Rio, 27 de março de 2015.
Senhor Presidente Senhoras Acadêmicas Senhores Acadêmicos Senhoras e Senhores
Na história da cadeira n. 34 (para a qual a generosidade intelectual das senhoras e dos senhores acadêmicos me elegeu, os que nela se sucederam ao longo dos anos mantiveram todos, à sua maneira, uma relação com a história do Brasil, exceto Lauro Muller.
João Manuel Pereira da Silva foi o autor de uma História da fundação do Império e outra do Primeiro Reinado e da Regência.
Seu sucessor, o barão do Rio Branco, praticou o gênero de história dominante na Europa da segunda metade do século XIX e começos do XX, a qual buscava a rigorosa reconstrução dos acontecimentos (donde a designação de 'histoire événementielle' que lhe dão os franceses), ou seja, os episódios de feição política, militar e diplomática. D. Francisco de Aquino Correia, sacerdote, poeta e orador sacro, ademais de arcebispo de Cuiabá, dedicou os ócios prelatícios à história do seu bispado, redigindo também uma memória sobre os limites do Mato Grosso. A atividade de Raimundo Magalhães Júnior estendeu-se ao teatro, ao jornalismo e à biografia. Carlos Castello Branco foi na sua época o mais influente jornalista político do país, tornando-se fonte incontornável para o estudo do regime militar. Por fim, a prosa de ficção de João Ubaldo Ribeiro é um diálogo afetivo com o passado da Bahia, o qual em Viva o povo brasileiro alcança os quase trezentos anos que vão desde a ocupação de Itaparica pelos holandeses até as vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Se é certo que enquanto o ficcionista inventa e imagina, o historiador apenas imagina mas o faz sob o controle das regras precisas de um ofício que nasceu na Grécia clássica. Nem por isso deve-se ignorar a relação entre ficção e história. Mesmo um romance de trama puramente novelesca pode conter uma dose substancial de realismo histórico, como em Balzac, que se intitulou certa vez 'historiador de costumes'. E, contudo, a fronteira entre ficção e história não é menos nítida. Em última análise o historiador tem de atender ao critério de veracidade, condição básica do seu trabalho, com o que a história se torna aquele "roman vrai", de que falavam os irmãos Goncourt.
De vários historiadores oitocentistas, sabe-se que, ainda jovens, cogitaram em dedicar-se à ficção ou até a praticaram, a exemplo de Alexandre Herculano, o que não o impediu, na sua História de Portugal, de ater-se às regras mais estritas da historiografia europeia da época. Von Ranke tornar-se-ia historiador graças à leitura dos romances de Walter scott, e o êxito de Michelet deveu-se à sua capacidade de associar narrativa histórica e qualidade literária.
Quando, a partir do século XIX, a universidade europeia profissionalizou a história, impôs-se aos historiadores o trato com os resultados alcançados pelas ciências humanas, que exercem hoje em dia uma irresistível e até excessiva atração sobre o historiador. Originalmente, a ambição dessas disciplinas voltara-se para a formulação de leis aptas a explicar a história humana com o rigor com que as ciências naturais desvendavam o mundo físico. Tais pretensões declinaram desde a Segunda Guerra Mundial, quando até a física passou a duvidar do caráter científico de muitas de suas leis.
Se atualmente as ciências humanas alimentam objetivos menos imodestos, elas ainda visam a descrever tendências e regularidades que exercem papel para-nomológico. Mas já ninguém se arrisca a falar de leis da história, somente em leis na história, vale dizer, a operação no passado das leis formuladas mediante os métodos da demografia ou da economia, a exemplo do néomalthusianismo utilizado na explicação das mutações sociais de longo prazo que se verificaram na França entre a Idade Média e a Grande Revolução.
No Brasil, o caminho da historiografia universitária é mais curto, podendo se datá-Ia da segunda metade do século XX, muito embora o impulso inicial derivasse dos anos trinta. Na realidade, a história universitária só começou a pesar no conjunto da nossa produção historiográfica bem depois. No tempo do Império e na República Velha, a historiografia brasileira fora o dom do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado pelo segundo Imperador, e de uns poucos institutos estaduais, interessados pela história local. Nossos principais historiadores foram indivíduos ligados à função pública, como Varnhagen, Rio Branco, Nabuco, Oliveira Lima, entre outros.
