O REENCONTRO
Foi pouco antes da Missa do Galo, enquanto os povos se aglomeravam no Largo da Matriz, que Gutemberg Roldão viu-a, pela primeira vez: — sentiu, num estremecimento estranho, a sensação de um reencontro: já se conheciam sem saber de onde: dois seres exaustos de recípocra procura ansiosa, que, afinal, se reachavam num ponto predestinado: — neste mundo varado, estradado e bifurcado, o reencontro se dava na pequena Serras Azuis!
A praça, profusamente iluminada: lâmpadas se acumulavam em cada canto. De maneira que Gutemberg pôde vê-la bem claramente vista: sua beleza serena e assentada marcava-lhe a vida para todo o sempre. Viu-a como um todo que impressiona e fixa definitivamente um momento: nem lhe reparou nos detalhes: — a tez clara, os cabelos negros e aqueles grandes olhos verdes. E tudo assim, de supetão, tão rápido. Teve, porém, tempo para senti-la também afetada, pela recíproca daquele olhar. O modo especial com que ela disfarçadamente o fitou pela quina dos olhos, rasgou-lhe uma estrada de ventura, como se o mundo parasse naquele instante.
Quando o Efigeninho e o Jovem Telegrafista chegaram, Gutemberg contou-lhes aquilo que considerava uma estranha visão.
— Uma mulher bonita é sempre assim. Gente de fora, chegaram hoje, pernoitam e seguem amanhã - disse o Efigeninho, rindo-se.
— Quem será? — perguntava Gutemberg, hipnotizado.
Ninguém tinha ideia. Iam conversar mais um pouco, andando, fazendo hora para a ceia.
— Se vocês não se importam, poderíamos dar umas voltinhas pelas ruas: talvez a víssemos — sugeriu Gutemberg.
Procuraram-na. Pela praça. Pelos hotéis. Pelo Largo da Escrava. Nem sombra.
— Que jeito tem ela? — perguntou o Efigeninho.
— O da beleza da inesquecibilidade, o da definitibilidade — disse Gutemberg, aereamente.
— Assim, você não ajuda — respondeu Efigeninho. — Dê-nos os traços materiais, reais e acessórios: e com quem estava?
— Saía sozinha da Matriz: nossos olhares se chocaram.
— Não faço a menor ideia - disse o Jovem Telegrafista.
— Não é daqui.
Gutemberg não ouvia.
— Foi-se embora — murmurou num lamento...
— Então vamos também. Natal é pretexto para festas, bebedeiras, vendas e comedorias — disse o Efigeninho.
Gutemberg acompanhou-os, silencioso, concentrado, alheio. Jovem Telegrafista compreendeu que gostaria de prolongar a busca.
— Vamos procurá-la mais um pouco — disse.
— Se vocês não se incomodam, talvez esteja passeando: a noite está toda acordada.
Procuraram-na: em vão. Quando perceberam, estavam na porta do Austríaco: pensaram em entrar para um abraço de festas, mas ouviram vozes desconhecidas e desistiram.
O Efigeninho estava entusiasmado: naquela noite fazia estreia, no bordel do Zário, soberba mulher encomendada de fora, que ele vira na rua e cobiçava.
— O pecado é a grande felicidade do homem, é a afirmação. A virtude, a treva — dizia e dirigindo-se a Gutemberg, sacudiu-o pelo braço: — acorda, homem!
Gutemberg acordou e falou com convicção: — Tenho certeza de que ela é de Serras Azuis.
— Então, tranquilize-se — disse o Jovem Telegrafista. — Em Serras Azuis nada se esconde, tudo se descobre.
Chegavam à Confeitaria Cruzeiro: o mulherio já a apinhava: a orquestra do Zé Pê gemia um tango: a fumaça dos cigarros enegrecia o teto da esteira, abafando o ambiente. A mulher que devia estrear vinha chegando, já sob a mira do Vidigal, cidadão circunspecto, provedor da irmandade religiosa mais importante da paróquia.
O Rau-Ró-Ró, fiscal das mulheres do Zário, chamou o Efigeninho a um canto: naquela noite não seria possível, porque depois do Vidigal, a mulher seria do Carrijinho, o promotor.
— Do Carrijinho? Pois então desisto para sempre.
O ambiente da Cruzeiro estava carregado.
— Ali, no Peto — sugeriu Gutemberg — come-se bem e se está mais arejado.
Foram para o Peto. Jovem Telegrafista e Efigeninho comeram e beberam muito. Gutemberg continuava impressionado, abstrato.
— Tenho certeza: o jeito dela não me engana: — é de Serras Azuis.
— Você está assombrado, calma! — disse o Jovem Telegrafista.
