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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Múcio Leão

Se eu possuísse, num grau razoável, a doce virtude da modéstia, começaria esta oração, meu eminente confrade, por vos pedir desculpas... Desculpa por ser eu quem esteja a vos falar hoje aqui, a vos dizer o quanto eras querido e esperado em nossa Casa, o quanto sois nela bem-vindo.

Não era, decerto, a minha a voz que devíeis ouvir, neste primeiro alvorecer de vossa glória acadêmica. Sou um simples homem de letras, um vago cronista, um escritor que se perde na multidão sem fim dos outros escritores, um daqueles a quem o mais querido dos vossos poetas, o divino Goethe, chamaria um tocador de flauta.

Para descerrar-vos as portas da nossa Casa, precisaríamos de outro órgão, que não o meu: o de alguém que fosse autoridade nos terrenos que percorreis como vossos – o de um Roquette-Pinto, o mestre dos assuntos biológicos e etnográficos, aquele Roquette-Pinto que vos seduziu tanto, e ao qual, para mostrar a identidade que nele encontráreis com o maior dos alemães do século passado, em tudo o que fosse beleza, saber, alegria de existir e de pensar, haveis mudado o nome para Roquête-Pinto; ou de um Miguel Osório de Almeida, médico, humanista e escritor como vós mesmos o sois; ou – já que o destino nos levou os dois queridos companheiros – o de um Assis Chateaubriand, esse homem prodígio, que, ainda vivo, já invadiu o terreno da lenda... Foi Assis, creio, o primeiro amigo que fizestes, quando ao Brasil regressastes, para a conquista do renome e da fortuna. E essa amizade fraternal tem permanecido inalterável através de mais de quarenta anos. Agora mesmo, por ocasião de vossa candidatura foi ele o general inquieto que se lançou em campo, com o peito descoberto, para a direção de uma batalha em que lhe parecia tão difícil... E era uma batalha tão fácil!

A esse nosso confrade, portanto, é que em boa justiça deveria caber esta missão que agora tão gratamente cumpro: a de vir traçar um resumo de vossa vida e dar aos que nos ouvem uma notícia de vossa obra e de vosso pensamento. Enfermo como se encontra, ele não poderia infelizmente falar hoje aqui, dando-nos mais uma demonstração daquela graça, daquele pitoresco e daquele humorismo risonho e malicioso, que lhe são tão característicos.

Meus títulos para estar aqui vos falando hoje, na noite de vossa glória, Sr. Silva Mello, são talvez poucos, porém existem. São principalmente os desse afeto sincero e verdadeiro com que, desde que aqui, ao Rio de Janeiro, chegamos os dois, na mesma semana e talvez no mesmo dia do ano de 1919 – vós, procedendo da Alemanha e da Suíça, onde havíeis terminado o curso médio, para começar as atividades de clínico, eu, modestamente desembarcando do Recife, bacharel como toda a gente, para iniciar-me nas Letras e no Jornalismo. Vossa estrela já era bela e fulgidíssima, naquelas primeiras horas do Oriente. Puz-me a contemplá-la e a admirá-la. E é a essa qualidade de um amigo das primeiras horas, e também (perdoai a referência pessoal que a ninguém, decerto, interessará) a de ter sido um doente grave que naquele tempo arrebatastes ao sofrimento e talvez à morte – que devo agora essa honra de ser quem venha descerrar-vos a cortina de nossa Casa.

UM RACIONALISTA E OS SEUS FANTASMAS

Desejando dar cumprimento à tarefa que me incumbe, eu volto-me, em primeiro lugar, para aquele modesto lar de Juiz de Fora, em que, nos fins do século passado, sendo o mais moço de cinco irmãos, começastes a receber os primeiros conhecimentos do mundo – deste mundo sempre tão novo em tudo. É bem verdade que a alma da criança é apenas um casulo em que se está plasmando o homem que vai vir. Aquele período de vossa infância tem uma importância transcendente para explicar o homem que vos tomastes – este ser compósito, feito de rebeldias aparentes e ostensivas, de grandes pavores secretos, de ânsias de realização sempre para mais longe, de anseios de renovações jamais tranqüilizados.

Por este tempo, habitáveis em uma fazenda, e é de então que data a vossa atormentada preocupação com o outro mundo... A casa em que residia a família era um desses velhos edifícios tão comuns em nossas zonas rurais – uma construção erguida em meio a um terreno cheio de árvores, aberta a todos os que chegassem, na abundância dos quartos e das salas. Tudo, porém, modesto, senão pobre, pois as posses da família eram reduzidas: mas tudo amplo, agradável, acolhedor, paradisíaco...

Mas a envolver todos esses adjetivos, é preciso escrever um outro – tudo apavorante... Acontecia que a velha fazenda era mal-assombrada. Povoavam- na vários fantasmas: o do antigo fazendeiro, cuja distração preferida consistia em se embalar na velha cadeira de balanço em que outrora se sentava, quando ainda era corpo e vivia entre os humanos; o da antiga fazendeira, mais prático do que o do marido, que todas as noites ia varrer o casarão, arrastando a sua vassoura com um barulho de espavorir; o da filha do casal, que se dedicava ao piano e acordava o silêncio com o gemido das músicas que não eram da terra... A fama desses mal-assombrados corria mundo. E tanto era assim que somente raros viajantes desprevenidos daqueles horrores ousavam aproximar-se da fazenda cheia de perigos.

Está aí, Sr. Silva Mello, a primeira nascente de um desses grandes veios de vosso espírito. Recebestes, naqueles primeiros anos, o influxo daquelas terríveis assombrações. Vivestes com elas, e elas foram como que um véu de Ísis, denso e forte, que vos envolveu a sensibilidade e a emoção, nesses primórdios da vida. Quando, com o espírito já feito, pudestes empregar o vosso racionalismo à análise daqueles fantasmas, tivestes uma explicação para cada um deles: o fantasma do velho que se embalava na cadeira não era mais do que um cachorro que, encontrando a porta da sala aberta, ia dormir deitado no móvel...; o fantasma da velha, que varria a casa, era apenas o vento a se agitar, lá fora, nos arbustos...; a sinhá-moça pianista não passava dos ratos que se metiam no teclado do piano...

O vosso racionalismo explicou tudo assim muito bem... E contudo... Contudo, permaneceu em vosso espírito o mesmo alarmado medo de outrora! Sois, ainda hoje – grande médico, o humanista por excelência de que se podem orgulhar as Letras brasileiras – um eterno medroso de fantasmas. Mas convém aqui ouvirmos a vossa própria confidência, que é expressiva e muito graciosa:

O medo que tenho é, por assim dizer, específico, peculiar a uma determinada qualidade de assombração. Trata-se de um fantasma invisível, que não aparece, que não faz ruído, que não tem nada de maléfico, e por isso, nem medo ou pavor deveria causar. É noturno só da escuridão. Deve manifestar-se por um leve sopro atrás da orelha ou da nuca, um toque muito ligeiro, quase imperceptível, numa das faces, talvez na própria mão, sobretudo numa perna deixada descoberta, por exemplo, ao descer do leito no escuro. E seria só isso. Absolutamente nada mais. Mas o medo é tão grande, tão intenso, que pode fazer arrepiar os cabelos, disparar o coração, resultando daí uma imobilidade pétrea, pois qualquer movimento parece que será motivo para o fantasma executar a ação que está sendo temida. Ele está invisível sob a cama, espera pela perna que deve ou precisa descer, pelo braço oculto sob o lençol, pelo rosto que procura esconder-se sob a coberta. Daí a imobilidade, a falta de coragem para sair da cama ou executar livremente qualquer movimento...

A obsessão desses velhos pavores vos perseguiu durante anos e anos. Viajou convosco da velha terra de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Seguiu- vos à Alemanha, quando fostes estudar Medicina. Regressou convosco... É ainda agora um dos vossos traços... Foi ela, essa antiga obsessão, que vos levou a estudar durante longos decênios os insondáveis problemas do outro mundo... Foi ela que vos levou a escrever o mais racionalista dos vossos livros – essa obra intitulada Mistérios e Realidades deste e do outro Mundo – em cada uma de cujas páginas achamos uma explicação humana e lógica para cada coisa misteriosa que nos parece vir de outras regiões diferentes da nossa...

Os crentes desses sagrados e divinos mistérios chocaram-se convosco, indispuseram-se convosco, que assim ousáveis abalar nos alicerces os majestosos castelos em que tantas esperanças humanas resplandecem. E houve alguns deles que, para combater as vossas negativas, chegaram a escrever livros. Trabalho vão, de todo esperdiçado ou inútil! Não sabiam eles, esses adversários, que o primeiro crente, daqueles estranhos e apavorantes mistérios continuava a ser o analista cheio de lógica e razão que tanto os combatia!

AMOR AO TRABALHO

De outro dos traços que mais vivamente caracterizam a vossa fisionomia e a vossa vida, meu ilustre confrade – e quero referir-me a esse insofrido amor ao trabalho, que é tão vosso –, podemos encontrar a nascente também nos tempos da vossa infância.

Éreis menino, quando a morte de vosso pai veio lançar na orfandade aquela família já então composta de oito filhos. O que até então fora tranqüilidade e despreocupação, transformou-se, de súbito, em dificuldade, apreensão, tristeza. Andáveis pelos treze anos, e fostes forçado a aceitar a determinacão do destino, indo trabalhar como caixeiro, em uma casa de comércio. Era um armarinho, propriedade de um vosso cunhado, muito amigo vosso. O sistema que esse excelente homem havia adotado na vida era o do trabalho sem descanso. Nem por alguns minutos abandonava o seu estabelecimento. Tinha como auxiliares dois, caixeiros, um dos quais éreis vós. O horário de trabalho para servir à freguesia era implacável – das seis da manhã às dez da noite. E quando as portas da casa se fechavam para os fregueses, continuava ainda o serviço lá dentro: vinha a limpeza com vassoura de piaçava e vinha a arrumação. Nas horas do trabalho, não tínheis um momento de descanso – sempre de pé, atendendo a quem chegasse. E se acaso ninguém chegava, tínheis, vós e o vosso companheiro, de transportar as mercadorias de uma prateleira para outra, a fim de dar aos que passavam na rua a impressão de um movimento que não cessava.

Foi esse o primeiro contato que tivestes com a chamada vida prática. E foi esse, entretanto, um ótimo momento de vossa existência. A tão rígido sistema de trabalho – vejo-o em uma de vossas sinceras confidências – sabíeis ajuntar belos e freqüentes sonhos de amor, os sonhos daquele irrealizado amor adolescente, tão poético sempre e sempre tão melancólico, em que entram, fascinantes, todas as mulheres – desde as Messalinas feitas de devassidões ou as Cleópatras feitas de experiências, até às Julietas e as Ofélias, feitas de dedicações de coração puríssimo, ou de puríssimas angelitudes. Ainda acháveis tempo para entremear a tantos trabalhos e a tantos amores a leitura dos romancistas. Foi nessa época que travastes relações com Eça de Queirós – que se tornou para vós, conforme o confessais, ainda comovido e fascinado, o deus soberano. Foi também nesses dias de encantamento que travastes conhecimento com Júlio Verne, o delicioso revelador de tantos mundos, o romancista cuja leitura deveria ser obrigatória a todos os cérebros de treze anos. O escritor francês foi o enlevo de vossa alma, nesse tempo. Sua leitura vos arrebatou... “Sentia-me como um indivíduo perdido, mergulhado no fundo de um abismo, de onde procurasse a claridade e as maravilhas do céu”. O entusiasmo que Júlio Verne soube despertar em vosso espírito foi tão grande, que tomastes a resolução de ser também romancista. E, antecipando todos os esputiniques possíveis dos dias de hoje, andastes escrevendo um romance que era uma viagem a Marte. Infelizmente esses originais se perderam.

