O encontro que a Academia permite, fora da contemporaneidade, explica o que possa ser o mistério das aproximações entre certos homens. Em suas gerações distantes, ultrapassando os problemas imediatos, suprimem todas as diferenças impostas pelo tempo para que subsistam as afinidades no sentido de percepção para com os extremos valores da vida. E, já iguais pela vocação, robustecem o grande encontro na exploração da mesma temática e na reivindicação das gerações. Esse encontro se capaz de explicar a compreensão crítica – como na exegese de Dante feita por T. S. Eliot, como no reconhecimento de Pascal, feito por François Mauriac –, assegura que os escritores se congregam em torno de motivos permanentes. Dir-se-ia o caminho interior por onde passam, confirmando que há força na tradição dos próprios valores que estabelecem as aproximações.
O levantamento desses valores poderia ocupar a historiografia literária. Mas, dentre eles, que atestam o trabalho intelectual como um ato público – e, por sua duração, o mais público de todos os atos –, talvez nenhum outro ultrapasse esse que, à sombra da Cadeira 21, estabelece o mais singular de todos os encontros. Refiro-me à liberdade, sua colocação como uma constante, sempre a exigi-la os meus antecessores. Essa mesma liberdade que, no centro de todos os graves problemas do mundo, se associa de tal modo ao que somos que é a única a nos marcar como homens. Não vale agora, nesta oportunidade, justificá-la para nos definir. Tudo o que importa é lembrar: ela estabeleceu o encontro e, estabelecendo-o pelas aproximações literárias, como que armou na praça acadêmica um reduto de fermentação revolucionária.
Os escritores deste reduto, e porque nela acreditaram, é que escritores foram. Acreditaram na liberdade – sem a qual o homem já não é a pessoa – e, porque a exerciam para defendê-la, reafirmaram seu estranho poder através da palavra. Documentaram-na, na oratória ou na poesia, a palavra a serviço da criatura humana, de seus direitos inatos, protegida contra a opressão. Essa palavra, convidando ao diálogo ou provocando o debate, estabelecendo a dialética ou impondo a catequese, se dispõe de projeção histórica, foi precisamente porque correspondeu à ação no sentido de um veículo que interferiu para a reforma e a mudança. A crença na palavra, da tribuna ou em livro, sempre a base interior de todas as revoluções intelectuais, explica o nosso encontro, sobretudo o meu encontro com os acadêmicos da Cadeira 21. Colocou-se, em seu começo, contra a escravidão.
Há na liberdade, no fundo mais fundo de seus componentes, o espaço metafísico que, da inquirição socrática à sondagem dostoeivskiana, associa sua presença ao próprio destino do homem. Os conflitos maiores e as crises profundas, enraizados em nós mesmos, provam que a ela pertencem as soluções. O processo social, em efervescência imediata, demonstra que a história se configura em sua busca. Motivação de vida histórica – no plano individual ou coletivo –, sua defesa, essa defesa da liberdade, foi confiada à inteligência. E, como exemplo dessa aliança, que direi orgânica, entre o intelectual e a liberdade, responsável pelo nosso encontro na Cadeira 21, temos em gerações sucessivas a coerência da mesma mensagem. A liberdade, para nossa Cadeira, é mais que uma temática porque surge como uma determinação.
Observarei, porém, e o faço afirmando um compromisso que agora é meu em sua tradição, observarei que o escritor vem para a Academia à sombra da obra. A aceitação dessa obra, pelo reconhecimento crítico e a incorporação ao acervo comum, prova – como no caso dos escritores da Cadeira 21 – que a Academia, também participante, não anula o seu conteúdo revolucionário. É a própria mensagem que se valoriza, tornando-se clássica, mas poderosa no contato com a duração acadêmica. A nossa mensagem, essa permanente reivindicação da liberdade em estado de luta ou em manifestação teórica, esse reconhecimento da liberdade como condição social indispensável à vida, tanto nos pertence – em conseqüência – como à Academia. O espírito acadêmico, democrático na escolha dos seus membros e na imparcialidade de todos os seus debates, se reflete a sabedoria é precisamente porque adota a liberdade como norma. A Cadeira 21, como se verifica, não subsiste como uma ilha.
