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Discurso de posse

Regurgitava a livraria. Ali se reuniam, pela manhã e ao crepúsculo, intelectuais da velha e sempre jovem São Sebastião do Rio de Janeiro, capital da inteligência do País, enquanto que com um sorriso e com uma gentileza, Carlos Ribeiro, o legendário “Mercador” da Rua São José, passeava por entre pilhas e corredores de livros a carismática simpatia.
 
Assíduo frequentador descobrindo-me encostado a um dos balcões, dirige-se em minha direção, sem formalismo, sem apresentações, exclama numa espontaneidade calorosa: “Até que enfim estou conhecendo o autor de Serras Azuis. Venha um abraço.”

Era José Cândido de Carvalho.

Eu o conhecia desde 1939, quando apareceu o palpitante romance Olha para o Céu, Frederico.

O contexto sugere reação indescritível numa sequência de emoções. Explode a narrativa em sacudidelas contínuas, em linhas borbulhantes, de onde exala o cheiro penetrante dos currais das fazendas ou dos engenhos em fins de tardes coloridas na amenidade dos campos, diluído no vento que ondula as moitas esverdeadas.
 
O romance é a saga dos plantadores de cana enfrentando percalços de toda a natureza, e Frederico é o homem visceralmente rural, teimoso, ladino, propositadamente de costas para qualquer inovação, e que, para a consecução de seu objetivo, sabe fingir-se de morto quando está bem vivo. Obstinado, a sua força concentra-se num paradoxo, porque se firma na aparência enganadora de sua fraqueza. É o protótipo, senão o paradigma, do homem do campo com a intuição do perigo e o instinto da defesa. Nada de passadas largas, desconhece a pressa, repele a aventura. Profundamente objetivo – tem de palmilhar o curso imutável de suas atividades. Não pode, por isso, olhar para o céu, se os olhos estão fitos no lucro. Tudo se resume no pequenino cosmo de São Martinho. “Olha para o céu, Frederico” – roga- lhe o padre Hugo. Talvez arrisque uma mirada para o alto, sem muita fé, mais em atenção ao sacerdote, desde que, porém, não se desvie de sua obsessão – conservar nas mãos a herdade ancestral.
 
Frederico detesta o afogadilho, não quer ser perturbado. Evita questões com o parente e vizinho, Quincas de Barros, ouvidos moucos aos mexericos. Por medo? Nunca! Apenas por calculada malícia, por astúcia finória, por inata esperteza. Aguenta de cabeça baixa insultos e desaforos lançados à sua face. Se D. Lúcia, a esposa jovem de marido erado, sai à liça, espumando braveza, ameaçando chicotadas ao insolente agressor, Frederico não aprova, envia embaixadas com desculpas ao primo provocador.
 
Taciturno, onusto, não se expande, esconde de si os pensamentos. Por ele, não virá mal ao mundo. Se invadem suas posses, atribui o abuso a gentes interessadas em querelas e discórdias. D. Lúcia, indignada, rechaça a complacência do marido. Quer a luta, quer a desforra. Nada tem de virago, ao contrário, ardente e feminina, dá-se inteirinha, sem cerimônia, muitas vezes com imprudência, ao sobrinho carnal do marido e seu por afinidade, no próprio leito conjugal ou em esbraseada regateirice pelo quintalão senhorial.

As raízes de Frederico estão bem estaqueadas no fundo da terra. A propriedade molda-lhe o caráter, a tradição exige que a casa se mantenha perene. Para tanto não recuará, não agasalha nenhum escrúpulo. Se não poupava os parentes pobres, curvava-se servilmente diante dos ricos. Sabia esconder as garras –, gavião a voar como andorinha. Papava a leiva dos primos pobres, almoçando com eles. Destarte, cairão nas suas mãos os bens do arrogante e briguento Quincas de Barros. Consegue tudo com voz macia, de veludo, com gestos mais suaves do que o arminho das asas dos anjos.

Um dia na fatalidade de todos os desfechos, Frederico baixa à sepultura.
 
