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Discurso de posse

Para chegar à porta desta respeitável Casa o caminho foi longo, tão longo e tão cheio de vicissitudes, que, por pouco, teria ficado eu de fora, na mirífica contemplação de uma miragem. Cheguei tão tarde, tão avançado em idade, que não tinha mais o direito de viver, e menos ainda de aspirar à imortalidade, pois de há muito havia ultrapassado os limites normais da vida humana, segundo os cálculos matemáticos das estatísticas. É verdade, todavia, que começamos a morrer desde o dia em que nascemos, mesmo já antes, antes de virmos ao mundo. A morte vive a espreitar-nos desde os primeiros momentos da nossa formação e acompanha-nos através de toda a  existência, até vencer e aniquilar-nos em qualquer curva do caminho. Em geral, é uma dívida que pagamos em prestações maiores ou menores, até esgotarem-se os créditos e os saldos. Assim, vamos deixando pelo caminho os cabelos, os dentes, as ilusões, enquanto o reumatismo, a esclerose e outras misérias nos perseguem e invalidam. Muito mais a nós, os homens e os imortais, do que as mulheres, que vivem mais velhas, mais sadias, mais frequentemente centenárias, talvez boa razão para não deverem concorrer às academias... Eu próprio, chegando tão tarde, vim ainda cheio de dúvidas e temores, porque vejo na Academia o que ela realmente é: uma Instituição de alta nobreza e dignidade, que deve amedrontar os tímidos e os humildes. Devo acrescentar que sofri sempre de um grave complexo de temor e respeito, que me fazia ver os mais velhos, os mais sábios, os colocados em posições mais elevadas, como entes superiores, dignos da minha reverência e submissão. Por isso, a minha entrada para esta eminente Assembléia representa para mim próprio quase um ato de desmedido heroísmo, embora também um outro, de quase desmedida benevolência, por parte dos seus egrégios membros.    

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A criança é indubitavelmente o pai do homem, como a psicologia tem demonstrado sobejamente. Eu fui um menino de terrível timidez, timidez que, na adolescência, tomou proporções absurdas.Nos tempos de ginásio, cheguei a não sair de casa senão depois do escurecer, cheio de temor e acanhamento por ter de passar diante de moças à janelacomo era hábito à tarde nas cidades do interior. E dessa timidez, até hoje, em velhice avançada, não consegui libertar-me. Ainda agora, lendo este meu humilde discurso, sinto-me esmagado pelo ritual acadêmico, queme obriga a lê-lo, impedindo-me de declamá-lo. É que não sei ler em público e precisei exercitar-me, estudando-o repetidamente em voz alta, para conseguir fazê-lo nesta sessão memorável, o acontecimento mais notável e importante da minha vida. Eu fui o pior aluno da escola pública que freqüentei, não sabendo, aos doze anos, fazer conta de dividir. Estava tão capacitado da minha inferioridade, que não empregava qualquer esforço para estudar ou aparender. Se tinha de ler algo em voz alta, fazia-o medrosamente, tão mal e engrolado que somente recebia censuras e reprimendas. Assim, atravessei a escola sob o signo de uma falta de inteligência sem limites, o que me livrou de qualquer esforço de aprendizagem. Mas, em conseqüência dessa inferioridade, fiquei sem saber ler em voz alta, coisa que nunca mais consegui fazer. Mais tarde, no ginásio, quando obrigado a pronunciar discursos, segundo as exigências do estabelecimento, ia exercitarme no alto de um morro deserto,decorando-os e recitando-os com ênfase,talvez ridícula, mas que me deu renome em torneios literários. Daí por diante, fiquei sabendo que era incapaz de ler, mas que podia perorar. A anomalia conservou-se tão persistentemente que, nas minhas aulas de clínica, fazia com que os assistentes lessem as anamneses, os laudos de laboratório, os resultados dos exames, porque tinha eu próprio dificuldade em fazê-lo, pois a voz fugia, apagava-se, engrolava como nos tempos de criança, enquanto que, na lição clínica, sentia-me à vontade, tendo voz e calor para fazer a exposição. Isso prosseguiu durante toda a vida, e até nas minhas conferências no estrangeiro, nunca fiz uso de notas e apontamentos, que só poderiam atrapalhar e enfraquecer minha dicção. Aliás, tudo isso ocorreu sempre muito natural e espontaneamente, por assim dizer, por instinto, pois somente muito mais tarde, em época bastante recente, já familiarizado com a psicologia, é que vim cogitar dos motivos dessa insuficiência, que, afinal, não passava de um recurso de defesa e adaptação. Mas, para entrar na imortalidade, existem obrigações e, assim, exercitei-me para ler este meu discurso de posse, um autêntico canto de cisne, pobre e modesto, que os meus eminentes confrades perdoarão, quer em vista da minha idade, quer deste meu terrível defeito psicológico, que aqui procuro disfarçar, ainda agravado por um outro, físico, o da minha acentuada miopia.

Mas tenho outra confissão a fazer! Devo declarar humildemente que não conhecia suficientemente esta respeitável Instituição, que não me apareceu em toda a sua grandeza senão depois que, na minha insignificância, fui eleito um dos seus membros. Eu, na minha introversão, estava longe de suspeitar da importância que lhe cabe, e que vejo agora consagrada de todos oslados. Recebi, portanto, uma láurea mais elevada, mais honrosa, mais dignificante do que me fora dado avaliar. E sinto-me tanto mais dignificado, quanto é Múcio Leão que me recebe nesta ilustre Casa, um dos espíritos mais cultosa época, padrão de sabedoria das nossas Letras, maravilhoso pelo caráter, a bondade, a inteligência. Sinto-me orgulhoso de tão nobre paraninfo, temendo não estar à altura de merecer das palavras com que irá receber-me.

 

DUAS GRANDES AUSÊNCIAS

Mas não há luz sem sombra, nem alegrias sem tristezas. É isso da vida e da Natureza, uma pesada nuvem empanando o luminoso desta solenidade. É que não se encontram aqui presentes dois membros desta Academia, aos quais estou ligado por uma amizade de dezenas de anos, amizade tão profunda que nos tornamos quase parentes, na aproximação de padrinhos, compadres e afilhados.Um deles é Antônio Austregésilo, por excelência o grande médico, que compreendia os doentes, que lhes insuflava ânimo, que os curava dos males do corpo e do espírito. Austregésilo foi o criador da maior escola médica jamais existente no Brasil, ainda hoje representada por valores numerosos, dos mais altos que tem tido a nossa Pátria. Foi um grande trabalhador, fecundo de sabedoria, mas que soube imperar pela bondade, a afetividade, a originalidade. Mas veio a doença terrível e inexorável, que o deixou são e robusto de corpo, mergulhando o seu espírito, tão arguto e luminoso, em trevas completas
e insondáveis. O outro acadêmico é Assis Chateaubriand, verdadeiramente genial, o maior fenômeno humano que me tem sido dado observar na face da Terra através de minha já longa existência. Homem prodigioso pelo caráter, pela inteligência, pelo coração. A própria doença aniquilou-lhe o corpo, mas deixou íntegra, perfeita, maravilhosa, a sua espantosa personalidade,as suas inacreditáveis qualidades afetivas e espirituais. E, na doença, tem sido o mesmo homem dos tempos de saúde. Enfrenta a enfermidade com bravura indômita, sabe sobrepor-se às misérias da vida com grandeza e heroísmo, enchendo de admiração e respeito os seus médicos e amigos. Homem único, singular, cuja falta nesta recepção representa o maior vácuo que poderia ocorrer na minha posse. Se a Natureza foi tão violenta e brutal com Assis Chateaubriand, está ele vencendo-a no seu golpe terrível, pois, dia a dia, quase hora a hora, vemo-lo reintegrar-se na sua atividade, graças ao milagre do seu esforço e ao assombro da sua resistência. Esperamo-lo aqui de braços abertos, sobretudo eu que vim quase trazido pelas suas mãos.

O que há, na realidade, é a Academia ser formada unicamente de quarenta membros, eleitos para a perpetuidade e a imortalidade, dentro de uma população de muitas dezenas de milhões! Foi para isso que um leigo, não um acadêmico, chamou a minha atenção, perguntando: que representam, diante disso, deputados, senadores, ministros, embaixadores, que se sucedem nos cargos assim como altas patentes militares, marechais, generais, almirantes, brigadeiros, que formam quadros compactos de ascensão quase obrigatória? Raros deles chegam à Academia caso alcancem posicão social excepcional ou renome intelectual.

Haverá no mundo lugar mais dignificante do que o de ser acadêmico e imortal? Não era uma pergunta justificada, e que me enchesse de temor e respeito?

Se é verdade que as portas desta venerável Casa abrem-se somente pela morte de um de seus membros, não há nisso paradoxo algum quanto à imortalidade, porquanto o morto não desaparece, havendo sempre uma sentinela avançada para velar pela sua sobrevivência espiritual. Nessas condições, é de admirar que, aqui chegando, sinta-me emocionado, sobretudo devendo ocupar lugar que ignorava ser tão importante e significativo? Aliás, talvez essa minha ignorância seja sinal de que muitos não estão bem ao corrente da força que possui esta Instituição e da respeitosa admiração que lhe é consagrada. Ouso falar dessa maneira porque somente agora dei-me realmente conta da honra que me foi concedida e das obrigações que devo assumir. Entre estas,figurava a visita oficial aos seus membros, o que me parecia um degrau de difícil ascensão. Assim pensava eu e assim pensam muitos dos que desejam penetrar os umbrais desta nobre Mansão. Nesse sentido, a minha surpresa foi imensa, e deliciosa a minha experiência. Encontrei sempre, em todos os acadêmicos, em todos, sem exceção, uma dignidade, uma nobreza, uma finura de trato que saí encantado com todos. É verdade que, em nenhum caso, torneime indelicado, querendo saber se podia contar com o sufrágio desejado ou como seria ele distribuído pelos escrutínios. Sabia pelo regimento que o voto era secreto e que não ficava bem ao candidato querer desvendá-lo.

É possível que estas minhas explanações possam parecer inconvenientes a ilustres membros desta Casa, porque, somente hoje, recebendo a consagração da minha entrada, já venho falar em termos de veterano. Eu me penitencio dessa ousadia, que se justifica apenas pelo fato de estar ainda no limiar da minha aprendizagem acadêmica, embora gozando de outra imunidade, talvez mais poderosa, a concedida pela velhice, pela experiência da vida e da idade, que pode ser de todas a mais respeitável.

O que existe ainda, sem dúvida, é um grande espírito de clemência e de compreensão dominando os destinos desta Institituição, por vezes feridos em virtude da sua própria tolerância. Quero lembrar que Montesquieu fez parte da Academia Francesa e que dela zombou antes de ser eleito um dos seus membros. Na Casa de Machado de Assis já ocorreram acontecimentos idênticos, que mostram o ponto a que pode ir a indulgência de espíritos cultos e independentes, daqueles que cultivam a Arte e a sabedoria. Chateaubriand, René, não o nosso Assis Chateaubriand, mais assombroso este do que aquele e uma das figuras mais espantosas que tem tido a humanidade, entrou para a Academia Francesa sem proferir o discurso de recepção, tanto porque se recusou a fazer a visita oficial, obrigatória pelo regulamento, ao imperador, então Napoleão I, quanto por não querer falar do seu predecessor J. M. Chenier, revolucionário. São fatos por demais conhecidos, mas que repito para ilustrar quanto pode ser tolerante o espírito acadêmico.

A CADEIRA 19

Sou o quarto que tem a honra de, nesta Academia, ocupar a Cadeira 19, que teve como patrono Joaquim Caetano da Silva, ao ser fundada esta Instituição. Por uma curiosidade natural, procurei aproximações que pudessem existir entre a vida e a obra dos meus antecessores, talvez pela intervenção do acaso, canalizado em determinado sentido. O próprio jogo é regulado por leis estranhas, pois mesmo na roleta não se repete um número além de certa freqüência, assim como também não o deixa de fazer. As estatísticas revelam fatos equivalentes, em situações das mais diversas e desencontradas. Em Medicina, há uma chamada lei da duplicidade do caso, no sentido de um caso raro ou excepcional vir acompanhado de perto de um semelhante, que depois, poderão faltar durante meses ou anos. Eu próprio tenho verificado que isso acontece realmente na prática, às vezes em coisas insignificantes, como, por exemplo, na lista de doentes do dia aparecer um nome próprio raro, seguido logo da sua repetição nomes que, depois, não se apresentam por longo espaço de tempo. Pode acontecer também de o peso na balança ser o mesmo, exatamente o mesmo, do doente que acaba de ser pesado e o do próximo que vem substituí-lo. De qualquer maneira, o fenômeno pode parecer anedótico, mas é real que, nos meus tempos de estudante na Alemanha, vi muitos de meus mestres referirem-se a essa duplicidade dos casos raros, que surgiam um depois do outro. Mistérios da Natureza, talvez coordenados pelas mesmas leis que regem o jogo e o acaso? Por isso, não seria de estranhar que os fios do destino operassem de modo idêntico e que, na Cadeira 19, viessem sentar-se acadêmicos apresentando aproximações de existência, quer do lado mental ou intelectual, quer do físico ou corporal, aproximações do corpo ou da alma, do psíquico ou do somático, segundo linguagem mais moderna. Seria uma espécie de horóscopo, lido em sentido invertido, sendo os fatos interpretados depois do seu acontecimento. O método seria mais fácil, mais seguro, mais científico. Mas os dados não trouxeram nada de congruente e significativo, antes desencontros flagrantes das mais divergentes, das menos apropriadas para ocuparem um mesmo lugar, não fosse a larga tolerância da Academia.

JOAQUIM CAETANO DA SILVA

Joaquim Caetano da Silva, o patrono da Cadeira 19, nasceu em Jaguarão, no Rio Grande do Sul, em 2 de setembro de 1810. Desde cedo, revelou grande inteligência, razão pela qual o pai o mandou para a Europa aos dezesseis anos de idade. Aí, matriculou-se num liceu de Paris, onde alcançou o título de bacharel em Letras, em 1831. Aos 27 anos formou-se em Medicina pela Universidade de Montpellier, onde sobressaiu pelo talento e a aplicação. Com dezenove anos, tornou-se secretário da Sociedade Luso-Brasileira, fundada em Montpellier para o cultivo do nosso idioma, onde apresentou trabalho com 490 vocábulos que não figuravam no Dicionário de Moraes, três anos depois acrescidos de mais quatrocentos. Escreveu então a sua primeira obra, até hoje inédita, intitulada – Suplemento ao Dicionário de Moraes. O seu segundo trabalho – Queda dos Corpos –, escritos em francês, tornou-o membro de sociedades científicas. Em 1837, publicou a sua tese versando assunto de filosofia médica, recebendo o grau de doutor em Medicina. Voltou então ao Brasil, sendo nomeado professor do Colégio Pedro II, e lecionou gramática, poética e grego, prova da sua alta cultura. Foi depois reitor desse colégio, ocupou diversos cargos públicos de relevo, tornou-se membro de sociedades sábias, recebeu comendas e condecorações, tanto nacionais quanto estrangeiras. Em 1851, apresentou ao nosso Instituto Histórico uma memória sobre os limites do Brasil com a Guiana Francesa, que despertou grande interesse por parte do imperador, que o nomeou Encarregado dos Negócios do Brasil na Holanda. Aí, depois de estudar a fundo essa questão, escreveu uma obra monumental, em dois volumes, no mais puro francês, L’Oyapoc et l’Amazone, na qual defendeu os direitos do Brasil, sendo precursor das conquistas de Nabuco e Rio Branco. O imperador comparou-o a um exército de duzentos mil soldados defendendo as nossas fronteiras!

Carlos de Laet fala do porte majestoso e da basta cabeleira de Joaquim Caetano, esplêndida figura de quadro antigo, no tempo em que ele, fazendo o curso de Letras no Pedro II, conheceu-o como Inspetor Geral de Instrução. Foi médico, professor, diplomata, preenchendo notáveis cargos na Monarquia, sempre com austeridade e sabedoria, como relatam os seus biógrafos. Morreu em Niterói, em 1873, com 63 anos de idade, cego nos últimos anos da vida. É uma figura nobre, o tipo, como descreve Laet, “desses brasileiros sisudos, circunspectos, austeros, cuja forma parece haver-se perdido no tumulto das revoluções”. Manuel Joaquim de Macedo, falando dele, disse que “entre os homens sábios do Brasil nenhum excedeu a este, e poucos o terão igualado”. Foi um trabalhador de grande fôlego, do qual Araújo Porto Alegre afirmou: “É um homem que estuda 25 horas por dia!” Acredito ser essa uma das características mais categóricas para levar à imortalidade acadêmica, que também explica a vida gloriosa de Joaquim Caetano, justificando a sua escolha para patrono da Cadeira 19 desta Academia.

ALCINDO GUANABARA

O seu primeiro ocupante foi Alcindo Guanabara, nascido em 19 de julho de 1865 no município fluminense de Magé, onde seus pais exerciam o magistério, ambos formados pela Escola Normal de Niterói. Nessa função peregrinaram por diversas vilas e lugarejos, terminando Alcindo o seu curso primário aos treze anos de idade. Nessa época, começou a aprender latim em Mangaratiba com o vigário local, a quem ajudava na missa. O bispo D. Pedro Maria de Lacerda, em visita pastoral, ouvindo-o recitar a Epístola, “ofereceuse para custear-lhe a educação religiosa, supondo-o propenso à vida eclesiástica”.Mas não foi aceito o oferecimento, e os pais, mudando-se para Petrópolis, tornou-se ele aluno interno gratuito de um colégio de renome, onde exerceu as funções de bedel, passando mais tarde a professor de matemática. Aos dezoito anos, concluiu o curso secundário e, já antes, preocupava-se com leituras literárias, sobretudo Dickens, que era o seu autor predileto. Diz ele: “Compreendi a força do escritor; o segredo dela residia na capacidade de trabalho e no método que nele punha. Desde então, minha preocupação de menino foi imitar Dickens; certamente, não o glorioso Dickens romancista, mas o ignorado Dickens trabalhador.” Depois, matriculou-se na Faculdade de Medicina, que deixou no segundo ano do curso, vendo-se obrigado, por dificuldades materiais, a ocupar lugares subalternos, como porteiro do Jóquei Club e inspetor no Asilo de Meninos Desvalidos. Logo depois, aos dezoito anos de idade, iria brilhar no Jornalismo, tomando contato com José do Patrocínio,Raul Pompéia, Luís Murat, Valentim Magalhães, Felinto de Almeida, Artur Azevedo e outros grandes espíritos da época. Alcança, então, uma verdadeira consagração pelos seus artigos cheios de imaginação, de bom gosto, de finura, de elegância de linguagem. E eram diários, múltiplos, a maioria não assinados ou apenas com pseudônimos, sobre os mais variados assuntos, crônicas, críticas, humorismo, contos, fantasias indo à Política, à diplomacia, às finanças, por vezes tão surpreendentes os últimos que se acreditou pudessem ser escritos pelo próprio ministro.

