A VOZ DE LONGE E DE PERTO
Sra. Nélida Piñon,
as criações poéticas se assemelham às criações biológicas. Ambas trazem o emblema da noite, ostentam o sinal da escuridão em que foram elaboradas. Nelas não se pode separar a carne e o espírito, o movimento dos corpos e a passagem dos pensamentos.
Esses frutos do silêncio e do amor, do sussurro e do segredo, abrigam um mistério original: o de sua própria geração e nascimento. Jamais teremos uma resposta segura para a existência dos homens e das criações humanas, a não ser que atendam a uma necessidade do mundo. Só a vida explica a vida. Tudo o que nasce, fruto do cálculo ou da paixão, tem a sua razão de ser. No universo em que vivemos, nada é excessivo ou exorbitante. Engastado no tumulto e desordem aparentes, tudo obedece a uma ordem secreta e tem a sua justificação na própria circunstância de existir, nessa interminável respiração de coisas e seres vivos que nos rodeia e converte a cada um de nós num protagonista do aqui e do agora.
Como romancista, pertenceis à linhagem dos que escutam essa longa respiração do mundo. Em vossa obra, ouve-se a voz vinda de longe, do escuro território que só a linguagem tem o poder de iluminar, dos passados escondidos no passado, da distante geografia maternal. Foi, decerto, esse enraizamento físico e espiritual que fez prosperar os rumores que vos apontaram como escritora galega naturalizada brasileira.
A propalação jornalística, produzida depois que fostes eleita, representaria, se verdadeira, uma colisão estatutária com esta Casa, extremamente ciosa da naturalidade de seus sócios efetivos – embora a Academia Francesa, modelo da nossa, já tenha estabelecido o primado da expressão literária sobre a nacionalidade, ao eleger, em tempos recentes, o norte-americano Julien Green e a belga Marguerite Yourcenar.
Apresso-me a dizer que nenhum de nós cometeria a indelicadeza de pedir a vossa certidão de nascimento, pois isso nos faria conhecer as vossas primaveras acumuladas. No reino da polidez em que ora ingressais, com o vosso sorriso misterioso, a idade das senhoras acadêmicas é um segredo que guardamos a sete chaves. Só o revelamos, e assim mesmo premidos por uma comemoração inevitável, quando elas completam oitenta anos.
Não deveis temer que a sombra de alguma contestação retardatária tisne a claridade deste instante, que tanto iluminastes com o vosso fervoroso discurso de recepção. Há testemunhas oculares de vossa infância em Vila Isabel. E aí está a vossa obra, uma das mais genuínas já escritas em nosso País e em nossa Língua, para enxotar as imaginações desabridas dos que vos viram, menina, sofrendo galhardamente os grandes frios e as grandes neves da Galícia, ou asseguram que as vossas constantes viagens ao exterior não vos levam a congressos de escritores, e, sim, constituem meras inspeções de rotina às terras vastas e aos solares vetustos que, em boa hora, herdastes de vossos antepassados.
Aliás, atrevo-me a sustentar que a culpa dessas fantasias, que vos transformam numa personagem de romance de Nélida Piñon, reside em vosso nome, volátil como uma libélula, com o acento agudo que o alça a firmamentos longínquos, e o til que, no sobrenome, o devolve abruptamente a uma penhascosa imensidão terrestre.
Sois nossa. Hoje, esta Casa vos recebe para sempre. E nós, e os que nos sucederem, haveremos de guardar-vos como os vossos ancestrais guardavam os daguerreótipos familiares.
Vós, que escrevestes A República dos Sonhos e tendes uma preocupação obsessiva pelos laços de sangue e os conflitos ocultos ou ostensivos da vida familiar e acreditais na aristocracia do povo – desse povo que conta as histórias intermináveis que tanto amais – vós passais agora a pertencer a uma nova família.
Como em vossa obra sob o signo das filiações e dos parentescos, das gêneses e sucessões, do conúbio do profano com o sagrado, do humano com o divino, essa nova família não se compõe apenas de seus figurantes visíveis, que ora vos rodeiam, com os seus uniformes que contam também a história da passagem dos anos e das ilusões. Nela se incluem os que não podem ser vistos pelos nossos olhos nem tocados pelas nossas mãos.
Na Cadeira 30, que passais a ocupar, asila-se, como em todas as outras, a memória tênue que atravessa os anos e nos devolve a um passado que é quase sempre cinza e esquecimento.