São Martinho acrescido, engrossado, opulento, sem qualquer ônus a lhe pesar por cima, é o belo patrimônio que Frederico, com lábia, sovinice e obstinada persistência, soube admiravelmente conservar, e por sua morte toca à esposa e ao sobrinho descaradamente adúlteros.

Transforma-se a vida de Eduardo, de parasita sem profissão, se eleva à categoria de dono e de patrão. Implacável. Porque o molecote roubou pinhas no pomar, o sibarita  se enfurece, manda aplicar-lhe o corretivo aviltante da palmatória com a férula inclemente, a tal ponto que D. Lúcia intervém a favor do desgraçado.
 
Eduardo, em novidade com a fortuna, compra as partes que do espólio de Frederico couberam à D. Lúcia, enquanto ela assenta casamento com Quincas de Barros, o inimigo intransigente a quem ela prometera chibatadas.
 
Afinal São Martinho esvaiu-se, transformou-se num montão de dívidas e no trágico epílogo prosaico volta às mãos de D. Lúcia, comprado pelo marido Quincas de Barros.

Nada, em consequência, restaria a Eduardo, não fossem os duzentos contos de Naninha e a promessa de ociosa sinecura. Magoada lamentação, queixume nostálgico – bem poderia ter carregado pomposo nome, Eduardo Noronha de Sá Álvares de Meneses; e, se permitissem as condições, o título de visconde nacional por lambuja.

Tristão de Athayde vê em tudo isto apenas a “sórdida paixão do ganho”.

O cenário de toda esta empolgante trama, que, segundo Marcos Almir Madeira, tem muito de folclórica, é a dadivosa terra fluminense, igual por certo, no destino e nos costumes, às plagas congêneres do continente brasileiro.

No entanto, anos, luas e tantos sóis foram passados.

Por onde andaria o escritor do país goitacás? Encheria o tempo com conversas fiadas pelos ângulos loquazes das esquinas palreiras de Campos, o centro gerador de sua sensibilidade?

Com amor, com entusiasmo e “com toda a alma na pena”, como diria Vieira, estava levantando, peça por peça, a figura colossal, de quase dois metros de altura do Coronel Ponciano de Azevedo Furtado, que, entre rasgos emocionantes e feitos valerosos, iria, numa predestinação, nas cenas da vida, na postura desengonçada de um Quixote tropical com as reações ladinas de um Sancho Pança caipira, desempenhar a contento seu extraordinário papel.
 
Tanto berra quanto se derrete para apreciar a boniteza de uma planta ou a asinha filigranada de uma borboleta colorida.

Coronel fluminense como foram tantos espalhados pelas províncias da Monarquia ou pelos feudos republicanos, colecionados numa bizarra galeria, numa perfeita identidade de procedimentos, elegiam senadores, deputados, faziam governadores, pesavam nas decisões da República. Não havia o direito público, e os coronéis selavam a sorte das urnas.
 
Ninguém, como Ponciano, sem batalhas nem cicatrizes de guerra, retratava a ordenação desses figurões eleitorais, senhores de terra e de almas, agindo pela própria presença como corpo catalítico.

Aparência adamastoriana, porque comandante mofino sem a pança da prosperidade não teria garbo para autoridade militar de comando e de resoluções.
 
O Coronel e o Lobisomem marca a hora decisiva na carreira literária de José Cândido de Carvalho.
 
Livro genuinamente nacional sem ser nacionalista, sem outra intenção do que a criação artística, revitaliza episódios bem legítimos, no que eles têm de mais característico, ou seja, o binômio da cidade e o campo, a base fundamental de nossa sociedade com aquele amor, com aquele apego ao seu pedaço de solo que tanto invalida as reformas dos programas de governo...

Ponciano será herói ou anti-herói?

Nem um nem outro, ou talvez ambos, condicionados a uma contextura pessoal de ações repentinas e de reações imprevisíveis.

O de que mais se orgulha é do posto miliciano, porque lhe reforça a confiança em si mesmo, a que se junta à ideia de um privilégio – sem os galões, sem a patena dourada, se sentiria incompleto, menos desabusado.

