Sr. Presidente, senhores acadêmicos,
Senhoras e senhores,
Prof. Bechara,
Como recém-chegado à área de Filologia, Lexicografia, por culpa da incursão bissexta a que me atrevi com o livro Palavras sem Fronteiras, terei certamente dificuldade em avaliar as vossas obras, obras que vos trouxeram ao nosso convívio em tão bela e unânime eleição.
Meu embaraço me faz lembrar as palavras com que, nesta mesma tribuna, Medeiros e Albuquerque recebeu o vosso antecessor, Fernando Magalhães, obstetra de profissão, diretor da Faculdade de Medicina, fundador da Pró-Matre, celebrado autor de História da Obstetrícia no Brasil. Parafraseando Medeiros, poderia dizer-vos que é muito fácil e muito agradável neste recinto citar trechos de contos e romances, sobretudo citar poesias dos novos acadêmicos. Mas, como aludir, aqui, à maioria dos vossos relevantes trabalhos, Prof. Evanildo Bechara? Nem vejo, sequer, como continuar a paráfrase, porque, logo na primeira frase de boas-vindas, Medeiros pôde declarar, incisivo: “Por hoje, meu ilustre colega, tomarei a vossa profissão habitual: eu serei o parteiro.”
E efetivamente assim se comportou, dedicando boa parte do seu discurso não apenas à defesa do controle de natalidade mas à contestação frontal de teses esposadas pelo recém-eleito. Período pré-natal, maternidade voluntária, direitos dos nascituros, infanticídio, tribunal de menores, pediatria, são tópicos levantados na oração de Medeiros, não apenas com ênfase, mas conhecimento até da intimidade do próprio hospital-maternidade dirigido pelo novo acadêmico, pois chegou ao ponto de mencionar o desempenho de médicos, internos e enfermeiras.
Em duas palavras, seguiu-se um debate de igual para igual, a que não posso aspirar neste momento, pois ainda me intimidam os metaplasmos, as flexões marotas do adjetivo ou o fato, que me parece grave, de os morfemas aditivos insistirem no conflito com o morfema zero. E isso sem falar nas consequências da próclise, ou no horizonte estupendo que a todos nós abriria o emprego do pronome tônico pelo átono. É claro que o vírus, a que chamais da contaminação sintática, muito nos preocupa, nos faz pensar em risco iminente para os nossos computadores. Em suma, meu propósito é assinalar que tudo isso, bem como um hino às orações predicativas, à morfossintaxe e aos fonemas surdos pode ser encontrado na vossa Moderna Gramática Portuguesa, cujas 37 edições são de fazer inveja à grande maioria dos acadêmicos, a começar pelo que vos recebe.
Apesar de termos aprendido, em Suetônio, que Roma expulsara os gramáticos, por “supérfluos e ocupados em coisas de pouco momento”, acredite, Prof. Bechara, que esta Casa foi sensível aos vossos talentos e à dedicação de toda uma vida ao conhecimento, à análise em profundidade e ao ensino da Língua Portuguesa. Não nos escapou a precocidade dessa fixação, que se revela no ensaio Fenômenos de Intonação – Um Capítulo de Fonética Expressiva, escrito aos dezessete anos e, mais adiante, publicado com um prefácio-caução do filólogo mineiro Lindolfo Gomes.
Esse primeiro ensaio já prenuncia o mestre em gestação, a promessa do lexicógrafo, do linguista emérito que hoje acolhemos, e que já então procurava identificar espaços pouco atendidos pelos nossos filólogos, como foi o caso da fonética expressiva. Revela, igualmente, o gosto pelo detalhe morfológico, pelas nuances, pela investigação original, pela coleta de exemplos ilustrativos. Aluno dileto do grande Said Ali, pudestes anotar, a propósito dos efeitos do alargamento das consoantes em línguas semíticas, casos como o que vou citar. O árabe chábat, ele golpeava, se pronunciado chábbat, significaria “ele golpeava fortemente”. E o jovem pernambucano, futuro acadêmico, já sabia, àquela altura, e o diz sem traço de ostentação, que tal fenômeno era chamado pelos gramáticos franceses de pluriel brisé. Na linguagem de hoje, redoublement de consonne.