Mas, assim integrada no comportamento acadêmico – um comportamento ativo em função da própria liberdade que permite a vocação criadora –, um comportamento revolucionário ao preservar a obra inovadora e reformadora que caracteriza a cultura – a Cadeira 21 se amplia, quase uma frente de guerra, em sua intransigência na defesa da liberdade. Eu diria, sem exagero, que a aprendizagem da liberdade nela se faria não fosse a liberdade nascida com o homem. Há nomes e episódios, porém, situações e acontecimentos, equivale dizer que História existe neste reduto.
E História que se inicia com o patrono, Joaquim Serra, seu protesto e sua campanha contra a escravidão mostrando que a liberdade e o humanismo se fundem como se uma estivesse a mover o outro. A formação humanista, permitindo uma exata compreensão porque resultante do poder conclusivo, robustecendo-se em sua base erudita que significa saber, já denuncia a liberdade como a própria matriz. E o humanista, em seus recursos psicológicos, em seu conhecimento objetivo, em seu interesse pela educação que corresponde ao exame dos valores humanos, não tinha como omitir-se. É o filósofo em plena verdade, sua palavra subindo ao povo para dizer que fora da liberdade todos os resultados são condenáveis.
Não há progresso ou organização econômica, riqueza ou desenvolvimento, que se possam justificar com o trabalho escravo. A convicção se transforma em uma causa, o filósofo usa a tribuna, em serviço e sua palavra de escritor. A origem, porém, não está na escravidão como um processo – a origem, que atinge a escravidão e qualquer forma de opressão econômica e política, está na liberdade como uma problemática. O homem nasce senhor de si mesmo, livre em sua consciência e seu trabalho, nessa liberdade todo o direito, toda a ordem, toda a justiça, a segurança inteira da sociedade. A liberdade, para Joaquim Serra, é a origem. A escravidão é o motivo. O humanista, e tão humanista quanto os pensadores da sua Província – Odorico Mendes ou João Francisco Lisboa –, como que estrutura a base de uma revolução, a revolução abolicionista.
Temos de admitir, porém, que Joaquim Serra não se isola, inspirando-se no humanismo erudito, para expandir e fortalecer o abolicionismo. Está ouvindo o povo, conhece as suas manifestações, sabe que o escravismo é movimento em sua temática oral. As personagens escravas protestam, documentando a violência social, nos autos populares e anônimos. Os contos populares, com exemplo no ciclo do martírio, mostram a ignomínia. O estado de revolta, esse abolicionismo que proclama em sua consciência de escritor, ele sabe que é um comportamento coletivo e prova-o a criação popular em sua expressão oral. Os produtos culturais que o conformam, gerando no complexo social a própria personalidade nacional, demonstram que o povo já dispõe de vocação democrática e que a liberdade – como diriam os psicológicos sociais – é parte do seu instinto e do seu caráter. Joaquim Serra, porém, começava a revelar a determinação da Cadeira 21 como um reduto da liberdade.
O patrono pouco antecede o fundador, seu contemporâneo, a linha ideológica na mesma órbita de ação. Em Joaquim Serra, que apreende a vocação popular na luta abolicionista e a situa como uma destinação democrática, o espaço é mais teórico e por isso mesmo mais analítico, lógico e conclusivo. Em José do Patrocínio, em sua voz a própria fala do povo, há força oratória o poder do diálogo. Não é um romântico, um sensibilista a convencer passionalmente, que denuncia a escravidão pela brutalidade intrínseca, a mais estúpida violência do ser humano contra o ser humano. Um agente da liberdade, sim, também um agente da liberdade como Joaquim Serra. Mas, em José do Patrocínio, essa crença na liberdade – sem a qual o homem se deforma na imagem legítima – adquire corpo, salta para fora, há uma exigência irremovível.