Dado a mulheres, possui várias e não conheceu o amor. Refiro-me àquele “amor que qualquer adjetivo diminui” (Voivenel).
 
Branca dos Anjos, seu primeiro xodó, dona de lindas e sedosas tranças, morando em casa avarandada dentro de um jardim de bogaris, não lhe correspondeu. Aceitou outra corte, lá se foi, batendo a linda plumagem.
 
Esmeraldina Nogueira, paixão fremente de Ponciano, que a ama com o fogaréu de colegial deslumbrado, sabendo seduzir pelas covinhas no rosto, senhora de adoráveis olhos verdes, muito clara, cabelos em formato de labaredas, não se fartou com pérfida argúcia de explorá-lo ao máximo. Extorquiu-lhe dinheiro, deu-lhe esperanças enquanto que com algente tranquilidade traía o marido, não com Ponciano, mas com outro, Selatiel de Castro.
 
Esmeraldina ganhava com vantagem, em obra de falsidade, de D. Lúcia, a esposa de Frederico, formando com Pergentino, seu marido, par de abjetos vigaristas, tanto que Ponciano, abatido, vencido, já no fim, ao dar com os olhos nela, em carruagem luxuosa, ao lado do favorito, Selatiel, não segura a exclamação, que, se nada tem da polidez acadêmica, traduz o seu ressentimento: “Vaca!”

Apesar dos elementos formadores de sua personalidade, contrastes e afirmações, Ponciano sustentava o código de princípios éticos: repelia a covardia, não aceitava a felonia, protegia os fracos, cuidava, com desvelo, dos animaizinhos de seus campos e capões – comove a afeição pelo galinho de briga, Vermelhinho Pé de Pilão, a quem chama, com ternura, de Capitãozinho.

Sua problemática hierarquia militar, mais convencional do que castrense, tem para ele transcendental significação, tal tabu intocável, recusa-se a abater a onça que dizima galinheiros e pequenos animais, porque a devastação ocorre em terreno de militar de patente inferior à sua.
 
Onças, jacarés, sucuris, outros bichos o acompanham na tumultuada jornada de todos os dias, e quando se empreita Zuza Barbirato, o famoso de pontaria infalível, celebrado por várias mortes de panteras ferozes, quem vai afinal liquidá-la é um fracote pegador de passarinhos.

Lobisomens, aparentados aos sacis de nossas florestas, sequer o intimidam.
 
Não é tão somente nos rochedos que marginam o erudito Rheno – em que cantava e encantava a fúlvida Loreley – que aconteciam as sereias, elas habitavam imaginosamente as enfeitiçadas águas fluminenses, e uma delas escorregou pelas mãos de Ponciano.

O coronel é um exame de coisas impossíveis e inacreditáveis. Bom de charuto e melhor de garfo, frequentador inveterado e ostensivo das casas das damas da vida alegre, mestre em malandragens de amor e de sexo, se espantava pelo tamanho, conquistava pelo coração.

Ao receber José Cândido de Carvalho na Academia Fluminense de Letras, seu companheiro e fraterno amigo Alberto Torres define numa síntese a complexa figura de Ponciano: “Um misto de fraco e de grande, o campeão das causas tanto mais nobres mais irreais.”

Por que Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon, outro livro de José Cândido.

Título exótico, bergantim, embarcação amarrada à margem do rio, não do cesário tributário do Adriático, mas outro, doméstico, bem nosso.
 
Aí se enfeixam série de casos, de estórias que não nos relatam assombrações ou aparições nas casas ou nos fazendões abandonados, e, sim, os casos contados, astuciados e acontecidos do povinho do Brasil.
 
Lulu Bergantim é o homem do Rio Paraíba, com um modo personalíssimo de considerar, não com a vista de barranqueiro, mas com a de um repórter, tudo que o cerca.
 
