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Discurso de posse

Apesar da distância mais ou menos longa do tempo, deveis estar neste momento recordando a emoção indizível por que passastes no ato de vossa posse neste augusto ambiente, repleto de tradições, em que, no dizer de um vosso confrade, fundador da Casa, acabastes “de tirar o bilhete para a imortalidade, na estação conhecida do mundo” por Academia Brasileira de Letras.

Bem podeis avaliar o misto de emoção e de cuidados que deste vosso confrade se apodera na ocasião em que vós me recebeis para um período, que espero longo, de convivência fraterna, de enriquecimento cultural e de trabalho e realizações que todos acreditamos meritórios à luz da sociedade e fortalecedores dos ideais daquele grupo, que transformou o sonho nesta radiosa realidade que é a Academia Brasileira de Letras.

Disse emoção porque a entrada neste cenáculo assinala o ponto culminante na trajetória do acadêmico; disse cuidados porque a posse não é um ponto de chegada: é um ponto de início de novas realizações que porão à prova os maiores ou menores méritos que vistes no candidato e que pesaram na vossa escolha.

Contemplo em cada um de vós um a um dos 40 que puseram em marcha a instituição que vos peço licença para começar a chamar nossa; contemplo em vós os sucessores que, enfrentando momentos difíceis, vieram trazendo a nossa instituição ao que ela é hoje, com projeção dentro e fora do País, pela intensa produção de obras literárias e científicas, enriquecida também pela ação incentivadora de prêmios a consagrados e jovens talentos, e pela preservação física do tesouro arquitetônico e artístico que é este Petit Trianon, em cada canto do qual porejam reminiscências dessa Academia Francesa que foi luz e calor para a iniciativa venturosa dos nossos primeiros idealizadores.

Se todas essas razões justificam o misto de emoção e cuidado que neste momento me invade e perturba, não menos é o peso do brilho dos ocupantes da Cadeira em que me entronizastes, desde o patrono escolhido - Raul Pompéia - até meu ilustre antecessor - Afrânio Coutinho, cuja voz de mestre consumado ainda ressoa nas paredes desta Casa e aos ouvidos de quem com ele teve o privilégio de conviver.

Raul Pompéia

Afrânio Coutinho encontrou o fio condutor da corrente estética que irmanou os talentos literários integrantes da Cadeira 33: o Impressionismo literário, movimento estético que se não aprisionou nas letras, mas refulgiu, primeiramente na pintura, espraiando-se pela música e outras formas de expressão artística. O patrono Raul Pompéia, que, no juízo sempre milimetrado  e nunca benevolente de Capistrano de Abreu, era o único dos seus contemporâneos que lhe dera a impressão de gênio, encarnou uma das figuras mais representativas entre nós da estética ideada e praticada pelos irmãos Goncourts, na França, que no brasileiro encontrou rara aptidão da arte pictórica, no que apresenta de “pontilhismo” e de “divisionismo”. Afrânio surpreendeu em Pompéia esse filão estético que o impõe como iniciador da ficção impressionista na literatura brasileira. E, eleito para esta Academia, Afrânio veio ocupar a cadeira cujo patrono ele tanto pesquisou para apresentá-lo na integridade de sua obra literária.

Até então, ao se falar de Pompéia, vinha apenas à memória O Ateneu ou, quando muito, as Canções sem metro. Afrânio, como resultado de 20 anos de trabalho, organizou e dirigiu competente equipe, auxiliado por numerosos devotos da obra pompeiana, de cujo empenho saíram do esquecimento em que jaziam, em páginas de revistas e jornais, as produções que nos ajudam a conhecer de corpo inteiro esse magnífico estilista. Em lúcido e abrangente resumo, Afrânio conceitua as qualidades mestras do seu e do nosso patrono:

A sua “crônica de saudades” obedece à técnica de recuperação do passado, que seria usada pelo impressionista Proust em busca do tempo perdido e como um recurso para encontrar a essência da personalidade. A análise interior e a introspecção condizem nele com a preocupação da escola quanto ao aspecto psicológico. A “escrita artista” veicula a sua obsessão da cor, a que subordina até a solução das metáforas e da sintaxe. Era um visual, atraído pelos gestos, ritmo, movimento, e pelas diferenças de matizes corados, e inclusive na caracterização dos personagens, graças à técnica da caricatura, em que se mostrou exímio. Mas também um auditivo, sensível à “emissão de um som prolongando-se ou baixando, conforme o timbre vocal”. Dominava-o a caça às sensações que registrava com volúpia, como bom discípulo dos Goncourts, o que o sensibilizaria para certas impressões fugazes, que ele próprio referiu na sua obra-prima, aquelas “reminiscências sonoras que ficam perpétuas”, falando numa linguagem que faria inveja a Marcel Proust [1].

Domício da Gama

A estética impressionista literária da Cadeira 33, auscultada e brilhantemente investigada pelo crivo de Afrânio Coutinho, ia nela incluir a figura e a produção de Domício da Gama. Freqüentador das tertúlias de literatos em torno das figuras de Machado de Assis, Lúcio de Mendonça, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octavio e José Veríssimo, entre outros, participou da criação da Academia.

Veríssimo, hábil aglutinador de talentos, desejou fazer da Revista Brasileira, a partir de 1895, um farol de esperanças e promessas intelectuais no campo literário, a um país que mal saíra da pacificação da guerra civil. Para aglutinar tantos e tão diferenciados talentos, a Revista de Veríssimo teve, no dizer de Graça Aranha, o dom da tolerância e da concórdia, que construiu o espaço da convivência mútua, espiritual e laboriosa que sedimentou o grupo inicial e o empurrou à “fundação” da Academia Brasileira.

Se não fora o trágico acontecimento que lhe pusera fim à existência no dia de Natal de 1895, certamente Pompéia figuraria entre os acadêmicos fundadores desta Casa. Presente à memória de vários amigos, é hoje nosso patrono, depois da disputa amiga que Domício da Gama tivera de travar com Rodrigo Octavio, já que ambos lhe queriam conferir a distinção.

Acertando o passo com as tendências nacionalistas dos escritores da época, Domício da Gama acredita na capacidade criadora da nossa literatura, tanto que, já aos 18 anos, funda com outros jovens um grêmio para firmar uma literatura nacional independente dos escritores lusitanos.

Notam-se em Domício da Gama, escritor e diplomata, os toques de “escrita artista” que Afrânio Coutinho salientou em Pompéia:

Falam por si as suas crônicas, e, sobretudo, os contos dos volumes de Contos à meia-tinta e Histórias curtas. Os próprios títulos denunciam a estética do entretom, da meia-tinta, concisão, sugestão, contenção de linguagem, expressão branda levemente sussurrada, dita baixinho, captando impressões sutis e requintadas de paisagens sombrias e silenciosas. Os seus contos são expressões de arte velada criada à sombra da memória, saudade, melancolia, filtrada através de uma sensibilidade esquiva, arte de nuances e meia-luz, de atmosfera e transfiguração, arte sem contornos, vaga, imprecisa e indecisa, arte do fragmento e instantâneo.[2]

Luís Edmundo

A revolução estética e literária que dominou o fim do século XIX como onda iconoclasta aos modelos então dominantes - o Naturalismo em prosa, e o Parnasianismo em poesia - concretizou-se não só na corrente impressionista, mas também no Simbolismo. Vistas estas tendências por um crítico arguto e competente, facilmente repetiria sobre elas o juízo que formulou Afrânio Coutinho, sem lhes negar a incontestável contribuição ao panorama espiritual e artístico da época:

Suas correntes e escolas literárias não oferecem, em conseqüência, contornos nítidos, e apresentam, ao contrário, entre si, zonas fronteiriças quando não misturam os respectivos coloridos estéticos, a  ponto de os próprios representantes vestirem roupagens diferentes no curso de sua evolução ou participarem das qualidades e características diversas. A famosa antologia Le Parnasse contemporain, lançada entre 1866 e 1876, é o ponto de partida tanto do Parnasianismo quanto do Simbolismo, algumas das principais figuras tendo pertencido aos dois movimentos. Eis aí um dos mais curiosos fatos da história literária.

