Estava no Recife, nos primeiros anos da década de cinquenta do século passado. Não estou certo de que completamente passado. Sou levado a supor que as contas do século XX ainda não fecharam. Foi quando estreou um jovem escritor de dezesseis anos, muito bem recebido pela crítica e efusivamente saudado por Gilberto Freyre. O escritor continua jovem, em que pesem as inconvenientes contraindicações do calendário. O trabalho inaugural é de 1952, e intitula-se Aspectos da descaracterização do Recife.
O nome do escritor é Evaldo Cabral de Mello, protagonista de obra marcante, que ocupa hoje papel de destaque entre os intérpretes do Brasil, e que agora tenho a honra de recebê-lo na Casa de Machado de Assis que, por várias razões, é sua também.
Conheci-o naqueles dias matinais, conduzido pelo seu irmão Claudio Cabral de Mello, juiz e professor de direito, meu colega e, se me permitir o novo acadêmico, meu irmão também, companheiro dos bancos universitários do Recife e de Madri. Pena que não possa dizê-lo, de viva voz, uma vez que ele partiu prematura e absurdamente, sobre o que está acontecendo aqui e neste momento. Certamente ele se regozijaria, ou se regozija.
O historiador Evaldo Cabral de Mello é autor de uma obra densa. Já não podemos pensar o Brasil sem pensar com ele. Tanto mais porque é o historiador que pensa, e não o simples colecionador de ocorrências. Pensar significa acompanhar criticamente, desvelar e revelar. Criticamente significa dispor de instrumentos hermenêuticos adequados, sustentados por sólida base reflexiva.
Mesmo escrevendo uma história regional, provincial e não provinciana, ele conseguiu, de imediato, desprovincianizar a província.
Começa por alterar o ritmo da temporalidade, os lugares previamente marcados, conforme, recorro a ele, a “concepção teológica judaico-cristã da história”. O homem, sujeito e objeto da história, não tem domicílio fixo. Por isso, o historiador desce às origens, nunca para reproduzi-las passivamente, mas para conferir-lhe vida nova. Sobretudo em uma cena conturbada, onde coabitam cristãos, mouros e judeus, negros e índios, e seus cruzamentos insólitos. O difícil, e às vezes impossível trânsito, em meio aos inconciliáveis interesses de brasileiros, portugueses, neerlandeses, castelhanos, franceses, ingleses, e, aqui e ali, napolitanos e até suecos. Os cristãos-novos e os cristãos-velhos, os donatários e seus delegados mais ou menos explícitos, os excelentes e os excedentes, as franquias direta ou indiretamente autorizadas, os mercadores luso-brasileiros, os mascates, a sofreguidão da periferia emergente, enfim os cavaleiros do bem e do mal. Todos sob a mesma centralidade tirânica e excludente.
A lente plurifocal de Evaldo Cabral de Mello se concentra nas “negociações luso-neerlandesas – cito – que tiveram lugar de 1646 a 1669 e que habilitaram Portugal a recriar pela diplomacia o monólito brasileiro, rachado durante o quarto de século de presença estrangeira no Nordeste”. O historiador não pretende fazer história diplomática ou genealógica, recorrendo a elas para explicar, eventualmente, a trama da expulsão holandesa, em Olinda restaurada, ou o desmonte do “mecanismo de uma fraude genealógica”, como em O nome e o sangue.
O sonho do Brasil holandês e da Nova Lusitânia vai progressivamente se desfazendo, com relevante participação do capital humano local.
O historiador deslinda com precisão o fluxo e o reflexo da economia açucareira, bem como o fortalecimento do que se chamou, talvez numa alusão distante a Tobias Barreto, a “açucarocracia”.
Não se trata aqui de uma história ao pé da letra, morna e burocrática. Trata-se de um exercício emancipatório, distante da historiografia dos bens tombados e imobilizados, longe da ditadura da memória. Sempre abrindo espaços desconhecidos e perspectivas de compreensão abandonadas. É o caso da convocação dos “dois lados do Atlântico”, penetrando a interface histórica Portugal e Brasil, desde a Descoberta até a Independência, matéria perdida, por ele deplorada, em algum fundo de baú dos nossos Departamentos universitários de História.
O historiador vertical não teme horizontalizar-se quando estrategicamente necessário, para recolher “os restos do Brasil holandês” e as lições dos “problemas de fronteira”, dispersados pelos deslocamentos populacionais. Com o que se distingue, faz questão de deixar claro, do mero “pregador evangélico”.
A sua reconstituição cuidadosa não esquece de mencionar a participação do Padre Antônio Vieira, menos o representante de duas superiores construções estilísticas da crise do Renascimento, que ele representa – o Barroco e o Maneirismo –, e mais o negociador antenado, fiel servidor da Coroa e da Companhia de Jesus.