Antonio Olinto, crítico, homem de letras, entronca Lulu Bergantim à linhagem de várias gerações anteriores, todas regionais, que com ele guardam exata afinidade numa sequência de lídima brasilidade. Diz ele:
   
É o homem da Amazônia que Paulo Jacó revela, o de Marajó que Dalcídio Jurandir cria, o da região maranhense que Josué Montello exibe, o do Nordeste que José Lins do Rego e Graciliano (mais tarde Jorge de Lima com seu excelente Calunga) negaram, o da civilização baiana de Jorge Amado, o da existencialidade carioca, desenvolvida numa série de volumes acima do comum por Otávio de Faria, o das Gerais que Rosa põe lutando nas margens do Urucuia, o paulistano surpreendido por Alcântara Machado em suas inesquecíveis histórias e do extremo Sul que nos vem explicado de Clarissa a Incidente em Antares, de Érico Veríssimo (Porta de Livraria, em O Globo, 9.12.71).
 
   
A estes, eu acrescentaria os vultos masculinos dos romances nordestinos de Rachel de Queiroz e os vários tipos humanos de que trata Adonias Filho nas páginas fulgurantes de seus romances.

Seguem-se às obras de José Cândido outros livros na mesma linha onde a graça de mãos dadas com o talento faz a alegria de nossas horas de leitura, como Um Ninho de Mafagafes Cheio de MafagafinhosOs Mágicos Municipais, e Ninguém Mata o Arco-Íris – este, conjunto de entrevistas ao agrado de sua vocação de jornalista. Esse jornalista que escrevia sob estas pressões nem sempre confluentes – a tirania da urgência e a surpresa do assunto. No entanto, a crônica, o artigo, a nota ou o suelto estavam rigorosamente redigidos na hora.
 
No exterior, na França, na Alemanha e na Argentina, traduzido para o idioma desses países, o sucesso de O Coronel e o Lobisomem arranca aplausos e a edição portuguesa o exalta com justiça.

Mário de Andrade pontua a delicadeza com que José Cândido aborda as coisas do sexo. Ei-lo que escreve: “José Cândido de Carvalho é terrivelmente hábil na descrição dos brinquedos sensuais.”

Habilidade idêntica teve-a o imensamente grande Machado no conto “A Missa do Galo” e confesso que, nas minhas leituras, jamais encontrei tanta sensualidade sob os véus prudentes, de inato pudor.

Em que língua está redigido o precioso acervo que nos lega o meu antecessor?

Numa Linguagem inovadora, audaciosa, alimentada, num País de dimensões continentais, pelas fontes riquíssimas de nossas regiões numa variedade polifônica, na exuberância de sons autóctones que proporcionam sotaques de rara beleza.
 
Prosa leve, graciosa, flui de um halo renovador. Pincemos alguns vocábulos para rápida amostragem: tristosa, ironização, feitura, quebrura, devocioneiro. Linguajar irreverente que prenuncia o advento de um idioma nacional.

Viu-o com clareza, a nossa, de todos imensamente querida, Rachel de Queiroz, assinalando com propriedade e com acerto: “Não sei de ninguém, no momento, que renove o idioma como o renova ele. Vira e revira a Língua, arrevesa as palavras, bota-lhes rabo e chifre de sufixos e prefixos, todos funcionando para a complementação especial do sentido.”

Em magnífico trabalho na Revista de Estudos da Língua Portuguesa, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, a Professora Dra. Clara Grimaldi Eleazaro, versando a obra de José Cândido, em artigo denominado “Os Mágicos Municipais num Fascinante Museu Onomástico”, focaliza os nomes próprios antonomásticos, dissecando um por um. Além da técnica adotada por José Cândido, há profunda associação entre o nome e a profissão. Ensina-nos a mestra: “Na criação de alguns antropônimos, JCC se prende a associações que envolvem revelações de semelhança e de continuidade entre o nome e o referente, no caso o portador. O processo da metáfora ou da sinédoque se realiza pela antonomásia.”

Não é só a novidade do termo, são expressões deliciosas que emprestam às suas páginas sabor diferente, como se encontra à mancheia O Coronel e o Lobisomem: “sono de militar de um olho aberto, outro fechado”, “língua chorona, visto que só via defeitura”, “luarão de cegar coruja”.

