Casa de Rui Barbosa. E Marcos Almir Madeira tornou-se quase sinônimo de PEN Clube, associação que presidiu durante um quarto de século. A biografia de Marcos, todavia, ultrapassa tal referência, por mais fecunda que haja sido sua extensa gestão à frente desse grêmio literário.
Graduou-se em Direito no ano de 1939. Foi professor de Português, História e, a partir de 1950, de Sociologia, na atual Universidade Federal Fluminense - disciplina que introduziria, a partir de 1952, na Fundação Getúlio Vargas. Também lecionou Sociologia na PUC do Rio de Janeiro e no Instituto Rio Branco. Como educador, visitou, em missões oficiais, a Alemanha, a França, Israel e o Japão. Na qualidade de delegado regional do MEC, lutou pela preservação do mobiliário de Machado de Assis, hoje incorporado ao acervo da Academia Brasileira de Letras. Dirigiu a Casa de Oliveira Viana, de quem foi dileto amigo, e o Arquivo Público. Foi membro e orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Estreou em livro com A ironia de Machado de Assis e outros estudos, de 1944. Dentre seus títulos mais relevantes, encontram-se Homens de marca (1979) e Fronteira sutil entre a sociologia e a literatura (1993). Na publicação comemorativa do centenário da Academia Brasileira de Letras, foi autor do ensaio “Os cientistas sociais”. A bibliografia de Marcos recobre os domínios da sociologia, da pedagogia, da crítica literária e dos estudos biográficos. Deixou inéditas suas memórias, a serem publicadas por esta Casa tão logo se conclua o estabelecimento do texto. As reminiscências, com o título de Na província e na corte, privilegiam, num saboroso relato, a fase “na província” (entenda-se: em Niterói) de Marcos, mas também alcançam, sem o desdobramento que a morte houve por mal obstar, seu período carioca.
Almir Madeira era um orador refratário ao dó-de-peito retórico; exatamente por isso, lograva ser mais insinuante e persuasivo. Nascido no mesmo dia e mês de outro notável conferencista da Academia - Coelho Neto -, Marcos refugava a hipérbole, na fluidez de um tom que sabia, desde o início, cativar a platéia. Exibia uma satisfação quase voluptuosa pela palavra precisa. A elegância e a perspicácia que afloravam de seus discursos talvez tenham empalidecido a apreciação dos méritos – ofuscados pelo próprio brilho do orador - de sua obra escrita. É verdade que, a rigor, alguns textos de Marcos parecem mais sugerir a audição do que a leitura, de tal modo neles transparecem as marcas de uma prazerosa oralidade, sustentada por uma leveza estilística a convidar, ou quase a convocar, o público a deixar-se envolver pelos meandros de sua bem urdida sintaxe. Conforme se pode verificar nos ensaios que dedicou a Machado de Assis, Lúcio de Mendonça, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Augusto dos Anjos, Afonso Arinos, Antonio Candido, entre vários outros, a palavra de Almir Madeira, na tribuna ou no livro, era sempre portadora de uma lucidez ao mesmo tempo amena e aguda.
A esses dotes se adicionavam a sólida cultura de base francófila e o gosto pelas incursões ao domínio histórico. Sirva de exemplo a reabilitação que empreendeu do ideário de Oliveira Viana, ao comprovar, nas manifestações tardias do pensador, a ultrapassagem de posições racistas abonadas em seus primeiros trabalhos. É ler Oliveira Viana - vulnerabilidades da crítica (1999), onde, baseado em ampla documentação, Madeira reavalia o legado do amigo e “quase” mestre. Apesar da amizade e da reiterada admiração por Viana, Marcos insistia em declarar-se um cultor não-ortodoxo do sociólogo, sobretudo no que tangia às considerações acerca do papel do estado. À veia liberal de Marcos soava excessivo o incremento da autoridade estatal propugnado por Oliveira Viana, adepto de uma política exercida por um poder antes unitário e aglutinador do que federativo e descentralizado.