Esses momentos de controle repressivo foram também acompanhados de forte ênfase nativista, a que não faltou sequer o viés revanchista. É verdade que, em virtude das tentativas de recuperação por parte dos invasores, foi possível reenergizar pactos transitórios entre a colônia e a Coroa. Foram acordos antes animados por conveniências de portugueses e brasileiros que por sólidos laços de recíproco apreço. A avaliação citada, de autoria do professor C. R. Boxer, mostra-se procedente: “uma vitória para os neerlandeses na Ásia, um empate na África ocidental e uma vitória para os portugueses no Brasil.”
Evaldo Cabral de Mello abre, com particular perícia, a caixa preta da história. Em O imaginário na restauração pernambucana, Rubro veio, Olinda restaurada, O nome e o sangue, O negócio do Brasil. Não faz história diplomática nem genealógica, repito, mas recorre a essas instâncias quando precisa esclarecer ângulos, pontos de interseções e confluências, mais amplamente a “fenda ética, social e religiosa entre cristãos-novos e cristãos-velhos” (palavras suas), as conversões trapaceadas, as políticas matrimoniais, o anticlericalismo, não somente o preconceito de cor, porém o conjunto de determinações da ordem escravocrata, ou, ainda, “a ferida de Narciso, em meio à supremacia açucocrática”. A verdade inconciliada sangra o tempo todo.
A pesquisa impecável e infatigável conduz o historiador por mares nunca dantes navegados. O traçado arrítmico da invasão e da expulsão do estrangeiro agressor é exposto à luz do dia. Minuciosamente. Não é verdade que a minúcia conduz ao enfado. Pelo menos não é assim quando operada pela visão pluridisciplinar do pesquisador que, redimensionando a investigação histórica, retira-a do palpite ou da previsão ingênua. Hoje se sabe, com rigor, o nome e o número de participantes nativos e estrangeiros, bem como os custos da guerra, que deixou os engenhos de Fogo morto.
Os tratados de 1657-71 não foram presentes distribuídos graciosamente, porque se inscreveram em não muito sofisticado esquema de trocas. É provável que aí se tenha esboçado a cultura do “toma lá dá cá”, que nos acompanha até hoje. Os perigos de um Brasil holandês, as quimeras do embranquecimento racial, foram perdendo forças no dia a dia da contenda. A meta independentista, a participação dos negros na resistência, as prioridades da “açucarocracia”, terminavam por modificar a que poderíamos chamar de o mapa da mina.
A afirmação crítica da identidade nacional viria a tomar corpo bem mais tarde. As filosofias identitárias, que de tão totalizantes tornaram-se totalitárias, foram abrindo espaço para a inclusão do outro. O nativismo transacional se afigurava como mais aberto e promissor. É certo que o domínio escravocrata, extenuado mais ainda não extenuante, retardou o processo. Demorou para que a escravidão, motor da economia açucareira, viesse a ser a presença africana emancipada, com todos seus matizes interculturais. Tem lugar de destaque nessa agenda a interlocução de Evaldo Cabral de Mello e Joaquim Nabuco. A escravidão, dizia Nabuco, “é enfermidade moral de que todos sofremos. É o meio social do nosso povo”. E mais, em extrato do Nabuco de Minha formação, selecionado pelo Evaldo, “pensam na escravidão que se vê, mas a escravidão que não se vê tem muito mais extensão e profundidade”. Evaldo Cabral de Mello nos ensina a reler Nabuco. As flutuações da identidade nacional, simplificadas ou deformadas, na estridência e na exaltação, serão mais bem compreendidas no rastro de Joaquim Nabuco do que na versão (vale a cacofonia) dos modernistas modernosos ou dos ideólogos full time. É descendente direto do nativismo sensato, do relato vibrante de uma restauração jamais esquecida.
O colecionador de eventos é tão somente o cronista eventual. Já o historiador vem a ser aquele que se diferencia pela investigação criteriosa, pelo vigor interpretativo facilitado pelo suporte teórico indispensável e pela capacidade de sentir e saber os sinais crispados da intersubjetividade. Em A ferida de Narciso, logo na primeira linha, o autor faz uma sutil advertência: “Como o indivíduo, os grupos humanos também fazem a sua educação sentimental”. E em O nome e o sangue ao deplorar os que “vieram a interpor, como um biombo, a exasperante opacidade do texto”. O que nos ajuda a perceber a qualidade literária do seu próprio texto. Porque o pensamento não apenas se serve da linguagem para comunicar. O pensamento é na linguagem. Pensamento e linguagem instauram e desdobram relações reciprocamente constitutivas. Por isso, o nosso mestre Evaristo de Moraes Filho, com o seu proverbial bom humor, não perdoava os que, ao escreverem, nos serviam desagradável “sopa de pedra”. Não é o caso de Evaldo Cabral de Mello. Nele, pensamento e linguagem assinaram um pacto fraternal, para todo e sempre. E aqui me lembro de suas excelentes relações com os verdadeiros poetas. Lembro-me quando ele recolhe as sugestões de Manuel Bandeira, e escreve sobre a vida que foi, e a que poderia ter sido.
