A Academia Brasileira de Letras tem inscrito em seu frontispício marcantes signos de grandeza. Ela imanta-nos com o mesmo mistério que ronda a arte literária e os grandes criadores. No entanto, considerada hoje a mais ilustre instituição brasileira, ela surgiu no cenário pátrio em 1897 com comovente modéstia. Nasceu pobre, carente da ajuda alheia. Mas, já então, solidamente amparada pelo verbo oriundo de notáveis intelectuais. De figuras lendárias que, vocacionadas para filtrar com magia poética as impurezas do cotidiano, souberam dar início a uma saga que completa hoje, no dia 20 de julho, 120 anos.
Sua gênese originou-se da especulação intelectual, da imaginação criativa de seus mentores, jovens e velhos. Da ambição que o próprio Machado de Assis realçou em seu discurso inaugural, pregando ser ela um impulso para fortalecer a nova empreitada.
Assim, neste dia 20 de julho de 1897, às 20.00 horas, com condições de tempo que ignoro, em uma das salas do edifício do Pedagogium, na rua do Passeio, reuniram-se, em consonância com os requisitos da glória que cada qual requeria em seu secreto corpo celestial, sob a presidência de Machado de Assis, aclamado para o cargo meses antes, os seguintes acadêmicos que deram início a esta extraordinária jornada:
Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Silva Ramos, Inglês de Souza, Araripe Júnior, Arthur Azevedo, Barão de Loreto, Filinto de Almeida, Graça Aranha, Guimarães Passos, José Veríssimo, Olavo Bilac, Sylvio Romero, Teixeira de Mello, Urbano Duarte e Visconde de Taunay.
Eram ao todo 16 brasileiros em um elenco de 40, havendo os faltosos justificado suas ausências.
No cenário que espelhava um Rio de Janeiro precariamente urbano, coube a Machado de Assis, presidente, proferir uma alocução ao declarar aberta a sessão, a Rodrigo Octávio, 1 secretário, ler a Memória Histórica dos trabalhos preliminares para a instalação da entidade e a Joaquim Nabuco, secretário-geral, fazer o discurso inaugural.
A comunidade intelectual que ali enunciava seus propósitos acadêmicos, cercou-se desde o início de palavras propícias a narrar um acontecimento com envergadura para ganhar no futuro ampla e inatacável credibilidade histórica. E isto porque eram seres visionários, comprometidos com esta espécie de epopeia que redime uma nação carente de provas públicas. E dispostos em não esmorecer diante do sonho de construir em conjunto uma pátria diversa da que até então fora cruel e negligente no que dizia respeito a um projeto cultural. Razão pela qual labutavam em sua defesa com denodo juvenil .
Não há registro fotográfico, ao menos do meu conhecimento, que aclare os detalhes da cerimonia. De como se apresentaram os cavalheiros, mas certamente vergavam trajes escuros, pesados, cartola, polainas, em obediência aos padrões ditados por Paris. Os documentos confirmam, no entanto, pormenores que ditam o proceder da época. Tais como quando, dois anos depois da inauguração, a Academia, ainda sem teto próprio, mas zelosa das práticas sociais, sucumbe à eficácia do protocolo, que tem por fim impedir exasperações e vaidades inúteis, e se engalana com flores para acolher festivamente o autor francês Anatole France, de visita ao Brasil. E passará a incluir em seu estatuto moral as leis da cortesia.
A sessão histórica encerrou-se às 22.00 horas, em seguida liberados todos para o regresso às casas. Não houve brindes, ninguém ergueu uma taça de champagne francês.