Se eu tivesse de caracterizar Marcos Almir Madeira como um personagem da literatura brasileira, não hesitaria em recorrer ao machadiano Conselheiro Aires, pela sutileza, pelo trato lhano, pelo tédio à controvérsia. Isso não o impedia, se necessário, de ser incisivo, mas sempre no diapasão da polidez, zeloso de que as discordâncias não derivassem para o destempero. Leia-se, por exemplo, sua conferência sobre Manuel Bandeira, em que elogia o poeta pela simplicidade e pela veia comunicativa, em oposição à vertente do que denomina “modernismo predatório”. Num tom algo acima do que lhe era habitual situam-se as veementes conclusões do seu discurso de posse, quando, respeitando embora a grandeza de Rui Barbosa, distingue duas faces no pensamento do jurista: uma, digamos, mais formalista, e outra próxima da realidade concreta do país. Sem tergiversações, Marcos afirma: “Já me vou cansando, Senhores, dessa liberdade apenas declarada, declamada, verbal, a produzir uma democracia de superfície, formal/.../ O Estado liberal teria de ser, antes de tudo, um Estado justo. E, mais do que nunca, este é o problema capital do Estado brasileiro na hora que passa/.../ Já não me entusiasma o artífice da Constituição de 1891, de costas para a realidade social em carne viva; Constituição omissa, demissionária, perfeita na técnica jurídica, mas lastimável na visão (ou não-visão) do homem brasileiro, da problemática do meio e suas urgências./.../desse Rui eu de fato me despedi. Reverencio sinceramente a outro/.../ que pregava a ampliação dos benefícios judiciais do habeas corpus, o que libelava o arbítrio, os desmandos/.../ ficou-me também profundamente aquele outro, que magnificamente projetou a renovação de métodos e processos de ensino nos três níveis, madrugando, em 1882, para uma filosofia e nova política de educação”.
Conheci Marcos em 1994, e logo desenvolvemos uma amizade fundada em instantânea e recíproca simpatia. Com seu voto e apoio, fui eleito para o PEN Clube em 1995, na vaga do professor José Carlos Lisboa. Segundo informação de suas filhas, Cristina e Maria Ângela Madeira, as memórias paternas se iniciam, precisamente, pela ida de Marcos à minha residência, no âmbito da tradicional visita que o presidente efetuava à casa de escritor recém-eleito, a fim de comunicar-lhe o resultado do pleito. Posteriormente, por diversas vezes atendi a seus convites para proferir palestras na sede da instituição, à Praia do Flamengo, onde me recebia com a afabilidade, a fidalguia e o bom-humor que lhe eram característicos. Tratava-se de um refinado mestre-de-cerimônias, impecável na condução dos cursos e mesas-redondas que desde 1978 promovia no seu PEN Clube. Mais do que apenas cordial, adjetivo com que muitos o caracterizavam, Marcos foi, essencialmente, um homem conciliador, pronto a acolher o outro e a ele predispor-se.
Em uma ou outra ocasião, cheguei a divisar no seu semblante um leve traço de melancolia, e me perguntava se, no fundo, não faria parte da personalidade de Marcos Almir Madeira uma inextinguível nostalgia de galã, ou galanteador, da belle-époque, a vincar, no seu rosto risonho, o rictus elegíaco de um ser desconfortável frente ao recrudescimento da incivilidade que permeia o campo das práticas cotidianas.
A última vez que o vi ainda lúcido foi, como de hábito, num evento literário: tratava-se do lançamento do romance Damas de copas, de Cecília Costa, numa livraria do Leblon. Achei-o tenso, abatido. Na manhã seguinte, entraria em coma - duas semanas após haver perdido Duhilia, a companheira de toda a existência. Pouco depois, um livro de minha autoria foi contemplado com o Prêmio Nacional do PEN Clube. Comentei com suas filhas que para mim a maior dádiva seria receber das mãos de Marcos o diploma da vitória. Não foi possível. Acabei recebendo-o da arqueóloga Maria Beltrão, sua substituta na presidência do Clube. O destino, num lance de dura sabedoria, fez Marcos, romanticamente, morrer de amor. Ao despedir-se da mulher, despedia-se da vida.