Em Por que Lulu Bergantim não Atravessou o Rubicon, mais do que propriamente o ficcionista, fala o jornalista que foi essencialmente José Cândido, com sua capacidade de ver e de reter. Vocação de imprensa, soube, com refinada verve, ilustrar as colunas da Revista Nacional, do Jornal do Commercio, de O Cruzeiro, de O Fluminense, de O Jornal, de A Cigarra, além das crônicas radiofonizadas da Rádio Nacional e da Roquette-Pinto que com tanta competência dirigiu. Honrou, elevou as funções de membro do Conselho Estadual de Cultura, a que presidiu, do Conselho Federal de Cultura, tendo, por onde passou, deixado a marca indelével de sua pessoa, o trabalho e a honestidade.

Como teria sido a “humanal” estampa de José Cândido?

A começar pelo nome, cândido, branco, alvo, cristalino, tão pessoal, que levou no seguimento lógico, dos acontecimentos que se encadeiam e se desencadeiam, existência sui generis.

Pretendeu, a princípio, numa aspiração de asas soltas, viver no último andar de trezentos sacos de açúcar, mas reduziu-lhe a majestade, contentando-se com ser funcionário da Leopoldina. Por não ter alcançado tão modesta situação, ingressou no Jornalismo e, pulando de redação para redação, realizou o sonho do pai, que era vê-lo sobraçando o canudo de bacharel, fotografado de beca e de óculos. Um dia, no exercício da profissão, foi atuar numa delegacia de polícia e aí descobriu que mais valia ter a chave da cadeia do que ser Rui Barbosa.

Estes naturais desencontros na vida de um homem, comuns de resto a todos nós, entre o objeto e o sujeito, não o despojaram de outras riquezas. Teve-as em copiosa abundância, porque pelos lábios de Ponciano, nos diz: “Quem tem, como eu tenho, um sabiá-laranjeira mestre das maiores cantorias, nunca será um pobre de Jó. Será o maior ricão do mundo.”

O personagem maior de sua criação não é um tipo comum. Ponciano é uma presença constante.
 
Atingido pela imprevidência na condução de seus negócios, fulminado pela baixa dos preços do açúcar, perdeu dinheiro, perdeu amigos, só não perdeu a postura altaneira, aquele panache de um Cyrano invicto. Manteve-se o mesmo, apesar das transformações de sua vida. Mas o mundo também mudava, e José Cândido assinala o que ocorreu entre as publicações de seu primeiro e segundos livros:
   
O mundo mudou de roupa e de penteado. Apareceu o Imposto de Renda, apareceu Adolf Hitler, e o enfarte apareceu. Veio a bomba atômica e o transplante. E a Lua deixou de ser dos namorados. Sobrevivi a todas estas catástrofes –, e finaliza: – Um mundo assim não está mais por conta de Deus. Já está agindo por conta própria.

Conservo de José Cândido lembranças particularmente inesquecíveis, tal aquela em que num dia de garoa, fui encontrá-lo molhado, encolhido, na esquina da Rua Dois de Dezembro com a do Catete. Sério, desorganizado por dentro, com a cara – o que nele era raro – de poucos amigos. Vivíamos os dias passionais de 64, pensei logo no pior. Ele notou-o, não se conteve: “Desaforo, atravessar o oceano, de Niterói ao Rio, debaixo de chuva, para ouvir o que ouvi.” – Animei-me: “Que foi, Zé Cândido?” Ao que, carrancudo, me respondeu como quem da pergunta se pesara: “Na barca, a meu lado, um sujeito descia o pau em Eça de Queirós. Num caso como este, justifico uma cassação.”

Eciano como eu, dos mais roxos, havia, sem dúvida, flagrantes vivos de semelhança entre o autor de O Coronel e o Lobisomem e o autor de Os Maias, afinidades de certo facilmente perceptíveis.