Com os seus romances Hóspede e Lar, Pardal Mallet, o vosso Patrono, foi, ao lado de Júlio Ribeiro e Aluísio Azevedo, um dos introdutores do Naturalismo no Brasil. No campo social, ergueu um estandarte revolucionário, como o comprova o seu livro Pelo Divórcio!, no qual prega a medicina da separação definitiva para os casais desavindos.
Pedro Rabelo, o Fundador e primeiro ocupante da Cadeira 30, escolheu-o para Patrono. Mas quem foi Pedro Rabelo? Sabemos apenas que foi um dos figurantes literários da segunda metade do século XIX e viveu desembaraçadamente o processo estético em que o Romantismo, o Parnasianismo e o Realismo ao mesmo tempo se entrechocavam e confluíam, produzindo essas obras híbridas bebidas em várias fontes e movimentos e amparadas na diversidade psicológica das experiências particulares. Em sua bagagem, figuram Ópera Lírica, um livro de versos, e A Alma Alheia, um volume de contos. E é tudo. E esse tudo que é nada, ou quase nada, rodeia o seu sucessor, o gramático Heráclito Graça.
Esta Academia nos faz conviver com o esquecimento e a má memória dos homens. Pardal Mallet, Pedro Rabelo e Heráclito Graça são nomes alvejados pelo olvido. Mas nós os guardamos, e a evocação periódica, nos instantes festivos como agora, ou quando em nossas reuniões semanais nos rendemos ao prestígio das efemérides, coincide com o nosso propósito de duração ou mesmo com a ambiciosa imortalidade que, às vezes, dura menos que um voo de pássaro ou um suspiro de amor.
A propósito de Heráclito Graça, permito-me contar um episódio que lhe atribuem. Em artigo de morte, o velho professor é visitado por um antigo aluno, que se desculpa por não ter vindo mais cedo. Diz-lhe: “Não lhe visitei antes, querido mestre, porque estava viajando.” Terminada a visita, Heráclito Graça, com os olhos rasos de lágrimas, volta-se para a sua mulher e quase viúva e se queixa, num desapontamento quase póstumo: “Eles não aprendem nunca.”
A Heráclito Graça, aplicado a corrigir os erros gramaticais dos homens, sucedeu Antônio Austregésilo, munido da ambição mais vasta de consertar os desvios e distúrbios dos corpos e das mentes.
Fundador de uma escola brasileira de Neurologia, que se destacou pela sua irradiação e o reconhecimento fervoroso dos discípulos, Antônio Austregésilo se debruçou, em sua faina de grande médico e professor universitário, sobre o universo das lesões cerebrais. Na madureza científica, avançou pelo caminho da investigação do inconsciente humano, estudando essas lesões invisíveis que não marcam os corpos, transitando num território que é o da Psiquiatria. A nova e última posição assumida pela sua pedagogia prestigiosa e empenho curativo exprimia uma visão totalizadora da Medicina, centrada na Clínica Geral e no espetáculo dos corpos inseparáveis das almas.
O antecessor de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira procurava achar no inconsciente a chave perdida capaz de abrir uma porta quase sempre fechada – e essa procura palpita nos seus livros, escritos num enrodilhante estilo art nouveau.
Há uma similitude entre a atuação dos neurologistas, psiquiatras e psicanalistas e o nosso e vosso ofício. Também interrogamos os males e desastres que afligem esse estranho animal que é o homem, o qual, desde o início do mundo, atrai a atenção desmedida dos seus semelhantes dotados de linguagem artística.
Diariamente, sentamo-nos à nossa mesa de trabalho e continuamos a tarefa, interrompida na véspera, de desvendar os segredos e as misérias dos filhos de nossa imaginação – dessas criaturas feitas de palavras que têm o poder de sobreviver aos indivíduos de carne e osso. Na noite de papel que é a noite dos poetas e romancistas, emergem os sonhos, as lembranças, as imaginações desabridas, os enlaces na escuridão, as tramas inconfessáveis, as sombras dos que tinham prometido jamais retornar à vida nem mesmo sob a forma de personagens de romance e, contudo, vêm exibir-nos os seus corpos e almas lesionados e nos obrigam a ouvir o que antes era silêncio e segredo inconfessável. E assim se fazem os romances e os poemas; e os romances que são poemas. E assim se compõem essas histórias que espelham as paixões humanas – essas paixões que só a morte tem o poder e o dever de extinguir.