A madrugada ia alta: Efigeninho mal se mantinha em pé. Saíram. Efigeninho tentou cantarolar a grande valsa local:
“Serras Azuis dos meus sonhos...”
Despediram-se: cada qual tomou o seu rumo. Gutemberg voltou ao Largo da Matriz na tentativa de encontrar qualquer coisa daquele olhar. Depois recolheu-se. Na manhã seguinte levantou-se pensando nela. Conversou com a Tia Simíramis. O dia abafava; o sol queimava. À tardinha saiu: encontrou-se com Efigeninho no Largo da Escrava: alguns meninos retardatários pediam festas. Efigeninho bocejava com sono e ressaca. De repente, Gutemberg assustou-se, agarrou-lhe o braço e sacudiu:
— Espia, ali: - é ela... Olha... Ali! — disse, apontando discretamente.
Efigeninho tornou-se sério, espantado:
— Você não exagera? É Lígia...
— Que importa? Que Lígia? — disse Gutemberg, já encaminhando-se para onde estava ela, com Rosemunde.
Efigeninho deteve-o:
— Você não a conhece?
— Não. Quero conhecê-la agora. Vamos. Você está empacado...
— É Lígia...
— Que Lígia? Você me enerva.
... — das Graças.
— Ora, que graças? — dizia Gutemberg, impaciente, ansioso.
Efigeninho pôs a mão em seu ombro, segurando-o, e, cheio de pesar:
— Escute, homem, é Lígia das Graças O’Neil de Paiva...
Gutemberg estremeceu: tornou-se lívido, desapontado como se lhe fugisse, de repente, a luz.
Efigeninho continuou, solidário, sinceramente penalizado:
— É a filha do Paiva, a que se formou. Tem estado no colégio, e depois dos estudos, vive mais para o Cachimbo. Vem pouco à cidade. Você nunca a tinha visto antes? Não é possível!
As emoções, a circulação e o entusiasmo de Gutemberg estavam paralisados e se sentia destruído, esfriado. Tendo de aceitar a verdade dos fatos, só pôde murmurar, à guisa de uma autoconsolação:
— Em todo o caso, eu tinha razão: é de Serras Azuis. É uma pena, é uma lástima.
— Então, ela te fez tal impressão? Não se pensa nisto nem se toca mais no assunto. É Paiva, Gute, é Paiva do Conflito — dizia Efigeninho com um começo de preocupação.
— Me fez uma impressão absoluta: qualquer coisa diferente.
— Lembre-se — insistiu Efigeninho — não pode passar de um incidente.
— Incidente? — perguntou Gutemberg arrasado.
Calados e quietos deram uns passos: o calor aumentava: a noite carregava-se.
— Vai cair um pé-d’água — disse Gutemberg arrasado.
— Parece.
— Estou cansado, Efigeninho, vou para casa. E você?
— Ainda fico por aqui.
Gutemberg tocou para a botica do Faria: deu um dedo de prosa e de repente perguntou:
— Faria, o Conflito foi uma sangueira terrível, não?
— Sim. É o que todos dizem. Por que você me pergunta?
— Por nada. Me veio à mente.
Começava a chover: Gutemberg apressou-se para casa. No seu quarto pensava naquele olhar cheio de beleza, interessado de Lígia das Graças. Estava, realmente, hipnotizado, fascinado, encantado.
Adormeceu profundamente: sonhou com ela. Na manhã seguinte esforçava-se para reconstituir o sonho. Só se lembrava nitidamente de ter-lhe dito:
— Lígia das Graças, tu me desgraças...
(Serras azuis, 1961.)
“FRIED AUF IMMER DER WELT”
No último sábado, antes do Natal, em plena efervescência revolucionária, Lígia das Graças O’Neil de Paiva e Gaius Gutemberg Roldão casaram-se na capelinha florida do Cachimbo.
O Faria, Rosemunde, Efigeninho foram os padrinhos e o Austríaco cantou como nunca o Magnificat. O Chumbinho ofereceu-lhes dúzias de foguetes com que assustava a paz florestal do Cachimbo.
Dona Amélia sorria e o Paiva estava emocionado.
— Quem poderia pensar isto, Faria? Como se explica?
O boticário da Esperança pôs a mão em seu ombro:
— A questão não é explicar, é aceitar. E as coisas que permanecem são as que chegam de surpresa.
— E diga-me, Faria, será um ciclo de coisas que se acabam ou que, agora, apenas começam?
— Sei lá, Paiva, por trás de nossas vidas, há sempre um mistério...
A cerimônia findava: começava um jantar íntimo.
Tarde da noite, abalaram, por um atalho, para a Garça Mimosa.
No Natal, porém, já estavam em Serras Azuis.