A Sra. Amélia Pamplona de Carvalho, viúva do romancista, soube esquematizá-las num paralelismo apurado que gentilmente me ofereceu. Não há senão conferi-las – filhos de pais portugueses, embora José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, o pai de Eça, tenha nascido no Brasil, ambos criados por parentes; inicialmente tentaram Advocacia, visceralmente escritores; exercendo funções aparentemente elevadas com salários medíocres; atormentados por dificuldades financeiras, muita luta, no princípio, para editarem livros, o pensamento na renovação dos processos linguísticos, nos dois irrepreensível probidade, ambos magricelas e bem vestidos, e ambos ligados a uma Pamplona – Emília Pamplona e Amélia Pamplona.

José Cândido, avesso ao mundanismo, recusando sistematicamente convites, numa guerra declarada à etiqueta e ao protocolo, não levava a sério a celebridade literária que, para ele, tinha o efêmero fulgor do fogo-fátuo.

Com um sorriso de imensa compreensão, narrava o incidente pitoresco – acabara de assistir a um filme em Campos de Goitacases e se dirigiu à elegante confeitaria acompanhado de seus familiares. Sentaram-se, pediram chá, quando então o aborda emprumada, jovem senhora, cheia de viço, facundiosa, protestando ao romancista incondicional admiração, confessando-se devoradora de seus romances. Louvava-lhe a obra magistral. Declara aquele momento o mais feliz de sua vida por vê-lo em carne e osso. Fala alto, gesticula, procura impressionar. Na senhora, estaria, por certo pelas peregrinações da metempsicose, encarnado o espírito de uma das Les Précieuses Ridicules, de Molière. José Cândido sob o fogo cerrado dos elogios à queima-roupa convida-a à sua mesa. A desconhecida admiradora não se faz de rogada, reinicia os encômios num crescendo: “O Sr. é o maior escritor do Brasil, o Sr. é um gênio, leio-o todos os dias e não apago a luz para dormir sem antes me ter deliciado com pelo menos uma página de seu grande, extraordinário, monumental romance – Memórias de um Sargento de Milícias...

José Cândido baixou a cabeça, todo enfronhado e respondeu: “Quem dera, quem me dera, minha senhora!”
   
Senhores acadêmicos,
   
venho ocupar nesta seleta Companhia a Cadeira por tantos engrandecida e honrada pelos antecessores que nos legaram messe preciosa. A começar pelo eminente Patrono, Pedro Luís, poeta de diáfana sensibilidade, das imagens grandiosas, arrebatado, trazendo para cada um de seus versos a alma em chamas.

Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior, primeiro ocupante da Cadeira 31, diplomata, poeta, romancista, teatrólogo. Qual o ginasiano de minha geração não o terá lido, nas excelentes antologias de outrora, a sua volta ao lar paterno? Regresso comovente, porque nele se celebra a nostalgia da lembrança: “Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.”

Substituiu-o a máscula figura de João Ribeiro, filósofo, ensaísta, historiador, filólogo. Sobretudo um erudito. O Fabordão, A Língua NacionalCuriosidades Verbais são obras de raríssimo valor. Sua História do Brasil, sensata, sem prevenções, sem preferências, escrita com o espírito de análise e não com as tintas carregadas da emoção, não encontra similar em nossa historiografia.

Paulo Setúbal, o romancista da História, porque seus personagens existiram, extraídos da realidade. O imperador, a Marquesa de Santos, Fernão Dias, o ouro e as sedutoras esmeraldas estão vivos na sua linha definitiva.
 
E o excelso, o gigantesco Cassiano Ricardo?

“Brasileiro métrico”, como escreveu Drummond, entre as virtudes de grande poeta, um nome que é tudo e que resume os esplendores da criação artística, tão delicada como esta: “Meu coração é hoje um pássaro / pousado na árvore que fui.”

Não fica só nesta joia o estro evaltado de Cassiano, e, entronizado num idealismo de esperança, ele nos diz: “O mundo poderá ser salvo se o homem desfizer a distância que o separa da infância.”