Não escapou, tampouco, à Academia vossa atração pelo Magistério, em que tanto vos distinguistes nas cátedras de Filologia Românica da UERJ e na de Língua Portuguesa do Instituto de Educação. Vosso saber vos levou além de nossas fronteiras, de que são escalas marcantes o aperfeiçoamento em Filologia Românica em Madri, em 1961-62, com Dámaso Alonso, o exercício do cargo de Catedrático Visitante na Universidade de Colônia, na Alemanha, em 1971, e, na década seguinte, na Universidade de Coimbra, onde as lembranças que deixastes foram tão marcantes que, em novembro do ano passado, vos outorgou as insígnias e o diploma de doutor honoris causa. Vale mencionar, ainda, que, depois da aposentadoria, isto é da aposentadoria formal, a UERJ e a Universidade Federal Fluminense vos outorgaram o merecido título de Professor Emérito.
Nossos olhos se voltaram, igualmente, para os vossos livros, artigos, ensaios e comunicações, para a vossa Moderna Gramática, para as Lições de Português pela Análise Sintática, esta em sua 16.ª edição, sem excetuar a Antologia de Os Lusíadas, em coautoria com Segismundo Spina. Não nos escapou ao exame de vossa atividade como linguista e mestre a “modernidade”, chamemo-la assim, ou atualidade do vosso preparo e competência. Navegando, necessariamente, entre tradicionalismo e mudança, soubestes encontrar a divisória justa na coexistência sensata do código escrito, que cumpre preservar, e da prática oral, igualmente digna de acato e consideração.
A quem perguntar pela razão da nossa “marcação” a vosso respeito (perdoe-me a liberdade), responderei sem hesitar: porque esta Casa precisa de um filólogo, de um filólogo do vosso estofo, que nos ajude a continuar cumprindo com os nossos deveres estatutários em matéria de Língua Portuguesa.
A Academia já contou com talentos extraordinários como João Ribeiro, Laudelino Freire, Aurélio Buarque de Holanda, Celso Cunha, Antônio Houaiss, credores, não apenas da nossa admiração e respeito, mas da nossa gratidão pelo aporte que trouxeram à defesa e preservação do idioma. Conversando recentemente com o nosso Decano, Josué Montello, lembramos o livro primoroso de Heráclito Graça, Fatos da Linguagem, há tantos anos esquecido. Por que não, Prof. Bechara, batermo-nos juntos pela reedição desse livro, já sob a vossa batuta, como uma das vossas primeiras tarefas? Ainda por obra e graça do nosso decano, a Academia dispõe hoje de um setor de lexicografia a que podeis trazer contribuição inestimável.
Direi, finalmente, ao Prof. Bechara que a Cadeira 33, entre outros atrativos, oferece uma espécie de promessa de longevidade, uma vez que Domício nos deixou aos 63 anos, Magalhães aos 66, Luís Edmundo aos 83, e Afrânio Coutinho aos 89, escala invariavelmente ascendente.
* * *
Destino singular, o do fundador da vossa Cadeira. De origem modesta, filho de um imigrante português, Domingos Afonso Forneiro, fez-se jornalista e escritor, foi alçado a funções relevantes na diplomacia brasileira, embaixador em Washington, em Londres, ministro de Estado, Presidente desta Casa. Tudo alcançou sem ter sido propriamente um homem de ação, um lutador como fora seu pai. Este aqui chegou aos 16 anos, em porão de navio (1828), “entre barris de azeite e fardos de bacalhau”, na descrição de uma descendente. Criou sete filhos, educou-os todos em excelentes escolas, à custa de imenso sacrifício. Para não importunar ninguém com convites para padrinho, o velho Forneiro – ateu e maçom, embora devoto de Nossa Senhora do Amparo – decidiu que todos os sete teriam como padrinhos o Pe. Gama e Nossa Senhora, padroeira da matriz de Maricá. Ao penúltimo filho, foi dado o nome Domício da Gama, em homenagem e agradecimento ao bondoso vigário, sete vezes compadre.
O título que Domício deu a um de seus contos – “A força do nome” – sugere-me que esse detalhe batismal tenha tido relevância no sucesso mundano e social que alcançou em Paris: Forneiro versus da Gama. Aos ouvidos da roda elegante, aristocrática, sem dúvida esnobe, que encontrou ao chegar como correspondente da Gazeta de Notícias, a nobre entonação “da Gama” terá soado muito mais aceitável que o simples “Forneiro”. Ao contrário do Brasil, nos países de Língua Francesa ou Inglesa, os equivalentes locais Boulanger, ou Baker, são correntes e não convidam à galhofa nem à especulação. James Baker, por exemplo, Secretário de Estado da primeira potência mundial, chegou a ser cogitado para a Presidência norte-americana.
