Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Nélida Piñon > 120 anos da Academia Brasileira de Letras - Uma utopia Brasileira

120 anos da Academia Brasileira de Letras - Uma utopia Brasileira

A Academia Brasileira de Letras tem inscrito em seu frontispício marcantes signos de grandeza.  Ela imanta-nos  com o mesmo mistério que ronda a arte  literária e os grandes criadores. No entanto, considerada hoje a mais ilustre instituição brasileira, ela surgiu no cenário pátrio em 1897 com comovente modéstia.  Nasceu pobre, carente da ajuda alheia. Mas, já então,  solidamente  amparada pelo  verbo  oriundo de notáveis intelectuais. De  figuras lendárias que, vocacionadas para  filtrar com  magia poética as impurezas do cotidiano, souberam  dar  início a  uma saga que completa hoje, no dia 20 de julho,  120 anos.

Sua gênese originou-se da especulação intelectual, da imaginação criativa de seus mentores, jovens e velhos. Da  ambição que  o próprio Machado de Assis realçou  em seu discurso inaugural, pregando ser ela um  impulso para fortalecer a nova  empreitada.

Assim, neste dia 20 de julho de 1897, às 20.00 horas, com  condições de tempo que  ignoro,  em uma das salas do edifício do Pedagogium, na rua do Passeio, reuniram-se, em consonância com os requisitos da glória que cada qual requeria em seu secreto corpo celestial, sob a  presidência de Machado de Assis, aclamado para o cargo  meses antes, os seguintes acadêmicos que deram início a esta extraordinária jornada:

Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Silva Ramos, Inglês de Souza, Araripe Júnior, Arthur Azevedo, Barão de Loreto, Filinto de Almeida, Graça Aranha, Guimarães Passos, José Veríssimo, Olavo Bilac, Sylvio Romero, Teixeira de Mello, Urbano Duarte e Visconde de Taunay.

Eram ao todo 16 brasileiros em um  elenco de 40, havendo os faltosos justificado suas ausências.

No cenário que espelhava um Rio de Janeiro precariamente urbano, coube a Machado de Assis,  presidente, proferir uma alocução ao declarar aberta a sessão, a Rodrigo Octávio, 1 secretário,  ler a Memória Histórica dos trabalhos preliminares para a instalação da entidade e a Joaquim Nabuco, secretário-geral, fazer o discurso inaugural.

A comunidade intelectual que ali enunciava seus propósitos acadêmicos, cercou-se  desde o início  de palavras  propícias a  narrar  um acontecimento  com envergadura para  ganhar no futuro  ampla e inatacável credibilidade histórica. E isto porque eram seres visionários, comprometidos com esta espécie de epopeia que redime uma nação carente de provas públicas. E dispostos em não esmorecer diante do sonho de construir em conjunto uma pátria diversa da que até então fora cruel e negligente no que dizia respeito a um projeto  cultural.  Razão pela qual labutavam em sua defesa com  denodo juvenil .

Não há registro fotográfico, ao menos do meu conhecimento,  que aclare os detalhes da  cerimonia. De como se apresentaram os cavalheiros, mas certamente vergavam trajes escuros, pesados, cartola, polainas, em obediência aos padrões ditados por Paris.   Os documentos confirmam, no entanto, pormenores que ditam o proceder da época. Tais como quando, dois anos depois da inauguração, a Academia, ainda  sem teto próprio,  mas  zelosa das práticas sociais, sucumbe à eficácia do  protocolo, que tem por fim impedir exasperações e vaidades inúteis, e se engalana com  flores para acolher festivamente o autor francês  Anatole France, de visita ao Brasil. E passará a incluir em seu estatuto moral  as   leis da cortesia.

A sessão histórica encerrou-se às 22.00 horas, em seguida  liberados todos  para o  regresso às casas.  Não houve brindes, ninguém  ergueu  uma  taça de champagne francês.