O próprio êxito da cooperação entre a história e as ciências humanas incita a indagar se ela não se teria transformado em orgia. A despeito do enriquecimento da explicação e da compreensão históricas, a colaboração interdisciplinar pode acarretar efeitos colaterais quando praticada sem espírito suficientemente crítico. A diferença entre a história e as ciências humanas é inclusive de recursos expressivos, ou de retórica, para empregar no bom sentido o termo nobre que o uso prolongado perverteu. Registros fundamentais da experiência humana, a narratividade e a diacronia constituem o núcleo irredutível do discurso historiográfico. Por maior que venha a ser o progresso das ciências humanas, sempre haverá a necessidade incoercível de tratar o passado em função do que se passou e não em função de leis ou de teorias gerais ou de grandes conceitos teóricos.
Os sintomas resultantes da cooperação interdisciplinar acrítica já são visíveis. A ambição de escrever uma grande obra de história foi preterida pelas teses universitárias, muitas delas de qualidade excepcional, mas necessariamente limitadas a temas essas operações é a de arquivo e de fonte, ou seja, a fase documentária, que não corresponde ao da memória em geral, mas apenas ao da memória que sobreviveu nos acervos e monumentos; ou, como descobriu a história rural francesa, nas marcas deixadas pelo homem na paisagem.
A segunda operação é a da explicação-compreensão. O historiador explica mediante causas, como numa proposição do tipo "Luis XIV tornou-se impopular devido ao peso dos impostos". Ademais, o historiador também compreende mediante intenções, como na proposição "Luís XIV atacou a Holanda para aniquilar sua hegemonia comercial". Por fim, a terceira fase é a da representação, a qual não é se reduz a mero verniz literário mas constitui operação tão essencial quanto as precedentes, pois com elas configura o discurso historiográfico, conferindo-lhe sentido.
Outra deformação da historiografia atual é algo simples, que frequentemente os historiadores preferem. Ignorar, a inconfiabilidade dos conceitos históricos. A aplicação de conceitos em história tem caráter estritamente aproximativo. Quando o historiador os espreme, na ânsia de retirar deles mais do que podem dar, eles como que se esfarinham. Esta é a razão pela qual, mais cedo ou mais tarde, o trabalho historiográfico desemboca na narrativa. O historiador pode optar (e o faz com indesejável frequência entre nós) por não ultrapassar essa etapa conceitual, mas tanto pior para a abrangência da sua obra.
Exemplo desta obsessão teorizante é a falsa contraposição entre sociedade de ordens ou de estamentos, de um lado; e sociedade de classes, de outro, como se elas se excluíssem mutuamente, quando, pelo contrário, são concomitantes. Historicamente, não existem ordens e classes em estado puro, nem sociedades de ordens sem ingredientes de classe nem sociedades de classes sem ingredientes de ordens. Uma classe pode pensar se como ordem. Uma facção de classe pode decantar-se em ordem, apartando-se gradualmente da situação de mercado que a engendrara, como no caso dos 'regentes' das cidades holandesas dos séculos XVII e XVIII. Inversamente, mesmo no tocante àquela que, com o proletariado, constitui no marxismo a classe por antonomásia, já houve quem descrevesse a coexistência, sob o Antigo Regime, de uma burguesia de status e de uma burguesia mercantil, puramente classista.
Há cinquenta ou sessenta anos, os estudiosos fatigados de história factual julgaram encontrar nas variáveis econômicas o 'abre-te Sésamo' que daria caráter científico a seus esforços. Mas a despeito do notável enriquecimento trazido pela história econômica, constatou-se, como na França, que os estudantes haviam desaprendido a história política, a ponto de ignorarem as guerras de religião ou a rivalidade entre Francisco I e Carlos V, embora se mostrassem versados na expansão econômica de Quinhentos e na recessão de Seiscentos.