O fato é que aos olhos do recém-chegado abriu-se um horizonte insuspeitado. “Rapaz da roça”, lembrou a sobrinha (Maria Luiza Frederica Avé Precht de Mesquita), “engonçado nos ternos de brim cortados e cosidos pela mãe, na máquina de mão, à noite, à luz de lampião de querosene…” Extraordinário que o jovem jornalista, em meio a gente tão sofisticada, ilustre e rica como a do grupo de Paris, não demonstre a menor timidez e acabe, em três tempos, “adotado” por todos. Eduardo Prado, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Bulhão Pato. O Barão do Rio Branco por ele se afeiçoa. Seu destino estava traçado. Também em três tempos, deixou de ser “engonçado” e passou a se vestir nos melhores alfaiates de Paris ou de Londres. Não tardaria, tampouco, a utilizar um Rolls-Royce e a se tornar habitué do Ritz e de outros grandes hotéis da Europa. Seu antigo secretário, Heitor Lyra, lembra que levava o requinte de representação ao ponto de viajar sempre na companhia de um valet de chambre. Na síntese de Fernando Magalhães, saltou de “uma infância anônima e aldeã a uma maturidade ornamentada e famosa”.
Mas não lhe teria bastado, como bafejo da sorte, a iniciação jornalística da Gazeta, que lhe propiciou a primeira viagem. Domício, como que preparado para o salto quântico, pôde absorver, com surpreendente naturalidade, o choque cultural, social, profissional e humano que o aguardava no outro lado do Atlântico. Neófito no centro de uma constelação de celebridades, não se deixou intimidar. Ao contrário, terá mobilizado seus talentos, sua naturalidade e simpatia, procurando não criar atritos, não importunar, talvez fazer-se útil, prestativo.
O agasalho de Rio Branco, evidentemente, foi o trampolim para culminâncias insuspeitadas. Mas acredito que também tenham sido conquistadas. Sabe-se, por exemplo, que Domício mostrou interesse pela rica coleção de mapas da biblioteca de Eduardo Prado; tê-los-á estudado, ter-se-á familiarizado com as questões de limites que atormentavam o Barão. Medeiros e Albuquerque vai mais longe e se diz convencido de que a colaboração íntima entre os dois não decorreu dos dotes literários de Domício, mas de motivo bem diverso: sabia desenhar e revelou interesse por Cartografia.
O fato é que, embora estranho à bulha esfuziante daqueles tempos e preferindo, por natureza, o convívio dos livros, Domício foi pouco a pouco se deixando envolver por esse ambiente de intensa vibração. Não obstante, a colaboração europeia da Gazeta, estudada por Fernando Magalhães, continuou a chegar ao leitor carioca, invariavelmente, no estilo reverente e cauteloso de sempre, “dizendo menos e sugerindo mais, piedoso na maldade, sereno na surpresa, recatado no sofrimento e singelo na emoção”.
Os ensaios jornalísticos que escreveu aos vinte anos, já então sóbrios e contidos, são prenúncios do tom, ou melhor, do semitom, da insinuação sutil que caracterizam os dois únicos livros que publicou: Contos à Meia-Tinta, em 1891; Histórias Curtas, três anos depois.
Lúcia Miguel Pereira julgou os contos apenas “estimáveis, posto que talvez intelectualizados demais na concepção, e por demais rebuscados na forma”. Em realidade, digo eu, curto é o livro, pois 12 dos 22 contos são transcrições literais do anterior, como se Domício tivesse querido escapar, a qualquer preço, de possível labéu decorrente da autoria de um livro apenas. Cuidado dispensável. Nesta Casa, tivemos autor de um livro só na pessoa de Afonso Pena Júnior, mas que livro portentoso, A Arte de Furtar e o seu Autor!
A eleição de Domício para a Academia, aos 34 anos, ocorreu em 1897, um dos dez escritores escolhidos pelos trinta primeiros para compor o total de quarenta. A posse, somente em junho de 1900. A seu crédito, não tinha mais que o primeiro livro de contos. Mas já não era dono do seu tempo. O “efeito” Rio Branco já se fizera sentir no ano anterior com a primeira nomeação, para o Serviço de Imigração, com sede em Paris.