Lúcio de Mendonça era um republicano apaixonado, que soube se conciliar com os monarquistas, a fim de dar andamento à sonhada Academia de Letras. Secundado por Medeiros de Albuquerque, por Inglês de Sousa, redator dos nossos estatutos que jamais foram reformados, e de outros companheiros,  julgavam possível dotar o Brasil de uma Academia consonante com as existentes  na Europa, epicentro  cultural.   Iludiam-se com a crença  de que   germinasse  em breve tal  projeto no  seio de uma  cidade desvalidada, mal tratada como o Rio de Janeiro nos finais do século XIX, talhada, no entanto,  para emular com a  Paris de  Richelieu que fundara em 1635, sob o reinado de Luis XIII,  a Academia Francesa. O mesmo poderoso cardeal que  amava os gatos a ponto de lhes deixar parte de seus bens, e deliciava-se  em perseguir  os mosqueteiros da rainha na Place  de Vosges.

Com seu espírito aguerrido, o jovem Lucio de Mendonca  lograra convencer  Machado de Assis e Joaquim Nabuco, senhores de  sólidos mandatos intelectuais, da necessidade do Brasil  contar  com uma instituição  capacitada para  reproduzir alguns dos valores da Academia Francesa que ostentava as efígies de Corneille e Racine.  Sobretudo após a derrocada  do Império, do ilustrado  Pedro II, que deixara em sua esteira  feitos relevantes. Um regime sucedido por uma República proclamada por monarquistas destituídos de  registros   progressistas e cuja  súbita alternância de poder propiciou mais tarde, entre outros fracassos, a fratricida guerra de Canudos  que resultou, em seu  epílogo, quando do colapso final do Arraial, na hedionda  degola  de quase três mil sertanejos, tidos como  rebeldes. O genocídio propiciou a criação de OS SERTÕES,  obra prima de  Euclides da Cunha, um autor da linha de frente da Academia Brasileira de Letras. Integrado à  linhagem  de escritores que confiavam no talento verbal para narrar a história que devesse ser um dia  contada, sempre que se  confiasse na onipotência do verbo capaz de injetar  substancia aos  enredos panorâmicos. A confiança, enfim, na escrita que é a confissão de fé do escritor.   

Assim foi que a Academia correspondeu na fase inicial aos  ideais confiados a  Machado, Nabuco e  Mendonça.

Filiada à máquina do pensamento brasileiro que respondia  pela arte e pela criação, a Academia Brasileira de Letras,   construção humana, mostrou-se cedo aberta às críticas que lhe faziam consonantes com os modelos estéticos e ideológicos então em pauta.  E em concordância com tal conduta, não se quis insondável. Em todos os momentos  franqueou  portas,  arquivos,  entranhas, a fim do Brasil avaliar em toda extensão o  valor de suas irradiações  culturais que ganhavam robustez nas  frutíferas áreas da produção social.

Não temeu que o futuro, sempre indiscreto, desvelasse   porções ardilosas  encerradas no casulo da história e revogasse por conseguinte, suas cláusulas. Sempre soubera enfrentar os dissabores havidos. Afinal a Academia surgira circunscrita a  um país pouco afeito à cultura, tolhido pelas garras do analfabetismo, pela tragédia de uma  população de  alforriados. Uma sociedade  rural constituída de donos de glebas e de almas. E que  conquanto   ascendera a uma  republica que deveria forçar mudanças sociais, guardava em  seu bojo condutas incompatíveis com a absorção de quesitos libertários e progressistas. Um modo de ser registrado, por sinal,  nos romances da época, regados a  resquícios autoritários e escravocratas.

O  Brasil que moldura  a Academia Brasileira de Letras de então, a despeito de incursionar por zonas com  certo  avanço social, era um acampamento acorrentado a um regime eivado de injustiças. Daí  a ânsia da instituição e de outros enclaves culturais  firmarem    um códice, um estatuto, uma espécie de constituição que imprimissem na psique brasileira  marcas civilizatórias longe ainda  de  se firmarem.  

Como consequência, na sequência dos fatos que se acumulavam, provindos das transições políticas, urgia que   criadores e pensadores descrevessem o Brasil . Fincassem a mente no  chão rudimentar do país a fim de  apreender  os timbres dos lamentos, dos queixumes, dos clamores, do linguajar dos nativos, dos imigrantes, da matéria sonora vinda do norte, do sul, do nordeste, do centro-oeste, dos ribeirinhos, dos embarcados nos itas, dos caminhantes andrajosos, dos retirantes agarrados  aos  pau de araras. A seiva verbal, oriunda  do desespero, prestes a ganhar  expressão e inovar a  língua.