Raymond Aron comentou ironicamente tal situação ao exprimir suas "dúvidas acerca respeito dos historiadores que pensam tornar-se doutos quando fazem abstração dos detalhes dos acontecimentos e que creem que a história da série dos preços do bife [ ... ] é singularmente mais interessante que a narrativa das revoluções". Tratava-se, na sua opinião, de "mera questão de gosto", não logrando entender "por que uma destas investigações seria científica e a outra, não, e por que uma seria interessante e a outra, não." O perigo que ronda o emprego indiscriminado pela história dos métodos sincrônicos desenvolvidos pela antropologia não reside apenas em tornar a investigação vulnerável aos anacronismos, este pecado capital do historiador, mas em estabelecer relações estruturais que não resistem ao rigor do exame diacrônico.
O interesse do historiador começa onde termina o interesse do sociólogo ou do economista. Ali onde estes contentar-se-ão em enxergar um caso típico de conflito entre credor urbano e devedor rural, ou o mal-estar decorrente de uma fase prolongada de recessão econômica, o historiador procurará vislumbrar o enredo ou intriga (no sentido inglês de ptot), produto da causalidade, da intencionalidade e do acaso como esta guerra civil ou este conflito colonial. A história não se situa na vanguarda, mas na retaguarda das ciências humanas afim de retificar-Ihes as desmedidas pretensões teóricas. O historiador é assim o sabotador nato do sociólogo e do economista.
Quanto à antropologia, recorde-se que a história não precisou dela para descobrir o valor do sincrônico. Aí estão as obras de Burckhardt e de Huizinga. Por sua vez, a antropologia, que no século XIX dedicara-se, como a sociologia, a formular as grandes leis do desenvolvimento humano, só adotou a sincronia quando o antropólogo trocou seu projeto original pelo estudo das sociedades primitivas, frente às quais ele não dispõe da riqueza e da variedade das fontes historiográficas.
Bem que o antropólogo gostaria que os pataxós possuíssem um arquivo, mas, diante de tal impossibilidade, só lhe resta munir-se dos seus cadernos de campo e observar atentamente o que se passa no quotidiano da tribo. Aliás, mesmo entre antropólogos, já se começa a desconfiar de que muitas vezes eles vêm imputando às culturas primitivas a imobilidade exagerada decorrente das limitações do modo de compreensão sincrônico.
Por outro lado, qual é o historiador que não sonha em regressar no tempo afim de assistir ao assassinato de César ou de espiar a corte na Inglaterra elisabetana? Como isto tampouco é viável, ele se vê na contingência de reconstrui-los laboriosamente mediante o conhecimento inferencial dos correspondentes vestígios. Cumpre, porém, duvidar de que o historiador fosse capaz de tirar maior partido daquilo que veria com os próprios olhos do que faria se pusesse a contemplar a sociedade em que vive. Certamente, lhe ocorreria o que ocorreu a Fabrizio dei Dongo na batalha de Waterloo.
Sem subordinar o sincrônico ao diacrônico, que constitui, por excelência, sua reserva de mercado, o historiador não logrará compreender o passado, que é sequência. Sabe-se que os moinhos de vento apenas povoavam a paisagem manchega quando Cervantes fez D. Quixote desafiá-los para o combate. Que na Mancha anterior ao século XVI não houvesse moinhos de vento (que são hoje o símbolo por excelência desta região castelhana), é circunstância que aponta para o cerne do conhecimento histórico, vale dizer, para a datação, consideremo-Ia operação pedestre ou não.
Nas suas aulas de Salamanca, Unamuno costumava ridicularizar certo professor de direito romano de Coimbra, o qual, ao iniciar sua descrição do sistema fiscal do Império romano, costumava advertir os alunos: "Em Roma, os impostos começaram por não existir". Como objetou Ortega, escapava a Unamuno que esta advertência preliminar era plenamente justificada pelo fato de que o mundo não é dado feito à humanidade e que as coisas começam sempre a existir e a desaparecer em dado momento e não em outro, e o mundo tivesse sido feito de uma vez por todas, não haveria necessidade nem de história nem de historiadores; e estes já não entediariam seus leitores, como eu estou fazendo agora com meus ouvintes. Georges Duby tanto mais insuspeito quanto foi dos primeiros a compreender a utilidade de alguns métodos antropológicos para sua especialidade, a história medieval, afirmava: "o que faz a história é a referência, a mais precisa possível, a uma duração".