Com muita argúcia, Medeiros e Albuquerque assinalou que nunca um autor se caracterizou melhor pelo título de suas obras do que Domício. “A concisão explica o título das histórias curtas”, comentou Magalhães,
o receio confirma os contos à meia-tinta. Traços leves, entrechos ligeiros, sensações instantâneas, estendem-se tanto quanto as psicologias complicadas. É a largueza dentro da brevidade: um panorama em poucas linhas, um caráter em duas réplicas. Escreveu como falou: homem de educação esmerada, falava baixinho; baixinho também escreveu, e, na prosa como na conversação, sussurrou deliciosamente, no encanto e na suavidade. Criador imparcial, sente a figura que imagina e o caso que compõe, mas não os carrega nem os deforma com o acessório, por lhe bastar a alusão branda e para não melindrar a argúcia de quem o lê.
O estilo desse par de livros, a linguagem exata e disciplinada, melancólica e enternecida, em que a ideia é invariavelmente subjugada pela concisão, contrastam com a rica produção epistolar de Domício, mais livre e desimpedida, aberta a comentários imprevistos, a tiradas filosóficas bem-humoradas, impensáveis nos escritos para o grande público.
Não surpreende que Domício não tenha produzido mais. O segundo livro é de 1901, ano divisor de águas. Após a primeira missão em Washington, outras circunstâncias o levariam a postos da maior responsabilidade, primeiro como auxiliar direto do Barão e, a seguir, chefe de missão no Peru, na Argentina e nos Estados Unidos, onde substituiu Joaquim Nabuco, por escolha pessoal, honrosíssima, de Rio Branco. Catapultado, assim, às culminâncias da diplomacia brasileira, nada mais natural que fosse chamado a assumir a pasta das Relações Exteriores em 1918, na segunda presidência de Rodrigues Alves. Mas, logo depois, sua estrela deixaria de brilhar.
Começou no episódio da chefia da delegação à Conferência da Paz, em Versalhes. Face à recusa de Rui Barbosa, natural teria sido que Domício, titular da pasta, fosse o escolhido, o que não ocorreu.
Além do argumento – sem dúvida válido – da demora na formulação do convite, agravada por uma nota do Jornal do Commercio (24 novembro 1918) que dera como chefe da delegação o ministro do Exterior, pergunto-me se não terá pesado na decisão de Rui, como agravante, a animosidade acadêmica.
Lembro que Rui foi eleito presidente desta Casa, pela segunda vez, em novembro de 1918; e Domício, secretário-geral. Ocupadíssimo em outras frentes, Rui não exerceu, de fato, a presidência, que tocou ao secretário-geral, desde a primeira sessão que se seguiu à eleição. Enfim, um arranjo que dificilmente pode funcionar a contento, como sabemos todos. Este, durou exatamente seis meses. Em 1.º de maio, carta-bomba de Rui. Demitia-se, em caráter irrevogável, não apenas da presidência, mas da própria Academia. A razão? A não aceitação do voto que mandara para a vaga de Alcindo Guanabara, sob a alegação de ter sido transmitido por telegrama. Quinze dias depois, nova eleição. Domício, presidente de fato, tornou-se presidente de direito. Gestão igualmente relâmpago: durou quatro meses. Em 2 de outubro, anuncia, em carta, sua partida para a Europa já no domingo seguinte. Período, reconheçamos, de alta rotatividade. Entra Carlos de Laet.
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(Abro parêntese para uma breve nota: o convite do Presidente Rodrigues Alves a Rui (3.12.1918), amabilíssimo, tinha 16 linhas. A recusa, exatamente, 16 páginas datilografadas, embora a substância estivesse concentrada em poucas palavras categóricas: Chega tarde em demasia. Se V. Exa. me queria para tão séria empreitada, por que não me deu suas ordens há mais tempo? Quem, se não Rui, poderia dar-se o luxo de repreender os presidentes?)
Por essa, ou por outras razões, o certo é que Rui cultivou profunda aversão, talvez mesmo ódio, a Domício, contra quem não perdeu oportunidade de fustigar com palavras duríssimas. Não apenas não o poupou em carta ao Presidente Rodrigues Alves, mas até o insultou de público, com o maior destempero. O desejo de chefiar a delegação foi taxado de “felonia”; a justa aspiração de Domício, um ato de “cobiça imoral com que atraiçoava o Conselheiro Rodrigues Alves, uma falcatrua”.
Se me permitirem mais um parêntese descontraído, a propósito da Conferência de Versalhes, lembrarei a história que ouvi, mais de uma vez, de Edmundo da Luz Pinto, um dos causeurs mais fascinantes que conheci. Segundo ele, Rodrigues Alves, do seu leito de inválido em Guaratinguetá, escreveu a Rui incitando-o a aceitar a chefia da representação brasileira. A carta foi levada pelo filho do Presidente, José (Juquinha), com a recomendação expressa de que fosse entregue pessoalmente a Rui pelo Vice-Presidente Delfim Moreira, no exercício da Presidência. Seria um modo de lisonjear o grande baiano, muito sensível a esse tipo de atenções.