E remata o comentário com um dos fundamentos da nova teoria da crítica literária:

Aliás, esse e outros exemplos dão razão à historiografia moderna que se recusa a admitir a noção da delimitação exata entre as épocas literárias, abandonando a idéia de começo e fim em datas fixas. Ao invés, estão mais acordes com a realidade as noções das áreas intermediárias, das gamas estilísticas, das interpenetrações de estéticas, da impureza de estilos ou escolas. A nova historiografia de cunho estilístico arma-nos, assim, de doutrina muito mais flexível e realista.[3]

Mais uma vez comparece a esse continuum estético e cultural que marca os inícios e o prolongamento da Cadeira 33 (e que foi reconhecido por Afrânio Coutinho) a figura literária de Luís Edmundo, que se notabilizou como poeta, teatrólogo, memoralista, jornalista e bibliófilo, cuja produção intelectual não só o guindou à Academia, mas agora mereceu a confirmação de reconhecimento na recentíssima reedição de O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, promovida pelo Conselho Editorial do Senado Federal.

Luís Edmundo fez parte do movimento iconoclasta das novas tendências literárias que tinham por alvo combater os poetas parnasianos e os realistas, bem como todos os que lembravam o modelo burguês, certinho e comportado. Não escapavam aos remoques e injúrias Bilac, Coelho Neto e o próprio Machado de Assis, entre outros. Tudo ao sabor da conspiração boêmia da intelectualidade francesa, que dava, ao fim e ao cabo, um colorido de mocidade revolucionária e reorganizadora dos padrões de um novo mundo, ornado pela deliciosa e frívola orquestração da belle époque do início do século XX. Seus quartéis-generais seguiam o modelo parisiense da rive gauche e de Montmartre; eram  o Café Paris, as confeitarias Pascoal, Colombo, e o Lamas, que a boêmia social dos nossos dias pretende aqui e ali reviver sem grande repercussão e sucesso, por lhe faltar quase sempre a munição intelectual e literária daqueles tempos.

Luís Edmundo, como assinalou Alceu Amoroso Lima, ao lhe analisar o livro Rosa dos ventos, é um impressionista ainda que “pobre de cores”, palavras que podem estender-se a outras obras do nosso acadêmico:

Alimenta-se a poesia do Sr. Luís Edmundo mais de impressões que de sensações. Tudo passa à flor da terra, sem raiz nem sombra. Não há dor nesse livro, nem o mal de la pensée, nem entusiasmo, nem alegria. Tudo se esfuma em meias-tintas, escapando à classificação e à memória.[4]

O talento literário em poesia de Luís Edmundo volta-se para o prosador memorialista do Rio de Janeiro, especialmente do século XVIII, à cata do pitoresco e do anedótico, campo em que não deixa mortas ou esquecidas suas raízes impressionistas. Antes pelo contrário, como bem entendeu Afrânio Coutinho:

Ainda aqui o impressionismo de Luís Edmundo presta-se como uma luva aos seus objetivos e cria a sua maneira. Sua obra não é de historiador estrito, mas de um cronista. Os dons do poeta mantêm-se-lhe presentes na evocação do passado, e a imaginação não o abandona, antes lhe serve de instrumento na fixação e interpretação da realidade, esteja ela nos indivíduos, cidades, ruas, sentimentos ou hábitos.[5]

Fernando Magalhães

Entre Domício da Gama e Luís Edmundo ocupa a Cadeira 33 a figura de Fernando Magalhães, cedo devotado, por desejo paterno, às lides e campanhas em prol do aperfeiçoamento técnico e profissional da medicina. Envolvido com a geração moça do seu tempo e respirando o ar das reformas urbanas por que passava a sua cidade natal, o Rio de Janeiro, e das preocupações intelectuais e literárias, de cunho nacionalista, Fernando Magalhães, ainda que interrompendo a tradição impressionista da criação artística de que vimos falando, soube, nesta Academia, defender os ideais dos fundadores da Instituição. Trouxe na sua bagagem para ingresso nesta Casa, além de consagradas obras na área médica, dois volumes de Discursos.