Perderam-se os originais – mas a lembrança daqueles dias de um trabalho tão terrivelmente intenso ficou eterna em vosso espírito. Do hábito, naquele momento contraído, do esforço incessante, vos ficou essa fabulosa disciplina de trabalho que todos conhecemos. Sois daqueles que não descansam nunca, ou, antes, que dizem que estão descansando quando apenas mudaram de tarefa. O descanso para a ação do clínico consiste no escrever livros; o descanso para o escrever livros consiste no tomar notas – as infinitas notas – das leituras que vão sendo feitas; o descanso para o tomar notas, consiste na leitura dos grandes autores, os mestres da Biologia ou da Sociologia, na Alemanha, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, um Bertrand Russell, um Carrel, um Keyserling, um Siegfried; o descanso para a leitura desses autores consiste em uma experiência de Zoologia ou de Botânica, feita em vossa casa das Águas Férreas, ou mais provavelmente ainda em vosso sítio de Petrópolis.

E como as coisas – as vossas coisas – são assim, e como foi nesse ritmo que vos habituastes ao trabalho, propugnais a mesma coisa para os outros. Encontro, em um dos vossos ensaios, uma citação do vosso exemplo pessoal, seguida da consideração de que o trabalho, mesmo numa proporção dessas, "não é aquela punição criada pela Bíblia”.

Fazeis essa observação para refutar uma frase de Bertrand Russell, o qual afirma que o trabalho esgota o indivíduo, tornando-o incapaz de gozar as delícias da vida. Pelo meu lado, meu caro confrade, eu acredito que há excesso na palavra do filósofo inglês – como que há excesso também na palavra do humanista brasileiro. Condenar o trabalho, de forma geral ou total, achando que somente do lazer pode vir a felicidade humana, é evidentemente um abuso. Também é um abuso – e ainda pior, permiti que vos diga – imaginar que o homem pode viver sujeito a essa tirania monstruosa de dezoito ou vinte horas de trabalho por dia. Não! nem uma coisa nem outra!

Por que não procurarmos uma razoável medida entre os extremos? A meu ver, o homem seria feliz se pudesse dar ao trabalho umas quatro horas por dia. Ficaria assim com uma disponibilidade de vinte horas para outras coisas igualmente essenciais – para se divertir, para dormir, para sofrer, para ler, para devanear, para esperar, para desesperar, para pensar na eternidade e em Deus... e também para sonhar com a mulher que é a mais doce forma de Deus e da eternidade.

Aqui está ao meu lado, porém, aquele que reputo um dos maiores homens do mundo contemporâneo, George F. Nicolai, o autor desassombrado e heróico dessa epopéia científica dos nossos dias, que é a Biologia da Guerra, e é nesse filósofo e nesse sábio, uma das mais puras glórias da Alemanha atual, que aprendo que o ideal para a humanidade seria o ritmo de uma hora de trabalho por dia.

O CURSO MÉDICO NO BRASIL

Foi, pois, com o hábito espantoso de um trabalho tão intenso que, mal saído da adolescência, viestes para o Rio de Janeiro, sonhando a conquista de um título de médico.

Em princípio de 1907 estáveis matriculado no primeiro ano da Faculdade de Medicina e em abril do ano seguinte deixáveis a incômoda situação de calouro.

É de quatro dias depois dessa promoção ao segundo ano que ficou datado um formidável documento: a carta que enviastes a vossa irmã mais velha – vossa amiga, vossa protetora e vossa confidente – contando o que era a Escola de Medicina, fazendo a crítica do que ali acháveis de errado, de tolo ou de falso.

O documento, pela extrema importância que tem, não pode passar sem uns momentos de análise Olha-lo-ei apenas aqui e ali, não só para não alongar demais o discurso, mas também para não lembrar certas coisas que dizíeis, e que ainda hoje com certeza ferirão epidermes delicadas...

“A Escola de Medicina” – escreveis nesta carta –

é hoje um aleijão do ensino superior, é um meastro horrendo e disforme, a principiar no ladrilho dos anfiteatros e terminando nos cérebros moles e anêmicos dos lentes. Estes são uns sábios opilados, com cabeça de palha e cérebro da cortiça. São pançudos e alimentam-se de fumo, e talvez às escondidas de feno ou de capim...

A fúria é homérica, como vemos. Mas, se ela assim fere os lentes, fere ainda mais os programas que esses lentes organizam:

Os programas são funambulescos. Um exército de adjetivos injetados de raiva e de dinamite não basta para invetivá-los; só coices ou murros eles merecem e seria então um espetáculo admirável: seria um duelo de patadas. Cada um deles é uma epopéia de contrasenso ou ele asneira. Os lentes parecem reunir tudo que há de inútil, de fofo, de ridículo, para formular os programas. E depois, por uma vaidade ou uma pretensão que merece gargalhadas, eles arranjam o célebre ponto cavalo de batalha, o ponto que vem pintado de vermelhão, de máscara, de barbas e de bigodes postiços, para fingir originalidade ou concepção virgem. É um ponto sagrado, polvilhado de nomes e de expressões retumbantes. É enjoado e grotesco a enjoar...

A carta prossegue, assim, toda ela no mesmo tom. E, já aparecendo aquilo que havíeis de ser em toda a vossa obra – o demolidor que não se contenta com apenas destruir, mas que sobre cada ruína que faz deseja erguer um monumento – nessa mesma carta apontais as duas grandes realidades gloriosas da Medicina brasileira daquele tempo – o Instituto de Manguinhos e o Hospício Nacional. Dessas duas instituições dizíeis que se erguiam, poderosas, “esmagando a Academia que está desprestigiada e sem valor”.

Quem lê essa carta compreende a decisão que tomastes por aquele tempo: a de dar por findos os estudos de Medicina no Rio de Janeiro, e partir para a Alemanha. Foi ali que concluístes um curso médico sério, severo e orgânico, tal como sempre havíeis desejado fazer.

OS PROBLEMAS DO ENSINO MÉDICO

Trinta anos depois de haverdes escrito aquela memorável carta, médico dos mais gloriosos que o Brasil possuía, mestre ouvido e atacado por todos – fostes convidado pelo Ministro Gustavo Capanema a dar a vossa impressão acerca dos nossos problemas do ensino. Falastes apenas acerca do ensino médico – que era o que melhor conhecíeis e o que de fato vos interessava. E produzistes um trabalho que veio a ser este excelente Problemas do Ensino Médico e da Educação, que ficou sendo o vosso título de acesso no território das boas letras. Aquele livro foi uma revelação e uma surpresa, para quantos conheciam o grande médico, porém ignoravam o escritor que nesse médico se escondia.

E esse escritor era digno da admiração dos leitores mais exigentes. Em primeiro lugar, era um humanista, um defensor do indivíduo contra o preconceito, um libertador da sensibilidade, da inteligência e do coração. Em segundo lugar, mostrava a fibra e a coragem de um polemista – arrancando os ídolos falsos dos falsos altares, apontando defeitos, mazelas e erros. E em terceiro lugar esse humanista e esse polemista, não sendo uma cópia dos arrevesados mestres do seiscentismo luso (o que era tão comum nos nossos médicos que naquele momento se davam ao exercício da Literatura) era um estilista ágil, dono de uma forma direta, dizendo que era branco o que queria dizer que era branco, dizendo que era negro o que queria dizer que era negro... A impressão que esse livro em todos produziu foi a mais viva. Gilberto Freyre, chamado a prefaciá-lo, tratou-o com carinho, belamente, definindo o seu autor como “um esplêndido desertor da glória acadêmica e do conforto burguês”. E foi com estas palavras que ele deu a síntese de sua impressão acerca da obra:

Há alguma coisa de romântico no livro. De romântico somente, não; de quixotesco até! Alguma coisa de aventura. A beca do doutor quase se transforma em manto de São Miguel lutando contra dragões. Estamos diante de um grande médico brasileiro que escreve um livro tão cheio de verdades que parece mentira a sua publicação.

Outros juízos surgiram, cheios de igual entusiasmo. Um rude destruidor como Agripino Grieco depôs por um momento o seu tacape de tuxaua para, tomando o vaso de cauim, fazer ao autor dos Problemas do Ensino Médico e da Educação um eloqüente louvor como este:

Livro de um homem que não faz questão dos sufrágios dos tolos e clama sempre em favor do espírito, pondo paixão nas idéias. Livro de quem detesta os doutores indoutos, e se tornou agora, nestas páginas surpreendentes,um clínico de costumes, o seguro diagnosticador de muitos males sociais que nos afligem.

Outro brilhante crítico que possuíamos no momento, José Maria Belo, exaltou no livro sobretudo a excelência do estilo.

Os erros que naquele livro apontáveis em nosso ensino médico, Sr. Silva Mello, eram terríveis e profundos e tão terríveis que ainda tornavam oportuna aquela carta-panfleto que, havia trinta anos, tínheis enviado à vossa irmã.

Não posso aqui deter-me sobre essas páginas vivíssimas, honestas e viris, muitas das quais parecem escritas com fogo. Mas posso sumariamente indicar alguns dos erros que naquele menino mais duramente combateis. É o de nos extraviarmos num excesso de teorias; é o de não sabermos consultar a verdadeira vocação dos estudantes; é o de abreviarmos os estudos, permitindo formaturas demasiado precoces; é o de pouco exigirmos dos alunos (em certos casos) condenando-os a um vício irreparável, o do raciocínio precipitado, insuficiente ou sem base; é o de comunicarmos aos estudos o fanatismo das boas notas, circunstância as mais das vezes inteiramente ilusória; é o de favorecermos o simples preparo para os exames, em vez de exigirmos um estudo a sério das matérias.

A essa crítica, seguia, como sempre acontece em vossos trabalhos, um esforço de construção. E então podíamos ver o que era ou o que devia ser, de acordo com as lições de vossa experiência, de vossas meditações e de vosso saber, o sistema de um verdadeiro ensino médico em nosso País.

Ouso acreditar que, não obstante as modificações que o ensino tem tido no Brasil, vossa análise ainda hoje é pertinente e vossos conselhos ainda hoje são oportunos.

A IDA PARA A ALEMANHA

E um dia conseguistes realizar aquele sonho tão difícil de ir para a Alemanha, estudar medicina.