Carlos Drummond, em artigo publicado em O Correio da Manhã de 14 de abril de 1957, escreveu: “Amiga, não lhe darei notícias do Rio, para quê? Vou contar-lhe apenas de vários poetas que apareceram aqui e se chamam, todos, Cassiano Ricardo.”    

Senhores acadêmicos,
   
chego a esta Academia, depois de longa caminhada, com a alma reluzindo mais do que o sonho de um garimpeiro, com o coração transbordante, com aquela alegria só comparável à de “um barco voltando”, como na voz maviosa de Dolores Duran e com a palpitação daquele que, após penosa escalada, por entre as escarpas pontudas do rochedo e das brenhas lutulentas do caminho, atinge o pico colimado. Menino, mal saído do ginásio, quando vim estudar Direito no Rio, minha primeira visita não foi ao mar, nem à Faculdade, mas à Academia, e como o poeta da Inconfidência, Inácio José de Alvarenga Peixoto, posso dizer: “Fiz logo eterno voto de querê-la.” Se resido no Rio, nesta cidade síntese e ímã, capital da Arte, da Cultura, da elegância, das mulheres mais belas, onde estou definitivamente radicado, venho de muito longe, de uma divisa extrema de Minas Gerais, e como Augusto de Lima, que teve assento nesta Casa, saudoso, repito:
    
     Deixei meu berço por destino incerto,
     Mas a paisagem guardo-a na pupila,
     Guardo-a no coração donde se estila
     Toda a essência das lágrimas que verto.

Com efeito, quando de lá saí, Araguari era pequenina cidade de província, muito pequena, e ao tempo em que a evoco neste olhar retrospectivo por entre as nuvens transparentes da saudade, exumando-a de sob a poeira anilada das distâncias, teria, se tanto ou quando muito, dez mil habitantes. No entanto, centro de uma região opulenta, a que duas vias férreas assistiam: a Mogiana, simpática, colonizadora que ali findava, e a outra, a Goiás, que dali irrompia, buscando o potencial do Oeste que faiscava nos esplendores de fantástico eldorado.
 
Intensa a vida cultural de Araguari – médicos, filhos da cidade, outros oriundos do Rio, e principalmente aqueles egressos da Faculdade de Medicina da Bahia fundaram casas de saúde que atendiam a vasta região interiorana do Brasil central. Dois excelentes colégios ali se estabeleceram – um para moças, dirigido pelas freiras belgas,

outro para rapazes dos padres holandeses, confechando assim o quadro cultural do antigo Pouso da Ventania, da gorjeante Vila do Brejo Alegre e da hoje sorridente Araguari.

A cidade sofria a avassaladora influência de São Paulo, determinada pela proximidade com esse Estado, pela facilidade das comunicações. Só se liam jornais paulistanos. De Minas – esta é a verdade – vivíamos isolados.

No entanto – vede! – fortes, profundos, inarredáveis, o espírito de Minas, o reflexo poderoso de sua cultura, o peso de sua participação decisiva em todos os lances da vida nacional, de modo particular na sua história, a mensagem de sua missão civilizadora e de equilíbrio, que o Triângulo Mineiro se conservou e se conserva fielmente integrado na alma e no coração de Minas Gerais.
 
Nem seria para menos – paulistas e são-joanenses-del-rei, prevendo o esgotamento das lavras de ouro, raspadas, dilapidadas por uma ganância predatória, começaram a movimentar-se em busca das pradarias do Oeste e, escolhendo um ponto ali, se concentraram na sua marcha rumo ao poente, tendo então fundado, nos primeiros lustros do século XVIII, o povoado da Conquista do Campo Grande da Picada de Goiás, por onde entraram no hoje chamado Triângulo Mineiro e o povoaram. Em 15 de fevereiro de 1775, o povoado da Conquista do Campo Grande da Picada de Goiás, por portaria do prelado D. Frei Manoel da Cruz, passou a chamar-se São Bento do Tamanduá, até que a Lei Provincial n.º 1.148 deu-lhe foros de cidade com o nome que até hoje dura de Itapecerica.

