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Distorção

 

‘Por fora bela viola, por dentro pão bolorento.”

O ditado se aplica muito bem às intenções da famosa Lei Rouanet. O seu autor, hoje, quando instado a comentar o instrumento legal se protege no silêncio: “Não quero mais falar nisso.” Assim Sérgio Rouanet, que frequenta assiduamente as sessões da Academia Brasileira de Letras, evita falar da sua hoje polêmica lei.

Feita para estimular a produção, a difusão e o acesso à cultura no país, há cerca de duas décadas, a Lei Rouanet está sendo vítima de uma série indesculpável de distorções, fruto naturalmente dos enormes equívocos assinalados em sua precária fiscalização. Trabalho dobrado para o jovem ministro da Cultura, diplomata Marcelo Calero, que assumiu a pasta com um elogiável apetite.

Há coisas incompreensíveis. Querem um exemplo? O Rock in Rio. Sucesso de público e bilheteria, cobrando ingressos em média de R$ 300, por que precisaria de mais R$ 6 milhões da nossa lei de incentivos? Pois foi o que aconteceu, para nosso espanto. Quando estourou o caso da Bellini Cultural, de São Paulo, com dezenas de projetos inacreditáveis, como festas de casamento e comemorações de fim de ano de grandes empresas brasileiras, surgiu a natural perplexidade. É assim que se busca prestigiar a nossa cultura?

Pelo menos 12 empresas fizeram coisas do arco da velha, como prometer livros de poesia para distribuição entre pessoas pobres ou sugerir concertos da Orquestra Sinfônica Nacional, mas trocar isso por um elevado cachê do Jota Quest num congresso de anestesiologia é um evidente absurdo.

Recursos da renúncia fiscal foram prometidos para a realização de espetáculos e compra de livros para bibliotecas públicas, mas acabaram devolvidos aos próprios patrocinadores, com a interveniência desonesta de dirigentes que autorizavam a tramoia consentida. A Toyota comoveu autoridades, prometendo “retratar a cultura regional e as belezas naturais dos estados de Alagoas e Pernambuco”. Seria muito bonito se ela tivesse cumprido o prometido. Entregou só a metade do compromisso — e ninguém chiou.

É claro que um dia isso tudo seria descoberto, como acabou acontecendo com a intervenção da Polícia Federal de São Paulo, na deflagração da Operação Boca Livre. Muitas irregularidades estão sendo descobertas, e ainda não chegamos ao final do processo. Já dá para perceber que o Ministério da Cultura terá uma imensa tarefa à frente para levantar essas e outras irregularidades, já comprovadas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Uma das façanhas, no entanto, foi em Santa Catarina, com o financiamento de um casamento com os recursos da lei, que certamente não foi feita para isso.

Segundo se apurou, o início dessa esbórnia foi no ano de 2001. Demorou até agora para se reconhecer o que estava ocorrendo, desmoralizando completamente as maravilhosas intenções dos que bolaram o instrumento legal para substituir a antiga Lei Sarney de Incentivo à Cultura.

Se é fato que a Lei Rouanet será modificada, para garantia da sua necessária segurança, importa também considerar que se espera um maior distributivismo do incentivo, ou seja, que os nossos bolsões de pobreza sejam também contemplados de forma expressiva. Esses mecanismos oficiais, em geral, têm privilegiado os grandes centros urbanos, especialmente o Rio e São Paulo. Deve-se olhar também para o Norte e o Nordeste, com igual relevo.

O Globo, 14/07/2016