Para tantos galardões, a memória é esteio. Assim vivemos de prontidão para não esquecer. Não apagar pedaços mínimos que sejam desta Casa e do Brasil. E para dar prosseguimento a tal  esforço, recordo que somos  292 entre  vivos e mortos. Um alentado conjunto que imortaliza esta  Casa .

A gesta vivida pela Academia Brasileira de Letras impede lacunas, distrações. Reclama dose diária de memória para enriquecer seu cabedal. Assim, guardiões da memória, acionamos  as que fenecem. Convencidos de que a função do  passado é ser  contemporâneo.  É  pinçar as sobras e  fazê-las   brotar.

Ao ganhar o diploma acadêmico em 1989, enveredei pelas intimidades da Academia Brasileira de Letras no afã de escrutinar o seu passado. Uma ação da qual redundou meu fascínio por uma saga a merecer encômios,  reavaliação histórica.

Para aferir sua trajetória, defrontei com  extensos registros.  Os acadêmicos que por aqui passaram jamais viveram à margem do Brasil, foram ativos nos cuidados com a Casa até o final. São  merecedores de fazer parte da fantasia coletiva, de integrarem o imaginário brasileiro.

Ao  auscultar tal   passado, para obter bons resultados, fingi   ter comigo o capacete de Hermes com o qual via o  mundo sem ser vista. Conheci memórias reais e outras inventadas.  Ficcionista que sou, servidora da  estética,  acostumei-me a  contrariar  os ditames canônicos. Assim posso duvidar das motivações havidas no presente e no passado. E  imaginar, como se ocorressem hoje, os solilóquios remanescentes de Machado, as frases de Nabuco em defesa da causa negra, tendo como  aliado o acadêmico  José do Patrocínio, o  dolorido aspecto de  Lúcio de Mendonça na  iminência de  concretizar sua amorosa utopia. 

Embalada pela fantasia coletiva, autorizo-me a conhecer Carolina no recesso do lar, e penso se terá ela persuadido o marido a  aceitar a incumbência de vir a presidir a  nova academia.

Igualmente concebo que classe de emoções assaltaram os  fundadores ao  repartirem as frações do poder.  O quanto  Nabuco foi  de verdade  altruísta na sua estima e admiração por Machado, se   também ele padecia dos  ímpetos de  glória.

Outros fundadores, contudo,  sem lhes citar os nomes, tinham o coração atravessado pela seta oxidada da inveja. É possível  supor que  regressavam aos respectivos  lares, talvez   desprovidos de ardor, com dissimulada amargura. E outros ainda talvez fossem  vítimas dos dilemas comuns aos escritores, de se verem divididos entre  as lides intelectuais,  escassamente compensadoras, e a realidade agônica de uma cidade desfavorecida de oportunidades. Como resultado, alguns deixaram em aberto  a vaga de patrono que lhes correspondia indicar. Enquanto outros propuseram nomes despojados  de interesse, para  não lhes fazer sombra.

Uma grei que sabia ser difícil o sonho como aquele vicejar na pobreza, embora tivessem a convicção de estar erigindo um edifício cultural previsto para durar. Admirável exemplo que nos serve de advertência  de que a riqueza excessiva e os gastos imensuráveis minam a alma das instituições.  Reduzem-lhes o tempo de duração. .                         

O Brasil é parte dos meus mistérios, assim também a   Academia. Ela me supre de admiração. Dai rastrear, encantada, seus  cenários e  episódios. O propósito é  montar suas histórias e torna-las verossímeis. É observar também  a marcha inexorável de um e outro da Casa que se  habilitou  ao troféu  literário.   

Falha, no entanto, quem analisa a Academia Brasileira de Letras sob o prisma da contemporaneidade e deixa à parte sua origem. E isto porque a instituição nos supera com sua extraordinária aventura existencial. Está crivada de valiosas  pegadas provindas dos  acadêmicos  que ganharam  carnalidade e espírito, e sobreviveram nos documentos e na lembrança popular. A todos  a Academia confiou seu destino e eles não  falharam.