À arte imemorial de contar a história do homem, do seu amor ou do seu ódio, de suas ambições e desatinos, de sua passagem pela região fronteiriça, onde a verdade se une à mentira, conferistes o timbre de um claro e inequívoco selo pessoal.
À vossa vocação de escritor, que se perde nos dias de vossa infância em Vila Isabel – ou numa longínqua aldeia espanhola, segundo os informantes talvez invejosos de vossa notoriedade e principalmente de vosso sorriso enigmático – à vossa vocação soubestes aliar as virtudes de uma pertinaz e apaixonada aprendizagem intelectual.
Ao dom genuíno, acrescentais a persistência do trabalho continuado, carregando pedras como se fossem plumas. E, com a vossa entrada para esta Casa, é uma nova geração de romancistas que dá o primeiro passo rumo à nossa companhia. Essa revoada de nomes e obras ostenta, como as anteriores, o carimbo histórico que regeu a sua emergência.
O sistema de governo imposto em 1964 imprimiu às vozes que então surgiam uma dicção particular. Os temas da perseguição, do exílio, da violência, da existência absurda, da liberação sexual, da evasão indeterminada, da afirmação feminina projetaram-se, compondo um repertório formal e psicológico. A alegoria, a paráfrase, a paródia e a narrativa fantástica sublinharam o propósito de uma criação literária geminada a criações já existentes, como é o caso, por exemplo, do vosso romance A Força do Destino, uma ficção que nos remete à famosa ópera de Verdi. A esses elementos cabe acrescentar a utilização da comicidade e da ironia.
Não sem razão, Franz Kafka se tornou um dos autores mais lidos e imitados (e até saqueados) nesse período. A vida de incontáveis cidadãos se converteu em verdadeiro processo que dispensava, em sua escura tramitação, as evidências da inocência ou da culpa. O conflito entre a cidade e a selva, o arcaico e o moderno, o mítico e o racional, já versado por Euclides da Cunha em Os Sertões, voltou à cena literária e artística.
Em romances e documentários da mais variada casta, estendeu-se a violência do Estado e do poder contra o indivíduo. Novos olhos enxergaram o horror das grandes cidades inchadas e favelizadas, que exibem, sob os seus viadutos e pontes, uma população de párias: os apartheid brasileiros que a miséria dos campos empurra para a miséria ainda maior das metrópoles impiedosas.
Em longas terras, exilados da mais diversa extração intelectual ou ideológica entoaram as suas novas canções do exílio.
O índio, engrandecido pelo romantismo mitificador de Gonçalves Dias e depois devolvido à realidade pelo Roquette-Pinto de Rondônia, voltou a fazer a sua aparição na Literatura Brasileira, mas desta vez como uma raça saqueada pela marcha das multinacionais na selva ofendida.
A voz das minorias sexuais se faz ouvir: a voz dos corpos que querem ter razão sobre as almas.
Foi no cenário da Pátria dividida, e mudada em dois campos inimigos, que a vossa obra surgiu e se impôs.
Nessa maré matinal, exprimistes desde o início preocupações e até obsessões que haveriam de adensar-se a cada novo livro. A mão juvenil e ainda incerta de seus dons que redigiu o romance de estreia, Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, foi alcançando, gradativamente, surpreendente firmeza, prenunciada em Madeira Feita Cruz, editado dois anos depois.
Creio que é em vosso primeiro livro de contos, Tempo das Frutas, de 1966, que ocorre a vitória da fabulação sobre uma atmosfera brumosa, propícia a prestigiar mais as paisagens imaginárias ou estilizadas do que a nitidez das terras situadas e o movimento das personagens.
O romance Fundador, de 1969, torna límpida a vossa imagem de criador literário. Nesse livro, despontou o vosso desejo de compor romances que fossem largos painéis tanto da realidade mais chã como da imaginação mais solta, e nela emergem os temas que, em todo escritor digno deste nome, constituem a sua marca e diferença. Assim, Fundador não é apenas o transeunte de um romance, mas o figurante metafórico que a si mesmo se funda no ato de existir, funda outras criaturas pelo ato genesíaco tão presente em vossa ficção, funda famílias e cidades. E funda a linguagem que o torna presente na ordem do mundo.