Luís Edmundo, que lhe sucedeu, traça-lhe com justiça essa miniatura de retrato:

Fernando Magalhães foi um grande orador. Nem lhe faltaram a majestade da figura, a física elegância das atitudes e dos gestos, máscara expressiva, voz quente, fluxuosa e bem timbrada. As suas improvisações eram despidas de ênfase, de artifícios dramáticos e da pedanteria alambicada ou pirotécnica tão dos oradores populares. Seu verbo era conciso e desafetado. Uma eloqüência aristocrática, cunhada, sempre, em bom estilo literário. Rico vocabulário. Imagens sóbrias, fixadas com proporção e segurança. Orador para elites, dos mais sedutores e dos mais perfeitos que já teve o Brasil.[6]

Afrânio Coutinho

Como no bolero de Ravel, vim paulatinamente traçando as figuras dos ocupantes da Cadeira 33, principalmente com as luzes e o saber crítico de Afrânio Coutinho. Agora, cabe-me falar dele no coroamento desta retrospectiva.

No brilhante percurso histórico da Cadeira vem instalar-se a figura emblemática de Afrânio Coutinho, honra desta Casa por dois motivos: um, pela renovação do olhar reflexivo posto na história literária brasileira; outro pela renovação do olhar objetivo que lhe pôs à disposição a fundamentação da teoria literária que inaugurou definitiva e irreversivelmente no Brasil. Todos os que tivemos a sorte e o privilégio de acompanhar-lhe os passos e os embates pelas páginas de Correntes cruzadas ou pelas conversas informais em livrarias, ou, ainda, pelos cursos universitários iniciais sobre teoria e técnica literária na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Instituto La-Fayette, fazemos coro às palavras de outro crítico inteligente e perspicaz, que também honrou este cenáculo, Alceu Amoroso Lima:

Considero Afrânio Coutinho o Copérnico crítico de nosso universo literário.  Assim como o grande astrônomo renascentista mudou a figura do nosso cosmos do unicentrismo para o policentrismo, a crítica de Afrânio Coutinho fez o mesmo em face de nossas letras de todos os tempos. Não colocou, no centro delas, nem o próprio crítico, nem os sistemas filosóficos, nem os ambientes sociais, nem mesmo os textos estudados. E sim o conjunto de todos essas dimensões, a partir das quais pode ser considerada a literatura de um povo.[7]

Desde cedo vocacionado ao estudo e à pesquisa literária, Afrânio não trouxe de sua convivência norte-americana apenas o ideal teórico do new criticism, mas, como disse ele num depoimento,

toda uma global doutrinação pela renovação da crítica literária, que no Brasil estava dominada pelo impressionismo, velho e sovado, e, pior ainda, transformado ou degenerado em simples jornalismo, ou achismo, do gostei ou não gostei, praticado à larga pelos donos dos rodapés de crítica literária (...) O que tentei fazer, e, ai de mim, talvez nem por todos entendido, foi a renovação da crítica. Daí ter denominado a tendência de “nova crítica”, a qual não se reduzia ao new criticism anglo-americano. As duas não são a mesma coisa.  A primeira é uma tendência globalizante; engloba métodos e doutrinas de várias origens”.[8]

Afrânio, com a sinceridade que era uma das suas marcas no comércio da convivência social, lembrou a seus pares que a controvérsia que marca seu percurso intelectual é a controvérsia fundamentada na acurada reflexão, na pia crença de suas idéias, e não aquela nascida da prática que ele talvez mais repudiasse no ato crítico: o achismo.