Em fevereiro, casava-se Rosemunde.
Logo depois, Lígia das Graças e Gutemberg partiam para o Rio: viram o Chefe do Governo Provisório e o Príncipe de Gales numa recepção oficial. Fizeram-se de navio para a Europa, para as pátrias e geografias de que o Chumbinho tanto falava. Azuis estavam as águas de Capri. De Viena amontoaram o correio com postais para o grande Dr. Gross. Cortava o frio das Germânias e nostálgico o fog londrino. Depois das terras de Espanha, a grande terra portuguesa; Marselha, e enfim, o sonho: Paris.
O Efigeninho já os esperava na doce França forte.
Um ano aí viveram. E partiram para os Estados Unidos.
— Nunca mais nos veremos — disse-lhes o Efigeninho que ficava.
— Você voltará, Efigeninho — observou Gutemberg. — Serras Azuis é o centro de nossa vida.
Efigeninho riu e concordou:
— É possível, homem. Sabe que às vezes sinto uma enorme saudade do córrego dos Ais? É feio. Mas nunca vi feiura mais bonita.
No domingo de Ramos de 1933, depois de terem conhecido terras, povos e costumes, depois de terem visto Mussolini, Hitler, Roosevelt, os Reis de Inglaterra e o Papa, Lígia das Graças e Gutemberg regressavam à branca Serras Azuis.
Efigeninho foi esperá-los em São Paulo e ao abraçá-los, dizendo-lhes:
— Você tinha razão, Gutemberg, voltei: saudades da feijoada.
Lígia das Graças estava mais bonita e Gutemberg ganhara em maturidade e experiência. Pediram as novidades.
O Efigeninho ia soltando-as: Serras Azuis não mudara; o córrego dos Ais continuava banhando a cruz do Padre Melo, chantada no seu leito, sobre o pedestal de alvenaria. Rosemunde, magnífica, com dois pimpolhos. O Faria e o Dr. Gross, sólidos.
Uma das Marcolinas se suicidara, com uma moléstia incurável. O Haddad viera, uma noite, escondido, em Serras Azuis, mas no dia seguinte, o seu corpo boiava num poço do córrego do Ais: suicidaram-no imediatamente. O Noca fora, também, suicidado antes.
O Dr. Clóvis aderia definitivamente ao Coronel Eleodegário. O Militão Pacheco, arruinaram-no e vendia loteria em São Pedro.
Aproveitando-se da arrancada constitucionalista de São Paulo, em 1932, o Padre fizera Eleodegário liquidar os Tico-ticos restantes.
— E os Tico-ticos acabaram? — perguntou Lígia das Graças.
— Não, Li, em Serras Azuis nada se acaba. Andam metidos com o Paduinha, que por sua vez vive às turras com o velho Governador do Estado. Dizem que vai ser nomeado interventor.
— Ainda não perdeu a mania de ser nomeado para alguma coisa? — perguntou Gutemberg.
— Não. É o mesmo. Ainda há pouco, ele e outros tentaram depor o Governador.
Muitas as novidades.
— A Dusu juntara-se com o juiz de Direito; o Lino Gago cortara o pulso na prisão. A filha do Zário peca ouvertement... Nem se podia dizer que enganava o Dr. Pílade, porque às claríssimas.
— E o Dr. Pílade? — perguntou Gutemberg.
— Como sempre: rastejando-se para subir... A Zefa, Eleodegário casara-a com um escrivão de coletoria. O Jovem Telegrafista estava noivo da Rosária, filha do Sr. Resende. Formar-se-á dentro de três anos.
— Fui eu — dizia Gutemberg — quem o levou à casa de Dona Januária para aquele nosso assustado. Se lembra, Lígia das Graças?
— Me lembro, se me lembro!
— Nos esbarramos um no outro, seu molhozinho de violetas caiu: eu apanhei e você me disse timidamente: “agradecida”.
— E você, Efigeninho, que tem feito?
— Nada, Li. Vida vazia. Vendo-a passar, sem nada de importante, de grandioso ter-me acontecido.
— Ora, você é um dos diretores do Banco do Paiva — disse Gutemberg.
Efigeninho riu... Afinal, ia tocar num assunto triste: a morte do Chumbinho.
— O Dr. Gross, Rosemunde e eu não aluímos o pé de junto dele. Não conhecia ninguém... Delirium tremens...
Os olhos de Gutemberg encheram-se d’água.
Lígia das Graças mudou de assunto: — E o Coronel Eleodegário. Dona Pló-Pló, o Padre?
— Eleodegário, cada vez mais rijo, não se desprega do filho do Silvaninho. Na Prefeitura não faz nada. Sá Dona Pló-Pló sempre má. E o Padre remoçara de tanto sentar a marreta nos Tico-ticos.