Viajar, naquele tempo, para o brasileiro de alguma posse, era a mais doce e a mais cômoda das coisas. Nosso dinheiro, como o dinheiro americano de hoje, realizava milagres incríveis, naquela Europa feliz e perfeita das duas primeiras décadas do século. Basta dizer que, com os cento e cinqüenta mil-réis que daqui vos enviava a diligente proteção de vossa irmã, tínheis recurso para pagar uma pensão, custear os estudos na Universidade, e, quando havia ocasião, gozar, como os outros estudantes, a delícia da boa cerveja germânica. É fama também que como aqueles outros estudantes, cultiváveis as musas louras e gentis da Unter den Linden. Também ao nosso querido e grande João Ribeiro, que uma ou duas décadas antes tinha igualmente sido um estudante na Alemanha, país que dizia ser “a condensação de todos os paraísos, inclusive o de Mafoma” – também a João Ribeiro Medeiros e Albuquerque fez, certo dia, a adivinhação do amor daquelas musas gentis e louras..., o que o próprio João Ribeiro chamou um Diagnóstico Ich liebe...

Deixando de lado essa parte de vossas memórias, recordarei que chegastes a Berlim em companhia de um brasileiro que daqui fora no mesmo navio e que falava bem o alemão. Logo achastes hospedagem em casa de uma família judia. E como o vosso primeiro propósito era o do domínio da difícil língua do país, iniciastes um sistema de estudo duro e terrível – que consistia em não parar jamais a aula. De tal maneira as dezoito ou vinte horas de vigília, que vos dava cada dia que surgisse, eram todas empregadas no estudo do alemão. As poucas que não eram dadas à prática da conversação eram dadas à leitura dos grandes livros.

Não contarei aqui o que já contastes em tantos de vossos livros, e principalmente naquele sobre os problemas da Educação. Não contarei o que era, segundo a explanação que nos fazeis, o estudo médico na Alemanha severa e exigente das imediações de 1914.

O ESTUDO DO TÓRIO X

Referirei desse vosso período da Alemanha uma única circunstância: a das experiências que fizestes no Instituto de Rádio de Berlim, com o tório X. Agora mesmo vejo dois trabalhos vossos relativos a esse assunto e dois trabalhos sumamente interessantes ambos: um, a conferência pronunciada em Guarapari, e onde estudais as qualidades radioativas das areias daquela maravilhosa praia; outro, o estudo intitulado Efeitos da Radioatividade sobre o sangue e os Órgãos Hematopoéticos. Por esse último, podemos ver o trabalho, em verdade de precursor, que tivestes no que se relaciona à biologia da radioatividade.

Em um desses dois trabalhos narrais a origem de vosso interesse por esse transcendente assunto. Havíeis chegado ao fim do curso, e precisáveis fazer uma tese. Procurastes então o professor Wilhelm His, consultando-o acerca de um tema que tínheis em mente – alguma coisa relacionada com o metabolismo da água. His, porém, não concordou com a escolha, e aconselhou-vos o respeito à rotina da Universidade. Esta rotina consistia em que devíeis ir ouvir, para a escolha daquela tese, o professor Gudzent. Foi o que fizestes. O professor Gudzent, que, sob a supervisão do professor His, dirigia o Instituto do Rádio, aceitou-vos entre os seus alunos, e vos deu como tema o estudo do tório X sobre o sangue. Iniciastes as investigações, e, como o dinheiro era pouco, tivestes de vos contentar com camundongos e ratos. O trabalho era duro e ia pelas tardes e invadia as noites. Certo dia foi o laboratório honrado por uma grande visita – a do professor His, que naturalmente já estava informado do caminho excelente em que íeis seguindo. Aproximou-se do aluno diligente, procurou informar-se de tudo. Mostrou-se tão satisfeito com o que viu, que quando do laboratório se retirou vos tinha promovido a assistente do Instituto, dando-vos a facilidade de fazer experimentações da maneira que vos parecesse melhor, gastando todo o material que achásseis necessário.

E para maior felicidade vossa, deu-vos a possibilidade de experimentar com coelhos, deixando de lado aqueles míseros camundongos. Com isso se abriu a mais bela aurora de felicidade na vossa alma. Experimentar com coelhos, e já não com ratos! Que maravilha e que glória!

Vemos por aí que também nos bichinhos que servem ao laboratório dos sábios existem os proletários e os aristocráticos.

Foi assim que conseguistes aquela que foi, ouso crer, a primeira, em verdade magnífica, vitória de vossa vida profissional.

Mas esse período de vossa existência ficou muito para trás perdido entre outras muitas memórias que a névoa dos dias deposita na alma da gente. E de tal maneira que, segundo uma de vossas confissões, chegastes a esquecer completamente que um dia fizestes aquelas experiências do tório X.

UM NAUFRÁGIO NO MAR DO NORTE

Nessa permanência de tantos anos na Alemanha, vivestes numa obsessão tal dos estudos médicos, que não tivestes um momento para a meditação de qualquer outro problema que surgisse no grande país ou no mundo. Era aquele um momento terrível para a humanidade: era o momento em que o Ferrabraz sinistro que se chamou Guilherme II se aprontava para a temerária empresa de afrontar, numa guerra sem tréguas, o mundo que insistia em não se tornar um prolongamento da Prússia guerreira e poderosa. Os jornais de Berlim andariam cheios da glória marcial do País. Nos próprios meios universitários a fermentação belicosa havia de ser ardente. E tanto o era que, mal começada a guerra, foi produzido aquele incrível documento que é o manifesto dos 90 sábios alemães – a peça histórica que nos deixa ainda hoje assombrados, e na qual vemos que homens da estatura mental de um Haeckel ou de um Rôntgen não vacilam em deformar a realidade evidente dos fatos, para exculpar as aspirações guerreiras e conquistadoras da Alemanha – ou, melhor falando, do seu aloucado líder...

Mas a verdade é que não tomastes conhecimento, de maneira nenhuma, desse grande drama, cujo prólogo se desenrolava aos vossos olhos.

Quando, porém, a guerra explodiu, verificastes que não podíeis permanecer em terras alemãs. E reunindo então tudo o que possuíeis – a vossa preciosa biblioteca científica, todo o material de pesquisa e de laboratório, milhares de preparados microscópicos, os manuscritos de tudo o que tivésseis escrito ou observado durante todo o curso, a bagagem toda, enfim, com todo o vosso tesouro –, tomastes passagem para o Brasil. Estáveis a bordo do Tubântia, e não ignoráveis que a viagem se fazia entre perigos... Uma noite esses perigos tornaram-se em pavorosa realidade: o Tubântia foi torpedeado ou se lançou de encontro a uma mina, e, em pleno Mar do Norte, naufragou. Perdestes assim todos aqueles petrechos preciosos, todos aqueles estudos, com que tanto contáveis para a realização da profissão de médico no Brasil.

Horas de tremenda angústia foram aquelas em que, dentro de um bote frágil, esperando a todo o momento bater em outra mina, andastes perdido na solidão do Mar do Norte.

Afinal um navio holandês que passava lobrigou a embarcação dos náufragos. Fostes assim recolhido, e fostes enfim levado para um porto da Holanda. Daí, vencendo dificuldades de toda a ordem, conseguistes atingir a Suíça. E foi nesse doce país – autenticamente um prisioneiro de guerra a esperar em um campo de concentração – que ficastes dois anos, entregue aos trabalhos da clínica, em hospitais e em consultórios. Já o resultado das vossas experiências com o tório X fora divulgado em revistas médicas de Berlim. E foi esse conhecimento que vos abriu as portas dos acolhedores meios científicos da Suíça, quando ali, náufrago que perdera tudo, chegastes, ansioso por encontrar um trabalho. Ali ficastes até que, terminada afinal a guerra, tranqüilizado afinal o mundo, pudestes de novo sonhar com a volta ao Brasil.

UM CONCURSO FRACASSADO

No Rio de Janeiro a vossa vitória foi fácil e magnífica, pois vos bastaram alguns anos de clínica para serdes apontado como um dos luminares da ciência médica do nosso País. Não direi que tudo tenham sido águas de rosas... A começar do começo...

Quero dizer que essa história de indumentária, para vós, meu eminente confrade, representou, desde sempre, um problema dos mais sérios. Em criança, e já bem taludo, a vossa felicidade verdadeira e única estava em uma certa camisola. Era uma veste larga e considerável, na qual estáveis inteiramente a cômodo. Se acaso vos constrangiam a tirar aquela camisola amiga e a vestir a roupa comum dos meninos de vossa idade, o vosso suplício começava. E se tornava agudo e tenebroso, quando vos enfiavam no corpo uma camisa engomada. Em tais ocasiões não tínheis dúvida nenhuma: corríeis para o tanque mais próximo, para uma bica ou para um ribeirão – e reduzíeis a nada a goma que vos torturava. Éreis por isso uma atormentação na família.

Ora, essa impossibilidade de sofrer as torturas de qualquer indumentária de cerimônia ficou sendo um dos característicos de vossa individualidade. Não podeis suportar uma roupa que vos aperte a cintura ou os ombros – como não podeis usar um anel, como não podeis usar um relógio de pulso. Nada que não seja a absoluta liberdade em tudo!

Levado por essa tendência, ou por esse instinto, sofreis longamente para encontrar o alfaiate que vos sirva. E quando encontrais o alfaiate ideal, nunca mais o esqueceis. Creio que o vosso alfaiate de hoje – perito em cortar as roupas que usais, as roupas em que confortavelmente vos instalais como um peixe que nada com delícias em suas amplas ondas – é ainda o homem de sabedoria infinita, o prodigioso artista que logo que chegastes ao Rio de Janeiro conseguiu copiar, de acordo com as ordens expressas que então lhes destes, certo modelo de paletó, largo, imenso e confortabilíssimo, que trazíeis da Suíça. Vendo-vos agora aqui, metido nesta dura e vaidosa couraça medieval, a que a nossa humildade de acadêmico nos condena, eu me consolo dos martírios que sofro, pensando que, sendo um Veterano desta camisa-de-força, as minhas angústias são bem menores do que as vossas angústias de estreante. E ambos nos podemos consolar, Sr. Silva Mello, com a meditação melancólica de que ainda mais do que nós sofreu Hércules – e era um semideus, um filho de Júpiter! – quando vestiu a túnica do centauro...

Mas o que eu quero dizer aqui é que esse vosso amor às roupas largas e comodas teve, nos vossos primeiros tempos do Brasil, um certo papel em vossa vida. Foi o caso que, informado de que estava aberto um concurso para o provimento de uma cadeira na Faculdade de Medicina, ali aparecestes para a inscrição. Íeis vestido com a vossa roupa preferida – a única que possuíeis posso dizer, pois todas eram do mesmo modelo: um modelo, para o Brasil daqueles dias sem dúvida exótico, abrindo-se nas costas como uma sanfona.

Gastão Cruls, de quem vos aproximastes naqueles dias, não deixou de se espantar com a vossa maneira de vestir. Eis como, tendo descrito o vosso tipo físico, o autor de Elza e Helena se refere à vossa indumentária:

Onde o recém chegado de outras terras se traía, era nos trajes. Vestia roupas que não seriam daqui. Um paletó felpudo, de excursionista, com ombros soltos, martingale, bolsos amplos. Calças também folgadas. Se não me falha a memória, de cor diferente do casaco. Enfim, nada do amaneiramento um pouco efeminado a que no obrigam os alfaiates patrícios.