É nos seus Discursos fora da Câmara, livro de pouco mais de cem páginas, que revela todas as suas qualidades literárias, o pensamento e as palavras fundidos em altos níveis de expressão. Aí figura “A Dor”, conferência que impressiona pela finura e a profundeza dos conceitos. Acabo de relê-la e achei-a magnífica pelo lavor da linguagem e a soma de conhecimentos, alguns puramente médicos, citações de Claude Bernard, Brown Sequard, Wundt, Hipócrates, assim como pela análise dos fenômenos psicológicos no mecanismo da dor. Depois, encara-a debaixo do ponto de vista da mitologia, da história, das artes, sobretudo da Poesia, quer estrangeira, quer sobretudo brasileira, através de suas produções mais valiosas. No discurso que pronunciou na Câmara por morte de Machado de Assis, sobressai antes de tudo o literato, o homem de letras com seus predicados mais autênticos e inconfundíveis. Fora disso, Alcindo teve adversários terríveis, sendo o seu valor menosprezado pela sua atuação política, tão menosprezado que o próprio D. Silvério, na sua entrada para esta Academia, declarou que a curiosidade e a maledicência estavam excitadas quanto à maneira pela qual se poderia sair ele da investidura, tratando do seu antecessor. “Aflitos por ver como se há de haver um bispo tendo de homenagear um literato de talento superior, mas reputado totalmente profano e inteiramente indiferente ao ideal religioso.” D. Silvério saiu-se brilhantemente da empreitada, demonstrando que Alcindo Guanabra, em vez de ateu, “desconhecedor quando não desprezador de Deus, foi um varão deveras crente, que na vida pública nunca procurou encobrir as suas crenças, antes proclamava a sua fé sem rebuço, com acentos de rigor pouco comunsem nossa atual sociedade”. D. Silvério, com citações decisivas, mostra quanto o espírito de Alcindo era religioso e cristão, o que não é de admirar dada a sua formação eclesiástica na primeira infância. No entanto, dúvidas e malícias partiam de diversos pontos, fenômeno muito natural e compreensível, pois se tratava de um jornalista que escrevera sobre todos os assuntos, quase sempre ao sabor do momento, segundo os interesses e as correntes dominantes. Carlos de Laet, no seu discurso de saudação ao bispo D. Silvério, procura pôlo de “sobreaviso quanto a futuros julgamentos relativos a políticos e jornalistas, e notadamente a políticos jornalistas”. E acrescenta:

O jornalista político, segundo a necessidade inelutável de acompanhar a onda de opinião e de não a contrariar opondo-lhes a dele, o que desastradamente lhe angariaria antipatias e diminuiria a circulação da folha, longe de ser o diretor, é o joguete das maiorias e, por isto, não raro lhe sucede, antes de escrever, indagar como e em que sentido o faça.

O próprio D. Silvério não se faz ilusões nesse sentido, pois no seu discurso pondera:

Na classe da imprensa nobre por sua elevação, independente por seus princípios, patriótica por seus benefícios, se acha colocada uma, que infelizmente e olhada de esguelha por alguns varões de alto merecimento. Falo da imprensa católica, e não da imprensa devota que se ocupa especialmente das obras e atos de piedade cristã.

Ele mostra que a imprensa deve “combater o erro nas idéias e a imoralidade nos costumes, mas não combater o homem a quem deve amar, por maiores que sejam as aberrações do seu espírito e a decadência moral da sua vida”.

Como é comum na imprensa, Alcindo foi arrastado pela Política e pode dizer-se que por ela devorado. No entanto, adquire tal prestígio que se bate, não contra a escravidão, sim a favor dela, sem nada perder em defesa de causa tão antipática! Com a República, torna-se membro da Constituinte e, indo em comissão à Europa, no cargo de superintendente de imigração, é incumbido por Floriano da compra de torpedeiros, transação muito explorada pelos seus adversários. É essa a sina dos políticos e sobretudo dos jornalistas de todo o tempo e de todos os países, caso se deixem arrastar pelos triunfos de profissão. No governo de Prudente de Morais, Alcindo levantou-se contra ele, sendo preso quando procurava fugir para Montevidéu a bordo de um navio estrangeiro e desterrado para Fernando de Noronha. Mais tarde, bateu-se contra a campanha civilista de Rui Barbosa, o que fez cair muito o seu renome, “alienando de si a simpatia de intelectuais”. Gustavo Barroso, falando de Alcindo ao ingressar nesta Academia, disse que seria melhor estudar o escritor do que o homem, ao contrário do que aconselha Cuvillier Fleury em relação à crítica de intelectuais. Mas Barroso, que o conhecera pessoalmente, tinha por ele admiração, guardava do seu convívio uma lembrança suave, acrescentando que “havia em sua alma uma luz de bondade natural destinada a apagar-lhe os grandes erros”.

Alcindo faleceu repentinamente em 20 de agosto de 1918, aos 53 anos de idade. Foi um grande espírito que brilhou pela inteligência, pela perspicácia, pelas suas altas e variadas possibilidades intelectuais. D. Silvério, que o sucedeu nesta Academia, assim se expressa:

Engenho universal, escrevia sobre política, economia, finanças, Literatura, Poesia, agricultura, revelando ser em tudo um homem superior pela largueza de concepção, pela clareza de intuição, que eu quase chamaria profética, pela força e viveza do estilo, pela beleza e castigado da frase, merecendo ser classificado entre os príncipes dos escritores brasileiros.

O que aconteceu, porém, ao lado disso, foi haver sido ele arrastado pelo Jornalismo e a Política, onde mergulhou profundamente, sem dúvida, em primeiro lugar, devido às suas qualidades intelectuais, que lhe permitiram adaptar-se às mais variadas circunstâncias. É dele que se conta que uma vez, ainda moço, ao sair da redação, avisou-lhe o diretor de que era véspera de Natal e tornava-se necessário um artigo sobre Cristo para o dia seguinte. Indaga, então: “Contra ou a favor?” É possível que não tenha passado isso de anedota, como afirmou em público um seu parente. Mas, no Jornalismo, existem realmente dessas ocorrências, lembrando-me agora de Medeiros e Albuquerque que, ao receber na redação um jovem estudante meu conhecido, dotado de talento e que procurava colocação no jornal, perguntou-lhe à queimaroupa: “Ao entrar, que deixou você no cabide do corredor?” O rapaz respondeu: “O chapéu.” Somente o chapéu? indaga de novo Medeiros, acrescentando que devia ter deixado também a vergonha, se desejava trabalhar na imprensa... Não há dúvida que nessa profissão há lugar para todas as possibilidades, embora não sejam raros os jornalistas que primam tanto pelas suas qualidades de caráter e dignidade, quanto pelos seus elevados atributos intelectuais. Ainda mais do que isso! Muitos, possuidores dessas qualidades superiores, podem ser perseguidos pela oposição, por vezes capaz de servir-se das maiores calúnias e indignidades para desmoralizá-los ou arrasá-los. Eu me recordo de Pandiá Calógeras e do velho Osório de Almeida, com quem convivi na maior intimidade, homens probos e de impoluta dignidade, mas que foram atacados repulsivamente quando ocuparam altos postos do governo. Não há dúvida que o Jornalismo e a Política são carreiras das mais traiçoeiras e perigosas, que atraem elementos das mais variadas categorias. Mas isso não ocorre somente com profissionais da imprensa, sim até na medicina e na religião que, apesar de deverem ser carreiras de renúncia e humildade, são muitas vezes aviltadas por elementos inadequados e inferiores.

Pergunto eu, agora, humildemente: que teria sido de Alcindo Guanabara caso tivesse aceito a oferta de D. Lacerda para seguir a carreira eclesiástica? Não revelara para isso talento e aptidão ajudando a missão e recitando com mestria a Pastoral? Seria, sem dúvida, um dos grandes da igreja, certamente favorecido pelas suas qualidades de trabalho e abnegação.Também teria dado um esplêndido médico, porque compreendeu bem o sofrimento humano, procurando respeitá-lo e mitigá-lo. Na adolescência, foi inspetor no Asilo de crianças desvalidas e, no Senado, levantou-se em favor da infância abandonada e delinqüente, procurando estabelecer leis para protegê-la. O discurso que pronunciou na Fundação da Liga Brasileira contra a tuberculose e outros em ocasiões semelhantes mostram a sensibilidade do seu coração e o sentimento piedoso de sua alma. Não se encontram aí as provas de que poderia ter sido um grande prelado ou um grande médico? Na realidade, possuía os atributos necessários, que o poderiam ter conduzido numa ou noutra dessas direções.

D. SILVÉRIO GOMES PIMENTA

É indubitável que, na situação atual da Academia, pode o novo recipiendário ter suscetibilidades quanto à maneira de externar-se sobre o seu predecessor. D. Silvério soube resolver sabiamente o problema, mas Gustavo Barroso parece ter tido dificuldades para tratar do elogio deste seu antecessor. No seu discurso de posse, diz “que nem sempre é conveniente falar de eclesiásticos nas Academias de que fizeram parte. O padre dado a Letras pertence a uma espécie à parte, um tanto perigosa. Imagine-se o vexame de quem, na Academia Francesa, quisesse publicamente ocupar-se de alguns dos seus membros que pertencem à Igreja”. E menciona diversos religiosos acadêmicos que se assinalaram por qualidades negativas de caráter, de decência, de dignidade. Foi, talvez, uma boa maneira de fazer ressaltar o valor de D. Silvério, “pastor de almas, sacerdote virtuoso, estilista clássico, por amor natural ao verdadeiro e ao belo, não por luxo, ou vaidade”. E acrescenta que honrou a Academia pela serena beleza do seu viver e pelo brilho da sua sabedoria. Barroso, naquela época, confessa: “Não sou daqueles que crêem; sou dos que duvidam; mas o Cristianismo, em sua sua feição católica, me arranca sempre preitos de admiração.”

D. Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana, nasceu a 12 de janeiro de 1840 em Congonhas do Campo, e morreu em 30 de agosto de 1922, com 82 anos. Aos dezesseis anos de idade tornou-se professor de latim do seminário de Mariana, onde se matriculara em 1855 e de cujo corpo docente fez parte até 1890. Foi sagrado presbítero em 1882 e bispo em 1890. Tomou posse na Cadeira 19 desta Academia em 20 de maio de 1920, sendo recebido por Carlos de Laet. A sua obra é toda de fundo religioso, a começar pela Prática da Confissão, publicada em 1873. A Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso, Bispo de Mariana é a sua publicação principal, primorosa pela linguagem e a exposição, embora de difícil leitura, segundo a opinião de Gustavo Barroso. Além disso, escreveu diversas circulares, pastorais, discursos, sermões, orações, assim somos várias poesias religiosas em latim. Peregrinação a Jerusalém e A Morte de Minha Mãe são obras de grande emoção e de profunda unção religiosa, consideradas das melhores escritas no nosso idioma, de acentuado caráter clássico.

Confesso humildemente que não me aventuro a mergulhar em leituras desse gênero, principalmente agora quando, quase no fim da existência, saturei-me de dados bíblicos e religiosos na preparação do meu livro Israel. Quero relatar apenas que, recentemente, maravilhei-me diante da obra do Aleijadinho em Congonhas do Campo, em um dia luminoso, de incrível céu azul, a igreja, no alto do penhasco com as suas imponentes esculturas, parecendo uma criação teatral. Quero acrescentar que tive grande admiração e estima por D. Helvécio, que sucedeu a D. Silvério no arcebispado de Mariana. Fui distinguido com a sua nobre amizade e, por mais de uma vez, censurou meus sentimentos pouco cristãos, como relato em um dos meus livros. Respondialhe humildemente não ser eu o culpado, porque era esse o meu temperamento, a minha sincera convicção. Afirmou-me que, por essa razão, iria eu para o céu, sendo uma autêntica obra de Deus. Alegrei-me com a notícia, acrescentando que, sendo assim, teria grande prazer de encontrá-lo na mansão divina. Retorquiu, com sincera humildade cristã que, sobre o seu próprio caso, tinha dúvidas quanto à entrada no céu... Tratava-se, no entanto, de um homem santo, cujas grandes virtudes são por todos reconhecidas.

A eleição de D. Silvério para a Academia Brasileira de Letras representa um galardão de glória para esta Instituição, que mostrou assim o seu alto espírito de tolerância, de autêntica sabedoria, de puro intelectualismo, pois muitos que o honraram com o voto eram agnósticos, escolhendo-o pelas suas virtudes humanas e o seu elevado valor literário.

GUSTAVO BARROSO

Gustavo Barroso é o último ocupante da Cadeira 19, a quem tenho a honra de suceder, quase como uma sentinela avançada, alerta para velar pela tradição, atenta ao cumprimento do dever, sabendo que a nobreza e a dignidade desta Casa são requisitos essenciais para qualquer catecúmeno vir fazer parte da sua guarda.

Devo declarar, antes de tudo, que me sinto à vontade para falar da obra e da personalidade do meu antecessor, sendo tão ricas e numerosas as suas facetas e os seus ângulos, que bastará a menor das luzes para fazer ressaltar o seu brilho e a sua grandeza. Por esta simples razão, o novo acadêmico não precisa servir-se de artimanhas de retórica e artifícios de linguagem, pois tudo está tão vivo, tão concreto, tão ao alcance da sua mão, que será suficiente apanhar os dados e dispô-los de qualquer maneira, para que logo apareçam o seu valor e a sua significação, independentemente dos lavores que lhes possa ajuntar.

Gustavo Barroso, Gustavo Adolf Dodt Barroso nasceu em Fortaleza, Ceará, em 29 de dezembro de 1888, morrendo-lhe a mãe sete dias depois. Teve dois irmãos, Valdemar, mais velho que ele quase três anos, e Ana quase dois. O primeiro, de tipo alemão, cabelos muito louros e olhos azuis, viveu sempre doentinho e morreu aos treze anos de idade. A menina, morena, brasileira, mas de alma alemã, finou-se aos trinta anos, como religiosa beneditina, num convento holandês. Recebera educação esmerada, tornando-se erudita, poliglota, artista. A mãe de Gustavo, Ana Guilhermina, diplomada com notas elevadas pela Escola Normal de Hamburgo, era filha de alemães, cujo pai, engenheiro e doutor em Filosofia pela Universidade de Iena, fora contratado em moço para a construção de pontes, estradas e linhas telegráficas no interior do nosso sertão. Adaptou-se ao Brasil e à sua gente, apaixonou-se pelo nosso folclore e a nossa etnografia e morreu pobre em Santa Catarina para onde se mudara por motivos de saúde. Pela morte da mãe de Barroso, os seus irmãos mais velhos, Valdemar e Ana, foram para a companhia dos avós alemães, que viviam então em São Luís do Maranhão, enquanto ele, muito pequenino para viajar, tendo apenas poucos dias de vida, ficava em companhia da avó e de duas tias brasileiras. O pai desmanchou a casa, acumulou móveis, louças e demais objetos no andar térreo, reservando a parte da frente para seu cartório de tabelião. A avó e as duas tias passaram a ocupar-se da criança, enquanto o pai levava a vida que bem entendia, dando-lhe pouca atenção.

Gustavo conta que ficava triste quando, pequenino, via outras crianças passeando, com os pais e abaixava a cabeça quando ouvia a palavra “minha mãe” ou “mamãe”, ainda mais quando diziam: “Coitadinho, não tem mãe!” Foi criado assim pela avó, octogenária, e as suas tias solteironas, com mais de sessenta anos de idade. Viviam naquele velho sobradão colonial de paredes de fortaleza e assoalhos de tabões, mobiliado com móveis antigos, levando a vida habitual do interior: acordar cedo e indo dormir todos às nove da noite. Uma das tias, bastante lida e de espírito romântico, gostando de ensinar crianças, organizara na grande sala de visitas uma escola para principiantes, freqüentada por uma dúzia de crianças, que aprendiam a ler e fazer contas na cantilena dos velhos tempos. Gustavo refere que aí desenvolvera a memória e aprendera a ler com três anos de idade, só de ouvir os outros. Aprendera a ler, a contar, a ter as primeiras noções do mundo e das coisas de maneira singela e racional, fazendo da mão que traçava riscos retilíneos e curvilíneos instrumento do seu cérebro infantil, e não fazendo, como modernamente se faz, do cérebro da criança instrumento dos olhos e das mãos.

Essa informação tão simples e espontânea parece-me de importância fundamental, pois é através dela e do seu prosseguimento que poderemos compreender melhor a vida e a obra de Gustavo Barroso. Além disso, constitui uma fonte de ensinamentos para a época moderna, que sofre transformações tremendas, a principar pela educação da criança e sua maneira de viver.

UM HOMEM SIMPLES

Tenho tratado dos instintos humanos em quase todos os meus livros, sempre achando que eles devem ser guiados pela nossa inteligência. É um ponto de vista que defendo há dezenas de anos, cada vez com maior convicção, à medida que a idade e a experiência de vida me foram alargando os horizontes de conhecimento e do papel que o homem deve representar dentro do mundo. A vida e a obra de Gustavo Barroso vieram robustecer essas minhas convicções, estando impregnadas do seu instinto dominador. Isso lhes dá uma significação singular, representa quase uma revelação para mim próprio, que exalta a minha posse na Cadeira 19, que ele soube honrar magnificamente. É principalmente sob esse ponto de vista que desejo analisar a vida e a obra desse meu eminente antecessor, esperando que possam fornecer exemplos e diretrizes de valor, sobretudo nos dias que correm e para o futuro, tão cheios de dúvidas, perigos e desorientações.

Barroso fala da simplicidade dos seus primeiros anos de vida, acrescentando que isso iria modelar a sua alma para as lutas da existência, dando-lhe “um idealismo salutar que o preservou sempre da ânsia imoderada de enriquecer e gozar”. Quando publica seus livros de memórias, tendo então mais de cinqüenta anos de idade e sendo de há muito membro desta Academia, à memória do professor Lino da Encarnação, mestre que me ensinou a amar o meu País e a honrar o meu nome, que, depois de educar sem reclamos nem mercantilismo várias gerações de meninos, no Ceará, morreu humilde, pobre e esquecido de todos.

Mas ajunta que nunca dele se esqueceu! Não é uma dedicatória esplêndida, de alta sensibilidade? Quando faz nove anos é levado pelo pai para matricular-se no colégio dirigido por esse mestre, “que lhe põe paternalmente a mão no ombro e faz-lhe uma série de perguntas sobre História do Brasil, Geografia e Português, mandando executar no quadro-negro as quatro operações e um problema de regra de três, que ele resolve”. O mestre, que deve ter ficado contente, declara ao pai que o menino está mais adiantado do que esperava e irá para o terceiro ano primário, iniciando no seguinte o curso secundário. Isso em 1898, antes de ter dez anos! Parece-me que aprendeu precocemente, mas de maneira muito natural, simplesmente, não como as crianças atuais, sempre sobrecarregadas de tarefas e obrigações, premidas por faltas de tempo, sacrificadas por programas absurdos e excessivos. Eu acredito que isso lhes deve prejudicar a individualidade, a intuição, as poderosas forças que lhes vêm do instinto e do inconsciente. Permito-me repetir que eu, aos doze anos de idade, não sabia fazer conta de dividir, o que era atribuído à minha incapacidade intelectual, da qual estava eu próprio por demais convencido. Foi talvez a minha salvação, porque assim pude desenvolver-me segundo os meus instintos, as tendências mais espontâneas e naturais do meu espírito.Também, por essa simples razão, sobrou-me tempo para o brinquedo, a peraltice, a vagabundagem, coisas deliciosas, as melhores que o ser humano pode auferir no transcurso da vida.