A liberdade pede luta, e luta permanente, como a própria vida, para permanecer. O exemplo de como lutar, essa obstinação que já é resistência está em José do Patrocínio. É um ativista que associa à palavra – à palavra que é a base da própria ação – a liderança no sentido de identificação com a vontade coletiva. Explica-se, nele, o líder. O povo está nele, em todas as reações públicas, está sobretudo nele quando reclama a liberdade como uma condição tão humana quanto social. Seu protesto, em conseqüência, é o de um intérprete que reflete – à sombra ainda dos produtos culturais brasileiros – a consciência de um país que sabe não ser possível civilizar-se contra a liberdade. Em José do Patrocínio, e mais que a vocação coletiva em um comportamento individual, como que se encarna a compreensão exata do abolicionismo. A configuração, em verdade, não pode ser outra: o abolicionismo, ao vingar como campanha e vencer como tese, gera conseqüências precisamente porque afirma a nossa destinação democrática.
As conseqüências políticas são decisivas. A reformulação republicana, por este lado, não permite dúvida. É na órbita cultural, porém – e não temos como esquecer os intelectuais que foram seus agentes como o patrono e fundador da Cadeira 21 –, é na órbita cultural que a liberdade se robustece, consolidando-se como uma das causas e a principal referência da nossa inteligência criadora. O mundo brasileiro, apesar de toda a motivação já aproveitada, oferece-se como complexo material artístico. Literários, no sentido de humanidade para a novelística e a dramaturgia, são os seus problemas sociais e humanos. Plásticos, no sentido de uma expressão nativa, a sua natureza e os seus cenários. A arte, a nossa arte, satisfeito o sentimento da liberdade, debruçar-se-ia sobre ele para convertê-lo em conteúdo e forma. A liberdade, social e politicamente assegurada, responsável pela democratização jurídica e racial, também permite a caracterização artística em função do complexo cultural brasileiro com base nas constantes literárias e nos movimentos temáticos.
O uso da liberdade, permitindo o encontro do escritor com o povo, assegurando a receptividade ao escritor, não provoca apenas a expansão da inteligência criadora. Robustece por dentro os produtos culturais, é seu trânsito que se processa, a efervescência se fazendo principalmente na conformação das constantes literárias. E, dentre essas constantes, não temos como ignorar a sensibilidade crítica e a vocação lírica. A manifestação crítica, assim identificada como um resultado do nosso complexo cultural e na dependência da liberdade, ampliar-se-á no reconhecimento mesmo de nossa literatura. A manifestação lírica, já enraizada no cancioneiro popular, permitirá que a experiência poética – apesar das escolas e do artesanato – se renove através da linguagem e da imagem.
A liberdade está por baixo com uma espécie de subsolo. E, se o ensaísmo crítico pode situar-se em Mário de Alencar - também ele a compreender o abolicionismo em todas as conseqüências culturais -, se o lirismo poético pode ilustrar-se com Olegário Mariano - ambos na Cadeira 21 -, é certo que a liberdade como que se personaliza, tornando-se exemplo, em Álvaro Moreyra. Um conceito de liberdade, quase diria frente à figura extraordinária, é realmente um conceito de liberdade que se ergue com sua vida, lição de convivência de um homem para com os outros. O testemunho não é apenas meu. É sobretudo vosso, senhores acadêmicos, todos nós a conservarmos a imagem singular que a inteligência nos conflitos e nas crises interiores, não comprometeu em seu amor pela humanidade e o mundo.
A biografia exterior, e fosse indispensável reanimá-la, surgiria nas confissões - as lembranças em sua própria palavra - que escreveu como a acordar “Os sentimentos das horas passadas junto dos semelhantes”. Essas reminiscências, não as amargas, colaboram para o conhecimento do escritor como o documento que não pôde ocultar. Essa biografia à luz, em verdade, não me interessa. Interessa-me a biografia íntima, sua fixação psicológica, o que em Álvaro Moreyra responde por nosso encontro, nós, os acadêmicos da Cadeira 21. É a liberdade, sabemos, que este encontro permite.