No tocante à cooperação entre a história e a sociologia, o historiador não deve perder de vista a distinção de Aron entre causalidade histórica e causalidade sociológica. A sociologia pressupõe a explicação que sobrevoa o curso dos acontecimentos buscar as regularidades macroscópicas, ao passo que a causalidade histórica é uma explicação imanente à sucessão cronológica. Mas como a causalidade sociológica corresponde à história que os homens fazem sem saber que a estão fazendo, sempre haverá que recorrer à causalidade histórica, que é a da história que os homens pensam que estão fazendo. Quem diz causalidade histórica diz narratividade, que é o discurso adequado à sua captação.
Os limites à cooperação entre a história e as ciências humanas nascem precisamente de que, enquanto as ciências humanas buscam aprofundar seu estatuto científico, a história é um modo específico de apreensão da realidade, como a filosofia, a arte ou a literatura. Defini-la como outra ciência humana redundaria em diminuir sua capacidade de compreensão, embora os conceitos e os modelos das ciências humanas lhe sejam úteis quando devidamente aplicados.
Sequer os estruturalismos de plantão lograram anular a vocação narrativa da história. Mesmo a obra de Fernand Braudel contém sua intriga ou enredo, a mutação pela qual o Mediterrâneo passou ao segundo plano nas relações econômicas e de poder na Europa ... renascentista. Até mesmo o que se etiquetou de 'história imóvel' pressupõe a narratividade. Entre a Baixa Idade Média e o século XVIII, os camponeses do Langue-doc sobreviveram a um ciclo agrário extremamente lento, mas nem por isso isento de começo, meio e fim. Por sua vez, a história do clima já vem sendo contada, malgrado necessitar de escalas cronológicas ainda mais anchas.
Afinal de contas, o objeto da história não é um objeto real como o das ciências naturais ou como o das ciências humanas. Ele é um objeto ausente que se apresenta sob a forma de vestígios de um objeto outrora real. Nesta idealidade da história, origina-se a diferença, formulada por Michael Oakeshott, entre passado prático e passado histórico.
A existência diária comporta referências aos mais diversos tempos, a começar pelo passado individual, que pode até independer da rememoração, como na herança genética. O passado prático também pode ser o passado lembrado, como na memória involuntária de Proust; ou o passado consultado, trazido à tona da consciência mediante esforço deliberado, como na psicanálise.
Ao lado desses passados, sobrevivem os vestígios materiais, como a ponte de Avignon, uma tela de Velásquez, o arquivo de Simancas. Todos eles podem ser utilizados para fins práticos, proporcionar prazer contemplativo e ainda servir ao conhecimento histórico. O passado prático é o passado manipulado visando objetivos atuais; o passado histórico, aqueles resíduos de épocas pretéritas, espécie de 'porta dos fundos' que proporciona o único acesso possível a elas. A investigação histórica inicia-se precisamente quando o estudioso se detém num objeto concreto não porque o considere belo, sagrado ou útil, mas simplesmente porque é um testemunho da existência humana.
Co-existem assim dois gêneros de história, a que versa o passado do presente; e a que versa o passado do passado. O passado ... do presente é o tempo do imperfeito, da história que flui, que continua aberta ao futuro e que, portanto, é relevante para a ação humana; ele é o tempo do conhecimento útil. O passado do passado é o tempo do mais que perfeito, o tempo da história que se fechou sobre si mesma e que é conhecimento desinteressado. A satisfação que se extrai de cada um deles é bem diversa. E também os perigos em que se incorre: o primeiro, o de não compreender devido à proximidade; e o segundo, o de não compreender devido à distância. Pois o historiador debate-se entre tentações antagônicas.
No Brasil, a tentação é a do passado do presente, é a de limitar o conhecimento ao que tem utilidade para iluminar nossas dificuldades do momento. Trata-se de um tipo de história que envelhece previsivelmente com rapidez, como está ocorrido com as obras dos chamados 'explicadores do Brasil'. A aceleração das mudanças porque passa a sociedade brasileira tornará irrelevante esse tipo de ensaísmo; e, na melhor das hipóteses, o transferirá das estantes de sociologia e de história para a de história das ideias.