Gustavo Barroso fez a sua aprendizagem primária no lar, certamente com prazer, espontaneamente, sem deveres e imposições desagradáveis, que podem sacrificar o gênio ou a inteligência de muitas crianças. As tarefas, as obrigações, as exigências podem criar inferiores e anormais, como posso declarar peremptoriamente, baseado na experiência viva do meu próprio caso. Tenho escrito muito sobre a questão, mas não é aqui o lugar para repetir os meus batidos argumentos. Barroso educou-se sem esforço, quase sem sabê-lo, tão natural e espontaneamente, que depois foram sempre os seus instintos e as suas tendências que imperaram e deram direção à sua vida. Relata que a tradição brasileira envolveu-o desde os primeiros dias, e que, em torno do seu berço e da sua infância, nunca se pronunciou uma palavra de alemão, nunca se sentiu o pensamento germânico, embora acredite, erradamente, que o seu pendor natural para a disciplina, a ordem, o sentido construtivo da existência devam trair a sua ascendência alemã. Sabemos pelas leis da hereditariedade que não se processam transmissões dessa natureza, a sua própria vida demonstrando quanto era ele livre, independente, obediente aos seus impulsos pessoais. Os seus sentimentos de ordem e disciplina devem ter sido tardios, de homem adulto, batido pelos reveses da vida e que então procura equilíbrio e harmonia. Suas qualidades de caráter, seu interesse pelo trabalho e a atividade, sua inquietude para criar e subir devem ter outras razões, mais próximas, mais diretas, decorrentes dos primeiros anos da sua existência, da maneira pela qual os viveu.

O que pode haver no meu caráter de mais retilíneo e mesmo áspero, no modo de pensar dos amolecidos de hoje, vem de minha avó! Linha. Compostura. Dignidade. Nunca se curvou senão diante de Deus... Nunca encontrei na vida ninguém igual. Também ninguém a quis e admirou como eu... Ouço muitas vezes meu pai dizer que ela foi muito rigorosa com ele na infância, batendo-lhe demasiadamente. Sempre presenciei o seu desvelo para com ele, fazendo-lhe até o mingau da manhã e o almoço especial. Para mim, nunca levantou a mão. Em certa idade vivi sempre agarrado às suas saias.

RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA

Do pai refere que o seu maior prazer era ir todas as tardes, depois do jantar, para o sítio, levando restos de comida para os gatos e gulodices para um jumento de estimação. Aí, em mangas de camisa, ocupava-se das suas fruteiras e hortaliças.

Aquilo o distrai e conserva o vigor. Goza de extraordinária saúde. É de ferro... Deixa que a vida vá passando por ele sem lhe dar grande importância. Aprecia o seu desenrolar como o de uma fita de cinema. Só intervém, forçado. Observa e critica sem tomar parte. Vive com o que tem sem pedir nada aos outros, sem incomodar e sem se humilhar, economicamente, sobriamente, honestamente e de cabeça ereta. Sem ambições a preocupações... Não faz mal a ninguém, não empurra ninguém para passar. Não faz questão de passar.

Voltava do sítio com uma cestinha de belas frutas, que se tornou tradicional em caricaturas e versalhadas nos jornais. Provavelmente essa maneira de viver, essa naturalidade e espontaneidade lhe devem ter dado uma existência sadia e prolongada, que excedeu de um século. Gustavo acompanha-o ao sítio uma ou duas vezes por semana e diverte-se à grande. Trepa nas árvores, monta no jumento, toma banho no grande tanque, brinca com as filhas do feitor, faz as suas escapadas. Tudo é natural, simples espontâneo, instintivo. Desde muito cedo, entusiasma-se pela farda, a corneta, as solenidades militares. Quando fala disso, ainda muito pequenino, a censura é geral, todos discordam. Via os moleques na vagabundagem, tomando banho ao ar livre, o sol a queimar-lhes a pele escura e tinha inveja, achava melhor ser moleque do que filho de família. Estava ainda no curso primário, mas já se falava de dever tornar-se doutor. Acrescenta que acabou bacharel contra a vontade, com uma surda revolta, que já explodira quando pequenino, ao gritar que não queria ser doutor, queria ser soldado ou moleque! Diz que essas coisas são encaradas como tolice infantil pela gente grande, que pouco se interessa em aprofundar a psicologia da criança, não se dando conta de como as primeiras impressões são profundas e duradouras. Relata que a sua primeira aspiração foi ser bolseiro de bonde, também um dos meus ideais na meninice. Numa página deliciosa das suas Memórias, descreve o seu entusiasmo por essa profissão, realmente empolgante para as crianças antes da época dos automóveis e aviões.

Se eu não podia ser bolseiro, ao menos me deixassem ser soldado... Essas aspirações infantis parecem às vezes inteiramente loucas e são simplesmente naturais. As crianças vêem a vida por um prisma muito diferente da gente grande, o prisma da imaginação. Vivem num mundo ideal. Acostumamse, desde a mais tenra idade, com os brinquedos, a dar vida ao imaginado e alma às coisas. A imaginação das crianças é maior do que a dos poetas. Uma é natural, a outra é de arranjo.

Barroso mostra que a farda de um simples soldado pode refulgir com o louro dos heróis e que ele próprio adorava os heróis. E recorda-se de histórias contadas por parentes ou lidas nos livros, que o enchiam de entusiasmo.Desde muito cedo gostava de brincar de batalhão, usando ele, como comandante “seis galões dourados de uma antiga farda do pai, que fora comandante da Polícia, presos com alfinetes nas mangas da blusa de brim”, enquanto as outras crianças “serviam-se de espingardas de pau, usando velhos bibicos do exército à cabeça”.

Ainda muito pequenino, faz o conhecimento de um antigo oficial da Guarda Nacional, que o põe sobre os joelhos e desenha numa folha de papel, com lápis vermelho e azul, soldados e oficiais. Ele fica deslumbrado pelos desenhos e mais tarde procura imitá-los, pintando com giz, no passeio, os seus batalhões, que por vezes pessoas de idade elogiam, achando ter ele talento para pintor. O velho oficial conta-lhe histórias da guerra do Paraguai, cargas de baioneta, avanços de cavalaria, ribombos de canhões, que produzem profunda impressão no seu espírito. “Minha vida é povoada de recordações militares e gosto tanto de tudo que se refere à vida guerreira que todos os amigos e conhecidos de meu pai me auguram um futuro soldado. Na nossa família há o culto de tradição da Pátria e estima pela bravura pessoal.” Achava o pai maravilhosamente lindo quando, comandante da polícia, vinha a cavalo na frente do batalhão, logo depois da música tocando dobrados. As tias vestiam-no de oficial e ele passava pelas ruas todo ancho, com uma espadinha de brinquedo à cintura.

Uma das suas mais longínquas recordações é “dum choro intenso por não querer vestir mais um vestidinho de babados e rendas, exigindo calcinhas que me foram solenemente prometidas se consentisse em enfiar mais uma vez a roupinha de menina, que sentia me desonrar”. Lembrava-se de uma marche aux flambeau da Escola Militar para comemorar a posse do Marechal Floriano na Presidência da República e que lhe deixara a mais viva impressão, embora fosse tão pequenino que a assistiu do colo de uma das tias. Depois, fala de “quando andava correndo de camisola pelas calçadas, puxando um cavalinho-de-pau sobre quatro rodas ou galopando e espinoteando num cabo de vassouras, com um chapéu armado de papel à cabeça, fingindo de general”.

Quando o Almirante Manhães Barreto esteve em Fortaleza, Barroso seguia-o onde quer que fosse, admirando-lhe a farda, sem que ele pudesse suspeitar daquela comovida contemplação. Se cursasse a Escola Naval, talvez um dia chegasse a almirante, pensava, sem coragem de revelar o meu desejo, que morria ao peso da incompreensão do ambiente... Só eu sei, por que somente a presenciei continuamente dentro de mim. Nossas almas são sepulturas de desejos e ambições desconhecidas dos outros e que não se realizaram.

Em outra ocasião, viu no Passeio Público, à noite, um rapazelho corado,mais ou menos da sua idade, com o mais lindo uniforme do mundo: calças garance, dólmã castanho, dragonas de torçal dourado. Nunca tinha visto uma farda assim! Quando a banda de música deixou o passeio e toda a gente foi-se embora, acompanhouo de longe, sem que ele notasse, apreciando em silêncio sua linda indumentária. E não preguei o olho metade da noite, pensando no Colégio Militar.

No dia seguinte, tomara informações sobre o colégio e, armando-se de coragem, foi falar ao pai, a sós, no cartório. Ele queria estudar e fazer figura, mas o pai não acreditou ou talvez não tivesse recursos para aquelas despesas. “Se meu pai tivesse atendido, outro teria sido o meu destino. Mas recusou! Sabia que com um pequeno esforço podia realizar o meu desejo. Por isso, mordendo os lábios, recalquei uma explosão e afastei-me desalentado. Nunca mais na vida lhe pedi nada”.

ADMIRAÇÃO PELA FARDA

A tendência de Gustavo Barroso é, desde muito cedo, para o uniforme, a carreira militar, para ser almirante ou marechal, contentando-se, quando ainda pequenino, com galões de general. Em 1900, morre em Fortaleza o general reformado Morais Rego, cujo enterro, com honras fúnebres prestadas por um regimento de infantaria, com descargas de pólvora seca e o caixão mortuário envolto na bandeira nacional, causaram-lhe arrepios. Anos depois, ele comprava numa casa de prego o chapéu armado e o talim desse general, “empenhados e abandonados pela viúva necessitada. Com essas relíquias militares e uma sobrecasaca velha de meu pai, ornamentada de botões dourados, fantasiei-me de almirante em diversos carnavais. Isso denunciava minha obsessão em seguir a carreira da Marinha”.

Nas suas Memórias, encontram-se diversas manifestações desse gênero, que traduzem tendências das mais profundas e arraigadas.

Muito mais tarde, em 1907, quando foram modificados por decreto os uniformes do Exército, procurou colaborar anonimamente na reforma, enviando ao Ministério da Guerra, pelo correio, uma série de desenhos com projetos de fardamento. Algumas das suas sugestões foram aceitas, e futuramente iria elaborar a lei que reconstituiu os Dragões da Independência. Além disso, escreveu um livro sobre “uniformes do Exército” e publicou outros trabalhos do mesmo gênero. Ele próprio mostra que essas publicações tinham raízes profundas, que vinham de longe, dos tempos em que, ainda criança, queria ser militar e no carnaval fantasiava-se de Almirante Barroso. Almirante era a sua secreta aspiração, Barroso o seu próprio nome! Não havia o inconsciente armado a peça, que iria ter inúmeras cenas e representações? Não é também compreensível que se cobrisse de condecorações, talvez mais numerosas do que jamais qualquer dos nossos diplomatas? Alberto Faria, recebendo-o na Academia, disse que desprezava todas aquelas veneras, “que não raro matizam e iluminam peitos vácuos”, achando que uma das suas páginas literárias tinha mais valor, autenticando a natural e maior de todas as grandezas – a do intelecto”.

No seu caso havia, atrás desses enfeites, das fitas coloridas e dos reluzentes metais, aquela velha aspiração do menino que se vestia de almirante e via nos galões e no uniforme o maior dos ideais. Isso estava calcado no seu inconsciente e explica por que se inscreveu diversas vezes nas vagas da Academia, conseguindo alcançar precocemente o galardão desejado, assim como tornar-se membro do nosso Instituto Histórico de outros estrangeiros, até finalmente fundar o Museu Hitórico Nacional. Eram o destino e os fados que trabalhavam sob a regência da criança que vive sempre dentro do homem e que pode realizar façanhas dessa natureza. Também o seu Consulado da China, simples brinquedo de acadêmico, foi realizado na vida quando se tornou Cônsul da Venezuela. É por acaso que tudo isso ocorreu? Sim, unicamente pelo acaso, que ele soube canalizar para conseguir tais realizações! É uma afirmativa que pode parecer ousada, mas que não passa de truísmo psicológico. Não é natural que tivesse sonhado desde cedo com esta Academia e que para ela entrasse precocemente, aos 34 anos de idade? Comigo próprio, tudo ao contrário! Nunca tive entusiasmo pela farda e os galões, talvez razão pela qual aqui chego tardiamente, quarenta anos mais velho do que Gustavo Barroso quando para aqui entrou. Por quê? Provavelmente porque, sendo eu do interior de Minas, nunca havia nem um batalhão, nem um oficial. Juiz de Fora possuía então quatro ou cinco soldados de polícia, que tomavam conta da cadeia. O comandante era um alferes de polícia, que não chegava a imporse pelo porte e a indumentária. Nunca brinquei de soldado e, no carnaval minhas irmãs vestiam-me de mulher, com as suas próprias roupas e sapatos e umas belas tranças de cabelo de minha mãe, como as senhoras aquela época usavam guardar por desfastio. Saía tão elegantemente vestido que acabava sendo acompanhado por numeroso grupo de moleques, acompanhamento respeitoso porque julgavam tratar-se realmente de uma dama, que apenas usava máscara, mas não falava, como competia a uma digna senhora, embora a razão maior fosse a minha timidez. Mas ia tão cônscio do meu papel, tão bem estudado sob a vigilância de minhas irmãs, que o sucesso era sempre completo. De uma vez, corri grande perigo, pois entrei no Passeio Público, aquela hora quase vazio, acompanhado da molecada. Reboou o grito de “Pega para ver se é mulher!” Como não era, tudo acabou muito bem!...

OS BRINQUEDOS DA INFÂNCIA

Cabem num discurso acadêmico particularidades dessa natureza, vividas mesmo pelo catecúmeno, não somente pelo imortal que ele vem substituir? Eu me penitencio do agravo, pois penso que assim poderei apresentar melhor a figura do meu digno antecessor. Não há dúvida de que as diferenças de meio e as circunstâncias do ambiente podem dar direção às nossas tendências, muito compreensíveis no caso de Gustavo Barroso, criado diante do mar, vendo navios e marinheiros, numa cidade que era sede de um regimento militar. Interessante foi a adoração que ele teve pelo mar e as coisas marinhas. “Tenho a mania de ser marinheiro e só leio com verdadeiro prazer histórias de viagens e de piratas. Conheço como um lobo do mar todas as obras vivas e mortas de qualquer embarcação”. Fez-se tatuar uma âncora no braço, sabe de cor os nomes de todas as embarcações do porto ou das que nele entram, e conhece todas as suas partes e minúcias, convivendo com pescadores, jangadeiros e catraieiros, que é gente da sua predileção. Muito pequenino, constrói em casa um estaleiro, num canto do alpendre, junto da cozinha. Tudo serve às suas construções: latas vazias, barbantes, botões, parafusos, pedaços de madeira, de pano, de metal que são logo transformados em cascos, mastros, velas, âncoras, produtos náuticos dos mais variados. “O que mais desejo ver na vida é a construção de um navio, mas navio mesmo de verdade!”

Onde a infância de Barroso atinge máxima significação é no pendor que teve pelos brinquedos e na mestria com que soube realizá-los. Quando suas primas brincavam com bonecas, gostava de ficar perto, vendo e ouvindo.

Conheço as personagens e sua história tanto quanto elas. Agrada-me saber das novidades, quais são os novos namoros, os passeios projetados, as últimas intrigas e se vai haver algum batizado. Elas afugentavam-me naturalmente porque há algum segredo entre os bonecos... Meus brinquedos têm vida, felizmente talvez maior... Minha casa de brinquedos causa inveja às meninas... É mais bela, sem comparação, graças à minha indústria. Pequeno carpinteiro e marceneiro, fabrico portas, janelas, venezianas e móveis, além de carrinhos e navios. Qualquer rodinha de velho relógio ou de brinquedo quebrado, qualquer pedacinho de metal, argola, parafuso, chapinha ou gancho, serve-me para tirar enorme proveito. Arranjo sempre tintas, com qualquer pintor em qualquer casa que esteja em consertos. Tudo o que é meu é pintado e parece novo.

Descreve então a gente que vivia naquele mundo, com os seus nomes, os seus títulos, as suas atividades, os seus bichos, as suas lutas, as suas bravatas e valentias. Se fosse contar os episódios e os romances que se passaram com os seus bonecos encheria livros. Um sem-número de intrigas, mutações, avatares, acontecimentos!

Na minha meninice, a imaginação infantil, entregue a si própria, criava multiplicando-se. Hoje, a imaginação da criança está entregue a perversos modeladores que a retorcem num sentido materialista e a atarantam ou endoidecem nas ilógicas complicações dos desenhos animados ou no sensacionalismo barato das fitas em série.

Num capítulo das Memórias, descreve os seus brinquedos, que chama de brinquedos vivos, e que eram principalmente bonecos com característicos e postos militares. “Não há mulheres para perturbarem a sua paz. O chefe é um zuavo de folha, já muito velho, aposentado como cabo e que tem um filho, um elegante oficial de caçadores alpinos, último remanescente de um batalhão que eu destruíra com um limão que ia e vinha, como uma bala rasa.” E havia muitas outras personagens de farda, caçadores tiroleses, couraceiros alemães, hussares ingleses, sobras de um regimento que lhe deram de presente. “Esse Pessoal heteróclito agita-se naquele canto durante anos, reproduzindo na sua alma de ficção o que vai por dentro das ficções da minha alma de criança.”

Reputo esse capítulo das Memórias como um dos mais interessantes da sua obra, dada a intensidade de ação e a vivacidade das personagens. É um documento de psicologia do mais alto valor, que eu próprio posso julgar com precisão, porque comigo se repetiu o mesmo fenômeno quando atravessei essa deliciosa fase infantil. Em toda a minha meninice, não ganhei senão um único brinquedo, um polichinelo com um guizo no barrete, do qual, até hoje, não me esqueci. Era de veludo azul e vermelho com estrelinhas douradas, essas duas cores alternando-se em oposição de cada lado do corpo. Também construí casas, muitos bonecos e muitos instrumentos de brinquedo,embora provavelmente sem a habilidade e a fantasia que Barroso soube dar aos seus.Mas,não devem ter sido inferiores no prazer que me proporcionaram, nem na vida que lhes consegui incutir. Naquele tempo não existia ainda o comércio de brinquedos, que vinham todos da Europa, assim como a manteiga, até na minha terra, no interior de Minas! Concordo com Barroso quanto ao fato da criança moderna levar uma existência sofisticada, sem dúvida responsável pelas aberrações e monstruosidades, que tanto preocupam os sociólogos contemporâneos. Ele fala dos desenhos animados e das fitas em série, atualmente agravados pelas histórias de quadrinhos e sobretudo a televisão e a vida reclusa em apartamentos. É uma nova fase que atravessa a humanidade, que se reflete profundamente na formação da criança, prejudicada tanto pela educação, quanto pelas transformações do ambiente.