E, mais que uma fórmula jurídica ou uma tese filosófica, mais que um fato histórico ou uma determinação social, a liberdade é um comportamento. É tudo isso precisamente porque é o comportamento a salvar, na vida de um homem, a própria existência coletiva. O fundo evangélico da liberdade, responsável pela inquirição dostoievskiana, individualiza-se nessa pessoa que limita a presença ao espaço necessário, sem ambição, sem orgulho, sem ódio. Essa liberdade que chamarei existencial traduzir-se-á, em conseqüência da humanidade e da bondade que a revestem, numa espécie de prática quotidiana. Ela é que o faz escutar, escutar para compreender, sempre longe de qualquer julgamento. A colocação de Romano Guardini, por coincidência em torno de uma personagem dostoievskiana, esclarece: “Ele escuta, ele distingue exatamente o justo do injusto, mas ele não julga”.
Extraordinário, porém, e nesse homem que tudo respeita - e conhece, sobretudo os sofrimentos e as paixões -, extraordinário é que escolhe o melhor de todos os caminhos. Poderia ter sido o ensaísta, mesmo o ensaísta político, mas seria não evitar a polêmica. E poderia ter sido o crítico, o crítico literário com poder de auscultação, mas seria discutir e negar para não trair sua própria verdade. Ficcionista poderia ter sido ainda, e prova-o sua experiência no teatro, mas seria encarnar-se na personagem aceitando seu crime e provocando o drama. Escolhe, porém, o melhor dos caminhos - o que organicamente ele é - e poeta permanecerá em todos os lugares, o lírico no prosador, contemplativa a visão das coisas e da vida.
Debruça-se sobre o mundo, todos os sentidos captando enquanto a inteligência transfigura – a bruma, a luz, as rosas, o circo -, e percebe-se que Álvaro Moreyra reinventa na descoberta. Recriando a realidade, como se buscasse “o outro lado da vida”, é necessário que se saiba que evita a tragédia. “O dia nos olhos”, sim, não o lado noturno, opressivo, cego. Quer fazê-lo e o faz porque movimenta sua própria liberdade, afirmando-a, componente da inteligência como uma função. O lado de sombras, “as amargas”, ele conta. É preciso vê-lo nessa escolha, mobilizando o tema e a linguagem, o artesanato e a expressão, alimentando-se de alegria e tranqüilidade que apenas a liberdade interior permite.
A liberdade, em conseqüência, decide o poeta. E, enquanto a experiência poética se processa, estabelecendo o roteiro que vingará, entremostrando não se possível manter-se em seu próprio tempo que - para ele - já está superado. Estamos no começo do século, a primeira guerra não eclodiu ainda, muito longe a grande renovação literária no sentido da reformulação técnica ficcional e da reforma na própria estrutura da poesia. O mundo brasileiro, e conseqüência talvez do abolicionismo, deixa que os elementos culturais trabalhem gerando condições para uma das suas maiores revoluções artísticas. Essa fermentação encoberta, assim escafândrica, dispõe de alguns agentes ostensivos. Entre eles o poeta Álvaro Moreyra.
O precursor, eu diria, não fosse o participante que antecedia. O modernismo, que se explicará como uma conseqüência do complexo cultural brasileiro, teve a sua vanguarda. E nessa vanguarda, já conta os cânones e as fórmulas, o poeta a compreender que - em conseqüência da própria evolução - a nossa literatura não tardaria a se renovar no sentido da libertação. Essa exigência - libertar-se principalmente na área lingüística incorporando literariamente a melhor fala do povo -, para Álvaro Moreyra, se tornava fácil. O artesão trabalha seu verso de poeta como a expressão nativista. E, partindo desse trabalho, movendo aquela expressão, promove o gênero - a crônica - que o situa como figura maior na história da literatura brasileira.
A crônica, na construção que realiza, absorvendo constantes literárias brasileiras, numa associação de lirismo e documentário, e refletindo o que é nele o estilo - pessoal, inconfundível, incensurável -, converte-se em prova: a prova decisiva da própria liberdade que vive. O direito é seu de transformá-la na arquitetura e no conteúdo reanimando o episódio imediato, integrando-a pelo interesse público no jornalismo. Não desejo exagerar, mas a verdade não quero trair. E asseguro que, se a imprensa hoje não a dispensa, se como gênero literário é um dos mais populares, seria injusto ignorar Álvaro Moreyra como o pioneiro.