Lúcio de Mendonça era um republicano apaixonado, que soube se conciliar com os monarquistas, a fim de dar andamento à sonhada Academia de Letras. Secundado por Medeiros de Albuquerque, por Inglês de Sousa, redator dos nossos estatutos que jamais foram reformados, e de outros companheiros, julgavam possível dotar o Brasil de uma Academia consonante com as existentes na Europa, epicentro cultural. Iludiam-se com a crença de que germinasse em breve tal projeto no seio de uma cidade desvalidada, mal tratada como o Rio de Janeiro nos finais do século XIX, talhada, no entanto, para emular com a Paris de Richelieu que fundara em 1635, sob o reinado de Luis XIII, a Academia Francesa. O mesmo poderoso cardeal que amava os gatos a ponto de lhes deixar parte de seus bens, e deliciava-se em perseguir os mosqueteiros da rainha na Place de Vosges.
Com seu espírito aguerrido, o jovem Lucio de Mendonca lograra convencer Machado de Assis e Joaquim Nabuco, senhores de sólidos mandatos intelectuais, da necessidade do Brasil contar com uma instituição capacitada para reproduzir alguns dos valores da Academia Francesa que ostentava as efígies de Corneille e Racine. Sobretudo após a derrocada do Império, do ilustrado Pedro II, que deixara em sua esteira feitos relevantes. Um regime sucedido por uma República proclamada por monarquistas destituídos de registros progressistas e cuja súbita alternância de poder propiciou mais tarde, entre outros fracassos, a fratricida guerra de Canudos que resultou, em seu epílogo, quando do colapso final do Arraial, na hedionda degola de quase três mil sertanejos, tidos como rebeldes. O genocídio propiciou a criação de OS SERTÕES, obra prima de Euclides da Cunha, um autor da linha de frente da Academia Brasileira de Letras. Integrado à linhagem de escritores que confiavam no talento verbal para narrar a história que devesse ser um dia contada, sempre que se confiasse na onipotência do verbo capaz de injetar substancia aos enredos panorâmicos. A confiança, enfim, na escrita que é a confissão de fé do escritor.
Assim foi que a Academia correspondeu na fase inicial aos ideais confiados a Machado, Nabuco e Mendonça.
Filiada à máquina do pensamento brasileiro que respondia pela arte e pela criação, a Academia Brasileira de Letras, construção humana, mostrou-se cedo aberta às críticas que lhe faziam consonantes com os modelos estéticos e ideológicos então em pauta. E em concordância com tal conduta, não se quis insondável. Em todos os momentos franqueou portas, arquivos, entranhas, a fim do Brasil avaliar em toda extensão o valor de suas irradiações culturais que ganhavam robustez nas frutíferas áreas da produção social.
Não temeu que o futuro, sempre indiscreto, desvelasse porções ardilosas encerradas no casulo da história e revogasse por conseguinte, suas cláusulas. Sempre soubera enfrentar os dissabores havidos. Afinal a Academia surgira circunscrita a um país pouco afeito à cultura, tolhido pelas garras do analfabetismo, pela tragédia de uma população de alforriados. Uma sociedade rural constituída de donos de glebas e de almas. E que conquanto ascendera a uma republica que deveria forçar mudanças sociais, guardava em seu bojo condutas incompatíveis com a absorção de quesitos libertários e progressistas. Um modo de ser registrado, por sinal, nos romances da época, regados a resquícios autoritários e escravocratas.
O Brasil que moldura a Academia Brasileira de Letras de então, a despeito de incursionar por zonas com certo avanço social, era um acampamento acorrentado a um regime eivado de injustiças. Daí a ânsia da instituição e de outros enclaves culturais firmarem um códice, um estatuto, uma espécie de constituição que imprimissem na psique brasileira marcas civilizatórias longe ainda de se firmarem.
Como consequência, na sequência dos fatos que se acumulavam, provindos das transições políticas, urgia que criadores e pensadores descrevessem o Brasil . Fincassem a mente no chão rudimentar do país a fim de apreender os timbres dos lamentos, dos queixumes, dos clamores, do linguajar dos nativos, dos imigrantes, da matéria sonora vinda do norte, do sul, do nordeste, do centro-oeste, dos ribeirinhos, dos embarcados nos itas, dos caminhantes andrajosos, dos retirantes agarrados aos pau de araras. A seiva verbal, oriunda do desespero, prestes a ganhar expressão e inovar a língua.