O brinquedo criado ou inventado pela própria criança tinha outra significação, punha à sua disposição um mundo diferente, de muito maior valor para a fantasia, o seu desenvolvimento, a sua felicidade. Barroso diz esplendidamente.

A vida da minha alma com as almas que ela cria nos meus brinquedos é tão deliciosa que até os quatorze anos não me pude desapegar dessa gente e desses velhos bichos. Somente nessa idade começo a deles afastar-me abandonando-os às vezes dias e às vezes semanas inteiras. Por fim, deixo-os de vez, não porque não me dêem mais prazer, mais por respeito humano, porque criticam um menino “tão grande”, um “ganjalão deste tamanho” ainda brincando com bonecos.

Aos quinze anos, encerra-os em uma lata de biscoitos, bem forradinhos de papel fino e os esconde no fundo de um gavetão, onde ficam durante muitos anos. Quando volta ao Ceará mais tarde, já homem célebre, tira-os do esconderijo e revive assim tempos passados. Da última vez, mortas a avó e as tias, tendo de trazer para o Rio o pai doente, encontrou o gavetão vazio e sentiu como que a dor de uma profanação. Ninguém conhecia nem estimava aquelas figuras, somente eu no mundo sabia quem elas eram, como se chamavam e o que haviam feito, eu, o seu criador, o seu animador, o seu único amigo!... Sei por experiência própria que os brinquedos são vivos porque vivi os meus melhores anos com eles.. Tinha a intenção de trazê-los, comigo para a minha casa... mas nunca mais os verei, porém nunca mais em mim morrerá a saudade deles.

 

LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA

O que caracteriza a vida de Gustavo Barroso desde muito cedo é a tendência para vivê-la com liberdade e independência, movido pelos seus instintos mais espontâneos. Ele fazia parte duma malta de meninos terríveis, nadadores e mergulhadores, mestres em soltar papagaio e atirar pedras... Subíamos pela costa das alvarengas carregadas de mercadoria, alcançávamos a coberta e pulávamos lá de cima, mergulhando por baixo do casco... apostando quem o atravessava a nado mais depressa... Depois do almoço, a malta percorria os coqueirais para beber água de coco e comer coco verde. Uma verdadeira delícia subir pelos troncos linheiros e oscilantes, passar a perna por cima das capembas como um marujo no cesto de gávea, empoleirando-se no olho das palmas... Que coisa maravilhosa! Ainda me lembro de tudo isso com arrepios de prazer.

Poderei perguntar a algum dos ilustres acadêmicos presentes se já subiu ou se já viu alguma criança subir em coqueiro? Acredito que, neste caso, não poderá deixar de ser nordestino porque eu, do interior, impressionei-me vivamente vendo fazê-lo. Pareceu-me uma aventura difícil e perigosa, que me encheu de admiração, mas que o menino Gustavo Barroso executava com prazer e mestria! E conta de outros brinquedos terríveis, um no Passeio Público, onde, com outros companheiros, penetrava galgando um muro de cinco metros de altura, que descia obliquamente até o solo. “Somente virando lagartixa se consegue descer por ali. Queda fatal ao menor descuido naquela descida! O mais leve movimento em falso basta para dar o aleijamento ou a morte! No entanto, nunca um menino caiu aí. Estou finalmente convencido que menino é como osga: tem visgo nas mãos e nos pés. Quantas e quantas vezes, depois de homem feito, tenho ido ao Ceará e visitado aquele local, para mais uma feita olhar aquele rebordo ainda existente e balançar a cabeça sem compreender. Foi milagre!”

Ele se refere ao primeiro cigarro que fumou, dado por um moleque da praia e que lhe produziu tonteiras, engulhos e vômitos. O moleque consola-o: “A primeira vez é assim mesmo. Depois, a gente acostuma e gosta que é uma beleza. Acostumei e gostei.” Como adulto, foi grande fumante de charutos, hábito que abandonou por duas ou três vezes, deixando-o, afinal completamente.O pai era contra o fumo, mas tomava rapé, que ele achava horrível. “No colégio, quase todos fumavam uns já por vício, outros para se darem ares de homem.”

Descreve a primeira vez que foi sozinho a uma matinê de circo, de onde sai maravilhado, terminando o espetáculo pela pantomima aquática, a que eu também assisti como menino. Gustavo acrescenta: “É a primeira vez que entro num circo e que vou sozinho a uma coisa importante. Como me custou alcançar essa licença! Dificuldades dessa ordem é que me farão com o tempo ir dispensando as licenças e conquistando uma liberdade selvagem à custa de malabarismos e disfarces.”

Tudo na meninice servia-lhe de divertimento, sabendo inventar brinquedos e traquinices. Era apaixonado por passarinhos, tendo a mania de arremedar vozes de bichos, reproduzindo com perfeição as de gato e de galo, que lhe permitiram muitas maldades e brincadeiras. Ele concorda com o poeta quando diz da infância: Cet âge est sans pitié. Mas acha que essa falta de piedade dos meninos pelos infelizes e os inconscientes deve provir de defeitos da educação cristã, não devendo consistir a caridade somente em dar esmolas. A questão é muito mais complexa, não sendo aqui nem o lugar nem o momento de discuti-la.

UM MENINO ENDIABRADO

No fundo, Barroso é um menino endiabrado, embora sempre cheio de sensibilidade, dotado de uma poderosa personalidade. Funda uma maçonaria de crianças, imitando os ritos dessa associação que observara do alto de uma clarabóia. Como inúmeras outras crianças, inventa uma língua secreta, que os outros não devem entender e que é formada pela adição de uma ou duas sílabas a cada sílaba da palavra usada. Fala-se com tal rapidez que quem não conhece o mecanismo fica desorteado, Agiri, sigiri, negiri, tagiri, quer dizer a sineta. Assim, há a língua do fá e dos seus dialetos: do fé, do fi, do fó, do fu; a do pá, do pé, do pi, do pó, do pu; e outras mais complexas como o da-fi e até do pa-fé-fó, línguas proibidas no seu colégio, porque meninos não devem viver com segredos. A razão deve ter sido outra, porque eu próprio, mesmo em criança, consegui ser poliglota desses idiomas. Também fui bastante fraco em esportes, que Barroso dominava com mestria. Era campeão de marela, atirava a marca com pontaria certeira e agüentava-se num só pé o tempo que queria, ninguém o vencendo. Andava pelos telhados como um gato, indo observar as sessões do Tribunal de Relação, os desembargadores vestidos de beca, e sobretudo os trabalhos secretos da loja maçônica, que muito o divertiam. Conta a história de uma lanterna mágica de um velocípede, que lhe serviram de pequena fonte de renda. Recebeu uma galinha de presente, da qual comia ou vendia os ovos. Nas festas do barão de Ibiapaba, quando o palacete estava iluminado e o baile no auge, ia sorrateiramente ao corredor da entrada e fechava o registro de gás deixando a casa às escuras. O rebuliço era enorme, mas logo percebeu o perigo que corria. Da próxima vez, foi outro menino do grupo pilhado em flagrante pelo empregado escondido atrás da porta, que lhe meteu o chicote. As rixas do seu batalhão com um outro da vizinhança não eram raras, havendo por vezes crianças feridas por pedradas ou pauladas, o que alvoroçava a população. Numa ocasião recebeu uma chicotada de um carroceiro português, quando pegava a traseira do veículo, defesa que empregava contra meninos travessos que lhe atrapalhavam o serviço.

Gustavo jurou vingar-se, achando ser desaforo levantar o luso o chicote contra meninos brasileiros. Prepara o plano com um companheiro e vão ambos atirar-lhe pedras no telhado de zinco e desafiá-lo com ameaças e injúrias, no escuro, escondidos. Os insultos são tão violentos que o português sai com uma acha de lenha, estando Gustavo armado de um garfo de jardim, de pontas aguçadas. “Corro sobre ele e finco-lhe o garfo com toda a força na coxa direita... O homem solta um berro e desce a acha de lenha, que o apanha na nuca, deixando-o desacordado”.

Certa vez, apareceu em Fortaleza uma casa mal-assombrada, onde choviam pedras, quebrando janelas, vidros, louça e outros objetos. O mistério parecia impenetrável, e a polícia, depois de muito investigar, descobriu que era uma moleca da casa que executava as manobras, acumulando na abóbada do forno grande quantidade de pedras e pedaços de tijolo com que praticava a mistificação. Bela lição para o menino Barroso que em breve, com dois companheiros, passou a criar assombrações em lugar ermo da cidade! Quando aparecia um dos raros transeuntes começavam por chamá-lo com psius, logo acompanhados de um assobio longo, como vindo do outro mundo, e choviam pedras partidas de três pontos diferentes. A fuga era vertiginosa, ninguém resistindo àquele enigmático bombardeio. Os jornais fizeram barulho e a polícia pôs-se de prontidão. Graças à imprensa, “essa sublime invenção”, diz Barroso, escapamos da boa. E acrescenta que também desta vez, como os carabineiros de Offenbach, a polícia chegou tarde e não descobriu nada...

Os livros de memórias de Barroso encontram-se cheios das suas vivências de criança, grande número delas deliciosas, outras prodigiosas, espantosas. É o tipo do menino danado ou menino danisco ou perguntador.

Danado ou danisco porque tenho muita vida, monto nos jumentos e cavalos que encontro no pasto, remo nas baterias do Poço da Draga, nado das barraquinhas de banho até o extremo da Ponte Metálica, onde me dependuro nos varões de ferro cruzado, subo em todos os coqueiros, jogo admiravelmente o ponto com papagaios de rabo armados de afiadíssima rocegas, devoro os jamelões e as laranjas de todos os quintalejos, não respeitando muros ou cercados, não erro a pontaria duma pedrada e pinto o sete pelas redondezas. Perguntador porque quero saber de tudo: os nomes dos pertences das jangadas e os nomes de todos os peixes; como se pesca de anzol, de tarrafa, de rede, de landuá, de gererê, e de curral, na costa, nos lagamares nos maceiós.

Em 1899, com onze anos de idade, matricula-se no Liceu do Ceará, onde a sua vida vai tornar-se mais complexa e cheia de contradições. É magro, alto, desengonçado e os colegas apelidam-no de girafa. Ele próprio reconhece que era dos meninos mais difíceis de conduzir: “Rebelde, astucioso, tímido maleável. Sem forças para lutar peito a peito, recorria à astúcia e à inércia. Mesmo quando fingia ceder, não cedia. Com os modos e estimulando-me, conseguia-se tudo. De outro modo, não. Até hoje.” Foi o que demonstrou sobejamente durante os seus estudos no Liceu, onde foi reprovado e depois desligado por falta de comportamento e de aplicação nos estudos. Tudo provinha de graves erros educacionais, que também conheço suficientemente, porque fui vítima deles, não me reabilitando senão tardiamente.

No segundo ano do curso, passou a estudar álgebra com o Dr. Francisco Marcondes Pereira, grande matemático, mas áspero com os alunos, sempre irritado e que toda a turma detestava. Como reação, Barroso ia para o quadro-negro e às vezes, talvez por pirraça, errava nos cálculos e nas fórmulas, o que o professor, que o exasperava, mandava sentar-se e dava-lhe , chamando um outro discípulo “menos burro”. No exame, deu- lhe a nota mais baixa e, passando por ele, disse-lhe irônico: “Dexei você passar mas de quatro pés, por debaixo da mesa!” Barroso preparou-lhe uma vingança.

Existia então na cidade um cego, alto e magro, que era conduzido por um carneiro no cordel, acompanhado de diversos outros. O cego parava numa esquina e com uma gaita, taboinhas enceradas e a ponteira ferrada do varapau produzia sons acompanhados de gorgolejos e modulações engraçadíssimas com a garganta e a boca. O cego valia por uma orquestra, e os carneiros, ensinados, correspondiam às suas ordens. Fingia dar tiros com o cajado e os bichos iam caindo um a um, como se estivessem mortos. Indagava então se estavam mortos e como o silêncio era profundo, imitava o badalar e bradava: “ressuscita, cambada!” Os carneiros punham-se de pé e começavam a dar pinotes e marradas. “ O último ato era com o carneiro-guia. – Mimoso –, dizia ele – O animal dava-lhe uma marradinha na perna. Acariciava-o, passava-lhe a mão lentamente pelo focinho e perguntava: – Mimoso, como foi que o Moreira César fez quando morreu em Canudos? O carneiro deitava-se de lado e soltava um berro estertorado e doloroso. O cego era monarquista e por isso caricaturava os vultos republicanos. Depois de Moreira César, vinham Quintino, Deodoro e Floriano. – Mimoso, como é que o padre Liberato faz sermão na Sé? De pé, o Mimoso sacudia a cabeça e emitia uns balidos fanhosos. A assistência ria a morrer e cobres e níqueis choviam no chapéu do cego... Eu e outros companheiros do Liceu nos cotizamos e demos cinco mil réis para um novo truque do carneiro. – Mimoso, dizia o cego, como é que o Dr. Marcondes dá aula aos meninos no Liceu? O carneiro levantava uma pata como quem vai escrever na lousa e punha-se a berrar descompassadamente. O professor Marcondes deu o cavaco e pretendeu queixar-se à polícia. Os amigos dissuadiram-no, mostrando que se tornaria ridículo.

Mais tarde, Barroso soube que aquela irritabilidade do mestre provinha da sua infelicidade doméstica, acabando por separar-se da esposa. Quando Marcondes veio para o Rio, aposentado, Barroso ocupava lugar de destaque na imprensa. Trabalhava no Jornal do Commercio, freqüentava a Garnier, privava com grandes nomes da Literatura. Um dia, falando com velho mestre, pergunta-lhe este sorrindo:

Aquela palhaçada do carneiro comigo só podia ser obra tua. Foi ou não foi?” Baixei a cabeça para esconder o riso. E ele: – “Eras um demônio em figura de gente. Arrependo-me de não te ter reprovado duas vezes em lugar de uma”. Fez uma pausa e indagou, pondo com simpatia a mão no meu ombro: “Que milagre foi esse? Como passaste de repente a estudar e deste para gente, tu o mais descarado moleque que jamais houve em Fortaleza? Sempre pensei que não desses para nada. Julgava-te homem ao mar. Felizmente enganei-me”. Respondi-lhe: “Eu mesmo não sei como foi. Talvez que tudo fosse resultado de uma falta de compreensão. Não me compreendiam e eu não compreendia os outros. Um dia, deu-me o estalo na cabeça. Dei para compreender-me um pouco e compreender os outros. Bastou isso. Não foi preciso que me compreendessem. Imagine se me comprendessem... o que eu poderia ser...

O que aconteceu com Gustavo Barroso não é muito raro. Não é todo moleque que se torna grande homem, embora alguns o consigam, sendo outros sacrificados por erros, sobretudo na aprendizagem escolar. Eu tenho lançado por diversas vezes prognósticos favoráveis, quando pais desesperados julgam que um filho difícil e rebelde representa um caso perdido. O que há,quase sempre, é tal criança possuir uma personalidade poderosa, singular, que fica em oposição ao meio e à família, tornando-se por vezes intolerável. O critério de julgamento não me parece difícil, desde que atentemos para as qualidades positivas da criança, não para os seus pretensos defeitos e inadaptações. É um julgamento quase inverso ao que se deve fazer em relação a doentes mentais, que precisam ser reconhecidos pelas suas anormalidades e insuficiências, não pelo que apresentam de normal ou equilibrado. Na criança, são os fatores positivos e superiores que devem contar e, nesse sentido, o caso do menino Gustavo Barroso é fecundo de ensinamentos. Desde cedo percebe-se a sua acuidade intelectual, pois aos três anos de idade já consegue adquirir de oitiva os primeiros conhecimentos primários.

 

O ESTUDANTE DO LICEU

As suas rebeldias no Liceu repetem-se, tomando por vezes aspecto de terrível oposição. Os seus rabiscos e desenhos servem para diverti-lo e aos colegas, sobretudo traçando caricaturas de alguns mestres. De uma vez, foram surpreendidos pelo padre Xisto Albano, mais tarde bispo do Maranhão, que Barroso descreve como um professor paciente, bondoso, que deixou saudades. Fora pego quando traçava uma caricatura do reverendo, havendo debandada geral. Na aula, este disse que iria dar parte do grupo ao diretor, exceto se o responsável se acusasse a si próprio para receber a punição. Barroso levantouse “de cabeça baixa, sem poder dizer nada. O padre desfranziu o rosto e concluiu: – Ora, muito bem! Está perdoado já que se acusa com dignidade. Está perdoado! Não faça mais, sobretudo não me pinte tão feio, tão esquisito...Nunca mais tive a coragem de rabiscar qualquer coisa contra ele”. A lição foi maravilhosa e eu próprio insisto no seu efeito corretivo, porque no ginásio passei por situação idêntica que teve idêntico resultado. Depois, o padre Albano foi substituído por um novo professor, homem de outro gênero, arrevesado, que dava informações ao pai de Gustavo das suas gazetas e de quando não sabia a lição. O menino implicou com o mestre e certa vez respondeu-lhe mal em presença do pai, recebendo correção imediata, que muito o revoltou, sendo “causa de coisas que seria melhor não tivessem acontecido. O castigo paterno em público arrasou-me. Pretendi fugir do sobrado e ganhar mundo”. Passei por transe semelhante e posso avaliar quanto é profunda a revolta infantil numa dessas situações. Fugi para o mato e passei o dia com frutas silvestres, disposto a nunca mais voltar para casa. Ao cair da noite, com o escuro, fugiu-me a coragem e regressei na maior das humilhações. O castigo fora dado por minha mãe, sempre tão justa e rigorosa que eu e meus irmãos, depois de punidos, acabávamos por procurar o seu regaço, à noite. Isso mostra quanto a criança tem o sentimento de justiça e de bondade, quando a punição é justificada e aplicada com critério. Barroso continuou em oposição ao mestre e alegrou-se quando o viu chegar de óculos pretos e pontos falsos na cabeça, resultado de uma paulada recebida numa briga. Na aula, para irritá-lo, dizia não estar preparado para a lição, mesmo quando a sabia muito bem. O professor dava-lhe um zero com tanta força que chegava a quebrar a ponta do lápis e “resmungava entre os dentes cerrados: ‘meu consolo é que nunca serás nada na vida!’” Muito mais tarde, Barroso teve ocasião de lhe lembrar que a profecia falhara, tendo havido apenas erro de psicologia, pois era por amizade que o mestre procurava pôr o pai ao corrente de suas peraltices. A lição é fecunda e precisa ser aprendida por muitos pais e pedagogos!