O critério e a honestidade profissional revelados no ato crítico levaram-no a olhar com respeito e admiração o trabalho daqueles que tinham trazido contribuição no preparo do terreno fértil da teoria da literatura e da historiografia literária, como foi o caso de Araripe Júnior, Capistrano de Abreu e Alceu Amoroso Lima. Dessa atividade procede o encarecimento da obra ensaística de José de Alencar, injustamente posta de lado, pela fama do romancista.

Contribuiu para uma reconceituação não só da metodologia da crítica, mas ainda dos gêneros literários. Este movimento de pedra no tabuleiro do xadrez refletir-se-ia em outros domínios; foram particularmente importantes seus subsídios para a revisão dos períodos das fases históricas da literatura brasileira. Também se insere nessa visão estética renovadora a conceituação do estilo barroco, tido como decadente, exposta em importante tese de concurso.

Não bastava trabalhar na seara teórica e crítica; impunha-se-lhe dotar a bibliografia de fontes capazes de aprofundar a pesquisa e contribuir decisivamente a estudos posteriores.  Assim pensando, ideou uma obra, ainda que prematura, necessária, de colaboração coletiva, entregue cada capítulo ou subseção ao que melhor havia na época de crítica e investigação literária, que se intitulou A literatura no Brasil.

Outro passo nessa direção foi oferecer ao pesquisador e ao público leitor edições confiáveis de escritores brasileiros. Ponto central de suas teses era o privilegiamento da leitura dos textos sobre o conhecimento do autor e de suas obras, das circunstâncias de ordem histórica e social que por vezes as envolvem. Ratificava a lição de Fidelino de Figueiredo segundo a qual ensinar literatura é ensinar a ler.

Suas qualidades de administrador e o prestígio de que gozava no meio universitário brasileiro e estrangeiro o impuseram às autoridades para, criada a Faculdade de Letras em 1968, ser seu primeiro diretor pro tempore, cargo a que Afrânio aplicou idealismo, inteligência e inquebrantável vontade.

Afrânio Coutinho dignificou a Cadeira 33 com o brilho da sua inteligência e com a força indomável de fazer bem, enraizou amizades, enlaçou pessoas no trato de uma convivência civilizada e agora é guia permanente deste seu sucessor.

 

As origens

Vim adolescente do Recife para o Rio de Janeiro, compelido por uma precoce orfandade, filho de pai árabe e mãe maranhense, para concluir a formação na companhia de um tio-avô, também pernambucano: rigoroso na educação e de coração repleto de amor ao próximo.

Nascido no tradicional bairro de São José, cedo acostumei-me aos folguedos infantis da praça do Mercado e às visitas compenetradas de religiosidade à igreja de N. S. da Penha.

Embora voltado inicialmente para os segredos da matemática, a necessidade de atender aos pedidos de colegas menos preparados a ministrar-lhes aulas de português e latim atirou-me aos segredos, mistérios e potencialidades da língua de Machado de Assis e de Virgílio. E essa caminhada frutuosa às ciências da linguagem, começada com meu professor de curso ginasial Odeval Machado, foi definitivamente assentada com o conhecimento pessoal e lições de dois mestres insignes de como andar por essas veredas com menos tropeços e melhor orientação, o mineiro Lindolfo Gomes e o petropolitano Manuel Said Ali, mestres a quem de público não deixo de reverenciar com o coração confrangido pela saudade.

A essa época, professores do Colégio Militar, reunidos a professores do Colégio Pedro II, do Instituto de Educação do Rio de Janeiro e de outros estabelecimentos de ensino médio e superior, projetavam as tarefas de um órgão especializado em estudos da linguagem, que acabariam, em 1944, dando origem à Academia Brasileira Filologia. Era, em geral, constituída de uma geração herdeira do que melhor produziram os primeiros passos de uma gramaticografia cientificamente mais orientada, que tinha à frente as figuras de Júlio Ribeiro, Fausto Barreto, Manuel Pacheco da Silva Júnior, João Ribeiro, Maximino Maciel, Lameira de Andrade, Ventura Bôscoli, e, divididos em língua e literatura, Silva Ramos e Carlos de Laet.