Recebido pelo secretário do estabelecimento, sentistes a primeira dificuldade ao vosso desejo. Fostes então levado ao diretor da casa. Era Aluísio de Castro, o nosso querido saudoso companheiro. Aluísio de Castro era, nesse capítulo da indumentária, como o seria em tantos outros, o oposto do que sois. E a primeira prova dessa oposição foi o olhar horrorizado que lançou ao vosso trajo...

Seguiram-se empecilhos de toda ordem, no que se referia ao vosso concurso. E afinal, levado o assunto ao Conselho Superior de Ensino, ficou resolvido que só podíeis fazer concurso para uma Faculdade brasileira se antes houvésseis no Brasil revalidado o vosso curso. Foi o que imediatamente tratastes fazer: rumastes para as vossas queridas montanhas mineiras e prestastes exame de todas as matérias do curso, preparastes uma tese que brilhantemente defendestes... De sorte que, quando o tal concurso se realizou, já de posse de vossa documentação toda em ordem, pudestes entrar nele como um dos candidatos.

Correram as provas – e aconteceu o que devia acontecer, o que, creio, já devia estar previsto em vosso espírito desde o ano de 1908, desde o dia em que escrevestes à vossa irmã preferida aquela famosa carta satirizando o ensino em nosso País. A cadeira foi dada ao feliz candidato a quem estava prometida. Quanto a vós, não conseguistes nem a consolação dos tristes a qual seria uma classificação em último lugar. Não tivestes um voto sequer...

UM GRUPO IRREVERENTE

Foi pelos fins de 1919 ou pelos começos do ano seguinte que, em casa de Juliano Moreira, consolidastes aquela grande amizade que vos uniu a Miguel Osório de Almeida e a Gastão Cruls.

Eram três homens de espírito, que em muita coisa se encontravam e em muitas outras divergiam. Escontravam-se, por exemplo, no amor com que se davam ao estudo, no respeito que tributavam à personalidade humana, no rigoroso culto que dedicavam à Ciência, sobretudo se encaminhada para a experiência e a verificação. Divergiam, porém, nas formas da sensibilidade, do gosto, da atividade do espírito.

Para começar, Miguel Osório, como vós, Sr. Silva Mello, era um apaixonado da nossa Instituição. O que não queria dizer que diante dela deixasse de ser aquele irreverente que era e tudo... Aqui o tivemos por quase vinte anos – modelar sempre na sua finura e na sua distinção, encantando-nos pela graça com que sorria, pela elegância com que falava, pela perfeição com que se conduzia. Homem do Renascimento, dizíamos que ele sabia todas as coisas. Era um mestre na Fisiologia, domínio seu entre todos, um mestre nas demais matérias do curso médico; possuía um conhecimento completo de outras ciências, como, por exemplo, das matemáticas, a ponto de se corresponder acerca de problemas transcendentes dessa matéria com professores de fama universal; na música era também uma autoridade – ele que se sentava a um piano para tocar óperas inteiras de Wagner... E com isso, que afetuoso coração, que alma feita de afabilidades para todos os companheiros!

Gastão Cruls era outro tipo. Filho de um grande homem que o Brasil tinha recebido de climas europeus, guardava na alma alguma coisa da frieza e da distância dessas suas origens. Os que conheceram de perto disseram-no bom e difícil como a colméia das abelhas. Para os que dele se aproximavam e que conseguiam o privilégio do seu afeto, era o mel dos mais adoráveis favos; para os estranhos, porém, era a frieza ou a hostilidade do ferrão das abelhas – aquelas vivazes abelhas que se chamavam Ironia e Sarcasmo...

A casa de Juliano Moreira, que os três freqüentavam nos domingos à noite, era aberta aos diplomatas estrangeiros, aos professores, aos médicos, aos artistas. Casado com uma senhora alemã, amigo de europeus e de orientais, em cujo meio se comprazia, Juliano se deliciava em receber em seus salões gentes de todas essas procedências. Psiquiatra que era, recebia, também, um ou outro dos seus amigos clientes – e mesmo, como costumava dizer Antônio Torres, outro que de vez em quando ali aparecia, um ou outro dos seus clientes futuros...

Foi ali que aquela trinca endiabrada inventou coisas memoráveis – e em primeiro lugar um idioma novo, a famosa língua tatá. Com ela assombravam os brasileiros e com ela embrulhavam sem caridade os pobres estrangeiros. Juliano Moreira, enfronhado nos mistérios do estranho idioma, se acaso ouvia uma conversa dos três amigos com algum sábio vindo de outros países, levantava-se mal contendo o riso, saía da sala, balançando a cabeça...

O convívio se prolongava além da casa de Juliano Moreira. Em um artigo que escrevestes acerca de Gastão Cruls encontro referências a fatos numerosos que pudestes conservar da vossa longa convivência com o romancista. Com ele fizestes demoradas excursões a praias do Espírito Santo, bem como a fazendas fluminenses e mineiras.

A CONSTRUÇÃO DE TODA UMA OBRA

Foi a datar dessa época, meu ilustre confrade, que iniciastes a construção dessa bela obra de confiança, constância e harmonia, que é a vossa vida de clínico no Rio de Janeiro e que é a vossa vida de escritor. São duas atividades diferentes. Mas uma sai da outra, uma completa a outra, e de maneira tão natural que é como um fruto que segue e completa uma flor.

Entregue a esses longos e profundos estudos, que vos impuseram em poucos anos, no Brasil, como a autoridade suprema em assuntos de nutrição, fostes tomando notas de tudo o que meditáveis, de tudo o que víeis, de tudo o que podíeis observar em vossa clínica particular. Reunistes assim um cabedal imenso de fatos e de observações – a maior parte destas inteiramente inéditas. E foi assim que nasceu, quase sem que o autor se desse conta da gigantesca gestação, essa obra que se chama Alimentação, Instinto e Cultura.

Eram esses, sem dúvida – os da alimentação, os do instinto e os da cultura – os campos de meditação que naquelas páginas tínheis para o vosso espírito. Mas atrás daqueles três campos de meditação estava o campo imenso que abrangia a todos – estava o indivíduo, com os seus infinitos problemas de alma e corpo... Foi o que logo sentistes. E partistes então para a construção de uma outra ala do vosso palácio espiritual. Resultou esta outra obra – O Homem, sua Vida, sua Educação, sua Felicidade – fonte de crescimentos preciosos.

Mas agora, quando esse estudo sobre o homem recebeu a última demão, pudestes sentir que alguma coisa ficara fora de suas páginas: ficara a alma, pelo menos naquilo que a alma se prendia aos terrores ou às superstições de tudo o que ignoramos.

E veio então mais uma ala erguida no vosso palácio – veio o volume intitulado Mistérios e Realidades deste e do outro Mundo. Ficou assim o estudo do ser humano completo em suas várias direções.

E a esses volumes, que representam o maciço de vossa construção de pensador e de humanista, vieram acrescentar-se outros – que são apenas complementos ou esclarecimentos dos três principais. Veio acrescentar-se o Nordeste Brasileiro, livro único em nossa bibliografia, livro em que encontramos, traçada por um sábio de espírito livre, inteiramente desprovido de qualquer sentimento de ufanismo romântico, a mais quente valorização do homem e da vida do nosso País. Veio acrescentar-se o volume dedicado aos negros, em cujas páginas achamos expressas com tanta eloqüência e tanta coragem tantas idéias inteiramente novas (para mim, pelo menos) relativamente aos africanos. Veio ajuntar-se, depois, o volume referente aos Estados Unidos – exame de uma das maiores civilizações que têm existido na Terra, e exame que revela, nessa civilização, defeitos, vícios e mesmo crimes, que muitos de nós, por mais pessimistas ou negativos que sejamos, estaríamos longe de imaginar que existissem... Veio ainda o livro de viagem à América Latina. Estou informado de que em breve nos dareis também um volume acerca de Israel, completando, assim, com a análise que realizastes acerca deste País – que é um dos mais novos, mas também um dos mais progressistas do mundo todo – essa estupenda perspectiva sobre o homem, que é o conjunto da vossa obra.

UM AMIGO DA NATUREZA

Creio, Sr. Silva Mello, que o traço que principalmente caracteriza a vossa figura mental é esse intenso amor à Natureza que achamos em todas as vossas páginas. Não conheço, nesse sentido, autor menos livresco do que o sois. Para vós o que existe é o grande ensino das coisas e da vida. Fora daí tudo é ilusão e engano sem remédio.

“A Natureza” – escreveis em um dos vossos livros – “deve ser a mestra suprema, atrás da qual precisamos apagar-nos humildemente para ouvir a sua voz e obedecer aos seu ditames”.1

É ela, é a Natureza, segundo o ensino de vossa filosofia, quem tudo pode, quem tudo faz. No que se refere aos médicos, o mais capaz e o mais sábio de todos eles, o mais que pode fazer é auxiliar – e em verdade nem isso mesmo às vezes fará! – o trabalho da Natureza. Eis como o afirmais:

“A Natureza é uma força tão poderosa, as reações curativas do organismo de tal ordem que, freqüentemente, a doença se cura, mesmo quando a intervenção terapêutica foi ineficaz ou até maléfica”.2

A conclusão de uma tal afirmativa não pode ser senão contrária aos médicos que se perdem nos meandros das doutrinas e das teorias. É o que também nos ensinais nestas palavras:

“Não precisamos de médicos sábios e eruditos, desses verdadeiros dicionários ambulantes, mas sim de médicos que, no momento adequado, saibam agir com segurança em benefício do doente.”3

Creio que essas meditações podem servir, senão como uma síntese, pelo menos como um caminho, uma espécie de orientação de vossa filosofia – dessa que eu chamaria a filosofia da Natureza.

PRECEITOS DE UMA FILOSOFIA

Aqui e ali, em vossos vários livros, andei recolhendo alguns pensamentos que mais vivamente me feriram a sensibilidade. E creio que neles temos um pouco do reflexo de vossa alma numerosa e rica. Ouçamos alguns desses belos aforismos – em todos os quais sentimos o pensamento de um homem autêntico, que não se deixa enredar em deformações ou em enganos.