Com seu ar de matuto mineiro, porém finório consumado, Delfim recebeu a carta, concordou plenamente e acompanhou Juquinha até à escada do palácio. Mal havia o visitante começado a descer, um grito de Delfim o fez parar. “Olhe aqui, diga ao Conselheiro (título, àquela altura, mais prestigioso que o de presidente da República) que não faço visita nenhuma. Se fosse ele que subisse as escadas do Rui, ele estaria subindo, mas eu, se fizesse o mesmo, estaria descendo.”
Edmundo da Luz Pinto assegurava também possuir cópia fotostática da brevíssima reação do vice-presidente à recusa de Rui. Carta de uma só linha, direta ao ponto: “Ilmo. Sr. Conselheiro Rui Barbosa, sinto muito, mas chorar não posso.” Assinado, Delfim Moreira.
(Uma última nota: O Embaixador Heitor Lyra, que conheceu Domício no Ministério e de quem seria secretário em Londres, lembra em suas memórias que o presidente em exercício “apresentava já os primeiros sintomas do mal que pouco depois o poria apatetado e, por isso, irresponsável”. Mas ainda não inteiramente, como acabamos de ver.)
Uma palavra final sobre o Fundador da Cadeira 33. Tendo ocorrido o falecimento de Rodrigues Alves, nosso Domício foi ocupar a Embaixada em Londres, onde o atingiu, injusta e inopinadamente, a disponibilidade. De volta ao Brasil, nunca mais se refez. Faleceu em menos de um ano. Recentemente, graças ao interesse e diligência do Embaixador João Hermes Pereira de Araújo, um belo retrato a óleo de Domício foi colocado no Gabinete do Ministro, no Itamaraty, homenagem mais do que merecida.
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Impossível contraste maior que o de Domício com o patrono que ele próprio advogou para a Cadeira 33: Raul Pompeia. Atração de antípoda? Pompeia buscou a morte num dia de alegria; Domício, esperando-a, conformado, em horas de tristeza.
Em seu discurso de posse nesta mesma Cadeira 33, Luís Edmundo se deteve nesta antinomia para uma de suas clarinadas:
Pompeia nos sugere glória esplêndida de um sol em seu pleno fulgor do meio-dia. Domício aquele meio-tom, aquela claridade pálida e medrosa, que a gente vê tingindo as gazes da manhã. Um era audaz, insólito, imponente; o outro discreto, tímido, nebuloso. Nas letras, Domício ama e cultiva as miniaturas, o ensaio breve, o conto. Bibelot... Às responsabilidades do romance receia. Teme as composições de grandes movimentos, a aceitação de numerosos personagens, constituindo-se, como ele próprio diz, no prólogo de um livro, que escreveu com as páginas de álbum.
Se Domício tanto insistiu na escolha de Pompeia – o que não era do seu feitio –, devia ser porque tinha o que dizer. Tentou. Esforçou-se muito em perscrutar esse labirinto emocional imperscrutável, mas se apercebeu de que havia tentado uma missão impossível. Conformou-se em admitir que o elogio de Raul Pompeia não estava feito. Conformou-se em esperar que sua tentativa falha pudesse, e cito, “estimular os mais capazes a erigir-lhe o monumento perene”.
A resposta de Lúcio de Mendonça foi de extrema brevidade, não passou de três páginas. Aliás, nos primeiros anos da Academia os discursos eram particularmente sucintos, tradição que muitos dos presentes lamentarão não tenha continuado. Após quatro parágrafos de boas-vindas, um trovão.
Natal de 1895,
pleno meio-dia de verão, tépido e luminoso entre o aroma dos jasmineiros e o estríduo cantar das cigarras, diz Lúcio; [...] Pois foi no claro céu desse dia que estalou para mim o raio! entrou-me pelo jardim e pela sala, inesperado, horrível, um mensageiro fúnebre, um belo rapaz, todo de negro, com lágrimas na face e a voz estrangulada de soluços; era o irmão de Raul Pompeia; vinha dizer-me, a mandado da família, que o meu querido amigo acabava de suicidar-se com uma bala de revólver metida no coração! Parti sem demora para o local da catástrofe; encontrei ainda intacto o cenário do trágico momento e Raul Pompeia estendido morto, com uma flor de sangue ao lado esquerdo do peito. A sua bela fisionomia guardava ainda toda a nobreza das feições; afigurava-me que a todo o instante ia lhe ver cintilar ainda o olhar inteligente e agitar-lhe os lábios o sorriso irônico, tão dele! mísera ilusão, que a realidade brutal contradizia e dissipava: pela primeira vez, aquele peito bom e generoso ficava inerte e impassível ao calor do meu abraço!