Para tantos galardões, a memória é esteio. Assim vivemos de prontidão para não esquecer. Não apagar pedaços mínimos que sejam desta Casa e do Brasil. E para dar prosseguimento a tal esforço, recordo que somos 292 entre vivos e mortos. Um alentado conjunto que imortaliza esta Casa .
A gesta vivida pela Academia Brasileira de Letras impede lacunas, distrações. Reclama dose diária de memória para enriquecer seu cabedal. Assim, guardiões da memória, acionamos as que fenecem. Convencidos de que a função do passado é ser contemporâneo. É pinçar as sobras e fazê-las brotar.
Ao ganhar o diploma acadêmico em 1989, enveredei pelas intimidades da Academia Brasileira de Letras no afã de escrutinar o seu passado. Uma ação da qual redundou meu fascínio por uma saga a merecer encômios, reavaliação histórica.
Para aferir sua trajetória, defrontei com extensos registros. Os acadêmicos que por aqui passaram jamais viveram à margem do Brasil, foram ativos nos cuidados com a Casa até o final. São merecedores de fazer parte da fantasia coletiva, de integrarem o imaginário brasileiro.
Ao auscultar tal passado, para obter bons resultados, fingi ter comigo o capacete de Hermes com o qual via o mundo sem ser vista. Conheci memórias reais e outras inventadas. Ficcionista que sou, servidora da estética, acostumei-me a contrariar os ditames canônicos. Assim posso duvidar das motivações havidas no presente e no passado. E imaginar, como se ocorressem hoje, os solilóquios remanescentes de Machado, as frases de Nabuco em defesa da causa negra, tendo como aliado o acadêmico José do Patrocínio, o dolorido aspecto de Lúcio de Mendonça na iminência de concretizar sua amorosa utopia.
Embalada pela fantasia coletiva, autorizo-me a conhecer Carolina no recesso do lar, e penso se terá ela persuadido o marido a aceitar a incumbência de vir a presidir a nova academia.
Igualmente concebo que classe de emoções assaltaram os fundadores ao repartirem as frações do poder. O quanto Nabuco foi de verdade altruísta na sua estima e admiração por Machado, se também ele padecia dos ímpetos de glória.
Outros fundadores, contudo, sem lhes citar os nomes, tinham o coração atravessado pela seta oxidada da inveja. É possível supor que regressavam aos respectivos lares, talvez desprovidos de ardor, com dissimulada amargura. E outros ainda talvez fossem vítimas dos dilemas comuns aos escritores, de se verem divididos entre as lides intelectuais, escassamente compensadoras, e a realidade agônica de uma cidade desfavorecida de oportunidades. Como resultado, alguns deixaram em aberto a vaga de patrono que lhes correspondia indicar. Enquanto outros propuseram nomes despojados de interesse, para não lhes fazer sombra.
Uma grei que sabia ser difícil o sonho como aquele vicejar na pobreza, embora tivessem a convicção de estar erigindo um edifício cultural previsto para durar. Admirável exemplo que nos serve de advertência de que a riqueza excessiva e os gastos imensuráveis minam a alma das instituições. Reduzem-lhes o tempo de duração. .
O Brasil é parte dos meus mistérios, assim também a Academia. Ela me supre de admiração. Dai rastrear, encantada, seus cenários e episódios. O propósito é montar suas histórias e torna-las verossímeis. É observar também a marcha inexorável de um e outro da Casa que se habilitou ao troféu literário.
Falha, no entanto, quem analisa a Academia Brasileira de Letras sob o prisma da contemporaneidade e deixa à parte sua origem. E isto porque a instituição nos supera com sua extraordinária aventura existencial. Está crivada de valiosas pegadas provindas dos acadêmicos que ganharam carnalidade e espírito, e sobreviveram nos documentos e na lembrança popular. A todos a Academia confiou seu destino e eles não falharam.