Com Barroso, as coisas prosseguiram, de mal a pior. Não estuda, quase não freqüenta aulas, recebe reprovações, é suspenso com outros colegas e finalmente, no fim do terceiro ano, é excluído do Liceu por falta de freqüência. Ele gostava era do mar, de passeios e cavalo, de assistir a touradas, de viver na vagabundagem. Já trazia consigo uma navalha, da qual nunca se separava, cujo uso aprendera com marinheiros. Uma vez, no corredor do Liceu, um inspetor repreendeu-o. Respondeu-lhe no mesmo tom e ameaçou-o de uma surra cá fora se desse parte ao diretor. “Sentindo-se desmoralizar diante dos alunos, o inspetor reagiu, avançando para mim de punhos fechados. Descasquei a navalha e o pus a correr, lívido, até a portaria, onde o negro José se levantou, protestando com energia. Disse-lhe horrores e fui embora”. Nas suas Memórias, descreve esse negro, porteiro do Liceu, nos seguintes termos: “tipo de abexim, de pince-nez de ouro sempre a escorregar, pretensioso, malcriado,antipático, continuamente de má vontade, mas desmanchando-se em adulações ao diretor e aos professores.” Em casa houve o diabo, sermões, ralhas, ameaças, castigos, “que absolutamente nada adiantaram. Continua mais revoltado e mais terrível do que nunca. Comigo era na navalha ! “Vê-se por tudo isso quanto era intensa a revolta da criança, sinal de que a sua personalidade devia ser poderosa. Tenho visto casos semelhantes, sobretudo quando o pai ou a mãe, por demais exigentes e autoritários, não admitem réplicas e oposições. Vejo nisso, não a rebeldia, o defeito, a inferioridade da criança, sim o seu valor, a sua ousadia, a sua coragem para enfrentar adultos que se julgam importantes e todo poderosos. Então, biologicamente, quase se pode afirmar que, quanto pior, tanto melhor! Melhor se o carinho, a educação, a Pedagogia e a Psicologia souberam trabalhar, aplicando os seus recursos, que podem ter efeitos prodigiosos.

Barroso era vadio, não estudava, quase não freqüentava aulas, mas era atraído pelo desenho, a geografia e a história. “Minha vadiagem não conseguiu fazer com que deixasse de ser um dos primeiros em desenho e o primeiro, sem contestação, em geografia e história. Dois professores, apenas dois, lhe dispensavam uma consideração afetuosa.

Monsenhor Bruno nunca descreu em mim. Devo-lhe isso! Quando lhe contavam minhas diabruras encolhia os ombros e dizia: “Isso passa! Ele endireita.” Os outros, não: estavam todos convencidos de que era um perdido, um moleque. A meninada até os maiores, no entanto, respeitavam-me os ares de mata-mouros, o que se contava das minhas traquinadas e sobretudo a navalha que trazia dia e noite no bolso. Minha família, isolada no velho sobradão silencioso, ignorava quatro quintos do que eu fazia.

Depois, vem a regeneração!

A falta de consideração de que comecei a ser alvo por parte da maioria dos colegas, devido ao meu procedimento, causou em meu espírito maior efeito e mais salutar do que todas as punições que me impuseram. Os dois anos perdidos muito me haviam atrasado no curso de madureza. Encontrei um dia na rua o professor Lino da Encarnação, que me chamou à parte e indagou com voz triste por que deixara de estudar e me comportava tão mal. Sacudiu a cabeça encanecida: – Que pena, você meu melhor aluno! – Não tive uma palavra para responder-lhe. Aquela suave recriminação apunhalou-me!

De outra vez, é um preparatoriano que se ri dele, chamando-o de bico crônico. “Três anos no terceiro ano, quatro no quarto, cinco no quinto, seis no sexto e no fim desse tempo bacharel em letras barbado e pai de família. Uma beleza!”

RUMO À FACULDADE

A infância de Gustavo Barroso foi, como acabamos de ver, das mais agitadas, cheia de lutas, que o tornaram rebelde, quase perigoso. Depois, as ondas se acalmaram, quando começou a sentir as sua primeiras tendências literárias. Ninguém pode adivinhar o que teria sido a sua carreira na Marinha e no Exército, embora muita criança que brinca de marechal ou almirante não passe depois na vida de simples e eterno soldado raso. Barroso vinha dotado de outras possibilidades e soube subir, elevar-se, conquistar a imortalidade e as palmas desta Academia, infinitamente mais difíceis do que os mais elevados galões militares. Aliás, naquele momento, os acontecimentos precipitaram-se. Barroso passou a estudar ativamente e terminou rapidamente os preparatórios. A Escola Militar estava fechada e admitia-se que tão cedo não se reabriria. Nessa época, foi fundada também a Faculdade de Direito em Fortaleza, onde ele se inscreveu como aluno. Ia ser bacharel em Direito! “O destino era mais forte do que eu!” Fizeram assim dele um doutor em Direito, ocorrência que lastima repetidamente nas suas Memórias. Informa que, se pudesse, passaria o ano inteiro errando pelo sertão, mas que precisava estudar e ganhar a vida, o que fazia dando aulas do curso primário e secundário, retocando retratos para um fotógrafo, pincelando nanquim, corrigindo falhas das chapas, tirando rugas e empretecendo cabeleiras encanecidas dos fregueses. Depois, pintou cenários para teatro e chegou a fazer um pano de boca, tendo aprendido com bons profissionais muita dessa Arte.

A SENSIBILIDADE DE BARROSO

Um ponto da personalidade de Gustavo Barroso que merece a maior atenção é o da sua sensibilidade, que se manifesta das mais variadas maneiras. Ele descreve um dos maiores divertimentos do povo naquela época – o jogo de pato, que lhe causa verdadeiro horror. Enterrava-se o animal no chão, só deixando de fora a cabeça. Os participantes pagavam entrada e, de olhos vendados, desnorteados, iam com um pau dando pancadas visando alcançar a cabeça do bicho. O espetáculo era dos mais apreciados, mas Barroso tinha verdadeiro horror àquela brutalidade, o que atribuía ao fato de haver sido criado entre moças e mulheres, o que fizera penetrar profundamente na sua alma a natural piedade dos espíritos femininos. Eu não suportava ver o sofrimento. Nunca pude maltratar um bicho. Quando os moleques amarravam latas no rabo de cães vadios ou das cabras à solta, fazia os esforços possíveis para apanhá-los e libertá-los da judiação. Essa piedade se estende até as coisas  inanimadas, não compreendo que se jogassem fora objetos que houvessem servido durante muito tempo.

De uma vez, fez uma manha terrível, aos quatro anos de idade, por causa de um velho cesto de palha provido de alça, um uru como é chamado no Nordeste, que servia para compras no mercado, sendo depois pendurado num prego da copa. Via-o todos os dias, desde quando andava de gatinhas. Num dia chuvoso, ao voltar para casa, com a tia, viu o uru atirado na rua, com a alça partida. Quis saber se não era o das compras, o que foi negado diante da tragédia que se preparava. “Eu despejei o Niágara de tal modo que tiveram de consentir trouxesse o velho uru e o escondesse debaixo de uma mala, num dos quartos do depósito. Ali se acabou dignamente dentro da sua casa e não na via pública”. Não se esboça aí a psicologia do futuro diretor do Museu Histórico, que também explica muitas das suas tendências literárias?

Barroso, nas suas Memórias, afirma que “se os meninos pudessem dizer o que pensam e o que sentem em certas ocasiões, a gente grande com certeza não os compreenderia... As almas infantis desabrocham ao seu lado e eles não sentem ao menos o seu perfume”. Por mais de uma vez, diz que “o pai era indiferente ao que lhe fosse n’alma, tão indiferente como se vivesse na China”. Em certa ocasião, o pai matou a tiro de Flobert um gato que ele conservava escondido, sabendo que o progenitor tinha o hábito de matar esse animal, não propriamente por malvadeza, mas por lhe ter ódio desde a infância, pois, como criador de pombos, precisava defender os borrachos, caçando gatos com armadilhas e, mais tarde, com espingarda. Barroso refere o caso de uma outra gata, igualmente por ele criada às escondidas, e que teve dois filhotes.

Um dia descobri-os todos mortos e soube mais tarde que fora obra de um caboclo da vizinhança que os atraíra, afogando-os na cacimba do quintal. Ainda hoje na arrepia o crime silencioso, solitário e inútil daquele caboclo! Chamar os bichinhos confiantes e mansos, afogá-los devagarinho e gozar friamente a agonia de animais inofensivos!

O seu sentimento foi de tal ordem que depois arranjou um pedaço de mármore e fez um túmulo no quintal para os pobres bichanos. E conta que nunca se esqueceu de uma frase da cartilha, aprendida na escola da sua tia: “Fazer mal aos animais é indício de mal caráter.”

Ele refere que nunca foi bom caçador e que, durante os anos que viveu pelos matos no Ceará, o que menos seduzia era a caça. “Não me sentia com ânimo de atirar nos pássaros canoros e de cores vivas. Preferia admirá-los. Entre mim e certos animais estabelicia-se como uma simpatia tácita e espontânea, corrente misteriosa que até hoje não sei explicar.”

Em certa ocasião saiu com a espingarda de um primo e foi a uma pequena lagoa, onde não encontrou caça alguma. Ao voltar para casa, viu um vulto de ave que se ocultava na moita.

Aproximei-me cautelosamente e espiei. Vi entre os ramos folhudos uma rola caboclinha deitada sobre o seu pequenino ninho. Ao menos esta, pensei, vou levar para a minha prima Rosinha não fazer troça. Apontei covardemente a espingarda e puxei o gatilho. A ave imobilizou-se morta sobre os ovinhos espatifados. Veio-me logo uma profunda tristeza por ter praticado aquela maldade inútil. Logo depois, quando li o poema do Albatroz, de Coleridge, compreendi que, como marinheiro maldito, pendurara para sempre ao pescoço o minúsculo cadáver emplumado.

Mais tarde, já tendo casa no Rio, revela esses mesmos sentimentos para com os animais, pois cria-os numerosos no seu lar. Chegou a ter muitas dezenas de gaiolas de passarinho, dos quais, enquanto lhe possível, tratou ele próprio, com o maior desvelo. Conseguiu ensinar um corrupião a cantar o hino nacional, o que o pássaro fazia logo que o via e também diante de pessoas estranhas. Possuiu um gato de tanta estimação, que o acompanhava quando saía para a rua!

BONDADE E LIBERDADE

Para o futuro, serão sempre predicados desse mesmo gênero que irão surgindo através da sua vida. A bondade, a justiça, a imaginação dominam os seus atos, estando ele sempre pronto para a luta, que tem de ser pelo direito, a liberdade, a independência. Profliga a violência e o poder da força. Conta de um jornalista que teve de engolir um artigo transformado em pílulas, sob a ameaça de revólveres empunhados por militares. A sua revolta é enorme diante desse ato a que assistiu e que classifica de covarde, sujo, miserável. Acha que seria, quando muito, motivo para um duelo ou um desforço pessoal. “A agressão em massa, sem dar ao outro a menor possibilidade defesa, enojoume. Foi o primeiro empurrão que levei em Fortaleza para cair nos braços da oposição... O tempo reserva-me ver coisas piores, quanto às tradições liberais do Brasil”. Num outro lugar das Memórias, refere o caso de um pobre bêbedo surrado pela polícia, que o deixou desacordado no chão. Soube disso e foi reclamar do delegado. Este respondeu-lhe grosseiramente, dizendo que, para ele, bêbedo era no pau e que soldado de polícia tinha sido feito para bater em paisano. “Contive minha revolta e retirei-me, decidido a fazer justiça por minhas próprias mãos e fi-la”. Disfarçou-se e com um companheiro foi uma noite atacar o soldado agressor, armados de pau e faca. Deixaram-no estendido no chão, tomaram-lhe o boné, a túnica, o cinturão e o sabre, queimando aqueles e guardando este durante muitos anos, como lembrança. Os jornais noticiaram o fato sob o título de “Covarde atentado” e a ronda daquela zona foi dobrada... Não é a mesma mentalidade que aparece dezenas de anos mais tarde, quando se torna um dos grandes chefes do integralismo?

A primeira fase da vida de Gustavo Barroso fornece material extraordinário para compreender o homem e o escritor. Ele vivia ainda no paraíso, “um paraíso que a ninguém era dado tirar, porque o paraíso estava dentro de mim”. Mas, já naquela época, quando ia para o colégio passava todos os dias pelo mostruário de um bazar onde dependurados pratos de porcelana com retratos de vultos eminentes do Ceará. Olhava aquelas figuras com um desejo inconsciente, larvar, informe, indefinido de ser ilustre como eles de honrar a minha terra e a minha geração. Esqueço nesses momentos de contemplação minhas inclinações para a molecagem, minhas aspirações de ser boleeiro de bonde e penso em estudar, para a Escola Militar ou a Escola Naval tornar-me notável e ter também o meu retrato no fundo de um prato de porcelana.

O que o parece esperar, no entanto, diz ele, é o cartório do pai, que já fora do avô, um sitiozinho, o casamento e muitos filhos. Mas “há uma voz muito baixa e muito longíngua que me insinua pedir ao destino mais alguma coisa. Sinto, às vezes, que não é bem pedir que ela me segreda, mas tomar-lhe à força, arrancar-lhe das mãos”. E acrescenta:

Também se essa voz misteriosa e quase imperceptível me contasse a poeira de ódio, incompreensão e inveja que levantariam meus passos pelo caminho a percorrer, julgo que teria preferido o cartório, o sitiozinho, a vida miúda, corriqueira, em que o tempo passa pela gente e não a que me coube em que passo pelo tempo.

Num outro lugar das Memórias havia dito:

Porque, as vezes para subir, os homens não se limitam somente a empurrar os outros, mas matam-nos mais do que se os matassem fisicamente, matando-os moralmente, espiritualmente. Graças a Deus, não carrego na minha consciência o peso de nenhum desses cadáveres. Os únicos cadáveres que andam comigo são dos sonhos que não consegui realizar.

Barroso foi, sem dúvida, difícil, autoriotário, querendo que imperasse a sua vontade. Assim, não é de admirar os trotes que levou no colégio, as brigas de que foi vítima ou o autor, uma delas culminando numa canivetada no braço de um colega e mais tarde no uso precoce da navalha, a sua arma de predileção. Dessa maneira, imperava, vivendo sempre em lutas e oposições. No fundo, porém, surgia invariavelmente o menino de bons sentimentos, ávido de verdade e de justiça, vendo o mundo ao seu modo: ele sempre no alto do aconcontecimentos, de acordo com as suas tendências as suas fantasias, os seus desejos. Era destemido, corajoso, atrevido, podendo ser levado à bazófia e à temeridade. Não tinha medo de andar pelo sertão, mesmo à noite, e teve ocasião de encontrar cangaceiros célebres no seu caminho, que se admiravam da sua coragem. Declara que acreditava haver nascido com o instinto de orientação, pois nunca se perdeu nos tabuleiros e caatingas da sua terra, nem nas intrincadas cidades da Europa e dos Estados Unidos. “É uma coisa que está em mim, que sinto e não sei explicar”. Não posso julgar quanto há nisso de verdade e de fantasia, mas também eu senti-me sempre dotado de bom senso de orientação, sobretudo comparado ao de inúmeras pessoas com quem tenho convivido. Relato o duplo fato porque, atrás dele, pode haver algo de mais profundo e instintivo, à maneira do que se verifica com diversos animais, em circunstâncias que a fisiologia não conseguiu ainda não conseguiu esclarecer. Será ocioso levantar problemas científicos dessa natureza?

ENTUSIASMOS E BRAVATAS

A vida de Barroso encontra-se cheia de bravatas, de entusiasmos, de lutas e rebeldias que definem esplendidamente o seu temperamento. “Ninguém foi mais carnavalesco do que eu e também na infância e na juventude não conheci limites ao divertir-me.” Refere-se à “vida alegre, despreocupada e gostosa” que levava, com conversas nas farmácias e outros estabelecimentos, onde encontrava o seu círculo de relações, ávido de anedotas, cheio de humor e camaradagem. Nas quermesses era proclamado leiloeiro para dizer graçolas. Quando esteve numa vila de pequenos recursos, redigiu um jornalzinho semanal, manuscrito e ilustrado por ele, que todos disputavam, o Beija-Flor, do qual diz haver um exemplar na coleção do Barão de Studart. Nas festas sociais, era freqüentemente o orador, sendo elogiado pelos jornais como acadêmico inteligente. Mas, ao lado disso, era sempre o rapaz que proviera da criança, com os mesmos defeitos e qualidades, inquieto, brincalhão, ao mesmo tempo altivo e bondoso, agressivo e conciliador. Tudo servia para divertilo e dar-lhe distração. De uma vez, associou-se com um cobrador para receber contas reputadas perdidas e comportaram-se de tal modo que “não havia devedor relapso que se agüentasse nas nossas mãos”. Não posso imaginar os truques aplicados, mas parece que o emprego da força não era dos menores. Um seu companheiro tinha fama de ser o maior carnavalesco da cidade e com ele executou brincadeiras endiabradas. Quando lhe morreu a esposa, querida e virtuosíssima, renunciou a tudo e se fez padre, que muito honrou o clero cearense. De uma vez, quando ambos voltavam de um baile carnavalesco pela madrugada, para encurtar caminho, saltaram o muro do cemitério,ainda vestidos de dominó. Um leiteiro que passava a cavalo deu um grito e fugiu a galope, dando chicotadas no animal. Na esquina, um padeiro largou o cesto de pães e saiu a correr. Esconderam-se atrás do muro para amedrontar as pessoas que passavam pela rua deserta, e que escapavam em carreira desabalada.

Numa festa de Bom Jesus, montando num belo cavalo, foi vítima da inveja da rapaziada da vila, que resolveu dar-lhe uma surra à noite, porque monopolizava a atenção das moças. Quatro a cinco o esperaram, armados de paus. Meteu-lhes o cavalo em cima que foi um estrago, uma beleza, diz ele! Em outra ocasião, ia ser desfeiteado pelos rapazes de Baturité, uma cidade onde fora passar alguns dias de férias, em casa de um parente. Ele gostava de se vestir bem e ganhava com suas aulas e desenhos o suficiente para fazê-lo. Usava então colete vermelho, da última moda, que tornou célebre o deputado Heredia de Sá. Além disso, possuía um outro, verde, que usava com um terno de casemira cinzento, pondo em ambos as abotoaduras de ouro do pai. Isso feriu os brios ou a inveja da rapaziada local, ainda aguçada porque publicara um conto infantil na imprensa do Rio. Enfrentou impávido os grupos de esquina que dele se riam, mas que não chegaram a agredi-lo fisicamente. No dia seguinte, surgiram, por toda parte, boletins para desmoralizá-lo e ridicularizá-lo perante a população, mas não se emocionou, acrescentando que muitas vezes fez coisas contra as suas inclinações somente para açular inimigos e invejosos.