A função precípua, contudo, dos  que aqui ingressam, talvez devesse  ser retratar o Brasil.  Escavar o chão da pátria  como o fez Heinrich Schliemann, em 1873, na agonia de provar que a Tróia, de Homero, não fora uma invenção literária. Transferir para o além, se necessário, as obras que trouxeram à tona a  força poética do Brasil.

Uma escrita  que disseca o mundo  e nada deixou extraviar. E isto porque excursiona pelas etnias, pelos  imigrantes, pelos  rituais sincréticos, pelas  fusões linguísticas seiscentistas, indígenas, negras, pelas reminiscências do tupi-guarani, a língua geral de Anchieta.  Pelas vias da mestiçagem que nos outorgou o  bronzeado anímico e a carnalidade desmedida, a aliança do  espúrio e do ambíguo, a carnavalização dos sentimentos e da linguagem. O   pulsar vertiginoso  do coração.

Somos e fomos muitos os que leram e criaram nas entrelinhas dos  nossos  certificados de identidade. Seres de cultura que  resistiram em crer que o  final da existência ofuscava  a luz da escritura  lavrada  com esplendor e miséria .

A glória que  anima nossa vaidade é pretexto  para darmos brilho  a esta  instituição. Assim, enquanto aguardar quem lhe ajuíze os  méritos, o acadêmico ajusta-se ao rigor da palavra na esperança de atingir o cume da criação. Observa a eclosão da  paixão antes de inclui-la na   escritura.

A escrita é uma  tradição da Casa. Os grandes criadores  aqui zelaram pelo fervor e pela iconoclasta de sua pluma. Moviam-se segundo a fé posta na arte literária.

Até o fim foram conscientes da  estranheza  que    se sente quando está em curso o  dolorido processo criador.  Mas como poderiam eles apascentar as ovelhas combalidas do seu  ofício ? 

Desde os seus primórdios a Academia Brasileira de Letras assumiu seu papel paladino de defender a  língua portuguesa e a literatura brasileira. Sob a hegemonia desta língua que se mantem íntegra no Brasil desde 1500, esta instituição reconhece seus efeitos multiplicadores no desenvolvimento do Brasil. Enquanto pugnava por afugentar da língua os traços malignos da barbárie cultural.

Esta delegação veio-nos de 1897, por desígnio dos fundadores que assumiram a  tarefa de fazer a língua  florescer  ao alcance de todos. Uma decisão que não concedia titularidade, mas mero  usufruto simbólico,  sem animo para censurar  a língua,  impor-lhe regras, disciplina.

Tal  compromisso assumido na sessão inaugural, ganhou  força  estatutária.  Sem a própria língua suspeitar  o que faziam com ela   aqueles senhores  de fraque e chapéu.  Um ato, no entanto, advindo do desvelo, pois como não venerar uma língua que conjugava à perfeição o sagrado e o profano? Um instrumento apto  para quem fala e para quem escreve. Fala e escrita que são duas pontas de partida e de chegada da experiência  humana. Aquela   língua que se requer destemida para descer ao patíbulo da  sua intimidade criadora.

Nos cabe cuidar dos  bens herdados. Os intangíveis que sobrevivem fincados no coração desta Casa. A  língua, a literatura, a memória, os livros.  

Estamos no Petit Trianon desde 1923,  graças ao governo francês e a atuação devotada do presidente  Afrânio Peixoto. E estendemos nossos  domínios além  fronteira, aqui ao lado, para  ampliar as atividades  culturais, por iniciativa do notável  presidente  Austregésilo de Athayde.

É no interior destas dependências que vivemos e recolhemos as instâncias da história  literária,  científica, jurídica, clerical,  política, dos patronos, dos fundadores, dos membros efetivos até esta data.

A Academia foi, em seu transcurso,  um mirante privilegiado do qual se  acedia às cidadelas do poder, aos veios ainda no fundo da terra.  Ouvinte de intrigas e conspirações, a instituição contou, em contra peso, com a prudência e a ousadia de uma liderança habilitada a preservar sua reputação e  honra.

O olhar  vigilante de seus acadêmicos  abastecia-se dos livros e do cotidiano.  Éramos arcaicos e modernos ao mesmo tempo, como é mister.   Daí convertermos a matéria humana, que alavanca a arte, em ficção, poesia, ensaio. Insuflados todos pelas  metáforas que ocupam o  âmago da  linguagem.      