Na transição desse grupo inicial estavam as figuras de Mário Barreto e de Said Ali. A lucidez e perspicácia deste último, alicerçadas nos então modernos estudos que se vinham desenvolvendo na Alemanha, mostraram que não se devia analisar a língua como o legista faz a autópsia de um cadáver. Não dissociavam o homem pensante da sua psicologia, domínio a que se pode ir para encontrar muitas vezes certos usos novos que destoam da rígida e implacável artinha de puristas e vernaculistas menos avisados. As línguas não são apenas expressão do pensamento intelectivo, mas também da emoção e sentimento. Daí Capistrano de Abreu com muita propriedade: “Said Ali não é dos que se comparam; é dos que se separam.”

Criei-me ouvindo as tertúlias desses filólogos, lingüistas e gramáticos. Alguns deles contribuíram com o melhor de sua erudição e competência para esta Academia.        

Reconhecendo os méritos dessa geração, a Instituição contou, mais recentemente, com o brilho da inteligência de Aurélio Buarque de Holanda, Celso Cunha e Antônio Houaiss.

 

Gramática Descritiva e Gramática Normativa

Alguns modernos teóricos mais avisados têm insistido no empobrecimento da investigação lingüística quando só toma como objeto de estudo “científico” a língua falada, espontânea e livre, considerando a língua padrão e sua expressão literária artificiais e impostas e, em conseqüência, a gramática normativa, que dela se ocupa, uma criação espúria, sem fundamento científico e, por isso mesmo, dogmática e antiliberal. Como bem acentua um importante teórico dos nossos dias, Eugenio Coseriu, [9] esquecem-se tais investigadores da dimensão deôntica, isto é, o “dever ser” da língua, da qual a gramática normativa é a manifestação metalingüística, enquanto a língua literária representa o grau mais alto desta mesma dimensão.

Embora afastada da tarefa da lingüística a língua literária, concebida como manifestação da dimensão deôntica da língua, e vilipendiada a gramática normativa como manifestação metalingüística dessa dimensão, ainda assim a língua padrão e suas normas permanecem no cenário de preocupação dos falantes, por injunções de ordem prática no comércio dos homens na sociedade, meio de comunicação que é.

O nosso lingüista Joaquim Mattoso Câmara Jr. tem considerações pertinentes a este respeito:

É justo que a gramática normativa dê grande atenção à língua escrita. É ela que a escola tem de ensinar em primeira mão. Acresce o primado da língua escrita nas sociedades do tipo da nossa, dita “civilizada”. Aí, do ponto de vista sociológico, a língua escrita se sobrepõe inelutavelmente à língua oral, pois rege toda a vida geral e superior do país [...] Dá-se assim uma inversão em termos sociais, da verdade puramente lingüística, de que a escrita decorre da fala e é secundária em referência a esta.[10]

A Academia, desde a sua fundação, se tem pautado por conseguir a possível unidade lingüística; síntese e programa desse ideário estão nas palavras de Machado de Assis, escritas em 1873, mas que guardam impressionante atualidade:

Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há portanto certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito de cidade.

Mas se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o princípio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite  todas as alterações de linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma.

A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.[11]

Uma das mais frutíferas lições que trouxe a lingüística moderna foi a consciência, viva até para o falante ingênuo, que distingue o seu modo de falar e o modo dos outros, de que uma língua histórica (português, francês, inglês, espanhol, etc.) é o conjunto de línguas que funcionam a serviço de cada comunidade integrante de uma comunidade maior, nacional. Se por norma se entende a conformidade de usos fixados por uma tradição dentro da comunidade de falantes, conclui-se que não se pode falar de uma só norma para toda a língua portuguesa, como para as demais línguas históricas.

