HISTÓRIA DE EMÍLIO
Paulino Duarte sabia, desde que Miguel Duarte morrera, ele sabia que, bem no abismo da sua alma, havia um grande medo inexplicável. Uma coisa inexprimível, irreversível, estagnante, que o fazia ouvir vozes, particularmente aquela voz vazia que pronunciava o nome de Lica. Era como alguém que endoidecia, vagando pela casa fechada, trêmulo, escutando alarido do vento nas palmeiras do quintal. Os ratos corriam na despensa, calafetava os buracos das paredes com canhamaço. As vozes, porém, continuavam, fracas como um bocejo. Pálido, da sala, só encontrava sossego quando abria a porta e chamava os cães aos berros. Entre eles, as pulgas mordendo, sentia-se calmo e adormecia. No entanto, na noite seguinte o mesmo martírio, a mesma tortura. Algumas vezes, no reflexo da luz, distinguia o rosto do pai bêbado, a barba falhada de Juca Pinheiro. Foi em uma dessas noites, pouco tempo após a morte de Miguel Duarte, que ouviu, dentre o ruído da chuva, fortes pancadas na porta da cozinha. Acorreu, empunhando o facão, e abriu a porta com um grito: “Quem está batendo aí?” E, encontrando um homem, quase despido, inteiramente molhado, perguntou: “A quem você procura?” O homem respondeu: “Miguel Duarte.” Deteve-se, o coração aos saltos, e respondeu: “Miguel Duarte! Miguel Duarte morreu!” O homem apertou as mãos, uma na outra, como se estivesse com frio, e disse: “Eu preciso falar com Miguel Duarte, a minha conversa é sobre Ubaldo, que está morto e bem morto.” Paulino Duarte recuou, exaltado: “E foi você quem matou Ubaldo? Ubaldo... Mas, quem é você? Que tem a ver meu pai com esse Ubaldo?” O homem fitou-o de relance, respondendo: “Lica, sabe. Faze anos, muitos anos... Ah! O meu nome? Emílio, sim senhor, Emílio.” Entrou na cozinha, os olhos nas panelas, dando a entender que estava faminto.
Comera fartamente, a corcunda deformando o dorso. Depois, sentando-se, acendeu o cachimbo. Disse, a voz pairando no ar como uma lástima: “Eu não posso sair, ficarei aqui durante muitos anos.” Calou-se, sacudindo a cabeça como um tonteado, embuçado no solilóquio que se revelava pelo cochicho dos lábios. Paulino Duarte, alegre por encontrar alguém que lhe fizesse companhia, ouvindo o latejar das próprias têmporas, julgou fosse ele um pouco doido. Perguntou-lhe: “Mas, como foi isso? De onde vem seu conhecimento com meu pai? Por que Juca Pinheiro nunca me falou nisso?” Ele interrompeu: “Espere, espere, eu conto.” E, já na sala, trajando uma roupa enxuta que Paulino Duarte lhe emprestara, a luz empalidecendo o seu rosto como se fosse de cera e um escultor o houvesse feito naquela hora , começou a narrar a sua história. Paulino Duarte não o interrompeu uma única vez.
- Coisas existem, na nossa vida, infalíveis como a própria morte. Tarde ou cedo, acabam por chegar um dia. Precisamos aguardá-las com insensibilidade, quase com desprezo, para vencê-las ou por elas sermos vencidos. A desgraça que me esperava era uma coisa assim. Eu sabia que ela chegaria. Juro, pela minha honra, que sabia. Aguardei-a, prevenido, dizendo a mim mesmo, aconselhando-me naqueles ermos de Duas Barras: “O difícil, Emílio velho, não é vencer, o difícil é saber fracassar.” E esperava, hora a hora, que viesse, e me agarrasse impiedosamente, transformando-me nisso, neste homem acuado que agora sou. Antes - faz tantos anos , apesar de doente, sempre fora uma criatura mais ou menos feliz. Meu pai, que Deus o tenha no céu, morrendo, deixou-me a sua pequena fazenda. Vivia deslumbrado, sem nenhum amargor, amigo de todo mundo. Ali, esquecido naqueles ermos, aprendi a esmiuçar as coisas, decifrar os mistérios, o campo me ensinava, ajudava-me a compreender a vida. Tudo possuía um aspecto de alegria eterna, o sol ou o vento, a noite ou a água. Gostava de ficar deitado sobre a “barcaça” aberta, sonhando, contando indefinidamente as estrelas do céu. Idealizava, naquelas noites de solidão, o céu nos meus olhos como um desenho mágico, idealizava grandes aventuras, exóticas histórias de amor e guerra. Sentia-me inocente como a ave de ninho feito na cumeeira da casa. Assim - como é triste lembrar! - decorreram anos, muitos anos da minha vida. Uma tarde, porém, voltando do rio, encontrei um homem, uma pessoa estranha. Chamava-se Manuel Pedro.
Quer saber quem era Manuel Pedro? Como era Manuel Pedro? Olhos vivos de gato em uma fisionomia parada de estátua. Dir-se-ia não haver sangue, sangue e nervos, no rosto chato. Apenas um bloco de carne, sem pêlos, nariz acurvado como bico, testa ampla, boca pequena, sempre fechada, escondendo os dentes de animal carnívoro.