Sem que se abstivessem jamais de participar da vida do Brasil.    

 

O   Pince-nez  de Machado

Dispomos de livros, quadros e objetos de origem pessoal, procedentes de  acadêmicos como  Olavo Bilac e Manuel Bandeira.

Cada objeto viveu à sombra do dono até o seu desenlace. Inanimados, despediram-se das casas onde foram seguramente felizes, e transferidos para a Academia Brasileira de Letras. Aqui ajudam a revelar que vida tiveram antes.

Espalham-se pelas bibliotecas e pelas salas. Ao vê-los inertes na aparência, compunjo-me, procuro saber que arrebato se escondeu em cada um deles. O  quadro de Marília de Dirceu, a mulher amada pelo poeta da  Inconfidência Mineira, pintado por Manoel Santiago, foi doado pelo acadêmico  Getúlio Vargas na sessão do dia 24 de agosto de 1944.  Nada sei do  vínculo havido entre o  presidente da república  e a dama circundada por uma aura de   mistério.

Estranho é ter-se instalado nas nossas dependências, sem explicação satisfatória, a chave da casa da mesma Marília. Destaco a lembrança mundana do cardápio do banquete oferecido a Machado de Assis em 1889,  a evidência palpável de um festim do qual  o autor se absteve quase de  frequentar  no futuro.

Machado tinha afeição pelo lar. Ou o amor era por  Carolina ? O fato é que embelezou as paredes do Cosme Velho com razoável coleção de quadros que lhe iam sendo regalados. E indago, curiosa, o que motivou o presidente possuir uma  litografia com o rosto de Flaubert.

Aqui está o quadro a óleo que Bernardinelli pintou do autor  em 1905, três anos antes de sua morte. Nele estampa-se a severidade de um brasileiro que ascendeu ao firmamento e se descuidou da vida após a  morte recente da esposa .

A  Sala Macha de Assis, no primeiro andar do Petit Trianon,  registra como o  fundador da Academia Brasileira de Letras  , de origem modesta,  soube absorver  as excelências de outras artes além da escrita.  Exemplo deste apreço são os  pertences  que ainda  restaram  dele, à margem do verbo poderoso, que, observados,  ganham transcendência.

O  pince nez de uso diário, ali exposto após sua morte em 1908,  perturba a quem se iluda em enxergar o mundo através dos olhos que  o autor lhe empreste.  

Observo o  pince-nez e sofro o  impulso de limpar os cristais. A amada peça com a qual Machado escrevia esmiuçando com ironia e perspicácia a besta humana. Talvez tendo a seus pés o cachorrinho que amava. O mesmo pince-nez com o qual   apreciava os muitos  quadros seus que tinham a mulher como  tema,  em geral com  pose nada  beatífica.

Este pince-nez arfa na Academia Brasileira de Letras. Felizmente alguém o retirou do seu rosto  salvando-o de seguir com Machado de Assis  para a eternidade.                               

A Academia Brasileira de Letras nunca esteve isenta de preconceitos. Seus desacertos, contudo, afinaram-se com os pecados cometidos pela sociedade brasileira. Assim as descriminações que assombravam o Brasil, refletiam-se em nós também.

Joaquim Nabuco, porém, quebra o rigor implacável do racismo no Brasil elitista ao chamar   Machado de Assis de  ateniense. E ao dar relevo ao mal estar que a questão negra suscitava em todas as esferas brasileiras, ele perturba aos que pretenderam, quem sabe, considerar sua qualificação de racista.

E como seria possível supor que o  abolicionista da estirpe de Nabuco usasse semelhante  epíteto para ironizar justo  a quem julgava o maior escritor brasileiro. A  alça-lo  à categoria de cidadão de Atenas sem lhe assegurar o direito  de parlamentar no ágora grego, em encontro fortuito com Platão ou Sócrates, em igualdade de condições?  Afinal que outro branco de toda a população brasileira, na perspectiva de Nabuco, teria merecido o Ramo de Carvalho, colhido no túmulo do  poeta Tasso que ele lhe envia de Roma como  regalo ?  ( via Graça Aranha ).