1. O Homem. pág. 121.

2. Problemas do Ensino Médico, pág. 71.

3. Problemas do Ensino Médico, pág. 25.

“O que o estudante deve aprender é, antes de tudo, o caso comum, as coisas de todos os dias, o essencial da prática, sem o que não poderá galgar degraus mais elevados.”4

“O segredo maior da vida, do sucesso, da felicidade está em o indivíduo agir, atuar, viver de acordo com as tendências íntimas do seu ser, de executar a tarefa para a qual tem verdadeira vocação.”5

“Logo que qualquer obra ou trabalho do espírito visa ao sucesso material, traz já em si o estigma de sua inferioridade.”6

“As nossas academias, a de Letras, a de Medicina, a de Ciências, algumas delas com múltiplos similares estaduais, não deixam de lembrar a antiga Guarda Nacional, onde qualquer pacífico cidadão, falto de qualquer conhecimento da Arte da guerra, se torna alta e brilhante patente militar. Em vez de valores reais, de verdadeiras sumidades, muitos membros dessas associações não passam de autênticos lobisomens de academia.”7

“O ser vivo deve ser tomado em sua totalidade.”8

“Correr atrás da glória ou da fortuna é lançar-se em busca de um infinito, que nunca poderá ser atingido.”9

“O ladrão é o melhor polícia e o pobre o senhor mais arrogante.”10

“É muito provável que a Ciência por si só não possa fornecer a todos nós as satisfações de que temos necessidade. Ela é por demais fria, rigorosa, exata, mal deixando lugar para a atividade da nossa fantasia e da nossa imaginação.”11

“A Humanidade é que deve contar, e nós precisamos tornar-nos seus servos, quase como os têm compreendido as concepções religiosas.”12

“O erro de negar não é menor que o de aceitar.”13

4. Problemas do Ensino Médico, pág. 27.

5. Problemas do Ensino Médico, pág. 53.

6. Problemas do Ensino Médico, pág. 54.

7. Problemas do Ensino Médico, pág. 192.

8. Alimentação, Instinto Cultural, pág. 29.

9. O Homem, pág. 97.

10. O Homem, pág. 105.

11. O Homem, pág. 529.

12. O Homem, pág. 768.

13. Mistérios e Realidades, pág. 79.

“Pode também o erro constituir uma excelente fonte de progresso e ensinamentos.”14

A APOLOGIA DO INSTINTO

Esses e muitos outros lampejos muitos deles tão novos, tão vivos, tão inesperados – enchem os vossos livros. Tenho pena de não poder dar aqui aos ouvintes conhecimento de tantas de vossas páginas em que acho a melhor revelação desse filósofo da Natureza ou desse humanista que encontro em vós.

Como esquecer jamais (e é apenas um exemplo) aquela página em que dissertais sobre a sabedoria do ovo? Ou aquela em que dissertais sobre a pena – “uma única pena” – da cauda de um pavão?

Como esquecer as lições que nos dais acerca de tantos problemas humanos – os do amor ou os do sexo; os da nutrição; os da insatisfação; os do sentimento; os da morte?

Como síntese de tudo, aqui desejo lembrar um aspecto de vossa filosofia que tanto vos aparenta ao sempre vivo, ao sempre de nossa hora, ao grande Montaigne. Quero referir-me a essa exaltação do instinto, que encontramos em toda a vossa obra. O instinto – definis – é uma inteligência que está dentro de todos os órgãos e tecidos e é à custa dele que os seres vivem e se perpetuam. “O instinto” – acrescentais –, quando ainda não desvirtuado, é, sem dúvida, um excelente ou talvez o melhor dos guias. Foi ele quem, através de milênios, desde as épocas mais primitivas, possibilitou aos diversos povos o encontro de uma alimentação adequada, capaz de garantir-lhes a vida e a perpetuação da espécie, tal como aconteceu igualmente com todos os animais, através de todas as idades, nas mais variadas regiões do globo.15

E é em outra de vossas páginas (no livro dedicado ao Homem) que encontramos aquela bela meditação relativa à nobreza e à beleza do Instinto.

14. Mistérios e Realidades, pág. 568.

15. Alimentação, Instinto e Cultura, pág. 54.

Ele também, o maravilhoso francês, reconhecia a excelência do instinto – e não vacilava em colocar o Instinto acima da Inteligência. Estou a lembrarme de certa meditação em que ele se refere à faculdade que tem o cameleão de tomar a cor do lugar em que se acha; e diz então:

“Ora, essas propriedades, que nós reconhecemos nos animais, e que são maiores do que as nossas, dão o testemunho de que existe neles algum faculdade mais excelente que nos é oculta, como é verossímil que o sejam diversas outras das condições e dos poderes deles...” Não parece que estamos lendo uma página de Alimentação, Instinto e Cultura ou de O homem, sua Vida,sua Educação, sua Felicidade? Entretanto estamos lendo Montaigne, e o melhor Montaigne, o da Apologia de Raymond Sebond...

AMOR À VIDA

Esse amor à vida, a todas as coisas da vida, tem o seu lado avesso: é o de um imenso horror à morte, a todas as coisas da morte. No discurso com que acabais de aqui tomar posse da Cadeira que vos coube – peça em verdade importante como estudo crítico e sobretudo psicológico de Gustavo Barroso, peça que é, como vós mesmos a classificais, quase uma autópsia do nosso extinto companheiro, e que tem a peculiaridade de ser uma das mais extensas orações jamais produzidas em qualquer Academia do mundo, demandando seis ou oito horas para uma leitura total... – encontramos diversas manifestações desses dois sentimentos que se completam tão profundamente.

O vosso ardente amor à vida pode ser surpreendido em inúmeras passagens do vosso discurso, não só na parte que dedicastes a Gustavo Barroso, mas igualmente naquela em que estudais os demais vultos da Cadeira 19. Encontro-o, por exemplo, na volúpia com que traçais o perfil de Alcindo Guanabara. Encontro-o também nessa curiosidade afetuosa e talvez risonha, com que ousais vos aproximar de D. Silvério Gomes Pimenta, procurando, talvez, como o satã de Machado de Assis, nas vestes inconsúteis do virtuoso homem de Deus, alguma franja de algodão.

Mas do vosso fabuloso amor à vida, a maior e mais eloqüente prova que dais está mesmo é no estudo que dedicastes a Gustavo Barroso. Como vos divertis com as tropelias da infância e da mocidade daquele endiabrado menino do Ceará! Rapazinho sisudo e triste, que trabalhava todas as horas do dia num balcão comercial, não tivestes, por assim dizer, infância nem adolescência. Por isso como que fazeis vossas agora as experiências largas, agitadas e não raro tormentosas do vosso antecessor na imortalidade. Com ele vos sentis, nas noites de Fortaleza, tranformando em alma do outro mundo, para ir assombrar as populações ingênuas, cheias de crença em tudo o que fosse difícil de crer. Com ele partis a ser um impossível moleque das ruas, agora caprichoso, depois arbitrário, sempre violento e vingativo, o que chamaríamos hoje, talvez, um elemento da juventude transviada, chegando até ao uso da navalha e de outras armas. Com ele seguis para a experiência áspera mas deliciosa pelo mundo atormentado que é o sertão do Nordeste – viagem que havia de dar ao nosso companheiro os mais perfeitos dos seus livros, e em primeiro lugar e à frente de todos aquele que lhe marcou a vigorosa estréia – Terra de Sol.

Como sorrides a essas peraltices sem número, como vos deliciais e embeveceis com elas! Como viveis com o vosso herói picaresco as aventuras de que ele soube encher o vasto romance da vida – se é que não as inventou a quase todas...

É esse amor à vida que igualmente vejo transparecer em tantas de vossas revelações, como estudioso, como pensador e como crítico. Descubro-o, por exemplo, na extrema valorização que dais ao conhecimento da vida sexual dos personagens que submeteis ao vosso estudo. Gustavo Barroso, que foi tão claro em tudo, que tanto contou de sua vida, que tanto revelou de seu coração e de sua alma, deixou esse lado de sua existência num desvão de penumbra. Foi o que bastou para que, não vos sendo possível esclarecer assunto de tal monta, considerásseis incompleto o estudo acerca do vosso antecessor. Fico a imaginar o que seria a vossa tortura se tivésseis diante dos olhos um modelo secreto, sempre escondido em neblinas, como o era Machado de Assis, ou então um daqueles professores de disfarce, um constante simulador, como o foi Merimée, ou, melhor ainda, como o foi o mestre desse mestre de sutilezas, o embromador de tudo e de todos, o arqui-sutil Stendhal.

A PERPETUAÇÃO DA VIDA

Vejo que em vossa filosofia esse grande amor à vida se expressa em alguns mandamentos poderosos – como o de possuirmos a saúde, bem que precisamos defender com todos os esforços; como o de conservarmos a alegria inalterável, preceito que partilhais com o incomparável São Francisco de Assis, esse que é um dos vossos mestres ignorados, porém dos quais estais sempre tão próximo; como o de transmitirmos, com satisfação e com felicidade, a vida a outras gerações...

Creio que toquei agora no cerne de vossas idéias de biólogo e de filósofo. Esse último preceito de vossa filosofia – o que estabelece o dever que temos, nós, todos os seres, da reprodução da vida – me parece o primordial entre todos os que traçais.

Encontro infinitas vezes, em vossa obra, a expressão indizível da melancolia deste pensamento: o terdes chegado à velhice sem ver ao vosso lado um filho.

Em verdade é de uma tristeza sem fim uma reflexão dessa ordem – a reflexão que entretanto constituía o único motivo de consolação que o desencantado Brás Cubas encontrava para a estupidez da vida.

Não gerastes um filho, e isso, para o vosso coração, é uma fonte de eternas tristezas. Também eu, se neste lugar me é lícito fazer uma confidência, sofro o drama dessa mesma frustração: o destino jamais me deu o prazer ou a glória de um filho. Opondo-me, nesse ponto, à felicidade de Brás Cubas, que se vingou de sua esterilidade odiando a espécie humana, eu me conformei docemente com essa contingência de não ser pai e me pus a amar a todos os seres que na Terra existem – e não só aos humanos – como se fossem meus filhos. Acredito que a solução evangélica é a melhor, pelo menos a que mais nos ajuda a suportar essa aventura que é a vida – essa aventura sem explicação possível, e para a realização da qual não fomos consultados no misterioso paraíso do Nada, na qual não existíamos, e onde éramos, por isso mesmo, donos de uma inexcedível ventura...

UMA CENSURA DIVINA

É realmente alguma coisa grave e solene – ser o último de uma cadeia que deveria ser sem fim, e que até agora foi sem fim... Pensar que no primeiro dia em que houve na Terra esse mistério atroz e torturante que se chama a Vida, começou a existir, através de uma sucessão intérmina de coisas ou de seres, uma determinada linha de vivências... Pensar que, através de milênios de milênios, essas vivências se transmitiram de pais a filhos – de um ser a outro ser, de uma espécie a outra espécie, de uma idade a outra idade... E pensar que um dia apareceu um homem para ousar interromper essa continuidade sagrada e sem termos... É realmente grave e solene!...

E que poderemos nós, os seres solitários e sem continuidade, nós, os que representamos esse último elo de uma cadeia da vida, que poderemos dizer ao Senhor dos Exércitos, quando ele, no dia sem subterfúgios, erguer, no Vale de Josafá, a sua voz terrivelmente inefável, e nos dirigir uma interrogação como esta:

– Que fizeste, filho meu, daquele primeiro preceito que estabeleci ao criar a vida – que fizeste do meu preceito do Crescei e Multiplicai-vos?

De mim, eu sei, desde agora, que, humilhado como nunca em minha humilhadíssima humildade, nada encontrarei para dizer... Afundar-me-ei no mais desprezível silêncio... esperando que vós, o biólogo, o sábio, o filósofo que sois, encontreis uma palavra que possa servir aos ouvidos de Deus como um motivo de indulgência para os pobres seres que vegetam nesta inconsolada solidão sem filhos que é a nossa...