É dentro dessa atmosfera que o nosso novo acadêmico me remete à velha tradição francesa, que remonta a Jules Michelet, onde é visível a força literária da linguagem. Ou ao esquecido Etiénne Gilson, que, animado por saudável ímpeto revisionista, afirmou certo dia que “as trevas da Idade Média não são mais do que as trevas da nossa ignorância”. Poderia acrescentar, não fosse o adiantado da hora, nomes como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Marc Bloch, Jacques Le Goff ou Marc Fumaroli.
Fica muito nítido que a imaginação e o documento não são incompatíveis. Um pode iluminar o outro. “Olinda – diz o nosso historiador – é a expressão antes simbólica que geográfica”. A todo instante se afirma a sua abrangente sensibilidade, a percepção de gestos esquivos absorvidos no campo minado do imaginário. Chegamos a ser tomados por certo envolvimento romanesco, acentuando a força que não exclui, porque dilata, a realidade histórica acossada, e nunca subjugada, pelas impurezas da razão. As saudáveis impurezas do Brasil mestiço e plural. Do país adiado, porém nunca desesperançado. Evaldo Cabral de Mello cultiva a pluriunivocidade da história, a tensão incessante de afirmar e negar, e recusa o monolinguismo a que se refere Jacques Derrida, evitando potencializar o “desenvolvimento histórico das forças produtivas”. Alguma coisa parecida ao que de há muito identifiquei em Gilberto Freyre: o conluio procriativo entre relações de produção e produção de relações. Nenhuma concessão, cito, a “uma suposta absoluta racionalidade histórica”, inevitavelmente constrangedora e apropriativa.
Ao contrário, o pensamento sensível e permeável às impurezas da razão, em nenhum momento trancado nas muralhas do fundamentalismo eurocêntrico, nem indiferente à individualidade do outro, pode instaurar uma identidade pactuada com a alteridade, solidária e emancipatória.
A história se desdobra pela contracena do eu com o outro. E não raro o espectador desatento, ou indolente, se acha surpreendido pelo protagonismo do outro. A fascinante criatividade de Walter Benjamin já interpretava, na cena cultural, a instigante peleja entre a história dos vencedores e a história dos vencidos. Evaldo Cabral de Mello não parece muito interessado nessa disputa cada vez mais improdutiva.
As contradições existem para serem lidas com isenção e cuidado. Os holandeses, sem querer e pouco sabendo, deram vida nova ao armistício instável entre os moradores locais e os mandatários metropolitanos. A contribuição de Castilla não deve ser esquecida. O comércio do açúcar, prioritariamente, selava parcerias que pareciam impossíveis. “A incipiente classe operária – acrescenta o historiador – tinha de se haver com o mandonismo característico de patrões acostumados a lidar com escravos.” A mentalidade do senhor de engenho persistiu, e certamente persiste ainda hoje. A autoridade do historiador Carlos Guilherme Mota, titular da Universidade de São Paulo, já diagnosticou acertadamente esse acontecimento. “Evaldo coloca-se – registra ele – como um dos melhores historiadores das mentalidades e das ideias em nosso tempo. E não apenas no Brasil”. Daí a receptividade que encontra para além dos nossos limites territoriais. E sem jamais ceder às tentações da moda. O corte sincrônico, no seu delírio epistemológico, sobretudo durante a febre estruturalista, entregou-se descontraidamente à tarefa de fatiar a história. Cortou mais, justamente onde não deveria cortar. Ignorou ou subestimou a complexa estrutura unitária do tempo que, em momento algum, comporta visões parcelares ou deixa de reconhecer na fatia uma equivocada limitação. No outro lado do rio, ou na “terceira margem”, sem resvalar nas ciladas historicistas, nem se submeter ao evolucionismo obrigatório, sem ambicionar estabelecer parâmetros epistemológicos certamente rígidos, avança e prospera a história partilhada com a vida do mundo.
Não é somente a visão historiográfica que está em jogo. É antes a compreensão totalizadora, e não totalizante, do Brasil verdadeiro, múltiplo, dos nomes e dos sangues cruzados, da história regional que consegue ser provincial, nacional e universal. Aquela que desprovincianizou a província. A que nos entrega agora, ao vivo, e seguindo as indicações sempre oportunas do Bruxo do Cosme Velho, a lição superior de Evaldo Cabral de Mello.