Aventuro-me a afirmar que há uma certa atmosfera bíblica em vossa obra, cujas personagens parecem possuir a antiguidade das figuras do Velho Testamento, como referências do rodar dos dias e das paixões enoveladas.
Expoente de uma geração voltada para o repertório da realidade circunfusa, como a violência, a anulação do indivíduo pelo poder e o império da Tecnologia, escolhestes o caminho de volta, regressando às origens e à ancestralidade, sensível à dimensão arcaica do mundo e da vida, e buscando nos comportamentos elementares e na força da Natureza e dos frutos da terra o que a criatura humana tem de mais inalterável e resistente às mudanças do tempo. Uma comunhão primeva preside a vossa obra. A Casa da Paixão e Sala de Armas aumentam os vossos passos rumo a um antes que é também depois. E, neles, como nos demais, a condição feminina irrompe com o seu desatado esplendor, como uma fogueira que não queima, como uma fala triunfante que venceu o silêncio e o medo e nos intriga e até nos estarrece.
A vossa obra tem a materialidade da madeira e do vinho, do azeite e do pão. Há nela algo de hispânico que desdobra os horizontes da procedência e da origem – um lampejo medieval, que aponta para um berço perdido e reencontrado. Mas esse apelo à natividade ostenta algo de opaco e impenetrável, como se existisse, na condição humana, uma fronteira que nenhum criador pode cruzar, por maior que seja o seu gênio e mais competente o seu uso da Linguagem.
Romancista das fundações humanas, do que o homem cria na treva vaporosa ou conflitual e no tempo histórico que é também o espaço da destruição, sabeis que a vossa casa está, como a mais precária das citadas na Bíblia, levantada na areia. Tebas do Meu Coração, o romance em que a vossa mitologia pessoal encontra, sobranceiramente, um largo campo para exprimir-se e testemunha um aprimoramento técnico e formal em mais de dez anos de ofício literário, reflete essa opacidade ou impenetrabilidade, comparável – para usar aqui uma imagem que tanto estimais – a uma cebola dentro da terra.
Dir-se-ia que a nós, poetas e romancistas, é vedado atingir aquele centro de tudo, físico e espiritual, que Conrad considerou o “coração da treva”, o que nos obriga a passar a vida toda transitando à beira de um segredo que jamais nos será confiado. Dele, saberemos apenas fragmentos desencontrados, versões colisivas e sibilinas. Como, para nós, a realidade é a imaginação convertida em linguagem, o caminho mais adequado para captá-la seria aquele que trilhasse em A Força do Destino: o caminho da paráfrase maliciosa ou mesmo zombeteira.
Nesse romance operístico, pintais com expressiva comicidade a mais férvida e incômoda das paixões humanas, que é o amor.
Será a realidade uma paráfrase da realidade? Será o amor uma paráfrase do amor? São perguntas que deixais sem resposta, como se coubesse ao romancista não o responder às indagações dos leitores, mas a missão de interrogá-los.
Finalmente, após o interregno harmonioso dos contos de O Calor das Coisas, a vossa criação literária foi atingida, em 1986, pelo sopro épico de A República dos Sonhos. Palpita nesse grande romance, que reclama o carimbo de clássico, a presença larga e diversa do Rio de Janeiro: a cidade em que nascestes. É a história de um imigrante espanhol e de sua família no Brasil, e decerto inumeráveis elementos biográficos e autobiográficos se acumularam e se mesclaram na detida fatura em que, pacientemente, pela força da Linguagem vívida e vivida e de um impetuoso poder narrativo, fostes convertendo vozes e sombras amigas ou antagônicas numa saga durável e convincente.
O amplo e maduro A República dos Sonhos testemunha as vossas virtudes como romancista da fundação, aqui representada na iluminação de uma origem, na aparição e continuação de uma família, no patrimônio do sangue e da hereditariedade que tanto vos toca, nesse universo genético e genesíaco que produz parentescos e heranças e junta, na mesma linha sinuosa, os sonhos alcançados e as ilusões perdidas.