A mulher, por sua vez, sempre rejeitada pela  história literária, não foi  incluída entre  os membros  da Academia Brasileira de Letras.  Julia Lopes de Almeida, grande escritora, consta que foi  cogitada para a instituição, mas foi preterida pelo marido, Felipe       de Almeida.   

Foram necessários 80 anos para Rachel de Queiroz chegar a tribuna e pronunciar seu  discurso acadêmico. Quanto a mim,  por  respeito à verdade dos fatos, esclareço que  fui eleita para  presidir a  Academia Brasileira de Letras em 1996, no  ano do seu  I  Centenário, e fazer o discurso oficial, por meio dos   votos unânimes dos acadêmicos.  E hoje, ao celebrarmos os 120 anos de existência, faço o discurso oficial graças a um presidente que também conheceu  de perto a gravidade  da discriminação.  

O acadêmico João do Rio, brilhante cronista, dandy, homossexual, frequentador do reduto boêmio da Lapa,  superou  obstáculos intransponíveis ao ser  admitido na Academia Brasileira de Letras em 1910.  Foi ele quem estreou em sua posse  o fardão acadêmico que   Afrânio Peixoto  instituiu.  

Fomos aedos no passado e seguimos sendo. Atentos à preservação da continuidade narrativa brasileira e pautados pelo verbo e pela crença poética que consubstanciam a arte e o pensamento.

Sob o primado da  liberdade, decidimos que não vale seguir a lei que   expurga a fabulação criadora  e  martiriza a arte.

Fomos, porém, sensíveis ao que o Brasil produziu antes do advento da Academia. Decididos sempre a amalgamar  a obra  fruto do presente, com a criação que nos antecedeu. Conjugar   estéticas em busca de  novos  rumos. Sem fazer  falta ir longe para  admirar o   caráter insurgente de  Gregório de Matos, recordamos  José de Alencar,  um dos mentores da identidade brasileira, que se tornou   patrono da cadeira número 23  da Academia Brasileira de Letras, pertencente a Machado de Assis. E que o autor carioca, ao   elegê-lo, apontou-o  como criador    fundacional da literatura brasileira.

Afinal a  causa  indigenista,   de Alencar, impulsionara  uma identidade que nos faltava e deu passo ao rápido processo de  adesão às suas ideias.  Dai que  nas épocas subsequentes uma  sucessão de  experimentos literários  ensejassem  fusões estéticas  em cujo cerne reverberava a nossa mestiçagem.  

As benesses iluminadas do escritor cearense se alastrariam  entre   membros da nova Academia, envolvidos com as  claves interpretativas indispensáveis para os alicerces  brasileiros.

Apesar de suas  posturas doutrinárias, Alencar e Machado Não se  apresentavam como   intérpretes do Brasil. E nem o universo intelectual, em qualquer tempo, concedeu-lhes o título que   teriam  merecido. No entanto eles exerceram o papel de analistas de uma realidade  que só o  universo romanesco  poderia  prover  com pistas e chaves capazes de aclarar o que havia de obscuro e   sinistro nos porões da alma nacional. E deram respaldo a    convicções estéticas indispensáveis para a condução de  narrativas de intrincada urdidura.   

No caso de Machado é incompreensível que se lhe neguem   a  categoria  de intérprete, quando ele, exímio regente do discurso narrativo,   lancetou  a hierarquia social vigente e fez sangrar uma personagens cuja índole  refletia  quem éramos em qualquer tempo.

Ambos cunharam em suas páginas uma tipologia física e verbal  ajustável ao Brasil que emergia cobrando representação e  sustentação estética autônomas.  

Homem de meados do século XIX, José de Alencar divulgava a mensagem nacionalista, cobrando a presença de outros  universos literários,  como  o indigenista,   para se incorporarem às percepções  estéticas inovadoras. Um apelo a estimular o surgimento dos  signos da brasilidade que  se   sobrepusessem aos  localismos estreitos. Uma  maneira peculiar, enfim, de observar o Brasil, de aferir a sua   língua.