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Prof. Bechara, o expoente Fernando Magalhães, o obstetra de talento a que já me referi, enfrentou diretamente o problema e o valor desse termo. “Ainda não sei,” disse ele, “com o selo dos expoentes, se a palavra vale por um adorno ou por um labéu.” “Não atino como me aplaudir em função de sinal algébrico ou de flexão gramatical.”
Mais adiante, ao evocar o vezo secular, no Brasil, de consorciar musas e males, argumentou:
A medicina curte resignada uma desafeição imerecida. Protestam por vê-la ao vosso lado, ela que só anseia pelo vosso aconchego. Por que tanta intransigência, quando a tradicional comunhão entre poetas, talvez doentes, e médicos, talvez rimadores, abrigou sob o mesmo teto, e dentro das mesmas aspirações, homens de pulso e de sentimento, firmes igualmente na posologia dos remédios, no trato das doenças, na cadência da métrica, na pureza dos vocábulos, nos surtos da imaginação e no polimento dos conceitos!
A resposta imediata desta Casa, deu-a Medeiros e Albuquerque:
Fizeste bem em insurgir-vos contra os que, não se sabe com que autoridade, procuram tutelar-nos, discutindo as nossas escolhas e falando contra o que chamam o regime dos expoentes; [...] A Academia se sente orgulhosa desses expoentes, que, ao fino gosto de homens de letras, homens de boas letras, juntam a qualidade de ser os valores mais altos representativos das classes a que pertencem.
Para encerrar, de vez, a questão, conclui:
Se, de fato, nós quiséssemos que aqui ficassem apenas os que são puros letrados, vivendo da Literatura e vivendo para a Literatura, teríamos de dissolver-nos pacificamente. Não ficaria um só. Não ficaria sequer a memória de nenhum dos que já morreram, a começar pelo glorioso presidente que primeiro nos reuniu sob a sua autoridade: Machado de Assis, [...] burocrata minucioso, que passou a vida a informar papéis em um dos Ministérios, remetendo-os, dia a dia, ao respectivo ministro: “Passo às mãos de V. Exa. [...] De acordo com as ordens de V. Exa. V. Exa. decidirá, porém, como entender na sua alta sabedoria...” Dessa alta sabedoria de alguns de seus chefes, como devia sorrir (sorrir apenas, porque na sua infinita discrição, ele não sabia rir), o fino ironista do Quincas Borba e de Brás Cubas!
O problema não se põe no vosso caso, Prof. Bechara, pois não sendo classificado como literato, stricto sensu, não sois tampouco “expoente” uma vez que a vossa especialização se encaixa, por inteiro, no artigo primeiro do nosso Estatuto, segundo o qual a Academia “tem por fim a cultura da Língua e da Literatura Nacional”. Deveis ocupar, assim, um espaço que vos é próprio. A Língua Nacional é o vosso assunto, é o vosso ofício.
Este é o mandato que nos cumpre ter presente a todo momento.
Se a nossa Língua vai mal, não é porque a Cultura dita pós-moderna nos levou a incorporar, por exemplo, os neologismos da comunicação, e sim porque a juventude estudantil lê pouco, fala mal e escreve pior. Uma língua se protege com o estudo e com a consciência de que se trata de um patrimônio essencial. A nossa é das mais belas e ricas, devemos tratá-la com o respeito que merece. Não é levantando barreiras artificiais contra a invasão de termos e expressões de curso internacional que a defenderemos. O caminho certo é conhecê-la melhor. Se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDB], promulgada em 1996, dedicou à questão linguística apenas um de seus quase cem artigos, tratemos de corrigir a omissão e de dar um embasamento mais sólido à defesa do idioma.