Meus amigos,

venho também de Barbacena, justamente celebrada pela sedutora beleza de suas mulheres, da fascinante Barbacena de minha juventude, das suas manhãs de geada cristalizada, de suas noites de estrelas indormidas, clareadas num tecido translúcido de fios multicoloridos pela lua rendada da Mantiqueira, ninadas em doces acalantos pelas vozes errantes dos boêmios da madrugada no ritmo sonorizado das serenatas sob o orvalho das rosas, bafejadas pelo perfume dos cravos acordados.

Venho do velho internato do Ginásio Mineiro, nos seus tempos áureos, do Grego, do Latim e da Filosofia, qual cera nas mãos dos artesãos do Humanismo, cujos nomes cito com comovida saudade – Soares Ferreira, Concesso Nogueira Campos; Padre Sinfrônio de Castro, dos maiores pregadores sacros do Brasil; José Speich, o Barão Von Knolsberdoff, Pires de Morais e, particularmente, Honório Armond, então no principado da Poesia Mineira, e quem pacientemente corrigiu meus primeiros escritos. 

Senhoras, senhores,
   
recebe-me nesta hora ímpar de tanta gala um dos vultos merecidamente mais celebrados de nossas Letras, nome mais do que nacional, porque refulge com intensidade em terras de além-mar, que se chama Lêdo Ivo, a quem eu conheci antes de sua reluzente nomeada, no momento maior de sua ventura, ao casar-se em Araguari, na capelinha tosca do Rosário, com Lêda, a companheira, a amiga, a inspiradora. Fato curioso! Quando então um de nós, jovens sonhando com a vida através da janela do futuro, poderia imaginar este momento na trama misteriosa das linhas do destino! Poucos homens de Arte em nosso País terão tido como Lêdo Ivo tão pronunciada vocação para o belo, que Platão, nos seus Diálogos, definiu como a expressão do verdadeiro. Nem se saberá quem é maior em Lêdo Ivo – o poeta, o romancista, o ensaísta, o causeur incomparável. Unânime, porém, a opinião coincidente e convergente, que o destaca como a expressão superior de um talento polimorfo.
 
Nem me faltaria, nesta hora, uma meditação de ternura e de carinho à memória dos acadêmicos que aqui sempre me quiseram ver e que relembro com a alma ajoelhada: – Guimarães Rosa, o amigo fraterno, “o Coelho Neto do ano 2000”, na frase de Marques Rebelo; Silva Mello, que, em testamento, me legou a espada que tanto honrou e que agora, ufano, porto para complementar a indumentária acadêmica; Otávio de Faria, José Honório, Peregrino Júnior, Genolino Amado, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira – estimuladores incansáveis de minha candidatura.

Nem esqueceria outro poeta, que não escreveu versos, mas realizou na audácia de um sonho, com o cimento e com o aço, outro poema, o épico de Brasília, Juscelino, singular, corajoso, o homem de ação, obediente ao personagem de Sartre: “É preciso trabalhar, salvar-nos-emos pelo acréscimo.”

É com o espírito de Minas, de ordem, da harmonia, do trabalho, da convivência aveludada, que varo as respeitáveis soleiras da Academia Brasileira de Letras, não em busca da precária imortalidade, mas para usufruir de vossa companhia sob a égide da inspiração acadêmica.

Compreendo perfeitamente a protocolar solenidade desta investidura – mister que a Academia envergue o fardão, se arme com a espada simbólica para defender o humanismo ameaçado nesta hora de dramática transição histórica pelas forças indomáveis da Informação e da Informática.

Meus companheiros,
   
Não sei como agradecer-vos a magnanimidade dos sufrágios com que me elegestes, com que me alçastes ao ápice de minha carreira, indo ao encontro do antigo desejo de integrar-me no vosso meio, para que juntos possamos, em sua própria essência, encontrar os outros aspectos da vida, como o de agora, e ao eternizar este momento, posso afirmar com convicção, roubando ao professor Aristides Novis esta palavra tão bonita e tão grandiosa: “Na cultura do espírito está a honra de viver.”
 
Muito obrigado.

19/7/1990