Ao optar   pelo universo indígena, Alencar  reaviva a antiga adesão dos  intelectuais franceses do século XVI pela mesma causa. Um ideário com o qual comungaram Montaigne, Étienne de Boétie, Montesquieu  e, mais tarde, Rousseau. Uma questão a qual o acadêmico Afonso Arinos, com  seu livro “ O índio brasileiro e a revolução francesa”,  aderiu com fervor intelectual. O mesmo brasileiro que cria a primeira lei anti-racista em 3 de julho de 1951, e que leva seu nome.   

Machado de Assis, por sua vez, realçou certos  preceitos de Alencar, presentes  no romance O Guarani. Aponta como  alegoria das origens brasileiras, a  cena final  em que  o índio  Peri, na ânsia de proteger a branca  Ceci do rio caudaloso – a deposita sobre a folha da palmeira e proclama

    “ Tu viverás “ 

Um alarde emitido em um  país que se  encontrava naqueles anos  em estado de grave fermentação política, econômica, social,  similar aos dramáticos  tempos atuais do Brasil.

Semelhantes considerações literárias  se sediam no livro de José de Alencar : COMO E PORQUE SOU ROMANCISTA. E no ensaio: INSTINTO DA NACIONALIDADE, de Machado de Assis, ambos   pilares  da brasilidade.    

No seu  opúsculo,  Alencar traça  o roteiro sentimental e intelectual propício ao  autor brasileiro. Uma autoria  que  Machado     complementa no seu  documento, realçando os benefícios  estéticos havidos na literatura brasileira graças ao tácito  “ Acordo  Universal “ obtido  daqueles  escritores vinculados com a vida do país, a realidade, a natureza,    a paisagem continental, a educação, a língua. Uma admoestação sua  quase  de teor  moral, a  provocar a colheita de princípios que ampliassem  as linhas mestras  do    pensamento nacional.

Ao advogarem ambos escritores pela validade de  uma  língua de expressão brasileira,  tese que mais tarde  atrairia os modernistas de 22, não poderiam adivinhar que estas noções   exerceriam  favorável ingerência  no  porvir estético da  Academia Brasileira de Letras.   E  serviriam de esteio para  a  instituição se  tornar  um embrião  de talentos, uma  plataforma irradiadora da criação que pleiteava reconhecimento. Espécie de receptáculo a fomentar  movimentos literários subsequentes, a acolher o sopro renovador dos talentos que afloravam.  Quase todos, por sinal,  filhos desta Casa.    

                           Amigos,

Em 1945, Rodrigo Octavio Filho, em seu belo discurso de posse,  ajuizou que a Academia começara a envelhecer. Ele acertou. Ultrapassamos de muito 1950, o ano que Machado julgou um milagre alcançar. Mas aqui estamos, envelhecendo como se fôramos jovens. E seguimos dando guarida às obras que humanizam o Brasil. Sob o resguardo de uma língua que nos salvava. Sem a qual,  e sem a literatura brasileira,  de nada serviria a nossa Casa.

                      

                               Despedida

Graças ao gesto amigo do presidente Domicio Proença, retorno a essa tribuna vinte anos depois de haver aqui proferido o discurso que celebrou o I Centenário. E agradeço que sua generosidade e sua elegância quiseram me proporcionar de novo as mesmas emoções sentidas naquele augusto Centenário.

Vencido  este  período, reafirmo minha fé e admiração  pela  bravura intelectual dos  membros desta Casa, que se empenharam ao longo de diversas gerações em assegurar a colheita do verbo e da inteligência. Em reativar as utopias herdadas.  

Sigo acreditando que cada brasileiro na morada de sua alma,  clama pelo retorno dos pedaços da sua memória que  lhe  foram   extorquidos ao longo da vida. E que embora nos falte o poder de lhe trazer de volta o  que se perdeu  deus sabe  onde, esta Academia cumpriu com a tarefa de preservar a memória, a língua, e a literatura, tudo o que nos faz quem somos.

Despeço-me reverenciando os 292 acadêmicos que fizeram desta instituição a Casa do Brasil. E convencida de que enquanto subsistir o verbo poético,  a liberdade, o engenho da  criação, o Brasil não perece. E Machado de Assis seguirá vivo entre nós.   

Obrigada.

Acadêmico relacionado : 
Nélida Piñon