E a língua do dólar, que invade a tela dos nossos computadores? Isto é inevitável e produz uma série de palavras técnicas que tenderão a se implantar, ou não, e mesmo a ser usadas como figuras de retórica. Tais palavras serão automaticamente substituídas por outras, segundo a rápida evolução tecnológica. A Internet nasceu e se desenvolveu num caldo de cultura anglo-saxão, e não vejo mal nenhum nessa presença palpitante, exceto os exageros por comodidade, como o recurso a deletar e deformações semelhantes. O medo de caminharmos para uma forma de esterilização, com risco de esterilidade intelectual, me parece infundado. Acho mesmo que, pelo contrário, a presença dessas “palavras universais”, aqui e acolá, age até como uma espécie de tempero, de estímulo, de enriquecimento das formas de expressão. O acréscimo de colorido tende a aproximar culturas diversas, enriquecendo a todas. Isso porque – não esqueçamos – essas palavras que circulam pelo mundo são portadoras de História e de Cultura.
Sou inteiramente cético quanto à utilidade de se regulamentar, por decreto, a defesa do idioma. Camisas de força, além de inócuas, são contraproducentes. Nossa Língua é suficientemente dotada, sob todos os pontos de vista, para sobreviver às agressões presentes e futuras. Consideremos natural que a geração dotcom se delicie com o uso desimpedido da nomenclatura cibernética e pensemos, isso sim, em escorar o idioma mediante a correção das deficiências em nosso sistema educativo.
É, pois, com grande satisfação, Prof. Bechara, que endosso as palavras de Medeiros e Albuquerque, ao dar-vos as boas-vindas nesta Casa.
***
Minhas lembranças de Luís Edmundo, das vezes que o vi e ouvi no meu tempo de estudante e jovem diplomata, continuam indeléveis. Mal podia acreditar que aquele cronista apaixonado do velho Rio, com a ideia fixa de reconstituir o passado da nossa capital, tivesse sido, na mocidade, um dos cabeças da brigada de choque simbolista empenhada no assalto às casamatas parnasianas. A evocação que dele fez Afrânio Coutinho confere plenamente com a minha:
Bonitão, elegantíssimo, no seu porte de quase um metro e noventa, de pernas tão compridas que antes pareciam andas, sempre trajado no rigor da moda, com um indefectível monóculo, era um dândi, exímio dançarino, enamorado das mulheres, disputado por elas, com a alma e a Poesia aos seus pés, pondo-as em polvorosa nas festas ou no footing das cinco horas na Avenida ou na porta da Colombo. Era um furor. E, de fato, foi o derradeiro representante da geração literária do dandismo.
Embora poeta apreciado, não apenas pelo grande público (quem, da minha geração, não se lembra do soneto “Olhos Tristes”?) mas por eminências do porte de Coelho Neto e Medeiros e Albuquerque, Luís Edmundo será lembrado, sobretudo, como historiador.
Quando publicou o seu grande painel do Rio antigo, sua veia literária foi mais celebrada que as cautelas do historiador. Mas àquela altura – estamos em 1932 – isso ainda não fazia falta. O leitor era muito menos exigente do que hoje e se contentou em se divertir com as pinceladas fortes que compõem a crônica de meio século desta cidade ao tempo dos vice-reis.
***
Chegamos, assim, ao vosso antecessor imediato, Afrânio Coutinho. Não posso falar sobre ele sem emoção, sem o sentimento de perda de amigo muito próximo, o amigo que escolhi para me receber nesta Companhia.
Afrânio lembra uma linha reta. Incapaz de simulação, de dizer coisa por outra, não ir direto ao ponto. No seu discurso de recepção, em 1962, já as primeiras palavras são como uma flecha lançada ao âmago do Impressionismo em Literatura, larga avenida que escolheu para conduzi-lo ao Patrono Pompeia e ao Fundador Domício. Pompeia, o único dos contemporâneos de Capistrano de Abreu que lhe dera a impressão de gênio, como acaba de lembrar o Prof. Bechara. Domício, a bater-se por tê-lo como patrono da Cadeira, cedendo ao imperativo de secretas e inconscientes afinidades espirituais e estéticas.
Dirigindo-se à Academia, Afrânio evitou rodeios e declarou:
Ao me escolherdes para a vossa ilustre Companhia, elegestes a própria controvérsia. [...] Temperamento de luta, habituado a ser considerado direitista pelos esquerdistas, e esquerdista pelos direitistas, não sou de amaciamento e contemporização, mas de tomada de posição, de nítidas opções doutrinárias, por isso despertando sempre divisões, reações e adversários. Minha paixão é o assalto à praça. Capitulada, há que procurar outro motivo para empenhar a pugnacidade ou para a provocação ao debate intelectual permanente e inconformado, renovador e revisionista. Espírito afirmativo, acredito em minhas ideias, sei batalhar por elas e defender o que faço. Acostumei-me a reunir do outro lado da barricada os adversários, a fim de derrotá-los a todos juntos, recuando sem amargor, nas batalhas perdidas, para no final vencer a guerra. Atinjo, assim, esse momento com a alegria do soldado que chega ao topo da cumeada com a serena postura de quem tem saldadas as dívidas para com Deus e o próximo.