CONSULADO DA CHINA

Quando acadêmico de Direito, funda em Fortaleza uma república de estudantes, “como nunca houve igual no mundo”. Em letras esgalhadas sobre uma placa oval, pintada de amarelo, encontrava-se o dragão imperial ao alto, tendo por baixo, como tradução: “Consulado Imperial da China” tremulando aos domingos, num mastro, o pavilhão do Celeste Império. Depois, apareceram diversos outros consulados, unidos ao da China: os do Japão, do Turquestão, da Hotentocia, do Afeganistão, de Madagáscar. “Todas essas repúblicas se ligavam entre si por uma espécie de federação tácita e serviam para esconder e dar escapula aos perseguidos da polícia, que costumava procurá-los e surrá-los à noite, nas ruas mal iluminadas da cidade.” O Consulado da China publicava editais pela imprensa, como Barroso ilustra num volume das suas Memórias, que tem por título Consulado da China, aparecido em 1941. Pelas informações apresentadas, pode-se verificar quanto eram culturais as reuniões, pois ele próprio falou aí de Pero Coelho e da sua expedição ao Ceará, tratou da etimologia da palavra Ceará, da volta da expedição e de questões semelhantes, enquanto outros companheiros ocuparam-se da classificação das Ciências segundo Augusto Comte, de curiosidades matemáticas, de Camões e a Língua Portuguesa, do Sistema Baudot e outros assuntos dessa categoria. Barroso presidia as sessões, na qualidade de mandarim – cônsul, vestido de cabaia amarela e barrete chim à cabeça.

Nos dias em que não estava ocupado com esses variados assuntos espirituais e educativos, o consulado era foco de divertidíssimas brincadeiras... Alternávamos assim as preocupações mentais com pilhérias e molecagens próprias da idade. Reunimos uma vez todos os cônsules e elegemos, por unanimidade, o velho Coelho, que gozava de péssima fama na cidade, Cônsul de Sodoma. Comunicamos-lhe a auspiciosa nomeação por ofício e o velho deu o cavaco. A coisa pegou e ficou conhecido até morrer como Cônsul de Sodoma. Mas o sentido cultural do fato sobrelevava a qualquer outro.

Barroso fora sempre muito dado a fabricar fantasmas, como se pode concluir das suas Memórias. Na época do Consulado da China, saía com outros companheiros, de pijama e sobraçando uma trouxa, para uma igreja em obras, onde subiam pelos andaimes. Vestia a sua fantasia carnavalesca de almirante, um outro envolvia-se num lençol, enquanto os restantes escondiam-se com as mãos cheias de pedaços de tijolos e cacos de telha. Na noite tranqüila e calada, o almirante surgia lá em cima, perto da torre, hirto como se comandasse uma batalha naval no passadiço do capitânea, tendo ao lado o vulto branco, que parecia o acompanhamento da morte. Se se avistava um transeunte nas proximidades prolongados assobios chamavam sua atenção para a igreja. Levantava os olhos e dava com aquela cena inesperada. Sobre ele choviam pedradas. Presenciamos com gosto as mais lindas carreiras deste mundo”.

Quando fazia luar não se acendia a iluminação pública. Às vezes, nuvens esparsas toldavam a face da lua e a cidade mergulhava na escuridão. Então saíamos nós e esgrimíamos com velhas espadas do império em plena rua. Atraída pelo tinido das lâminas de aço, a da de cavalaria vinha a galope. Escondíamos rapidamente em casa. Os soldados examinavam os arredores silenciosos. Tudo parecia adormecido. Nem uma luz nas casas. Iam embora meio desconfiados e, mal se afastavam um quarteirão, recomeçava o duelo. Voltavam na carreira, com as ferraduras dos cavalos chispando nas pedras do calçamento. Não encontravam ninguém e acabavam certos de que eram almas do outro mundo e aquele trecho tomou fama de mal-assombrado.

Outra cena, do seu tempo de acadêmico:

Se chovia durante a noite, tapávamos com uma esteira o bueiro do quintal por onde se escoavam as águas pluviais do quarteirão. A rua ficava toda inundada. Não se podia atravessá-la. De calções de banho transportávamos às costas, pela manhã, os transeuntes de um lado para o outro a duzentos réis. Eduardo Studart, meu colega na Câmara Federal e meu amigo, muitasvezes transpôs aquele passo nas minhas costas por dois tostões”. O fato é real, porque eu próprio ouvi a descrição de alguém que se servira de transporte às costas do meu ilustre antecessor nesta Academia.

Brincadeiras desse gênero repetiam-se sob variadas modalidades. Inúmeras vezes, eram executadas entre os próprios estudantes e outras para arreliar a polícia, servindo de agravo à política da oposição ou desagravo à do próprio partido.Marcado pela gente do governo ameaçado de relho pelo órgão oficial em letra de forma, esperava ser surrado qualquer noite pela polícia. Tomei providências para evitar isso. Refugiava-me nos consulados, dormia lugares diferentes, entrava por uma porta e desaparecia pelos fundos, não raro saltando muros. Isso forçou-me a andar à noite quase sempre disfarçado. Tornei-me mestre em percorrer as ruas como mendigo, embarcadiço ou capanga policial.

Assim, armou muitas ciladas à polícia e mesmo a alguns companheiros, por vezes com uma audácia inacreditável que dava mais força à aventura. Mais de uma vez, disfarçado, no escuro da noite, descascava a faca e exigia cigarros e fósforos. Uma vez, o passante levou a mão ao bolso do revólver e replicou: “Venha buscar se é homem!” Deu-se a conhecer e deram uma boa gargalhada, enquanto o amigo ajuntava: “Esperava tudo, menos isso!” “Meus disfarces permitiam-me andar pela cidade toda e divertir-me à noite, nas barbas da polícia.” Vestia-se como os capangas dos políticos influentes: descalço, calças de uniforme, camisa de braços arregaçados, chapéu de couro, faca nos cós e cacete na mão.

SIGNIFICAÇÃO DA INFÂNCIA

Devo perguntar de novo: é crível, é admissível, é simplesmente tolerável que um novo acadêmico ao entrar para esta nobre Associação venha falar do seu antecessor, relatando minuciosamente os seus primeiros tempos de criança, as brincadeiras que cometeu, as suas peraltices na escola, as suas vagabundagens de rua, que lhe valeram tantas censuras e reprovações? Depois, ainda os seus tempos de acadêmico, as suas singulares atitudes, quase uma continuação do que perpetrou na primeira infância? É esse, então, material adequado para se falar de um imortal que se foi e que deixou uma imensa obra literária e fulgurante trajetória no caminho da sua vida? É possível que muitos pensem que não e até censurem o novo acadêmico pelo seu procedimento, sem dúvida fora dos hábitos desta respeitável Assembléia, como pode ele próprio dar-se conta estudando as orações de entrada de muitos dos seus membros. No entanto, na qualidade de médico, dado a questões de Psicologia, acredita ser essa uma boa norma, que merece ser cultivada com reverência. Na verdade é aí que se encontram os segredos e mistérios de qualquer personalidade, mesmo daquelas que atingem as mais altas culminâncias dadas ao espírito humano alcançar. Não é, portanto, por displicência ou irrefletidamente que procuro falar das brincadeiras e peraltices de Gustavo Barroso, dos fantasmas e sombrações que ele soube inventar, dos medos por que passou ou daqueles que soube incutir, das suas disputas e amizades, das roupas que vestiu e dos disfarces que usou, das reprovações que sofreu ou dos elogios que recebeu, de tudo que constituiu a sua vida, desde a infância até atingir a juventude, a maturidade e a quase velhice. Aliás todas essas fases da existência não passam de um seguimento, tendo as suas razões de ser, desenvolvendo-se segundo determinados imperativos, quer se trate de um escritor, de um artista, de um filósofo, de um sábio ou de um homem qualquer. A situação é sempre equivalente, sendo daí que devemos partir para estudar e compreender qualquer personalidade. A obra de criação é um produto tardio, que pode ficar suspensa no ar, sem apoio nem explicação, caso não a analisemos baseando-nos na vida do autor, se possível desde o seu nascimento. Eu tive a fe1icidade de encontrar três volumes de memórias de Gustavo Barros, a fonte principal das minhas investigações, completadas pelos dados fornecidos gentilmente pela sua ilustre família. Além disso, pude certificar-me, por numerosos indícios, que as suas recordações são traçadas com simplicidade e honestidade, maneira de proceder que parece ter sido habitual em sua existência. Isso é de fundamental importância, porque o que se verifica hoje, em quase todos os documentos pessoais desse gênero, são grandes doses de bazófia e sofisticação, o autor, procurando dar de si próprio a melhor das impressões. É toda uma arquitetura de fachada, cuja significação pode escapar à perspicácia de qualquer psicólogo. No caso de Gustavo Barroso tudo parece simples e transparente, porque foi ele sempre o mesmo ser humano, através de toda a vida, desde a primeira infância à sua gloriosa imortalidade. É esse o traço mais característico da sua vida, traço que se reflete através de toda ela, e aparece no seu próprio trabalho intelectual, nas criações do seu espírito. Quando se acredita que tudo envolveu, que a idade fê-lo passar de uma fase errônea e desconexa da vida para uma mais harmoniosa e ajustada, percebe-se que ele, como ser humano, prossegue sendo o mesmo, apenas havendo variado a exteriorização das suas vivências. Ele se torna então rapaz estudioso sedento de leitura, tão sedento e estudioso que atravessa uma grave opilação atribuída a excessos de trabalho intelectual! Escreve, faz discursos, executa desenhos e ilustrações, torna-se jornalista, depois político, mais tarde acadêmico e imortal. Mas no fundo, aquela criança dos primeiros tempos, precoce, rebelde, autoritária, cheia de fantasia, de bondade, de imaginação vai reaparecendo e dominando todas as fases da sua existência.

Acompanhamo-lo através de uma infância por demais agitada e vamos vê-lo agora na sua juventude, que traz novas surpresas e inesperadas revelações. Os seus pendores literários começam a aparecer, passa a interessar-se por estudos mais sérios, também pela música e representações teatrais. Um dia volta emocionado de uma festa cultural e indaga secretamente de si próprio:algum dia terei coragem de pronunciar um discurso? Se, de há muito, era imaginoso e sabia arquitetar histórias que impingia aos companheiros, começava agora a ligar-se com elementos intelecutais mais cultos, com os quais o seu temperamento se casava melhor. Assim,foi pouco a pouco se retirando das garras da molecagem. Batidas pelo sol começaram a luzir outras facetas da minha alma. Aqueles amigos achavam que podia dar para gente e que já sabia muita coisa apreendida às tontas, por aqui e por ali. Carecia de certa metodização. Estimulavam-me. Abandonei a navalha.

Graças a um primo de Trieste, instruído e viajado, começa a tomar contato com jornais e revistas estrangeiros, dá-se conta do mundo pelas ilustrações, sendo guiado por ele, nas lições de francês e inglês e na tradução dos deveres escolares. Também iniciou-o em maravilhas culinárias de outros países, da Itália, da Áustria, da Alemanha. Nessa época, Barroso desenvolve-se,cresce de maneira espantosa, tem um apetite devorador, que não raro o leva a jantar duas a três vezes, segundo o horário das casas dos parentes. Em breve, começa a aprender a dançar, coisa que eu nunca consegui. É verdade que a princípio parece não ter tido muito pendor para a dança, pois chega a declarar que, se um colega não o ajudasse, não sabe como se teria saído da empreitada para fazer o convite e tirar a moça. “Tornava- me então social”, diz ele nas suas Memórias.

Por vezes ressurgem as suas tendências militares, não raro mais fortes que as literárias. Assim, em vez de freqüentar clubes literários que aparecem em Fortaleza e fazer sonetos como a maioria dos seus colegas, prefere exercícios náuticos e a sala de esgrima, sendo mais dado à baioneta e ao sabre do que ao florete.

REGENERAÇÃO

O que é, porém, admirável é como tudo segue uma marcha espontânea, muito natural. Barroso desenvolve-se, ganha no físico, cresce na idade, alcança sabedoria, mas no fundo, no recesso da sua personalidade, continua a ser o mesmo ser humano, manobrado por aquela criança que está sempre dentro de nós, que nos manda e comanda, caso não a assassinemos, sufocando-a pela educação, pelas convenções sociais, pelos imperativos da vida. Em Barroso, a criança continuou sempre viva, sôfrega, irreprimível, dominadora, dando direção à sua existência, tanto nos tempos de mortal, quando nos de imortal. Se a ascensão foi rápida e gloriosa, guardou sempre uma certa diretriz, que caracterizou a vida do homem e a obra do escritor. Ele estuda, passa nos exames, entra para as rodas literárias, escreve nos jornais, faz ilustrações, dá aulas, trabalha para poder viver, faz discursos, veste-se com elegância, é dado aos esportes, adora a equitação. O físico acompanha o desenvolvimento intelectual: torna-se um belo homem dotado de um espírito. Mas, atrás de tudo isso encontra-se a criança que o espreita e conduz, que lhe dirige a ação e a personalidade. Já lhe reconhecem méritos artísticos, trava amizade com um velho austríaco que o entusiasma para entrar para a Escola de Belas Artes. “cheguei a usar gravata La Vallière, a fumar somente cachimbo e ter na lapela uma palhetinha de metal dourado”. Mas o entusiasmo é passageiro, de curta duração.

Certa manhã, depois de muito anunciado pelo telégrafo, aporta a Fortaleza um célebre andarilho, tipo exótico, vestido de verde, de botas, bolsa a tiracolo, uma flâmula com a bandeira nacional na mão. Um bando de estu- dantes acompanha-o pela cidade, do qual fazia parte Barroso, que se entusiasma. “Invejei-lhe a indumentária esquisita, o todo decidido, a liberdade de andar mundo afora, contemplando novas paisagem caras. Havia dezessete anos que eu via as mesmas, todos dias. Estava cansado, ansiava por uma mudança”. Já antes, fizera parte de um circo de rapazes, trabalhando nas argolas e sendo palhaço. Todavia, marcha sempre para a frente cada vez mais rapidamente. Dá aulas particulares, ganha dinheiro, vive à sua maneira, morando com o pai e o padrinho num sítio próximo da cidade, onde ocupa um quarto num dos extremos da grande casa, o pai um outro no extremo oposto e o padrinho um no centro, “ornamentado de nus artísticos”.

Aí, ele estuda à noite à luz de uma candeia de querosene ou de uma vela de cera de carnaúba. Passa a fazer desenhos para capas de livro, ilustrações, aquarelas, diplomas, cenários.

Aos 21 anos de idade, faz a sua primeira conferência pública numa sociedade literária, sobre Pero Coelho no tricentenário da primeira exploração do Ceará. Foi o seu primeiro ponto de contato com a Literatura histórica, que iria continuar em seus estudos futuros, através de toda a existência. Naquela idade, com assombro geral, prestou todos os exames com notas elevadas,alcançando principalmente “distinções”.

Um professor de história, o Dr. Coelho de Arruda, deve ter tido grande influência na sua formação, pois Barroso fala dele com o maior carinho, chamando-o de alma doce e contemplativa, uma das melhores pessoas que havia conhecido e que lhe queria muito bem. Era redator-chefe da República e um dia tomou-lhe das mãos a cópia que fizera de um quadro de Henri de Neville – A Escalada, expondo-o na sala da redação com uma notícia encomiástica na primeira página do jornal. Elogiava-o na aula de Literatura e diante das suas composições vaticinou-lhe que seria escritor. “Longe estava de pensar que um dia houvesse na minha terra Grêmios Gustavo Barroso.” Mas a vida lhe prepara ainda muitas lutas e decepções, que prosseguem mesmo quando chega à glória e à imortalidade.

PRIMEIROS ESCRITOS

O dia 11 de outubro de 1906 é uma grande data na sua vida. Num número especial da República aparece o seu primeiro escrito, um artigo sobre o Descobrimento da América, assinado com o pseudônimo – Nautilus! A maioria dos colegas não acreditou que fosse dele, mas quando veio a confirmação sentiu que o seu encanto. “Nautilus era o botão de que desabrocharia mais tarde João do Norte para frutificar um dia em Gustavo Barroso.” Percebem que Nautilus vem ainda do menino que quer viver e sonha com o mar? A primeira vez que aparece na imprensa carioca é com uma aquarela de um peixe estranho pescado no Ceará e do Leitura para todos deu notícia acompanhada dessa ilustração.

Nessa época devora livros de todas as espécies, tanto em português quanto em francês e mesmo inglês. Romances, obras históricas, verbos, viagens, contos, ensaios. Encanta-se com Herculano, delicia-se com Eça de Queirós. Recita Gonçalves Dias, Castro Alves, Bilac e sabe de cor a Velhice do Padre Eterno, Morte de D. João, D. Jaime de Tomás Ribeiro. Está num nível tão elevado que ao sair do Liceu, com 18 anos, diz-lhe um dos mestres: “Um moço como você não se deve estiolar na província. Procure meio mais adiantado. Vá para o Rio de Janeiro, lute e vença!”

DOENÇA

Nessa altura cai doente, de uma moléstia que os médicos não souberam diagnosticar. “Naquele triste fim de 1906, parecia um cadáver, sem pinta de sangue. O menor esforço exauria-me. Sentia em torno de mim os passos silenciosos da morte ou da tuberculose. Cobria-me de suores gelados. Quando fazia pequeno passeio, devagarinho, pelas cercanias da casa, entrava numa farmácia e punha-me a ler o Chernoviz”. Certo dia, numa reunião teve um desmaio e depois permaneceu “esgotado, imóvel e como alheado da vida numa cadeira de balanço na sala de visitas”. Davam-lhe leite, ovos quentes, gemadas, mas a inapetência dominava, precisando tomar alimentos quase à força. “Não dava uma palavra. Resignara-me inteiramente e esperava a morte.” Atribuiu-se aquele mal oculto aos estudos forçados e ao seu espantoso crescimento: dez centímetros de um ano para outro!

Os médicos enchiam-me de fortificantes que pouco ou nada adiantavam. Tomei dúzias de vidros de hemoglobina Deschiens e de óleo de fígado de bacalhau, sem nenhum resultado. Injetaram-me caixas e mais caixas de soro de Fraise, composto de glicero-fosfato de sódio e cacodilato de guaiacol. Ingeri todos os remédios caseiros aconselhados... Passei seguidamente pela mão dos melhores médicos clínicos do Ceará, durante meses e meses.

Tudo sem proveito algum. Mas curou-se por acaso, depois de um ano de luta! Numa livraria na conversa, lembrou-se de que podia ser um caso de anquilostomíase, cuja descrição havia lido num jornal de Medicina. Barroso falou com um médico sobre a questão e este achou que se podia tratar realmente de opilação. “Aplicou-me a título de experiência uma dose de timol pelo método bárbaro do tempo. A melhora foi tão grande que continuou o tratamento, ficando eu radicalmente curado.”