A função precípua, contudo, dos que aqui ingressam, talvez devesse ser retratar o Brasil. Escavar o chão da pátria como o fez Heinrich Schliemann, em 1873, na agonia de provar que a Tróia, de Homero, não fora uma invenção literária. Transferir para o além, se necessário, as obras que trouxeram à tona a força poética do Brasil.
Uma escrita que disseca o mundo e nada deixou extraviar. E isto porque excursiona pelas etnias, pelos imigrantes, pelos rituais sincréticos, pelas fusões linguísticas seiscentistas, indígenas, negras, pelas reminiscências do tupi-guarani, a língua geral de Anchieta. Pelas vias da mestiçagem que nos outorgou o bronzeado anímico e a carnalidade desmedida, a aliança do espúrio e do ambíguo, a carnavalização dos sentimentos e da linguagem. O pulsar vertiginoso do coração.
Somos e fomos muitos os que leram e criaram nas entrelinhas dos nossos certificados de identidade. Seres de cultura que resistiram em crer que o final da existência ofuscava a luz da escritura lavrada com esplendor e miséria .
A glória que anima nossa vaidade é pretexto para darmos brilho a esta instituição. Assim, enquanto aguardar quem lhe ajuíze os méritos, o acadêmico ajusta-se ao rigor da palavra na esperança de atingir o cume da criação. Observa a eclosão da paixão antes de inclui-la na escritura.
A escrita é uma tradição da Casa. Os grandes criadores aqui zelaram pelo fervor e pela iconoclasta de sua pluma. Moviam-se segundo a fé posta na arte literária.
Até o fim foram conscientes da estranheza que se sente quando está em curso o dolorido processo criador. Mas como poderiam eles apascentar as ovelhas combalidas do seu ofício ?
Desde os seus primórdios a Academia Brasileira de Letras assumiu seu papel paladino de defender a língua portuguesa e a literatura brasileira. Sob a hegemonia desta língua que se mantem íntegra no Brasil desde 1500, esta instituição reconhece seus efeitos multiplicadores no desenvolvimento do Brasil. Enquanto pugnava por afugentar da língua os traços malignos da barbárie cultural.
Esta delegação veio-nos de 1897, por desígnio dos fundadores que assumiram a tarefa de fazer a língua florescer ao alcance de todos. Uma decisão que não concedia titularidade, mas mero usufruto simbólico, sem animo para censurar a língua, impor-lhe regras, disciplina.
Tal compromisso assumido na sessão inaugural, ganhou força estatutária. Sem a própria língua suspeitar o que faziam com ela aqueles senhores de fraque e chapéu. Um ato, no entanto, advindo do desvelo, pois como não venerar uma língua que conjugava à perfeição o sagrado e o profano? Um instrumento apto para quem fala e para quem escreve. Fala e escrita que são duas pontas de partida e de chegada da experiência humana. Aquela língua que se requer destemida para descer ao patíbulo da sua intimidade criadora.
Nos cabe cuidar dos bens herdados. Os intangíveis que sobrevivem fincados no coração desta Casa. A língua, a literatura, a memória, os livros.
Estamos no Petit Trianon desde 1923, graças ao governo francês e a atuação devotada do presidente Afrânio Peixoto. E estendemos nossos domínios além fronteira, aqui ao lado, para ampliar as atividades culturais, por iniciativa do notável presidente Austregésilo de Athayde.
É no interior destas dependências que vivemos e recolhemos as instâncias da história literária, científica, jurídica, clerical, política, dos patronos, dos fundadores, dos membros efetivos até esta data.
A Academia foi, em seu transcurso, um mirante privilegiado do qual se acedia às cidadelas do poder, aos veios ainda no fundo da terra. Ouvinte de intrigas e conspirações, a instituição contou, em contra peso, com a prudência e a ousadia de uma liderança habilitada a preservar sua reputação e honra.