O escritor, sem atritos e sem debates - atento sempre à liberdade que é sua precisamente porque a respeita em todos -, não força as conquistas. Executa em sua própria obra o que tem a defender. Com o modernismo, e nós observamos, há um encontro. E, ao enriquecer o jornalismo com a crônica, transferindo para a imprensa um dos círculos da literatura, não oferece outro argumento senão o exemplo do seu trabalho. Não é um teórico, um professor, um apóstolo. É apenas um escritor em extrema humildade. E, nessa humildade, verificando a arena em que se convertem a arte e a cultura, é o único a não desejar convencer. O inconformismo, se o manifesta, é porque inova, abrindo precursos, acima dos desafios.
A autenticidade de sua obra está nessa afirmação - sabe que a arte é nobre demais para ser empenhada em qualquer espécie de luta. Não provoca, em conseqüência, o reconhecimento crítico. O êxito do modernismo e a popularidade da crônica demonstram que o reconhecimento crítico surge espontaneamente como uma conseqüência daquela afirmação. Esse resultado, que corresponde a uma adesão, implica ainda a vitória pela liberdade. Mas, se a liberdade pôde permitir a concorrência, se pôde estabelecer o triunfo da obra literária sobre os manifestos, se pôde situar a aceitação de uma posição estética, não anulou em Álvaro Moreyra a contribuição revolucionária. É a própria liberdade, no círculo artístico - em função do poder inovador e renovador da inteligência -, que gera a revolução estética.
Não surpreende, em conseqüência, que o poeta e o escritor - já agora no ciclo modernista -, e valendo-se do clima da própria revolução literária, não surpreende que se detenha sobre a renovação mesma do teatro brasileiro. O “teatro de brinquedo”, por este lado, corresponde a uma fase - e fase revolucionária - porque interfere na grande mudança. Fosse necessário justificar e diria que, movimento sobretudo de autonomia lingüística, o modernismo encontrou em Álvaro Moreyra o responsável pelo entrosamento do teatro à nossa fala. Não será difícil verificar que, na dependência da autonomia lingüística, e apenas quando esta triunfa com a experiência poética, é que o teatro irrompe para a renovação. Transformar-se-á, porém, o “teatro de brinquedo” - e já então à sombra da renovação novelística - na “Companhia de Arte Dramática”.
A preocupação pelo teatro, em Álvaro Moreyra, não se limita à revisão da dramaturgia para a atualização cênica. É certo que os movimentos posteriores, todos canalizados em função de um teatro brasileiro, se originaram das duas experiências. Mas, ao entregar-se ao teatro como um animador - herdando talvez a paixão de João Moreyra da Silva, seu pai um autor teatral -, entende o gênero literário que se funde com o povo no próprio espetáculo. A receptividade, pela participação, é direta e imediata. E nessa receptividade, que corresponde à convivência do escritor, do intérprete e do público, o que vinga é a liberdade, a grande liberdade que se processa na encarnação da personagem pelo ator e no encontro, pelo ator, da personagem com o público.
Esse estado interior da liberdade, componente da criação literária, mais se reflete – e Álvaro Moreyra o sabia por experiência - na tessitura ficcional, novelística ou dramatúrgica. O pedido da liberdade se manifesta em qualquer personagem precisamente porque é o lado mais humano no homem. No teatro, em conseqüência da representação, traduzir-se-á em um conflito - o conflito pela liberdade mesma - quando se encontram a personalidade da personagem e a personalidade do seu intérprete. É no fundo da criação literária, em conseqüência, que a liberdade se reclama como uma força imensurável. Sabe o romancista que a criatura ficcional, ao adquirir vida para mover um destino, ao ingressar como símbolo ou figura da condição, já exterioriza a liberdade em seus atos. A liberdade, porém, prova mais que a humanidade na personagem. Prova que a personagem também é um ser nascido e a liberdade - em seu caráter e sua imagem - é que confere a presença humana. Esse comportamento, que assim se revela em nosso trabalho; essa liberdade, que volta a nós pela nossa personagem - e acabamos de ver - marca a Cadeira 21.