Ele e eu somos quase da mesma idade e também conheci meninos naquela época atacados de males ocultos, que hoje os médicos sabem diagnosticar, como o beribéri, a opilação, o impaludismo e outras moléstias, então obscuras e enigmáticas, mas atualmente de fácil reconhecimento e garantida terapêutica. Gustavo Barroso sofreu assim não só os efeitos da doença orgânica, sim igualmente as suas conseqüências sobre o desenvolvimento da sua existência. “A insidiosa e longa enfermidade matou definitivamente minhas aspirações à carreira militar. A Escola de Guerra reabrira-se e fora com desespero n’alma que a ela renunciei para sempre.” Não! Ele não renunciou para sempre à carreira militar! A existência continuou impregnada das aspirações de criança, que ele soube realizar sob modalidades na trajetória da vida. A conquista de uma Cadeira nesta respeitável Academia faz parte daqueles seus planos infantis, nos quais o brilho do uniforme deve representado papel significativo. Se Barroso foi vítima em criança da opilação, mais ainda o foi da criação e educação pelas suas tias e a velha avó. É daí que partem muitas particularidades da sua personalidade, que irão nortear toda a sua existência, desde a mais tenra idade. Ele deve ter recebido excessos de carinho, situação hoje muito conhecida pelos estudos de Psicologia, que mostram quanto o filho único, o caçula, o criado pelas tias e as avós são mimados, tornando-se difíceis, exigentes, egoístas, pretensiosos. Eles querem o mundo a seus pés, todos sempre prontos para servi-los, acreditam-se precilegiados, cheios de direitos e regalias. Querem mandar, dominar, que pode transformar-se em tragédia da vida, pois, só desejando afagos e obediência, entram em oposição ao que lhes não convêm.

PREDIÇÕES

Vimos que o ambiente em torno de Barroso foi de tal ordem, que aprendeu os primeiros rudimentos de ensino precocemente, sem que lhe procurassem ensinar. Felizmente, viveu em meio essencialmente feminino, cercado de bondade e justiça, sentimentos que iriam predominar na sua vida, mesmo quando atravessa perigosas crises de luta e incompreensão. Certamente, por essas mesmas razões, tem terrível medo da morte e de sombrações, chegando ao mesmo tempo a acreditar-se imortal! Ele se sente tão privilegiado que declara “que observou que quem o persegue gratuitamente deitase em breve a perder, sem que em pessoa ele contribua para isso.. Se publicasse a lista dessas observações no decurso dos anos seria impressionante... Chego muitas vezes a pensar que o meu santo é muito forte, como diz o povo.” E relata que uma leitora de buena dicha lendo-lhe a mão exclamou:“Gare à qui vous touchera!” Um outro quiromante augura-lhe coisas maravilhosas, na época em que esteve gravemente atacado de opilação. “Tomou carinhosamente entre suas mãos rosadas minha dextra flácida e lívida, pôs os óculos e analisou miudamente as linhas que se cruzavam na palma descolorida. Sentenciou, depois, num tom peremptório que ainda ecoa, apesar do tempo decorrido, em meus ouvidos: – ‘Você vai ficar bom quando menos esperar e de repente. Gozará, depois, duma saúde de ferro por muitos anos. Tenha coragem!’” Voltando-se para meu pai, minha avó e minhas tias, declarou, como se fosse absoluto senhor dos segredos do futuro: “Se eu tivesse um filho, não desejaria para ele mais do que a posição a que este menino vai atingir numa grande cidade aos vinte e tantos anos e aos trinta e tantos!... Na sua vida haverá baixos e altos, porém mais altos do que baixos. Não desamine nas piores ocasiões!” Nunca durante o meio século que tenho vivido palavras humanas me fizeram maior bem... A profecia realizou-se totalmente. Aos vinte e tantos era deputado federal pela sua terra e aos 34 alcançava uma poltrona nesta Academia! “Na verdade fiz algum esforço ao velho francês, que talvez só me tivesse dito aquilo para me animar. Segui-lhe o conselho augural e nunca desanimei.” O quiromante era um velho amigo do seu pai, que chegara à cidade e fora a cidade e fora visitá-lo. Quem leu o meu livro –“Mistérios e Realidades deste e do outro Mundo”, poderá dar-se conta facilmente do mecanismo dessa profecia, que se realizou tão esplendidamente. Se tudo tivesse ocorrido de maneira diferente ou oposta, como é muitíssimo mais freqüente nas predições, ninguém mais se lembraria do caso. Além disso, há sempre ainda a reconstituição pela memória, que completa e reforça os dados da profecia, não raro traçada em outros termos. É uma verificação fácil de ser feita, caso os dados sejam tomados na ocasião por escrito. Do contrário, entra a imaginação em ação e rememora à sua maneira o que se vai tornar surpreendente, embora o material de origem possa ter sido muito diferente. Tratamos da questão longamente no nosso livro e aqui queremos apenas lembrar que a quiromancia, ao contrário do que relata Barroso, é executada na mão esquerda, não na direita! Ao lado disso, é preciso considerar que o indivíduo, sugestionado pela profecia, procura realizar o que nela se encontra mais de acordo com os seus desejos e as suas tendências podendo levar assim a resultados espantosos. É o que mostrei por meio de diversos exemplos extremamente ilustrativos.

No caso de Gustavo Barroso, os acontecimentos já se preparavam para conduzir a tais resultados, sendo possível que a própria moléstia tenha agido como um fator moderador e de equilíbrio da sua conduta, por demais impulsiva em conseqüência do seu temperamento e da sua educação. Uma enfermidade, um defeito físico, uma inferioridade orgânica podem influenciar qualquer existência e dar-lhe direções precisas e definidas. É o que demonstram à sociedade estudos de Psicologia Individual, que mostram quanto o complexo de superioridade pode compensar defeitos e inferioridades. Gustavo Barroso teve a sua personalidade exaltada pela educação recebida das tias e da avó, o que explica muito das suas desarmonias de vida, que tantas vezes levaram-no a lutas e oposições, mesmo até em relação ao próprio pai, por mecanismos psicológicos de fácil compreensão. Ele informa que o caso da sua irmã foi parecidíssimo com o seu. Ela viera do Maranhão, onde fora criada pelos parentes alemães, mas fez tais diabruras que o pai viu-se obrigado a interná-la num colégio de irmãs. Receava-se a sua expulsão, mas foi obtida uma recomendação especial do bispo, que era seu padrinho, e a menina encarreirou-se e tornou-se a melhor aluna do estabelecimento.

O pai, que se havia oposto às tendências militares do filho, fê-lo também em relação às propensões religiosas na filha. Como livre-pensador, levantou- se contra a sua vocação, sendo ela obrigada a esperar pela maioridade, afastando pretendentes a casamento e ajuntando, à custa do trabalho de professora, o dinheiro necessário à formação do dote de noiva de Cristo e à viagem para o estrangeiro. Professou então como Soror Beatriz, Oblata de São Bento, numa abadia da Escócia, indo depois para um convento na Alemanha. Era uma exímia desenhista e pintora, que na Holanda fez toda a decoração da capela do mosteiro, onde faleceu como monja beneditina aos trinta anos de idade.

PAI LIVRE-PENSADOR
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Gustavo Barroso acrescenta que o pai nunca se conformou com essa decisão da filha, que traduz sem dúvida uma reação de oposição, idêntica a muitas que teve o irmão na trajetória da vida. O pai era livre-pensador, pilhérico, levando a vida que melhor lhe convinha. Gostava de jogar e entrava tarde, razão pela qual Barroso pouco o via. Era conhecido pelas suas piadas e anedotas, que corriam a cidade. De uma vez, quando estava ganhando no jogo, caiu um temporal tremendo, com raios e coriscos, e um dos parceiros propôs que prosseguissem pela noite dentro, pois seria difícil voltar para casa. Ele protestou, mas teve de continuar. Aí, a sorte mudou e começou a perder. Levantou-se, escancarou uma janela e, enquanto os relâmpagos fuzilavam,exclamou: – “Deus, ó Deus, se em verdade existes, manda já um raio nesta casa de viciados e castiga de uma vez esta canalha!” Houve protestos gerais, mas prosseguiu: – “Deus, se és mesmo Deus, arrebenta de raios este antro de perdição! Não creio, porém, que tenhas poder para tanto.” E continuou com blasfêmias terríveis, que fizeram com que todos os companheiros fugissem arrostando o temporal. “São uns bestas”, concluiu. Era irônico e vivia apontando erros da divindade ao fabricar o homem. “Barriga da perna para trás e osso na frente para dar canelada; dez dedos inúteis nos pés, fábricas de calos, e outros órgãos mais preciosos no singular!” Mas era amigo do Bispo do Ceará, que um dia disse a Gustavo:

Seja feliz, meu filho! Seu pai nunca foi religioso e, como é paradoxal,se diz materialista. Isso é só da boca para fora, porque é homem de bem a toda prova. Sua incredulidade nunca nos impediu de sermos amigos. Ignoro se você é religioso, mas sei que é bem procedido. Continue. É meio caminho andado por Deus. Desejo-lhe o mais que lhe posso desejar: que seja homem de bem como seu pai. O amor de Nosso Senhor virá com a experiência da vida, com o sofrimento do mundo.

Belas palavras, que somente uma boa alma poderia pronunciar. Faz- me lembrar D. Helvécio, arcebispo de Mariana, que acaba de falecer e me distinguiu com a sua amizade, também me havendo dito, por mais de uma vez, palavras ungidas de piedade cristã e de muita bondade humana ao referir-se ao meu agnosticismo irrefragável. Lembro essa particularidade com tanta maior emoção, quanto fui um sincero admirador daquele santo varão, o continuador no arcebispado de Mariana de S. Silvério Gomes Pimenta, o meu pré-antecessor nesta Cadeira da Academia.

Em relação à religião, Gustavo Barroso refere que não era preocupação maior na casa da sua família. Seu pai, “embora admire a Igreja e seja amigo pessoal de muitos padres, é livre-pensador e acha que quem afirma a existência de Deus cai no mesmo erro de quem a nega”. Uma das tias que o criou pensava da mesma forma e citava repetidamente a obra de Draper – Os Conflitos da Ciência com a Religião. Uma outra ia às vezes à Igreja e uma terceira ouvia missa quando aí passava aos domingos. “Minha avó é a única que conserva uma fé robusta e simples, a fé dos antigos tempos. Ora de manhã e à noite, diz o seu terço ao toque das Trindades”. Barroso acrescenta não ter formação religiosa, tendo sido batizado como todo mundo num País de catolicismo superficial. Não freqüenta a igreja e vai à missa às vezes, para acompanhar uma tia ou por simples curiosidade. Não fez a primeira comunhão senão para o casamento, havendo sido educado num colégio leigo, cujos alunos viviam em oposição aos de um outro, religioso, entrando, não raro, em brigas e disputas, por vezes com conseqüências sangrentas.

IRMÃ RELIGIOSA

Não há dúvida de que, à maneira do pai, foi profundamente agnóstico, como é fácil verificar através da sua obra e da sua vida, nos seus primeiros decênios. Ainda ao entrar para a Academia, aos 34 anos de idade, para ocupar o lugar do arcebispo D. Silvério, fala da sua falta de crença, das suas dúvidas religiosas. Pela sua correspondência com a irmã, já então religiosa de um convento na Europa, pode-se concluir igualmente sobre o seu grau de incredulidade e as suas tendências anti-religiosas. No seu livro Idéias e Palavras, publicado em 1917, refere-se às cartas de uma irmã monja dirigindo-se ao irmão ateu e secular, numa das quais ela diz:

Quanto ao estado deplorável em que se encontra tua alma, que queres que te diga? Dizes que tens forte espírito e não sentes necessidade de crer.Não acredito. Enganas-te a ti mesmo. Todo homem precisa de crenças. Serias tu a única exceção? És moço e tens a cabeça cheia de ilusões próprias de tua idade. Fias-te em tuas próprias forças, em tua habilidade, em teu talento e em que mais sei eu? Quando quero saber quem é meu irmão, leio em minha própria alma. Temos os mesmos defeitos e as mesmas qualidades. Só nos separa a diferença de pensamentos em matéria religiosa... O homem sem fé é um infeliz. A fé é um dom que se precisa pedir a Deus. E Deus só a dá aos humildes de coração. És humilde, meu irmão? Eu não o sou apesar de tanto desejar ser. A humildade de coração é a virtude sobre que faço meus exames de consciência.Quando eu me tiver tornado completa e perfeitamente humilde,minhas oraçoes terão tanta força que meu irmão se converterá. Pobre espírito tresloucado e vaidoso, que te posso dizer ainda? Compreendo tudo neste mundo: a fraqueza humana, o orgulho, a mentira; mas não posso compreender que se não sinta a necessidade de crer em Deus! Tive e tenho ainda, àsvezes, tentações contra a fé. Expulso-as: Credo qui dixit Dei Filius nihil hocveritatis verbo verius. Tenho tanto medo de perder a fé! Se eu não acreditasse em um Deus pelo qual devo viver e morrer, matar-me-ia. Eu devo ser um espírito fraco... Se eu fosse forte, quereria, meu Deus, ser fraca, para que tu fosses forte. Poderia ainda falar-te muito sobre este assunto. Temo fatigar-te e mais ainda clamar no deserto. Pobre criança! Não és culpado! Culpados foram os que se não deram ao trabalho de te encaminhar para Deus. E esses mesmos só Deus sabe se são verdadeiramente culpados... Quisera falar-te de Jesus. Tu não o amas, porém. Quid fecit tibi? Ele, no entanto, te amou e morreu por ti. Et nom amas eum. Dize-me qual destas duas coisas é mais extraordinária: que o perfeito existe ou exista o imperfeito? É uma pergunta deAristóteles. Saberás respondê-la?

Que lhe responde o irmão? Limita-se a comentar que se trata de “uma ladainha de conselhos, demonstrando o empolgamento do espírito pela fé, tão grande que se esforça por amesquinhar-se para que ela se torne maior”. E acrescenta: “Religião! tens sido e serás muitas vezes a mãe da Arte. Por ti se vai também até perto do ideal, que ninguém alcança, porque não pode e não deve existir a perfeição!” Argumenta afirmando que a irmã continua levada por estranhas divagações de artista, metida no burel de freira e que o ama pela cor e pelos mistérios do seu cair flácido e elegante de túnica antiga. A sua maior preocupação é a Arte, tanto que fala mais dela que da religião. “Presentemente”, prossegue ela, estudo órgão.É um instrumento que me dá grande alegria, às vezes uma estranha distração... Já comecei a acompanhar a psalmodia em coro. Oh! a pintura, a música, a Poesia, como essas três palavras dizem segredos à minha alma de artista! E por que não és um beneditino? Por quê? Então, todas as tuas aspirações de Arte se realizariam. Como eu gostaria, meu irmão, de ver o teu perfil emoldurado pelo capuz cor de castanha, lá dentro o rosto muitopálido e tua esbelteza envolta nas pregas misteriosas do hábito monástico!
Não rias nem blasfemes que passo adiante!

O que há de mais extraordinário na questão religiosa da família de Gustavo Barroso é de a sua irmã se ter tornado freira, enquanto ele, mais tarde, em plena maturidade, iria revelar-se crente, cheio de ardor e convicção. Isso é tanto mais surpreendente quanto o pai permaneceu irredutível no seu ateísmo até a mais avançada velhice, até a sua morte aos 102 anos de idade! E vivia em companhia do filho e da nora, senhora de altas virtudes e profundamente católica, que deve ter contribuído para a conversão do marido. O velho pai, até o extremo, conservou-se lúcido, inteligente, levando vida normal, saindo quase diariamente. E lembrava-se de tudo, sendo ainda capaz de recitar Os Lusíadas, prosseguindo de cor qualquer das suas estrofes. Mas conservou-se invulnerável em suas convicções agnósticas, apesar de viver num ambiente essencialmente religioso. Não há dúvida que estes três seres humanos, o pai, a filha e o filho, formaram um conjunto psicológico de mútua oposição. É mais do que natural que a educação deva ter representado aí papel preponderante, no sentido de confundir e desorientar valores, como ocorre tão freqüentemente na aprendizagem escolar. O velho pai foi provavelmente o único que ficou a salvo dessas contradições culturais, tendo permanecido fiel aos seus sentimentos mais íntimos, sentimentos ainda exaltados pela oposição que encontrou por parte dos filhos, que, em vez de removê-lo das suas convicções, deve ter reforçado os seus pontos de vista. Estes eram, aliás, tão arraigados, que se rebelou contra a filha, ficando tão contrário à sua vida monástica, que nem sequer abria as cartas que lhe escrevia do convento.

Quero lembrar ser hábito muito generalizado admitir-se que os agnósticos, privados de Deus, devem ter sentimentos inferiores, sendo dados a misérias e indignidades, uma vez que lhes falta a trava moral da religião. É um erro gravíssimo, pois os fatos têm oposta significação, como bem demonstra o progenitor de Gustavo Barroso, que aparece sempre como um homem digno e independente, valendo a sua própria atitude anti-religiosa como prova da integridade do seu caráter.

CONVERSÃO

Mais tarde, no entanto, sobretudo na época em que se tornou integralista, Gustavo Barroso passou da indiferença e do cepticismo a uma crença profunda.

A grande experiência do tempo, feita de observação, de estudo e de dor, sobretudo de dor, amadureceu um espírito inquieto depois dos 35 anos...Em procura de uma fé, minha alma se debatera em labirintos filosóficos até que um olhar à bússola distinguisse o rumo certo marcado pela agulha norteadora. Comecei a acreditar, comecei a crer... Voltei a Deus. Voltei à Terra. Voltei ao Sangue. Acredito. Cri. Orei. Batalhei.

Em Luz e Pó, publicado em 1932, exclama: “Malditos os que negam! Benditos os que afirmam! Só afirma quem tem fé. Só nega quem não a possui. Afirmar é criar alguma coisa. Negar é destruir.” Em outro lugar do mesmo livro diz: “Os espíritos superiores já deveriam ter bem compreendido aquela doutrina que, em séculos chamados de obscurantismo, a própria Igreja pregou: “Toda Ciência vem de Deus, que nos deu tudo; toda Ciência é portanto teológica e divina. Essa seria a maneira mais lógica de se ter compreendido a questão, unindo Deus e a Ciência, não afastando esta dele e tornando-a inimiga do seu criador. ”Na sua Conferência da Academia no Bicentenário de Goethe, em agosto de 1949, manda que nos voltemos para Cristo, a fim de que a sua luz brilhe nos nossos pobres olhos e não consinta que o sopro da apreensão os cegue definitivamente para a verdade e a vida. “Luz que vem da cruz, daquela cruz que trazemos dentro de nós.”

Aliás, a sua evolução religiosa parece ter-se processado lentamente, como é fácil concluir da trajetória da sua vida. Quando veio ocupar a Cadeira deixada pelo arcebispo D. Silvério, em vez de exaltar as suas tendências religiosas, como era o lugar e o momento se as possuísse, declara: “Não sou daqueles que crêem; sou dos que duvidam, mas o Cristianismo, em sua feição católica, me arranca sempre preitos de admiração. ”Tudo isso é natural e torna compreensível a sua conversão, principalmente se considerarmos a vida que viveu desde criança, entre a piedosa existência das suas parentas e o impacto que deve ter sofrido depois pelas palavras da irmã, que morreu moça, afastada do mundo, num convento da Europa.