Esta concepção veio patentear o quanto andava mal a hierarquização ingênua das línguas e a normatividade dogmática do que se deve dizer e do que se não deve dizer, por acreditar que na língua só haveria uma e única norma - a da língua padrão -, de modo que as construções que dela divergissem ou a ela trouxessem novidade deveriam ser banidas por errôneas.

Destarte, sou de opinião que só cabe à Academia o compromisso com a língua padrão. Estudos descritivos da língua falada - que ocupa boa parte da pesquisa universitária atual -, ou descrição de falares regionais mediante gramáticas ou atlas lingüísticos, investigações no domínio da etimologia, entre outras, são tarefas de organismos especializados. A Academia estará atenta a toda essa atividade puramente científica, à medida que a investigação contribua para desbastar os excessos caprichosos que porventura ocorram na gramática normativa e demarcar-lhe, a esta, os alcances e os limites.

O futuro dicionário da Academia, cujas bases estão já assentadas no que Antenor Nascentes preparou para a Instituição, não terá de ser um thesaurus, a competir com os produtos comerciais existentes. Há de ser um léxico de consagração vocabular, com o prestígio e fundamentação da cultura de seus acadêmicos, ao modo do Dicionário de Autoridades da Academia Espanhola.

É com esta nova concepção de língua que um filólogo pode contribuir junto a seus egrégios confrades para esta Academia continuar, no século nascente, cumprindo o seu preceito estatutário.

*

Peço licença para pedir a vossa atenção, Senhores Acadêmicos, na alta sabedoria dos fundadores desta Casa em atribuir-se a si o cultivo, e não o estudo da língua. Nesta implícita distinção queriam deixar patente que não lhes cabia a tarefa de técnicos da descrição do idioma, nem tampouco a elaboração de uma gramática, obras que estavam entre as obrigações de outras academias, como a francesa. O próprio dicionário só se apresentou como tarefa acadêmica alguns anos depois da fundação, por seguir a tradição de suas congêneres. Lá fora essas obras foram impostas por circunstâncias históricas que aqui não se repetiam. No caso do italiano, por exemplo, o Voabolario della Crusca, de 1612, representou uma explicação oficial ao problema da “questão da língua” sobre a norma lingüística, que preocupou os estudiosos e literatos italianos desde todo o século XVI, diante da variedade de dialetos candidatos a exercerem o papel de língua comum de expressão literária.

Muito mais alinhadas com as tarefas idiomáticas da Academia foram as recolhas de brasileirismos para a contribuição “empírica e preliminar” de um futuro dicionário, nas palavras de João Ribeiro.

Infelizmente, também não foi avante o levantamento que Euclides da Cunha propusera de um dicionário técnico. Teve melhor destino a participação dos acadêmicos nas propostas que terminaram por consubstanciar a reforma ortográfica de 1943, ainda vigente, com as alterações de 1971, sem que tenhamos até agora conseguido a desejada uniformização gráfica para todos os domínios da lusofonia, aparente milagre que algumas línguas de cultura e de grande extensão geográfica já realizaram.

 

Academias: ontem e hoje

No nascedouro italiano, e depois por toda a Europa, a academia, com o Renascimento, constituía o cenáculo que congregava literatos e cientistas dos mais variados ramos do saber. Com o passar dos tempos, foram-se, criando instituições com destinações especializadas, o que contribuiu para diminuir a presença da academia, especialmente nos setores das tecnologias. Ainda assim, promoveu a cooperação, desenvolveu e aperfeiçoou o cultivo das chamadas belas-letras, incentivou o cultivo e aperfeiçoamento das línguas nacionais e, quando gozava da proteção e auxílio do governo e de poderosos mecenas, divulgou edições de dicionários, vocabulários, gramáticas e textos criticamente apresentados dos seus escritores mais representativos.