O olhar vigilante de seus acadêmicos abastecia-se dos livros e do cotidiano. Éramos arcaicos e modernos ao mesmo tempo, como é mister. Daí convertermos a matéria humana, que alavanca a arte, em ficção, poesia, ensaio. Insuflados todos pelas metáforas que ocupam o âmago da linguagem.
Sem que se abstivessem jamais de participar da vida do Brasil.
O Pince-nez de Machado
Dispomos de livros, quadros e objetos de origem pessoal, procedentes de acadêmicos como Olavo Bilac e Manuel Bandeira.
Cada objeto viveu à sombra do dono até o seu desenlace. Inanimados, despediram-se das casas onde foram seguramente felizes, e transferidos para a Academia Brasileira de Letras. Aqui ajudam a revelar que vida tiveram antes.
Espalham-se pelas bibliotecas e pelas salas. Ao vê-los inertes na aparência, compunjo-me, procuro saber que arrebato se escondeu em cada um deles. O quadro de Marília de Dirceu, a mulher amada pelo poeta da Inconfidência Mineira, pintado por Manoel Santiago, foi doado pelo acadêmico Getúlio Vargas na sessão do dia 24 de agosto de 1944. Nada sei do vínculo havido entre o presidente da república e a dama circundada por uma aura de mistério.
Estranho é ter-se instalado nas nossas dependências, sem explicação satisfatória, a chave da casa da mesma Marília. Destaco a lembrança mundana do cardápio do banquete oferecido a Machado de Assis em 1889, a evidência palpável de um festim do qual o autor se absteve quase de frequentar no futuro.
Machado tinha afeição pelo lar. Ou o amor era por Carolina ? O fato é que embelezou as paredes do Cosme Velho com razoável coleção de quadros que lhe iam sendo regalados. E indago, curiosa, o que motivou o presidente possuir uma litografia com o rosto de Flaubert.
Aqui está o quadro a óleo que Bernardinelli pintou do autor em 1905, três anos antes de sua morte. Nele estampa-se a severidade de um brasileiro que ascendeu ao firmamento e se descuidou da vida após a morte recente da esposa .
A Sala Macha de Assis, no primeiro andar do Petit Trianon, registra como o fundador da Academia Brasileira de Letras , de origem modesta, soube absorver as excelências de outras artes além da escrita. Exemplo deste apreço são os pertences que ainda restaram dele, à margem do verbo poderoso, que, observados, ganham transcendência.
O pince nez de uso diário, ali exposto após sua morte em 1908, perturba a quem se iluda em enxergar o mundo através dos olhos que o autor lhe empreste.
Observo o pince-nez e sofro o impulso de limpar os cristais. A amada peça com a qual Machado escrevia esmiuçando com ironia e perspicácia a besta humana. Talvez tendo a seus pés o cachorrinho que amava. O mesmo pince-nez com o qual apreciava os muitos quadros seus que tinham a mulher como tema, em geral com pose nada beatífica.
Este pince-nez arfa na Academia Brasileira de Letras. Felizmente alguém o retirou do seu rosto salvando-o de seguir com Machado de Assis para a eternidade.
A Academia Brasileira de Letras nunca esteve isenta de preconceitos. Seus desacertos, contudo, afinaram-se com os pecados cometidos pela sociedade brasileira. Assim as descriminações que assombravam o Brasil, refletiam-se em nós também.
Joaquim Nabuco, porém, quebra o rigor implacável do racismo no Brasil elitista ao chamar Machado de Assis de ateniense. E ao dar relevo ao mal estar que a questão negra suscitava em todas as esferas brasileiras, ele perturba aos que pretenderam, quem sabe, considerar sua qualificação de racista.
E como seria possível supor que o abolicionista da estirpe de Nabuco usasse semelhante epíteto para ironizar justo a quem julgava o maior escritor brasileiro. A alça-lo à categoria de cidadão de Atenas sem lhe assegurar o direito de parlamentar no ágora grego, em encontro fortuito com Platão ou Sócrates, em igualdade de condições? Afinal que outro branco de toda a população brasileira, na perspectiva de Nabuco, teria merecido o Ramo de Carvalho, colhido no túmulo do poeta Tasso que ele lhe envia de Roma como regalo ? ( via Graça Aranha ).