O TERROR DO FÚNEBRE E DA MORTE

Do outro sentimento que completa esse amor à vida também aqui encontro reveladoras passagens. A uma delas não quero deixar de fazer alusão, por sobremaneira nos interessar a todos. Refiro-me àquele trecho em que fixais o terror de Gustavo Barroso – “temperamento de místico” – diante da morte, do fúnebre, do defunto, e em que declarais que tendes os mesmos sentimentos. É aí que dais acerca de Miguel Osório de Almeida uma notícia estranha. Havia morrido Miguel, e vós, grande amigo dele como éreis, permanecíeis ao lado do cadáver. Chegou a hora de ser o corpo colocado no caixão. E então verificou-se que a dimensão do fúnebre móvel não era suficiente para o corpo do morto. Foi necessário retirar os sapatos, para que o cadáver coubesse lá dentro. O nosso querido Miguel foi enterrado assim – sem sapatos, os pés cobertos de flores... Escreveis então: “Até hoje incomoda-me aquela ausência de sapatos – sabê-lo enterrado apenas de meia partindo assim desta Academia para o Além, depois do discurso do seu Presidente... Essa impressão nunca mais me fugiu do espírito...”

Não creio, Sr. Silva Mello, que uma impressão dessa ordem deva permanecer mais tempo em vosso atormentado espírito. Para os que partem para a eternidade, que importância terá um par de sapatos a mais, ou um par de sapatos a nenos? Mesmo que no dia da ressurreição da carne haja de haver também a ressurreição dos sapatos – isso deve ser um problema de muito pouca importância aos olhos do Padre Eterno. Há de haver, naquele dia, ressuscitando das milenárias cinzas, gentes, que, em matéria de indumentária e de proteção aos pés terão todos os costumes possíveis. Haverá os que trazem sapatos de ouro e de diamantes e haverá os que levam rudes sandálias, e haverá os que vão com os pés descalços... Deus saberá escolher todos os seus, entre aquelas multidões sem fim. E depois uma preocupação dessas é a que menos devemos ter, quando evocamos uma figura como a de Miguel. Tivemo-lo aqui durante longos anos, e víamos nele, todos nós, a representação graciosa e quase alada do Ariel de Shakespeare e de Renan. Tanta era a leveza, a finura, a espiritualidade daquele ser humano feito de luminosas transparências. Não refiramos a ele, na vida que ele tem hoje, nessa vida melhor e mais bela e que tem o nome de glória, nenhuma imagem de materialidade ou de grosseria, como seria essa de levar sapatos nos pés. Ele andará nos ares, será como uma essência ou uma luz. E se é certo que existem os anjos, se é certo que entre este existe a categoria dos anjos feitos de ironia, de malícia e graça, podemos estar certos de que é aí que havemos de encontrar nosso caro Miguel Osório de Almeida, como o mais gracioso, mais malicioso, o mais irônico dos elementos dessa bela milícia celestial.

A RAZÃO E O MISTÉRIO

Quem vos lê, meu ilustre confrade, quem, como eu, tem o hábito de longamente se deter sobre esses vossos livros, finda por ter uma impressão curiosa e que não deixa de ser desconfortante. Figurai um diálogo, em que falam de um lado a Razão e do outro lado o Mistério, ambos expendendo, com argumentos excelentes, a sua lógica e a sua dialética – sem que, afinal, nenhum conseguisse em essência destruir nada do outro... Creio que é esse – o dessa eterna falta de solução – o resultado único de todas as polêmicas, de todas as discussões, de todas as controvérsias, neste mundo em que, ao que posso sentir, não existe uma Verdade absoluta, mas apenas uma sucessão de pequenas verdades relativas.

Detenho-me sobre o vosso caso, e ele constitui para mim uma grande lição de ensinamento filosófico.

Senão vejamos. – Num livro em que ficou condensado um saber infinito, desvendastes aos nossos olhos os Mistérios e as Realidades deste e do outro Mundo. Lendo-vos naquelas páginas, a impressão que temos é a de que estamos vendo um gigante que, com a sua clava na mão, vai pelo mundo, a limpar as coisas e a redimir a alma dos homens. E com efeito nada dessa Poesia trágica e terrível, porém no fundo tão volutuosa e tão doce, que é a do homem no afã de criar os seus pavores, os seus ídolos e os seus deuses, aqui fica de pé. Lá se foi, na derrubada implacável, o que era Arte de ler para além das coisas materiais ou aparentes. Lá se foi tudo – quiromancias e cartomancias,mmensagens de deuses, aparições de espíritos... O mundo ficou reduzido apenas ao que podemos ver com os nossos olhos, ouvir com os nossos ouvidos, sentir com os nossos outros sentidos, compreender com a nossa pequeníssima inteligência. É uma coisa considerável, sem dúvida, para um bom racionalista, esse trabalho que fizestes – embora eu, que não chego a ser um fanático dessas artes ocultas, comece a sentir uma nostalgia inquieta e triste, uma como saudade de um mundo em que o mistério medrava e em que portanto existia a poesia.

Acrescentarei que essa melancolia se torna ainda mais triste e maior, quando medito na multidão daqueles meus irmãos sem número, os pobres homens, para muitos dos quais só existe uma explicação razoável da vida – explicação que, afinal, é esse próprio mistério que implacavelmente destruístes.

O Espiritismo, por exemplo. Que fonte infinita de consolação e de felicidade para muita gente existe nele! Quanta gente só consente em viver, embriagada pelo suave e doloroso mel que ele fornece aos seus adeptos! Que mal existe, pois, em que o Espiritismo não corresponda a uma realidade? Se isso acontecer, teremos a eternidade para o desencanto. Enquanto possuímos o privilégio desse curto minuto miserável de vida, deixemo-nos embalar nas canções ilusórias que essa crença nos dá, e acaso é nela que encontramos a sombra de uma sombra de felicidade... Não é esta a mesma reflexão, a única, que devemos fazer diante de todas as religiões?

Mas prossigamos no que eu estava a dizer acerca do diálogo da vossa Razão com o eterno Mistério do mundo e dos mundos... Pois muito bem: o vosso grande livro desfez o mistério das superstições e dos assombros. E já sabemos que não há assombrações, não há almas errantes, não há fantasmas... já sabemos que ruiu o mundo das quiromantes e das cartomantes... já sabemos que o próprio Espiritismo evaporou-se, leve e depressa, como a neblina das manhãs de verão...

Mas isso terá alguma significação, no sentido de suprimir os mistérios das coisas e os enigmas da vida?

Faço a pergunta ao meu mestre e amigo Silva Mello – e é o meu mestre e amigo Silva Mello quem me dá a resposta negativa...

Basta para isso, meu eminente confrade, abrir um dos vossos livros mais sinceros e mais sábios – Alimentação, Instinto e Cultura, por exemplo. Recorro ali a uma da páginas iniciais – aquela em que falais de um tema que é tão vosso o do instinto dos animais – e vou encontrando mistério sobre mistério, enigma sobre enigma. O Paramécio, por exemplo, um ser unicelular, o mais rudimentar pedacinho de coisa provido deste milagre que se chama vida... o paramécio sabe escolher os seus alimentos... Quando posto em contato com partículas diversas, umas quadradas e outras redondas, as primeiras inúteis como alimentação, as segundas úteis – paramécio, da segunda vez em que é feita a experiência, já sabe repelir as primeiras e usar somente as segundas! Como aprendeu aquele protozoário essa realidade da sua ecologia? Que Dr. Silva Mello dos paramécios lhe terá ensinado a longa teoria das vitaminas que são imprecindíveis à existência dos protozoários, esses reis da criação?

O mistério desses seres primariíssimos é, sem dúvida, grande.

Mas há outros tão grandes e até maiores, na atormentada existência dos animais. O da sabedoria da vespa é fabuloso, e mal podemos concebê-lo... A vespa, como o recordais, para a sua reprodução, procura um inseto. Paralisa-o com uma picada com que inocula um veneno – uma espécie, digamos, de curare, que somente ela conhece... Depois cava na terra um pequeno canal em que sepulta a sua presa. E é sobre essa presa que deposita os seus ovos. Em seguida sai, vai procurar nova vítima, que igualmente paralisará, para garantir a subsistência do filho que vai sair do ovo. O ato da vespa é mais extraordinário ainda, porque evidentemente é ditado por uma espécie de sabedoria anatômica, digamos assim. A picada que inocula no inseto tem que ser dada em uma determinada região e só nessa região – e de maneira tal que o inseto continue vivo, embora já incapaz de fugir ou de ter qualquer ato de defesa... O processo é tão misterioso, e é tão da própria vespa, que o grande Fabre, observador sem descanso da vida dos insetos, tentou, pondo em jogo todos os recursos de sua infinita Ciência, reproduzir o ato, sem resultado nenhum...

Mistérios, como vemos – mistérios que se desdobram em outros mistérios... Como explicá-los? Como conseguir decifrar os segredos da esfinge?

Procurais fazê-lo, explicando, em vossa sabedoria, que “há, por assim dizer, dentro das células, uma inteligência, uma memória e uma lógica irracionais, que ultrapassam de muito aquelas de nossa própria cerebração consciente”. Ouvimos vossa palavra – que respeitamos e aceitamos. Mas será que ela nos serve, realmente, de alguma coisa, ao sentido de esclarecer O enigma que nos preocupa, o enigma que está por trás dos outros enigmas – no sentido de dissipar a angústia que nos oprime? Creio que não. De que nos serve saber que há na célula da vespa uma inteligência do paramécio ou na célula da vespa uma inteligência e memória? Isto seria apenas uma informação... Mas como foi ali existir essa inteligência e essa memória?... Para que foram elas ali postas?... Quando foram elas postas!... Por que foram elas ali postas?...

Aí parareis conosco, meu sapientíssimo confrade. E o mistério, que há pouco dissolvestes, o grande mistério que há em tudo neste mundo e em todos os mundos, começa de novo a se gerar de si mesmo, pois ele não é senão a teia sem fim que envolve tudo, essa teia a que, seja qual for o nome que lhe dermos, temos sempre de dar um outro batismo... E esse outro batismo é a nossa irremediável, fatal, eterna e infinita ignorância...

AUDÁCIA DOS ASSUNTOS

O traço que como escritor principalmente vos distingue, meu ilustre confrade, creio ser o da audácia dos assuntos. Não sei de ensaísta, já não digo na Literatura brasileira, mas em qualquer Literatura, que possua essa coragem que tendes de invadir todo e qualquer tema, sem a mínima cerimônia, sem qualquer aparência de nos pedir desculpas. O território de El-Rei Silva Mello é o homem em toda a sua imensidade – e reinado ele o possui com segurança, força e decisão. Como que vos estamos a todos os momentos ouvindo repetir o velho verso do poeta latino:

Homem sou:

Nada que seja humano me é alheio.

É nesse terreno – no da incrível audácia dos assuntos – que mais uma vez me lembrais Montaigne.