No Brasil, além das Faculdades e Institutos de Letras, fundou-se a Academia Brasileira de Filologia e, nos diversos Estados, as Academias de Língua, quase todas com intensa vida cultural e com a participação dos melhores estudiosos e pesquisadores do País.

Assuntos de linguagem tratados sem o necessário preparo freqüentemente aparecem mal resolvidos. Recentemente, a imprensa tem trazido à baila as invasões de estrangeirismos, mormente de procedência da língua inglesa, e os pronunciamentos, com raras exceções, repetem os enganos já malsinados por um grande lingüista francês do século XIX, Miguel Bréal, no seu Essai de Sémantique, cuja primeira edição data do ano da fundação desta centenária Academia. Neste sentido, nosso José de Alencar, em respostas a seus críticos, teceu considerações muito mais lúcidas sobre a introdução do estrangeirismo no português (no seu tempo eram os francesismos) do que muitos gramáticos da época e alguns do nosso tempo.   

Problemas aparentemente fáceis de observação e doutrina como, por exemplo, os brasileirismos, tocam em pontos extremamente complexos de ordem teórica; a consulta à bibliografia pertinente revela-nos o intrincado do problema. Um filólogo que honrou esta Casa, Celso Cunha, pôs à luz a complexidade da questão no estudo Que é um brasileirismo, enquanto outros filólogos, também acadêmicos, João Ribeiro e Heráclito Graça, muito se debateram contra a “patriotice” dos puristas acerca deste ponto. A minha presença na Academia poderá contribuir para estabelecer o conveniente elo e equilíbrio entre os resultados da pesquisa de instituições especializadas, com seus produtos de ciência pura, e o papel institucional da Casa, pelo voto dos acadêmicos, no cultivo e defesa da língua como expressão literária do instinto nacional.

Independentemente das instituições especializadas, poderá a Casa, por proposta do seu filólogo, apresentar a seus pares e à ilustre Academia das Ciências de Lisboa sugestões simplificadoras em aspectos puramente convencionais e práticos ainda presos a tecnicismos que perturbam o homem comum, sem prejuízo naturalmente de pressupostos teóricos. É o caso, por exemplo, do emprego do hífen e do apóstrofo segundo as complicadas exigências do nosso Formulário ortográfico, de 1943, ou mesmo do Acordo de 1991.

Daí a Academia, para a consecução dos preceitos estatutários, ou de outros que seus membros elegerem prioritários para atenderem a novas necessidades, precisar da colaboração de órgãos e de especialistas na programação de atividades e elaboração de obras relacionadas com o cultivo da língua e da literatura nacional.

Senhores e senhoras,

Trago-vos a experiência larga do magistério universitário; um conjunto de obras que haveis reputado digno de me fazer ingressar na Casa e participar convosco do seu destino.

Mas, acima de tudo, desejo neste momento manifestar meu mais afetuoso agradecimento ao grupo de amigos que me estimulou a concorrer à Cadeira 33 e a todos vós, por ratificardes o convite com o vosso apoio e a consagração dos vossos votos.

Muito obrigado.

[1] “Discurso de posse de Afrânio Coutinho”. In Discursos acadêmicos, vol. 17, pp. 166-167.

[2] Afrânio Coutinho, ibid., p. 168.

[3] Afrânio Coutinho, ibid., pp. 161-162.

[4] Alceu Amoroso Lima, Estudos literários, ed. org. por Afrânio Coutinho, p. 130.

[5] Afrânio Coutinho, ibid., p. 177.

[6] Luís Edmundo, “Discurso de posse”. In Discursos acadêmicos, XII, p. 25.

[7] “O Copérnico de nossas letras”. In Miscelânea de estudos literários. Homenagem a Afrânio Coutinho, p. 27.

[8] Id., ibid., pp. 491-492.

[9] “A língua literária”. In Na ponta da língua, 2, p. 79.

[10] J. Mattoso Câmara Jr., Estrutura da Língua Portuguesa, p. 10.

[11] Apud S. Silveira, Trechos seletos, 4ª ed., p. 196.