A mulher, por sua vez, sempre rejeitada pela história literária, não foi incluída entre os membros da Academia Brasileira de Letras. Julia Lopes de Almeida, grande escritora, consta que foi cogitada para a instituição, mas foi preterida pelo marido, Felipe de Almeida.
Foram necessários 80 anos para Rachel de Queiroz chegar a tribuna e pronunciar seu discurso acadêmico. Quanto a mim, por respeito à verdade dos fatos, esclareço que fui eleita para presidir a Academia Brasileira de Letras em 1996, no ano do seu I Centenário, e fazer o discurso oficial, por meio dos votos unânimes dos acadêmicos. E hoje, ao celebrarmos os 120 anos de existência, faço o discurso oficial graças a um presidente que também conheceu de perto a gravidade da discriminação.
O acadêmico João do Rio, brilhante cronista, dandy, homossexual, frequentador do reduto boêmio da Lapa, superou obstáculos intransponíveis ao ser admitido na Academia Brasileira de Letras em 1910. Foi ele quem estreou em sua posse o fardão acadêmico que Afrânio Peixoto instituiu.
Fomos aedos no passado e seguimos sendo. Atentos à preservação da continuidade narrativa brasileira e pautados pelo verbo e pela crença poética que consubstanciam a arte e o pensamento.
Sob o primado da liberdade, decidimos que não vale seguir a lei que expurga a fabulação criadora e martiriza a arte.
Fomos, porém, sensíveis ao que o Brasil produziu antes do advento da Academia. Decididos sempre a amalgamar a obra fruto do presente, com a criação que nos antecedeu. Conjugar estéticas em busca de novos rumos. Sem fazer falta ir longe para admirar o caráter insurgente de Gregório de Matos, recordamos José de Alencar, um dos mentores da identidade brasileira, que se tornou patrono da cadeira número 23 da Academia Brasileira de Letras, pertencente a Machado de Assis. E que o autor carioca, ao elegê-lo, apontou-o como criador fundacional da literatura brasileira.
Afinal a causa indigenista, de Alencar, impulsionara uma identidade que nos faltava e deu passo ao rápido processo de adesão às suas ideias. Dai que nas épocas subsequentes uma sucessão de experimentos literários ensejassem fusões estéticas em cujo cerne reverberava a nossa mestiçagem.
As benesses iluminadas do escritor cearense se alastrariam entre membros da nova Academia, envolvidos com as claves interpretativas indispensáveis para os alicerces brasileiros.
Apesar de suas posturas doutrinárias, Alencar e Machado Não se apresentavam como intérpretes do Brasil. E nem o universo intelectual, em qualquer tempo, concedeu-lhes o título que teriam merecido. No entanto eles exerceram o papel de analistas de uma realidade que só o universo romanesco poderia prover com pistas e chaves capazes de aclarar o que havia de obscuro e sinistro nos porões da alma nacional. E deram respaldo a convicções estéticas indispensáveis para a condução de narrativas de intrincada urdidura.
No caso de Machado é incompreensível que se lhe neguem a categoria de intérprete, quando ele, exímio regente do discurso narrativo, lancetou a hierarquia social vigente e fez sangrar uma personagens cuja índole refletia quem éramos em qualquer tempo.
Ambos cunharam em suas páginas uma tipologia física e verbal ajustável ao Brasil que emergia cobrando representação e sustentação estética autônomas.
Homem de meados do século XIX, José de Alencar divulgava a mensagem nacionalista, cobrando a presença de outros universos literários, como o indigenista, para se incorporarem às percepções estéticas inovadoras. Um apelo a estimular o surgimento dos signos da brasilidade que se sobrepusessem aos localismos estreitos. Uma maneira peculiar, enfim, de observar o Brasil, de aferir a sua língua.