Para a cadeira 19, foi eleito com 19 votos num dia 19. Tomou posse noutro dia 19. E morreu no Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 2003. Cabe-me a honra de sucedê-lo.
Recordamos Marcos Almir Madeira, Américo Jacobina Lacombe, Antônio da Silva Melo, Gustavo Barroso, dom Silvério Gomes Pimenta, Alcindo Guanabara e Joaquim Caetano da Silva. De certo modo, cada cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras ritualiza o enlace do passado - os antecessores - com o futuro, na figura de um novo acadêmico. Nesse mecanismo, regido pela inexorabilidade de Chronos (afinal, somos todos provisórios operários da palavra na construção de alguma “interminável música”), não poderia omitir os elos do presente. Saúdo Affonso Arinos de Melo Franco, Alberto da Costa e Silva, Alberto Venancio Filho, Alfredo Bosi, Ana Maria Machado, Antonio Olinto, Ariano Suassuna, Arnaldo Niskier, Candido Mendes de Almeida, Carlos Heitor Cony, Carlos Nejar, Celso Furtado, Cicero Sandroni, Eduardo Portella, Evanildo Bechara, Evaristo de Moraes Filho, Pe. Fernando Bastos de Ávila, Ivan Junqueira, Ivo Pitanguy, João de Scantimburgo, João Ubaldo Ribeiro, José Murilo de Carvalho, José Sarney, Josué Montello, Lêdo Ivo, Lygia Fagundes Telles, Marco Maciel, Marcos Vilaça, Miguel Reale, Moacyr Scliar, Murilo Melo Filho, Nélida Piñon, Oscar Dias Corrêa, Paulo Coelho, Sábato Magaldi, Sergio Corrêa da Costa, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha e Zélia Gattai. São estes, hoje, os escritores, os expoentes, que, com seus feitos e obras, elevam o nome e respaldam a força e a respeitabilidade de uma instituição a que, nesta noite de 6 de agosto de 2004, eu me orgulho de associar: uma Casa que simboliza o retrato instantâneo e multifacetado da cultura brasileira, numa vigorosa demonstração de polifonia e diversidade.
Por fim, de volta ao começo. Referi-me, no início, à obra mais importante de Joaquim Caetano da Silva, L’Oyapoc et l’Amazone, que tratava dos limites entre o Brasil e a Guiana. Um dos últimos livros de Marcos Almir Madeira se denomina Fronteira sutil entre a sociologia e a literatura. Coincidentemente, o patrono e o derradeiro ocupante da cadeira 19 se debruçaram sobre limites e fronteiras.
Não interpreto os limites como região de plácido descompromisso entre o lá e o cá, mas como um tenso território em cujas bordas vivenciamos o risco e o fascínio do duplo. Dissolvida a confortável ilusão da unidade, aprendemos a confrontar-nos com o território do que desconhecemos. Percorrer o intervalo não é abrigar-se entre dois espaços, é expor-se a ambos. É aceitar o assédio e o aceno de tudo aquilo que, em nós ou fora de nós, se recusa à apropriação apaziguadora da identidade.
Assim gostaria de entrar na Academia Brasileira de Letras: entendendo-a como fronteira franqueada ao livre trânsito de todas as temporalidades. De um lado, receptáculo de nossas mais fundas, atávicas, heranças; de outro, passagem para a paisagem do novo. Neste discurso, balizado por dois poetas, a primeira palavra, acolhendo o passado, foi de Cecília Meireles. Que a última seja de Carlos Drummond de Andrade: “Ó vida futura! nós te criaremos”.