Já ao mestre dos Ensaios tive ocasião de aproximar, ainda pouco, um outro escritor brasileiro – o nosso glorioso João Ribeiro, que aliás tem evidentes afinidades convosco.

Mas o parentesco que eu achava entre João Ribeiro e Montaigne consistia sobretudo na mobilidade, na flutuação que caracteriza tanto a um como ao outro. João Ribeiro, a impressão que nos dá é a de que não é um João Ribeiro – é uma associação de muitos Joões Ribeiros. E esses vários indivíduos estão nele a pensar ao mesmo tempo, ao mesmo tempo a exprimir os pensamentos que tem... De sorte que o resultado de tudo é aquela impressão de inconstância, de incoerência ou de contradição. O nosso grande escritor o sabia muito bem. E em certas páginas de seus ensaios mais pensados – no estudo sobre Friedrich Nietzsche ou no estudo sobre Gustav Freytag – escreveu períodos que valem como uma autodefesa eloqüente e maliciosa. Ele queria que esses dois escritores, também em tanta coisa móbeis e inconstantes como eram, fossem sempre vistos em progresso, e não, como o faria uma crítica estreita e mesquinha, em contradição.

A observação é válida para João Ribeiro. E é válida também para Montaigne, esse modelo de contradições – tão contraditório, ai de nós, como qualquer homem.

Era o próprio Montaigne quem assim se mostrava, ele que se auto-analisou tanto. E estou aqui a lembrar-me de certo ensaio em que ele confessa que às vezes enfrenta um assunto com um ponto de vista firme e decidido; mas, de repente, por puro exercício mental, põe-se a argumentar como se a sua idéia fosse exatamente a oposta. E então a força dessa segunda posição é tão dominadora, que ele se vê de repente inteiramente possuído por ela, repelindo a posição contrária em que estava de início. O que não o impedirá – podemos concluir – de tornar de novo, também por puro exercício mental, a posição que acabara de repelir e findar por ser por ela inteiramente dominado de novo... E assim por diante, indefinidamente. É nesse ponto – o da infinita possibilidade de ver os prós e os contras de cada coisa, e de assim oscilar entre as idéias – que vejo o nosso João Ribeiro tão próximo de Montaigne.

O parentesco que entre vós e o filósofo francês encontro é, porém, de outra ordem. Está, como o disse acima, nessa incrível audácia com que vos meteis em todos os assuntos.

O velho Montaigne analisava-se em tudo. Para ele, a cor da sua pele, a resistência de um fio dos seus cabelos, a ponta que aparava de uma unha, tinham uma importância suprema, e cada fatozinho desses era capaz de lhe merecer um grande ensaio.

É claro que aqui não posso falar senão com a contenção acadêmica, mas vós, que já vos deliciastes com aquele estilo, que é o mais sutil e o mais plástico da língua francesa, sabeis que naquela fabulosa obra não há pecado, não há vício, não há sujidade humana, que deixe de ter o seu lugar de honra...

Ora, é exatamente assim que também procedeis como escritor, Sr. Silva Mello. Não há mistério da alma humana, não há região do corpo humano, não há hábito ou costume de homem – que não seja observado, analisado, dissecado por essa implacável lente sem aro que trazeis no pince-nez. Como o fiz com Montaigne, tenho que limitar-me agora na medida da discrição acadêmica. Mas basta ao ouvinte curioso abrir uma ou outra página de qualquer de vossos livros – aquele em que estudais os Estados Unidos, por exemplo. E logo esse ouvinte irá vendo surgir dos quartos mais secretos os móveis mais miúdos e os mais humilhados, para serem expostos a uma grande luz.

OS ESTADOS UNIDOS

Não me sendo possível acompanhar-vos, Colombo temerário, em toda a audácia dos temas que enfrentais – posso, entretanto, tentar, na medida da discrição que este discurso me impõe, seguir-vos em algumas explorações que fazeis nos vossos mares amplíssimos...

Retomo o livro que escrevestes acerca dos Estados Unidos – livro a que destes o subtítulo de Prós e Contras, porém em que eu, para ser honesto, vos confesso que só encontrei os Contras... – e me divirto com a luz vivíssima com que ides clareando tanta coisa. Aqui está a indicação de um aspecto em verdade muito importante, e que, conforme o sentis, antes de qualquer outro, caracteriza a grande República: o Puritanismo. A análise que dele fazeis despoja-o de suas cores amáveis, e o põe a nu, com as suas grandes mazelas, a primeira das quais é aquela soberba hipocrisia.

É como o fruto fatal desse Puritanismo, também o mostrais, que a civilização americana se tornou isso que vemos hoje: esse terrível matriarcado, em que a mulher reina como soberana e em que o homem mal chega a existir... A opinião é certamente vossa – mas é também de muitos outros observadores, de argúcia e sutileza igual à vossa.

Um Keyserling chega a uma afirmativa destas: “A posição da mulher na América é a de uma raça dominante, tal qual foi a dos ingleses na índia.”

E tanto o é que, pondo-vos de acordo com um brasileiro que longamente viveu nos Estados Unidos, Olímpio Guilherme, assim descreveis um casamento americano:

Quem casa hoje nos Estados Unidos não é o homem, é a mulher. Os maridos são considerados coletivamente um rebanho (little cattle), que se tange com um olhar. Inverteram-se as atribuições domésticas da família: agora, na burguesia americana, é o marido quem carrega a criança; quem vai de cesta de vime no braço ao mercado fazer as compras do jantar enlatado, que depois amornece no fogão; em seguida à refeição, enfia um avental e lava conscienciosamente a louça suja; e à noite, a horas mortas, ainda embala o filhinho manhoso, que ignora o seu cansaço e a surda revolta do seu coração.

Inúmeros assuntos de que tratais estão aí a me desafiar a atenção e a malícia e alguns deles são deliciosos, pois muito revelam acerca daquele País estranho que inventa a monstruosa hipocrisia da lei seca; que permite a existência do exército dos gangsters; que coloca os negros no último lugar da coluna zoológica; que mata, sob o protesto indignado do mundo, Saco e Vanzetti e agora Chesmann; que lança a bomba atômica em cima das populações civis do Japão; que deixa medrar em suas cidades a floração desses míseros seres de egoísmo e de abandono, que são as Lolitas de toda espécie; e que, tendo por si a amizade e o amor de todos os povos do continente, acaba por alienar esses sentimentos, perdendo-os em benefício de ideologias nefastas ou perigosas... e isso por ter reduzido, como tantas vezes já tem sido dito, o belo programa do Pan-Americanismo, que deveria ser o de – América para os Americanos – a estas outras palavras: A América para os Americanos do Norte.

Já num duro e formidável livro, escrito nos começos da nossa República – e aludo à Ilusão Americana, de Eduardo Prado – isso tudo está demonstrado, com um vigor e uma coragem que hoje é raro encontrarmos em nossos publicistas...

Vosso livro, Sr. Silva Mello, vem, por muitos aspectos – salvo, é claro, o aspecto político –, ligar-se ao de Eduardo Prado.

E é pena que eu não me possa deter em cada um dos vossos capítulos – e sobretudo naqueles por demais interessantes (e são tantos!) em que estudais a vida sexual no grande País; ou naqueles em que analisais o problema do dinheiro; ou naqueles em que vos estendeis sobre o problema religioso ou o problema científico.

Como digo, deve haver alguns Prós aí, porque assim nos afirmais. Mas tudo o que posso discernir, nas vossas páginas, creio que são os Contras...

ALGUMA COISA SOBRE O NEGRO

Deixo de lado essa análise espectral dos Estados Unidos, e retomo o livro em que estudais o negro.

Quanta compreensão, quanta bondade para essas vítimas eternas de todas as injustiças, vou desde logo descobrindo nestas páginas em que fala uma Ciência perfeitamente informada de tudo – mas em que jamais faltou a vibração de um coração.

Para que tenhais a maior simpatia pelo negro não seria preciso mais do que isto: o ter sido o negro, através dos tempos, a vítima que foi. É claro que essa simpatia está baseada em doutrinas científicas da maior segurança, todas as quais afirmam que não há tolice maior do que a dos que sustentam a superioridade de qualquer raça sobre as outras. Mas creio que, mesmo se não fosse essa a decisão final da Ciência, a raça de Cão teria da mesma forma a vossa simpatia e o vosso amparo, senão o vosso amor. Bastava para isso ser a raça oprimida. Havíeis então de amá-la como amais todos aqueles que, conforme a belíssima palavra do Evangelho, tem fome e sede de justiça. É esse mesmo o segredo do vosso amor pelas vítimas de todas as espécies ou categorias – os velhos, as crianças e os enfermos, os pobres e os abandonados; e, numa órbita mais larga, os que foram feridos pela injustiça da História ou dos homens: os negros ou os judeus, por exemplo.

No que se refre aos negros vossas exposições são eloqüentíssimas. Encontro, por exemplo, em uma de vossas páginas, uma demonstração das mais curiosas, na qual deixais evidenciado – por uma estatística da incidência da úlcera péptica em brancos e em negros durante a guerra – que o negro é muito mais sensível, muito mais delicadamente humano, que o branco.

Levais a vossa necessidade de proteção a essa raça eternamente oprimida a um extremo tal que chegais a conceber uma Associação Brasileira, para Reabilitação do Homem de Cor, redigindo com minúcias os estatutos dessa instituição. Estamos vendo que, se fosseis contemporâneo de Patrocínio e Nabuco, a vossa atitude na década de 1880 teria sido a de um apóstolo da Abolição. E o vosso nome estaria hoje em letras de ouro escrito naquela maravilhosa Ilíada que o Brasil então viveu.

Destruidor de preconceitos, não vos detendes nesse terreno doutrinário em que mostrais que o negro em nada é inferior ao branco – mas ides muito além... Era nesse terreno que nosso grande Nabuco ficava, ele, o aristocrata que era – ao enunciar um pensamento justo como este: “O mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro.”

Quanto a vós, Sr. Silva Mello, não ficais, como eu digo, restrito ao campo da doutrina. Ides muito além... As páginas mais vivas que encontro neste vosso vivíssimo livro prendem-se a um assunto ultraprático e também ultraproibido: à invasão que o sangue do negro fez nas veias dos brancos – nas veias dos nossos brancos... Como o mostrais, existe por aí muito arianismo intolerante, duro de branquidades excessivas... que ainda traz consigo o suave cheirinho da senzala.

As revelações que nesse ponto fazeis são assombrosas.

Não vou transportar para aqui uma lista das informações que, baseado em autoridades seriíssimas, nos dais, relativamente aos nosso mestiços. Tenho um secreto medo de ser apedrejado na rua por fantasmas... Sim, porque se trata sempre de mortos, e eu devo fazer a ressalva imprescindível de que os vivos – todos eles sem exceção – são sempre branquíssimos.

Mas vamos à vossa abundante lista. Ao que pudestes averiguar, a boa mestiçagem em nossa terra começou no trono. Estava em D. João VI, em D. Pedro I, D. Pedro II. Passou aos presidentes da República, aos ministros de Estado, aos titulares e nobres.