— Quantos anos tem Eleodegário? - perguntou Gutemberg.
— Entre setenta e oito e oitenta e dois, e está desempenado.
O trem apitava chegando: com a cabeça fora da janela, Lígia das Graças procurava distinguir o pai, a mãe, Rosemunde. E quando saltou, chorava e os beijava. A banda de música tocava a “Saudade de Serras Azuis”.
Alinhado, como sempre, com o filho do Silvaninho à mão, Eleodegário foi esperá-los e os cumprimentou em nome de Serras Azuis, a terra amiga, bela, generosa, a mãe comum.
O André Filósofo fez um discurso, e uma menina entregava a Lígia das Graças um buquê de camélias.
Por um mês, na casa do Paiva, na roda dos amigos não se falou a não ser daquela longa, maravilhosa viagem. Paiva quis fazer Gutemberg, presidente do Banco. Preferiu continuar na Garça Mimosa.
O Capitão Alcebíades não dormira no ponto: já era general e embaixador.
O Faria e o Dr. Gross vestiam a camisa verde dos integralistas.
A 3 de maio, feriam-se as eleições para a segunda constituinte republicana: o Padre triunfalmente eleito, esmagando nas urnas o Paduinha.
Depois das eleições, Eleodegário procurou Gutemberg:
— Seu Gutemberg — dizia-lhe — promulgada a Constituição, o Seu Padre volta. Eu estou cansado e Deus não me deu sucessor. O meu neto, meu saudoso Silvaninho, não existe mais. Vou deixar esta tormenta: meio século nessa batalha. Quero passar Serras Azuis para mãos honradas e sérias. Me demito e o senhor será nomeado prefeito no meu lugar. Aceite, por Serras Azuis.
Gutemberg riu modestamente: — Coronel Eleodegário, não nasci para isto. Não sei administrar.
Eleô interrompeu-o:
— Seu Gutemberg, o senhor é moço e viajado. Dará um ótimo administrador. Administrar é fácil: basta ter audácia e imaginação. Me faz o favor de pensar.
Uma tarde, Lígia das Graças e Gutemberg conversavam no alpendre, quando um telegrama chegou. Do ministro da Justiça oferecendo-lhe um cargo na administração federal, no Rio, num tardio reconhecimento de seus serviços à Revolução. Foi Lígia das Graças quem o abriu e leu.
— Eu já sabia. Contou-me o embaixador Alcebíades.
— E não me falou nada? Você aceita?
— Resolva você, Lígia das Graças. Você aceita?
— Não. Nem aceite.
— Por quê?
— Porque você ama Serras Azuis mais do que a mim.
— Mais do que a você, não. Você é o meu mundo.
Morria a bela tarde serrazulense, num poente de ouro e de sangue. Gutemberg tomou Lígia das Graças pela mão: olharam pela janela, contemplaram Serras Azuis: os serros encavalados, ligando o céu à terra, banhavam-se numa chuva de ouro, e sumiam aos poucos, apagados pela noite que caía.
Um mundo de recordações lhes invadia a alma: desde a noite em que se acharam, até a madrugada de 4 de outubro. Reviveram os lances, as curvas, os degraus daquela séria estória de amor, que culminou com a Capelinha do Cachimbo em festas.
Gutemberg ficou abstrato, longínquo.
— Em que pensa, Roldão amado?
— Sim, eu amo Serras Azuis. O pó imundo, que às vezes sobe tão alto como um sonho inconsequente; esta lama pegajosa, estas velhas ruas tortas, com suas lajes assimétricas. Eu amo Serras Azuis, as tricas, suas crônicas cheia de cor. Eu amo Serras Azuis, este cheiro forte de mata virgem, estes vaga-lumes, indo e vindo, salpicando de fogo os lírios-do-brejo, com sapos coaxando e grilos em festa. Eu amo Serras Azuis, Lígia das Graças. Eu amo Serras Azuis, é a sua terra, meu amor.
Já era noite, tépida e estrelada. Os olhos de Gutemberg viram, naquele momento, Lígia das Graças mais bela do que nunca; abraçou-a com ímpeto e com paixão sorveu-a num beijo. Murmurou-lhe uma súplica aos ouvidos. Enruborescida, respondeu-lhe com um não que consentia.
Gutemberg tomou-a nos braços: levou-a. Seu quarto recendia a amor.
Tudo, em derredor, perdia o sentido e a importância e só os dois viviam aquela fusão suprema, no apogeu daquele amor, que desafiaria o impossível e, com a pujança dos deuses, nascera para viver e triunfar, aquele amor que escondia uma misteriosa predestinação.
(Serras azuis, 1961.)