Ao optar pelo universo indígena, Alencar reaviva a antiga adesão dos intelectuais franceses do século XVI pela mesma causa. Um ideário com o qual comungaram Montaigne, Étienne de Boétie, Montesquieu e, mais tarde, Rousseau. Uma questão a qual o acadêmico Afonso Arinos, com seu livro “ O índio brasileiro e a revolução francesa”, aderiu com fervor intelectual. O mesmo brasileiro que cria a primeira lei anti-racista em 3 de julho de 1951, e que leva seu nome.
Machado de Assis, por sua vez, realçou certos preceitos de Alencar, presentes no romance O Guarani. Aponta como alegoria das origens brasileiras, a cena final em que o índio Peri, na ânsia de proteger a branca Ceci do rio caudaloso – a deposita sobre a folha da palmeira e proclama
“ Tu viverás “
Um alarde emitido em um país que se encontrava naqueles anos em estado de grave fermentação política, econômica, social, similar aos dramáticos tempos atuais do Brasil.
Semelhantes considerações literárias se sediam no livro de José de Alencar : COMO E PORQUE SOU ROMANCISTA. E no ensaio: INSTINTO DA NACIONALIDADE, de Machado de Assis, ambos pilares da brasilidade.
No seu opúsculo, Alencar traça o roteiro sentimental e intelectual propício ao autor brasileiro. Uma autoria que Machado complementa no seu documento, realçando os benefícios estéticos havidos na literatura brasileira graças ao tácito “ Acordo Universal “ obtido daqueles escritores vinculados com a vida do país, a realidade, a natureza, a paisagem continental, a educação, a língua. Uma admoestação sua quase de teor moral, a provocar a colheita de princípios que ampliassem as linhas mestras do pensamento nacional.
Ao advogarem ambos escritores pela validade de uma língua de expressão brasileira, tese que mais tarde atrairia os modernistas de 22, não poderiam adivinhar que estas noções exerceriam favorável ingerência no porvir estético da Academia Brasileira de Letras. E serviriam de esteio para a instituição se tornar um embrião de talentos, uma plataforma irradiadora da criação que pleiteava reconhecimento. Espécie de receptáculo a fomentar movimentos literários subsequentes, a acolher o sopro renovador dos talentos que afloravam. Quase todos, por sinal, filhos desta Casa.
Amigos,
Em 1945, Rodrigo Octavio Filho, em seu belo discurso de posse, ajuizou que a Academia começara a envelhecer. Ele acertou. Ultrapassamos de muito 1950, o ano que Machado julgou um milagre alcançar. Mas aqui estamos, envelhecendo como se fôramos jovens. E seguimos dando guarida às obras que humanizam o Brasil. Sob o resguardo de uma língua que nos salvava. Sem a qual, e sem a literatura brasileira, de nada serviria a nossa Casa.
Despedida
Graças ao gesto amigo do presidente Domicio Proença, retorno a essa tribuna vinte anos depois de haver aqui proferido o discurso que celebrou o I Centenário. E agradeço que sua generosidade e sua elegância quiseram me proporcionar de novo as mesmas emoções sentidas naquele augusto Centenário.
Vencido este período, reafirmo minha fé e admiração pela bravura intelectual dos membros desta Casa, que se empenharam ao longo de diversas gerações em assegurar a colheita do verbo e da inteligência. Em reativar as utopias herdadas.
Sigo acreditando que cada brasileiro na morada de sua alma, clama pelo retorno dos pedaços da sua memória que lhe foram extorquidos ao longo da vida. E que embora nos falte o poder de lhe trazer de volta o que se perdeu deus sabe onde, esta Academia cumpriu com a tarefa de preservar a memória, a língua, e a literatura, tudo o que nos faz quem somos.
Despeço-me reverenciando os 292 acadêmicos que fizeram desta instituição a Casa do Brasil. E convencida de que enquanto subsistir o verbo poético, a liberdade, o engenho da criação, o Brasil não perece. E Machado de Assis seguirá vivo entre nós.
Obrigada.