Detenho-me aqui... Mas poderia acrescentar a informação de que a nossa querida casa tem no seu pórtico inscrito, como o símbolo mais alto da glória no nosso País, o nome de um homem que, sendo um mestiço, foi um gênio – e um gênio de alma límpida e pura como os santos...

REFLEXO DO BRASIL

Assim, Sr. Silva Mello, achamos em todos vasta e múltipla obra o reflexo do homem e o do mundo.

E o reflexo do Brasil? Também o encontramos – e com a mesma intensidade e com o mesmo brilho.

Sois bastante malicioso para traçar do nosso País o recorte de um paraíso terrestre, como o faziam certos cronistas de outro tempo. Mas a Poesia que se exala da terra de leite e mel, que é a terra do Brasil, toca também o vosso coração de analista, de observador e de sábio. Eis um esboço que encontro em um dos vossos livros:

Não possuímos nem os animais de grande corpulência, os imensos e numerosos mamíferos de outras zonas quentes, nem tampouco os seu animais ferozes de grande porte. Houve como um sopro de doçura e bondade pelo continente. A natureza animal se abrandou, perdeu do seu porte e da sua ferocidade, tendo talvez ganho em astúcia e vivacidade. A própria preguiça, esse estranho fenômeno zoológico, tem ainda direito de existência dentro da nossa selva. E a influência parece tão intensa e poderosa que também o homem, em poucas gerações, se modificou, seguindo a mesma tendência. A própria linguagem falada se abrandou, perdeu da sua aspereza, amoldou-se em doçura...

Quanto ao abrandamento do homem assim os mostrais:

O brasileiro tem uma natureza extremamente dócil, um surpreendente fundo de bondade, é sensível, humano, tolerante, altruísta. Tudo entre nós é feito como em família, por camaradagem, entre bons amigos. Prometemos tudo, esforçamo-nos por evitar decepções, não sabemos negar. Isso é tão geral que já vai se tornando conhecido até no estrangeiro, onde nossas doçuras e bondades têm-se tornado proverbiais...

Na procura do que seja o conhecimento e a valorização desta maravilhosa terra e do homem que a povoa, poucos, Sr. Silva Mello, terão prestado serviços iguais aos vossos. Já vos vimos empenhadamente detido sobre o elemento negro, a estudá-lo com a atenção e o carinho que só um muito desvelo reunido a um muito saber poderia possuir.

Outro elemento formador do Brasil que vos merece atenções especiais é o índio. Poderíamos apontar ainda outro: o judeu. E isto sem falar nos estudos avulsos, encerrados aqui e ali, e nos quais, de uma maneira ou de outra, sob um ângulo ou outro ângulo tendes estudado todas as gentes formadoras do Brasil, desde a camada mais remota, que é a dos portugueses, até as camadas mais recentes, a dos japoneses, por exemplo.

Nesse grande sentido – o da valorização do nossso País – creio que não há livro, em vossa bibliografia, que se compare ao Nordeste Brasileiro. Fostes ver pessoalmente aquela vasta região em que o Brasil ainda não se deformou por influxo das correntes emigratórias – e a impressão que de lá trouxestes, creio poder dizer sem exagero, foi a de um deslumbramento. Já antes, no primeiro dos vossos livros, havíeis estabelecido que “o cérebro do Brasil está no Norte, aí pela região baiana, talvez bem em Pernambuco”. A viagem do Nordeste vos confirmou, em tudo, esse ponto de vista. O que mais vos surpreendeu naquela região parece ter sido o milagre da harmonia que achastes em todas as coisas: os animais, como os homenm, reduzindo as suas proporções, para viverem bem no ambiente que a Natureza lhes deu; o instinto – o sagrado instinto, de que, já o vimos, sois apologista – levando todos os seres vivos, e principalmente os homens, a encontrarem as formas de que necessitam para a melhor alimentação, a melhor defesa da vida do indivíduo e da espécie.

Vejo aqui, em torno de mim, vários nordestinos, representantes, sem dúvida, do espírito e da sensibilidade brasileira, no que essa sensibilidade e esse espírito têm de mais belo, de mais profundo, de mais maravilhoso. Mas a verdade é que não é a nenhum deles que o Nordeste deve a sua valorização mais decidida e mais intensa. Essa dúvida o Nordeste a tem é para com o filho de Minas Gerais na região do Sul, o mineiro de Juiz de Fora, que vós sois.

UM PRÊMIO MACHADO DE ASSIS

Achava-se já toda construída a vossa obra, quando a Comissão do Prêmio Machado de Assis da Academia começou a cogitar do nosso nome para a grande láurea.

Tínhamos aquele tempo na presidência da Comissão um homem, sempre muito mal julgado lá fora e mesmo, por muitos, aqui dentro, porém um homem que possuía as raras qualidades da dedicação aos amigos, do fervor nas admirações. Refiro-me a Ataulfo de Paiva. Foi ele quem, durante anos,lembrou o vosso nome à Comissão. E foi ele, também, quem, ao cabo desses vários anos, achou que havia chegado afinal a hora de terdes o prêmio.

Se me perguntásseis qual a razão daquela demora de Ataulfo, eu não saberia responder-vos. O prestígio do vosso nome era tal, já aquele tempo, que, apenas aparecida a proposta para o prêmio, seria este concedido com certeza e sem uma única opugnação. Teria acontecido o mesmo que aconteceu há poucos meses com a vossa candidatura à imortalidade...

O que me parece é que aquele prazer de demorar era um simples traço da alma do nosso Ataulfo de Paiva.

A idéia que tenho de Ataulfo é que ele era o semeador que antes de semear toma a semente na mão por longas horas, e por longas horas a contempla e a acaricia... Depois a coloca no lugar que para ela abriu.. E então vai ver, cada dia, o que está acontecendo... Vai assistir ao despontar do primeiro olho do broto... assistir ao broto que se desenvolve e que se transforma em árvore... E depois, na árvore que cresce, vai dia-a-dia ver o aparecimento da folha, o da flor, o do fruto... Tudo lentamente, tudo sem pressa e sem vexame, tudo com a volúpia de um artista e de um criador...

Não terá sido essa a verdadeira forma de ser daquele requintado poeta de sua própria vida, que o nosso José Lins do Rego, rude e cheio de claridades nordestinas como era, esteve tão longe de sentir e de entender?

A CADEIRA 19

Chegastes à Academia, Sr. Silva Mello, para a substituição de Gustavo Barroso, na Cadeira 19. Foi uma grave responsabilidade, a que assumistes com essa eleição. E não sei se até agora vos destes perfeita conta dessa responsabilidade. Examinemo-la, porém.

A Cadeira 19 tem como Patrono Joaquim Caetano e como Fundador Alcindo Guanabara. Seguem-se a Guanabara D. Silvério Gomes Pimenta e Gustavo Barroso.

Podeis ver como se alternam, nela, a austeridade e a mundanidade – quase estou a dizer a virtude e o pecado. Joaquim Caetano deveria ser homem de uma bondade de costumes alta e delicadíssima, pois mereceu a Sílvio Romero um elogio como este: “É a glória mais pura, mais desinteressada do Brasil.” Para servir de sombra a essa figura de santo de vitral gótico, temos Alcindo Guanabara – que era, ao que se diz, todo o prazer de pecar dentro do coração de um homem...

Vem a seguir o outro par – D. Silvério Gomes Pimenta, modesto, enclausurado em si e em sua virtude, só vivendo para as meditações de sua alma, para o bem do seu rebanho, para o amor da sua profissão religiosa; e ao lado dele, Gustavo Barroso que ainda temos tão perto de nós, e que era por excelência o homem da agitação humana e política, o partidário intransigente e alguma vez feroz. Integralista veemente, nunca deixou de trazer, como ele próprio sempre disse, a camisa verde na alma. E para a imposição ou a vitória de seu ideal político estaria permanentemente disposto a tudo...

Vemos assim por uma lei matemática que considero infalível – a da alternação da virtude e do pecado – que pertenceis, na Cadeira 19, ao grupo não sei se poderei dizer dos santos – em todo o caso ao grupo dos austeros, senão dos ascetas. Aliás esse traço de vossa personalidade não deve ser difícil de apanhar para os peritos nos mistérios dos espíritos e dos corações. Pois não era um suave pastor de almas, não era o sucessor de D. Silvério no Arcebispado de Mariana, não o virtuoso D. Helvécio quem vos assegurava que éreis uma autêntica obra de Deus, e que por isso vos prometia um lugarzinho azul na bem-aventurança divina?

Assim, um acaso da Vida e da eleição acadêmica vos situou muito bem neste vasto País que se chama imortalidade. Tendes muito, Sr. Silva Mello, por todos os aspectos de vossa rara personalidade – por esse amor desvairado e heróico à liberdade, que é o primeiro dos vossos traços característicos, por essa predileção que sinto em vós por tantos assuntos proibidos, por esse gosto de sorrir de tudo, mesmo quando, terrível Pince-sansrire que sois, pareceis estar levando tudo a sério – tendes muito, digo-vos eu, daqueles doces e amáveis monges que Rabelais levou para a sua Abadia de Teleme.

UMA NOVA ABADIA DE TELEME

Nós aqui a temos também, a nossa Abadia de Teleme. Para começar, obedecemos ao mando de um homem da Igreja – que se conserva da Igreja, embora não tenha chegado a ser padre, como Renan também se conservou, por aquela sublime determinação de que quem um dia esteve perto de Deus jamais poderá deixar de estar perto de Deus.

Em segundo lugar, por mais que digam o contrário lá fora, isto aqui é uma casa de liberdade – e bem poderíamos gravar acima de nossa porta de entrada a palavra que Gargântua deu como regra os monges de sua gloriosa abadia:

FAY CE QUE VOULDRAS

Acredito que com uns pequenos limites, que não chegam a ferir ninguém, esta é a lei da nossa casa.

Vereis, agora que aqui chegastes, que a nossa regra é muito suave e que as nossas obrigações são muito poucas. Temos para o nosso convívio os melhores homens do Brasil. Às quintas-feiras, temos um lanche, moderado em sua quantidade, como convém a estômagos sensíveis, mas substancial em sua qualidade, dosado submilimetricamente em proteínas e em vitaminas, tudo com o intuito louvável de prolongar até ao extremo possível a nossa imortalidade precariíssima. Possuímos em nossa biblioteca os mais belos livros do país e do mundo – livros de que, ai de nós, já quase não podemos fazer uso, porque as condições dos nossos olhos não permitem... E quando acaso em uma de nossas sessões surge uma discrepância separando dois companheiros – é nuvem que logo passa, como essas rusgas ligeiras que por uns instantes separam os velhos casais.

Tudo isso, e muita coisa mais, que forma a excelência da nossa Instituição, haveis agora de ver com os vossos olhos, haveis de sentir com o vosso coração, na continuidade dos dias que viverdes ao lado desses doces telemitas, que somos todos aqui.

Vinde, pois, irmão Antônio da Silva Mello, vinde, cheio da vossa glória de mestre, de sábio e de escritor, ser um dos monges mais dedicados da nossa querida e deliciosa Abadia de Teleme.

16/8/1960