Esta a minha Cadeira. Os escritores que a ocuparam, de Joaquim Serra a Álvaro Moreyra, firmando a liberdade como sua tradição, não me impuseram um compromisso. Quis o destino que também a ocupasse um romancista e um crítico literário, que, jurando respeito à liberdade, sabe que na liberdade se contém a própria inteligência como função intelectual. Obrigam-me, todos os meus antecessores, a esta definição.
E, definindo-me - quando os reencontro à sombra da definição -, já agora como escritor do meu tempo, não posso evitar o que exigem no fundo mesmo da sua obra. Exigem a luta contra a censura ideológica, contra o comando do partido único nas artes e nas ciências, contra o bloqueio cultural - que tentei estudar em um dos meus livros - ainda hoje oprimindo povos e humilhado o homem. Fossem eles a falar, Joaquim Serra ou José do Patrocínio, e o protesto seria o mesmo, sobretudo ele. Joaquim Serra, que, no testemunho de Machado de Assis, ajudou o País “a soletrar a liberdade”. Homens e escritores, como eles permitiram que nós, os que chegamos depois, encontrássemos a liberdade não como uma tese, um debate ou uma reivindicação. O legado era a liberdade como uma vivência. E quero, já agora em depoimento pessoal, ampliando um dos lados do discurso de Jorge Amado - meu amigo da infância, meu companheiro de ofício, meu colega de Academia, meu irmão pelo sangue da terra -, quero dizer que a vida me foi nobre, desde o primeiro dia, precisamente porque encontrei a liberdade como um bem comum. Ela, a liberdade que não precisei desejar porque já era um estado da vida, responde mais que eu próprio pelos romances que escrevi.
Seria imperdoável não mover o tempo, fazendo-o recuar, retomando o passado como a demonstrar que a infância não morre. O menino está deitado na terra, sombras na roça de cacau, os homens cortam os frutos. O agreste de Ilhéus, Itabuna e Itajuípe, em todas as aventuras do povo do sul da Bahia, chega pelas vozes que narram. Heróis que se isolam, o sangue escorre na fala, o menino escuta. A saga é violenta, guerra e ódio, também piedade e amor, a carga humana pesa como o chão de árvores. Ouviu, o menino ouviu. E quando o romancista se debruça para escrever - sem reinventar a fábula regional, sem trair as vozes, sem esquecer as figuras - é o menino quem na verdade escreve. Esses livros, porém, tempo imóvel em minha vida, não se fariam em um país sem liberdade. O censor ideológico silenciaria as vozes, perdida estaria a matéria ficcional, sepulto o escritor em sua solidão. A liberdade, porém, aquela mesma liberdade de Joaquim Serra, plantada estava quando o menino escutou deitado na terra.
Em todos os dias, meio século de vida esgotando a minha experiência de testemunho - por assim dizer todas as esperanças e quase todos os valores -, o acervo se restringiu ao mínimo. O escritor discutiu muito em seus monólogos de leitor profissional. A responsabilidade crítica o deteve sobre os movimentos filosóficos e as escolas estéticas. As teorias e as interpretações, as inquirições e as especulações - em período de idéias controvertidas, de análises subjetivas, de dialéticas agressivas - não eliminaram a observação. O fanatismo ideológico, responsável por guerras e revoluções, responsável sobretudo pela volta da brutalidade totalitária, não destruiu a confiança do homem. E, quando não pôde medir os resultados e as conseqüências, a conclusão que se impôs não se alienava frente aos problemas do mundo: a liberdade, como uma função no comportamento humano e em seu uso político no processo democrático, manteve-se como o valor decisivo.
Essa liberdade, que tanto preocupava o escritor em suas relações com a receptividade, ele a reencontraria – menos como uma motivação e mais como um elemento -, mas ele a reencontraria na Cadeira 21. Sei agora que, entre nós, não há distância ou conflito, debate ou crise. A sombra que vem por cima nos abriga a todos. Uma dádiva de Deus, que agradeço, esta de pertencer à Cadeira 21, a Cadeira da liberdade.