Este parágrafo é um retrato de corpo inteiro, sem retoques, de Afrânio Coutinho, nosso pranteado companheiro.
O belo discurso com que o recebeu Levi Carneiro não é peça de circunstância, mas de análise crítica extremamente desenvolta, de interpretação minuciosa e densa, rica de comentários, reveladora de extrema competência e conhecimento. Polemiza, logo de entrada, com Afrânio, o que considero empresa de alto risco. Diverge aqui, converge acolá, antecipa metas, alterna louvação e reserva, porém em tom invariavelmente cordial. No final, parafraseando outro baiano de gênio (desculpem o pleonasmo) que foi Afrânio Peixoto, Levi declara que havia chegado o momento de o recém-chegado passar de incendiário a bombeiro.
Incendiário, sim, mas que guardava no coração um tesouro de afetividade. Levi Carneiro, em sua garimpagem meticulosa, deteve-se nas dedicatórias de Afrânio, dedicatórias à velha moda, a pessoas de família, ou amigos, e com elas documentou a persistência, ainda que por vezes mal contida, desse traço marcante de sua personalidade.
A oração de boas-vindas prossegue num crescendo:
Através da obra longa e trabalhada, chegastes ao cimo da montanha – que não é o termo da jornada. O semeador esclarecido e devotado tem a surpresa de ver a boa semente germinar antes do tempo. Tão cedo começastes vossa tarefa, com tanto ardor vos empenhastes nela que cedo também chegou a hora de encerrá-la, não para o vosso descanso, ainda que merecido, mas para prosseguir em outra, que a complementa.
Para significar que o esforço e aplicação de Afrânio já haviam rendido frutos, e continuariam vivos depois dele, Levi Carneiro passa à evocação dos discípulos que formou e motivou:
Agora, nem estais só, como no início da luta. Surgiram discípulos, colaboradores, continuadores, alguns de grandes méritos. De um desses dissestes que fazia “a primeira demonstração prática da nova crítica brasileira em livro”. É Eduardo Portella, que tem a mesma vossa orientação doutrinária, provinda de singulares analogias de formação, pelos estudos especializados no estrangeiro – vós nos Estados Unidos, ele na Europa latina – e iniciado no exercício da Crítica Literária depois de vós, ainda mais jovem que vós mesmos. Tão auspiciosa revelação, que tem ele sabido divergir de vós, mestre reconhecido. Nessas divergências se desenvolve, se adapta, se aprimora, vosso ensinamento.
Menos de vinte anos depois, esse dileto continuador, Eduardo Portella, seria aclamado membro desta Casa, estaria ministro da Educação e Cultura, diretor adjunto da UNESCO, celebrado aquém e além-mar.
Pergunto: que melhor prêmio, que melhor recompensa, a quem dedicou tantos anos, mobilizou tanto ardor, assumiu tantos compromissos consigo mesmo e com a Literatura Brasileira? Os que elegeram Afrânio membro da Academia Brasileira não lhe outorgaram apenas um galardão, porém, antes e acima de tudo, um incentivo merecido e oportuno para que prosseguisse até o remate à sua obra.
O Brasil, o Brasil brasileiro, foi o refrão da cruzada de Afrânio, a lança em riste contra hereges e infiéis. Foi o ideal que perseguiu e pelo qual se bateu com ardor e teimosia.
O que nos interessa é o Brasil, é dar solução brasileira aos nossos problemas, equidistantes de Cuba e da Argentina, é pensar o Brasil, afirmá-lo, consolidar-lhe as forças vitais, harmonizar-lhe a vida interior, favorecer uma existência feliz e confortável, livre de sofrimentos e angústias, para o povo. Só um fanatismo deve mover-nos, aquele fanatismo da esperança de que falou Mirabeau.
Para concluir, senhoras e senhores, recordo que a chegada de um novo companheiro não é, apenas, momento de júbilo e de boas-vindas, mas igualmente de homenagem ao que lhe cedeu a Cadeira. A primeira imagem de Afrânio Coutinho que me vem à mente é a de um vulcão, vulcão generoso que o tempo precisou pelejar para acalmar e muitos anos mais para fazer adormecer.
25 de maio de 2001