Não fôsseis uma ficcionista numerosa que, na evidência de sua copiosidade e exuberância, encontra a motivação do seu ofício, bastaria A República dos Sonhos – que é também, pelo seu emblema conflitual e planejamento histórico, um retrato, em cores fortes, da república dos vossos pesadelos – para justificar o vosso ingresso nesta Casa. Mas esse momento alto de vossa bagagem, e que documenta a vossa adesão ao romance realista nos moldes de Balzac e Galdós, já possui um rival que é A Doce Canção de Caetana, exemplo mais recente da fervilhante profusão de vossos dotes literários, com o rastilho de alegria que o percorre, a pungência de sua história de amor e a dialogação desembaraçada que impulsiona a trama romanesca.
Sra. Nélida Piñon,
sucedeis, nesta Casa, a um dos grandes de Espanha da nossa vida cultural – a Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
A aventura literária é, primordialmente, uma aventura linguística, na qual estão presentes, ao mesmo tempo, a voz da ordem e o incitamento à desordem e à transgressão.
O grande dicionarista e filólogo a que sucedeis, esse alagoano airoso e aflamengado em cujo sobrenome fulgia a justificação para os seus cabelos louros e olhos cor de mel, soube escutar, como poucos em sua família espiritual, as vozes desses dois mundos, o do gabinete e o da rua.
A sua lição intelectual e pedagógica é viva e aberta como o mar verde e azul que, menino, ele contemplava em Passo de Camaragibe, seu vilarejo natal. Às palavras já recolhidas aos léxicos pelos seus antecessores desde o alvorejar de nossa Língua, acrescentou novas palavras, que os seus olhos e ouvidos captavam incansavelmente nas mais diversas paragens.
E não eram só as palavras que Aurélio Buarque de Holanda Ferreira tinha a graça de acumular em seu próprio celeiro: também as dicções particulares, os giros de Linguagem, tanto os de origem preclara como os que fluem das bocas plebeias e anônimas e exprimem a lenta e infindável elaboração da Língua.
A gramática dos ceguinhos desdentados e às vezes obscenos que cantam nas feiras do Nordeste é tão autorizada e castiça como o estilo canônico de Machado de Assis e Rui Barbosa. No universo da Língua e da Linguagem, todos são clássicos, até os clássicos.
Com a sua visão tolerante do processo linguístico, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira se rendia a essa evidência, e com tal fervor que, quando abro o seu dicionário, tão juncado de alagoanismos e até de maceioísmos, sinto um cheiro de maresia: o cheiro do Mar Oceano na praia nativa em que tantas vezes caminhamos juntos – eu menino e ele um jovem provinciano ainda ignorante de que o destino, ou a Providência, decidira conferir-lhe a glória de ser um substantivo comum – de ser o Aurélio sempre ao alcance de nossas mãos e de nossos olhos.
Esse andar na distância e no tempo me devolve ainda Maceió dos longos mormaços e dos bordéis austeros como reitorias de universidades, dos cachaceiros de primeira água e dos desembargadores chegadiços a um anacoluto, dos matinais bebedores de conhaque e jogadores de bozó, dos bacharéis taciturnos, das lacraias langorosas e das gaivotas imprecatórias – essa Maceió que, para nós ambos, era a luminosidade de uma palavra sempre habitável.
Ao ser eleito para esta Academia, Euclides da Cunha, em carta ao Presidente Machado de Assis, mencionou o sentimento de elevação que experimentava e, aludindo ao seu novo posto, o de acadêmico, acentuou: “Não sei de nenhum outro mais elevado, neste País.”
Instituição criada, não pelos velhos mas pelos jovens, para engastar o Brasil no processo da civilização e ordenar numa grande tradição o fluxo das vanguardas e contemporaneidades, esta Casa se nutre de seu sentido de permanência. Entre tudo o que passa, a Academia é o que não passa. É o que permanece. E guarda as vozes perdidas ou silenciadas.
Ao aspirar a ser um dos nossos, fostes guiada pelo entendimento da significação do nosso convívio.
Sra. Nélida Piñon,
em vossa infância atravessada de viagens, tínheis o costume de pedir a vossos pais que, nos hotéis, fôsseis registrada como escritora. Aos oito anos de idade, já éreis o que ora sois: paixão e fidelidade a um ofício. E teimosia recompensada.
Bendita seja a vida, que nos permite sonhar e realiza os nossos sonhos!
Este dia mudado em noite festiva declina, mais do que nenhum outro, a vossa condição de escritora. A Academia vos recebe – a vós, a menina Nélida Piñon, vinda de tão perto e de tão longe – e vos deseja, de todo o coração, uma longa imortalidade.
3/5/1990