Além disso, o temperamento de Barroso era de um místico, como bem mostra o terror que tem da morte, do fúnebre, do defunto. Nesse particular, acredito ser-lhe um digno sucessor nesta ilustre Casa, pois também tive sempre terrível horror da morte e do fúnebre, como relato em passagens de meus livros. A sensação é tão profunda e desagradável que ainda hoje, para guardar cartas de pessoas queridas, tarjadas de luto, corto-lhes as mangas negras, para mim por demais desagradáveis. Barroso conta que a morte lhe faz medo e que “o primeiro morto que viu, cor de cera, mãos postas, deitado num caixão dourado e todo coberto de flores, deixou-lhe uma impressão apavorante”. Depois, lembra-se do enterro, que lhe causou impressão tão profunda que durante muitos anos a imagem da morte o amedrontou. “Não tinha coragem de olhar para um enterro, para um defunto no caixão, para o pano preto da cruz prateada ou dourada, que era costume pendurar à porta dos que morriam”. Numa festa ouvira, ao som da Dalila, O Noivado do Sepulcro de Soares dos Passos e passara a noite sem dormir, vendo o fantasma, sedento de amor terreno, caminhando por entre os túmulos, arrastando a sua mortalha. Eu próprio passei dezenas de anos sem olhar qualquer defunto, exceto quando se tratava de um paciente que me morria às mãos. Nos enterros afastava-me do caixão, evitando sempre ver a fisionomia do morto. Não foi senão em tempos muito recentes dentro desta Academia, que tive coragem de aproximarme do ataúde para ver o morto, o meu grande e inolvidável amigo Miguel Osório. Achei-o sempre em vida de traços tão finos e tão nobres, a fisionomia emoldurada pela barba que começava a embranquecer, que tive coragem de vê-lo morto, numa profunda cor de cera. Um quadro inesquecível, quase de Arte, à altura da sua imortalidade. Mas, até hoje, não me libertei da outra impressão, dolorosa, quase trágica e humilhante, que me deixou a sua morte. Encontrava-me eu presente no momento em que foi posto o seu corpo no ataúde. Vestido no belo uniforme desta Academia. Mas deve ter havido qualquer erro na medida do caixão, se é que o corpo não se distendeu por demais pela rigidez cadavérica, não cabendo no ataúde. Foi necessário retirar-lhe os sapatos e assim, apenas de meias, os pés cobertos de flores, foi enterrado no seu solene uniforme acadêmico, ao lado o chapéu de plumas brancas, complemento da nobre indumentária. Até hoje incomoda-me aquela ausência de sapatos, sabê-lo enterrado apenas de meias, partindo assim desta Academia para o Além, depois do discurso do seu presidente, e, no cemitério, dos de representantes nunca mais me me fugiu do espírito, do espírito de um agnóstico, que passou anos dissecando cadáveres, vendo seres humanos morrer nos estertores da agonia! Não vem tudo isso dos primeiros tempos da existência, que deixam gravados engramas definitivos e que mais poderão ser afastados da consciência?

MEDO DA MORTE

Gustavo Barroso descreve o medo que tinha do maracatu e da escuridão do corredor da velha casa que habitava. Ficava brincando com os meninos dos vizinhos até sete horas, quando era chamado para estudar, já noite fechada, o que constituía para ele uma tortura diária. Ao pôr o pé no limiar da entrada, fechava os olhos para não ver a escuridão do imenso corredor, em cujo fundo deviam estar à espreita duendes e mistérios. “Fecho os olhos, tremendo. Começo a rezar baixinho o credo e sigo a toda pressa com a mão a tocar a parede, até a porta da escada. Subo-a em três arrancos e só respiro ao ver-me na sala de visitas iluminada.” Eu também sofro desses medos, que tenho descrito em diversos dos meus trabalhos, não raro para surpresa e incompreensão de alguns leitores. É assim a natureza humana e, nesse sentido, julgo-me um digno sucessor de Gustavo Barroso, embora menos em relação à imortalidade. Ele próprio informa que o seu medo da morte “não era propriamente medo, era mais um horror, porque tinha uma secreta esperança até certa idade de que não morreria. Isso de morte era coisa que acontecia aos outros. À mim, não! Cá por dentro qualquer voz me sussurrava que eu escaparia. Por que e como, é que não sabia explicar”. Talvez, por isso, tenha entrado precocemente para a Academia, enquanto não cheguei eu à imortalidade senão já muito tarde, quando bastante aproximado do final irrevogável.

O que devo ainda aqui acrescentar, para meu consolo e ufania, é que há muito de comum no transcurso das nossas duas existências, na dele e na minha, quase uma continuação, como posso dar-me conta ao vir assentar-me na Cadeira 19. Somos semelhantes pelo instinto, pela alma, pelo coração, pelo intelecto, apenas trabalhados e diversificados pelas circunstâncias ambientes. Ele criado pelas tias e a avó, enquanto eu entre oito irmãos, pelo emprego da vara de marmelo. Ele sabendo ler aos três anos de idade e eu, aos doze, não sabendo fazer conta de dividir. Ele um moleque cheio de vontades e liberdades, eu, outro moleque, talvez não menor, sob a influência da obediência e da disciplina. Um tornou-se extrovertido, o outro introvertido. O fundo, o temperamento, as tendências parecem muito semelhantes, sobretudo pela ânsia de liberdade, de justiça , de trabalho. Ele foi sincero comigo próprio e eu não o tenho sido menos em relação ao meu caso. É esse o nosso ponto em comum, que julgo fundamental para caracterizar qualquer personalidade. No caso de Gustavo Barroso, essas particularidades são tão poderosas que atravessam toda a sua obra e a sua vida como um fio, fio que aproxima e liga todas as partes, desde a infância à juventude e desta à idade madura e à velhice. E também a sua obra pode ser compreendida e explicada pelo jogo desses mesmos imperativos.

O HOMEM

Eu prório vi Gustavo Barroso uma única vez na vida, num encontro fortuito no escritório de uma editora, onde nos fomos apresentados há quase trinta anos. Tive uma impressão desagradável do homem, já à vontade dentro do seu sucesso e da sua glória da Academia e intelectual de grande renome. Ares importantes, decisivos, dominadores, enquanto eu ainda unicamente médico, introvertido e humilde na minha profissão. No entanto, acredito estar longe de ter sido verdadeira essa impressão, pois hoje, estudando a sua vida e a sua obra, julgo sermos dotados de temperamentos opostos, tornandose fácil, mesmo nos seus rompantes e nas suas intolerâncias, descobrir as desarmonias e contradições que marcaram fundamente a sua vida. Olegário Mariano, prefaciando o seu livro de poesias, diz que Barroso,homem de pensamento e de cultura, parece as mais das vezes exilado em si mesmo, dentro da torre de marfim de uma vaidade sem limites. Que erro lamentável o daqueles que assim o julgam! Não há, na face da terra criatura mais simples nem mais sensível. Eu o afirmo com a autoridade de quem viveu sempre ao seu lado nos bons e maus momentos... Necessário se torna, eu bem compreendo, conhecê-lo de perto para poder julgá-lo através da criatura que ele é, não pelo retrato físico do homem público tão incompreendido pelos seus semelhantes. Gustavo Barroso só surpreende aqueles que não o conhecem na intimidade!

Adelmar Tavares comparou-o às juremas do Ceará, “que podem ter espinhos, mas também quanta flor!” E Herman Lima, que o conheceu na intimidade, afirma que era um homem cordial, cuja aproximação muitas vezes não parece fácil, embora fosse de grande ternura para os amigos. Peregrino Júnior lembra que, na presidência desta Academia, Barroso foi leal, tolerante,delicado, compreensivo, bem educado, um autêntico democrata, apesar de suas fumaças totalitárias. Acrescenta que não se gabava do amor e da admiração das mulheres nem se amofinava com a inveja dos homens.

O seu aperto de mão era quase violento:

Não gosto dos homens que dão a mão molemente ou fugidiamente, que não sabem reagir ao aperto da minha. Tenho horror a essas mãos de sapo. Se as convenções sociais não me obrigassem a compactuar com certas coisas, jamais falaria com indivíduos de mãos flácidas. Suas almas devem ser como essas palmas frias, viscosas e sem vida, incapazes duma ação nobre e desinteressada. Quando, por acaso, aperto uma dessas mãos, experimento a sensação de que palpei um batráquio e lembra-se do aperto de mão sadia e brusco de um velho sertanejo,que fora seu grande mestre de coisas do sertão e de folclore. Não há dúvida de que, na descrição de Barroso, há boa parte de verdade, pois o aperto de mão pode traduzir muito da personalidade e da psicologia do indivíduo. No seu próprio caso é isso bastante característico, como se pode concluir de inúmeras particularidades da sua vida. Além disso, falava e exprimia-se bem, a sua dicção era pura e cristalina expondo sempre o assunto com clareza, amplamente, diretamente, como tenho ouvido de muitos dos seus ouvintes.

 Gustavo Barroso era um belo tipo de homem, que primava pelo porte e a elegância. Herman Lima descreve-o como “alto, espadaúdo, o peito aberto numa altaneria de gladiador... de uma beleza varonil, a cabeça de traços enérgicos contrastando estranhamente com o olhar velado, de uma singular melancolia sonhadora. Austregésilo de Athayde, que também o conheceu desde menino, dele se despedindo como Presidente da Academia, no dia do funeral, recorda-se dos tempos em que, como aluno do Seminário de Fortaleza, passeando com os colegas, viu-o como uma aparição maravilhosa: “Montavas um cavalo alazão e entre os olhares atônitos dos rapazes que humildemente se preparavam para o sacerdócio passaste como uma visão romântica de inesquecível beleza. Terias 25 anos e já eras o famoso autor de Terra de Sol. João do Norte! exclamou um dos seminaristas e foi como se um frêmito de admiração e glória apanhasse aquela comunidade de monges que viviam na distância das coisas do mundo, mas também sonhavam com o triunfo no leito de lona do seminário pensando na visão daquela tarde, quem sabe se com inveja do garbo e da glória que tão cedo se incarnavam naquele triunfador”. No Rio, Barroso tornou-se leão da moda, vindo à tarde para a Avenida, onde se postava na esquina de O Paiz. “A sua estatura, a sua corpulência, o apuro no trajar, certa insolência que apresentava para os que não o conheciam, marca sua personalidade.”

O INSTINTO

A vida e a obra de Gustavo Barroso oferecem ensinamentos prodigiosos, quer do ponto de vista psicológico, quer sobretudo do pedagógico e educacional. O que parece imperativo em todas as manifestações da sua existência são os seus impulsos instintivos, a sua tendência para a liberdade, para a independência, para a afirmação da sua personalidade. Aprende a ler aos três anos de idade e revela pendores intelectuais e artísticos desde muito cedo. Mas depois, no Liceu, torna-se um péssimo aluno, é reprovado e até excluído do estabelecimento, embora tendo interesse e sobressaindo-se em algumas disciplinas. Quando passa a prestar preparatórios, estudando como o bem entende, torna-se um aluno excelente, que vai brilhar na Faculdade, apesar de muito faltar às aulas. Em compensação está a ler e escrever, adquirindo espantosa erudição. Isso sobressai dos seus livros e dos seus múltiplos trabalhos, desde época muito precoce. Com ele aconteceu o que é regra muito freqüente: de a boa aprendizagem não vir da escola, dos cursos da Universidade, sim daquilo que é aprendido colateralmente, sem exigências ou obrigações, livremente, de acordo com o temperamento e as tendências mais íntimas de cada um. Barroso definiu-se prematuramente nesse sentido, sendo natural que, se tivesse seguido outro caminho, muito diferentes teriam sido a sua vida e a sua obra. Não há dúvida de que é o interesse direto, a verdadeira atração ou curiosidade pelos problemas que definem o indivíduo, mostram a sua vocação, indicam a rota que deve preferir. Quem não se interessar por livros, coisas espirituais, é pouco provável que possa depois a eles se entregar com dedicação. Isso é válido para qualquer carreira intelectual, como pode ser ilustrado esplendidamente por eminentes membros desta Academia. Uma análise dessa a pode constituir uma fonte de fecundos ensinamentos e inesperadas revelações, antes de tudo para mostrar quanto as inclinações instintivas podem conduzir a realizações culturais. Gustavo Barroso encontrou o caminho desimpedido e pode realizar a sua vida de acordo com o seu temperamento, caminho desempedido no sentido de poder lutar, contrariar ordens superiores, fazer imperar a sua vontade. E os recursos que tinha à mão eram a oposição, que se revelava tanto pelos seus insucessos no Liceu, quanto a vadiagem que pôs em prática durante longo período da vida. Foi talvez essa a sua grande força, a maior razão dos seus sucessos e das suas derrotas. Não sei bem o que teria acontecido, se tivesse seguido aquela aprendizagem, trôpega, banal, igual para todos, invariável na sua monotonia. Acredito que muitos dos valores, dos maiores desta Academia, a começar por Machado de Assis, não teriam alcançado a sua plenitude intelectual, o lugar que vieram as Letras do nosso País, se tivessem seguido cursos universitários regulares, passando depois à profissão dada pelo diploma.

Ninguém é capaz de fazer um bicho qualquer, um cavalo por exemplo, beber água, se ele não tem sede. Mas se a tem, então saberá encontrá-la com habilidade, com uma perspicácia que pode encher de admiração ou até de incompreensão o próprio homem. Com a cultura e a sabedoria o fenômeno não é muito diferente, embora seja possível obtê-las compulsoriamente de cursos e treinamentos apropriados aos medíocres e inferiores, que viverão dentro de um mundo sofisticado, que eles próprios estarão longe de perceber. O apanágio principal do homem de letras, do intelectual, é o de viver sedento de livros e leituras, de o estudo tornar-se para ele um imperativo profundo e decisivo da vida, uma atividade com os característicos de uma verdadeira vocação, não de qualquer banal obrigação. É quase como o caso de um daqueles bichos a que me referi, que, sedento, sabe encontrar água para matar a sede. A sede de aprendizagem, de leitura, de devoção intelectual é que me parece imanente, dando o verdadeiro valor de uma personalidade. Estudar, aprender, formar-se dentro de uma rotina escolar é hoje a grande fábrica de medíocres e inferiores, que dominam o mundo e a civilização, dentro de uma bitola que serve para todos. É daí que vêm os leitores de jornais, de revistas, de ilustrações e de outras publicações que lhes podem excitar superficialmente o interesse, como acontece igualmente com o cinema, o rádio, a televisão. É uma autêntica industrialização de conhecimentos, muitas vezes em desacordo com as tendências mais íntimas do indivíduo, que se torna vítima desses processos de sofisticação. Processos de sofisticação que dominam o mundo contemporâneo de maneira cada vez mais avassaladora, quase impondo ao leitor o que a crítica determina ou o interesse do editor podem comandar. Assim, o adulto não se encontra muito longe da criança, que pode ser arrastada e dominada por história de quadrinhos e outros produtos artificializados capazes de conquistá-la, assim como o açúcar e o doce enganar o seu paladar. Acredito que tudo isso esteja muito errado e seja muito prejudicial como tenho procurado mostrar em alguns dos meus trabalhos. É nesse sentido que o caso Gustavo Barroso impõe-se como um exemplo magnífico que prova quanto a sua personalidade foi piedosa e singular, formando-se e desenvolvendo-se segundo os seus imperativos mais íntimos e naturais, embora criados alguns por erros educacionais. Mas ele ficou a cavaleiro dos cataclismas e soube encontrar o seu caminho servindo o seu temperamento e as suas propensões mais instintivas. O que é preciso ser posto em relevo é o fato de somente as tendências instintivas, que caracterizam a vocação do indivíduo, serem suscetíveis de dar-lhe aquela energia, aquela persistência, aquela devoção necessárias a um trabalho contínuo, infinito, capaz de encher uma existência, por vezes sem deixar tempo para outras atividades, como foi o caso de Gustavo Barroso e de outros ilustres membros desta Academia.

Com Gustavo Barroso, as modificações se vão operando lenta e progressivamente, sem perderem contudo os seus característicos fundamentais. Da infância passa à mocidade e desta à idade madura, mas sempre conservando-se o mesmo homem, tão fixo, tão pouco variável, que parece uma continuação, elos que se entrelaçam numa longa cadeia, guardando entre si estreita correlação. Assim, desenvolve-se da criança mimada e voluntária ao moleque dominador, moleque que sonha com farda e galões, em ser general ou almirante, mas que prossegue como peralta da rua, vadio da escola, colecionando reprovações, perdendo anos, até ser excluído do Liceu! Entretanto, aos três anos de idade, sabia ler, sem aprender! É a oposição que o conduz, que o leva a cometer desregramentos, a tornar-se insuportável dentro das suas reações.

O ESPÍRITO DE OPOSIÇÃO

Quando acadêmico de Direito, no Ceará, faz Jornalismo, talvez mais para lutar, na oposição. É a época das mofinas e insultos, que ele recebe, primeiramente, em geral, atirando-os e depois precisando revidá-los. Mete-se em sociedades secretas e terroristas, que realizam sessões alta noite, quando a cidade dormia como uma pedra...Forrávamos as paredes de fazenda preta ordinária, semeada de caveiras e tíbias cruzadas, que pintei a alvaiade... Sobre a mesa, coberto de preto, um tinteiro, dois castiçais com velas e um punhal. Realizávamos as sessões de rosto inteiramente coberto de cogulas de chita preta, em que os olhos brilhavam nos dois buracos. Ritual e juramentos de arrepiar. Por eles nos comprometíamos a libertar o Ceará e implantar o Socialismo.

Estão vendo quanto o jovem acadêmico provinha do menino terrível e endiabrado? A política invadira a Faculdade de Direito, cujos estudantes dividiram-se em campos rivais, cheios de ódio. “Atraído muito cedo pela oposição, embora meu pai fosse amigo particular e sincero do velho Acioli, logo no primeiro ano do curso tomei atitude franca contra o governo.” Aliás, essa atitude é muito mais explicável pelo fato de ser o pai amigo do governador, do que se não o fosse. Trabalhou em alguns jornais de Fortaleza, sempre na oposição e com tendências socialistas. Mas, antes de tudo, é irreverente, quer meter tudo à bulha e ao ridículo. Em fins de 1907, funda com um companheiro um jornal – O Garoto, que é apresentado como crítico, desopilante, molieresco e rabelaisiano. “Mexia com Deus e todo o mundo.” Começou a carreira jornalística com João Brígido, espírito combativo e que se tornou célebre na política, na advocacia, na imprensa. Depois tornaram-se inimigos, o que Barroso atribuiu “a coisas feitas por outros. A política nos ajuntou e nos separou... Sua pena cruel nunca poupou ninguém senão enquanto isso lhe convinha. Espalhou em volta de si a falta de respeito pelas coisas mais sérias. Foi um acanalhador do talento. Não o respeitavam temiam-no”.

Desde cedo, Barroso entrega-se a uma luta terrível e sem tréguas em que a polícia e a violência representam o papel principal. Ele descreve a surra terrível que recebeu Américo Facó, espírito de elite, cheio de bondade e sabedoria, que tive a ventura de conhecer aqui no Rio e que faleceu há poucos anos. Facó abandonou a luta e expatriou-se de Fortaleza, passando Gustavo Barroso a ocupar o seu lugar no Jornal do Ceará. A luta prossegue e, em breve, é o gerente dessa publicação que é surrado e deixado como morto na praça pública. Mas depois, procurando vingar-se numa desforra, morreu na luta e matou o seu contendor.

No Jornal do Ceará, em substituição a Américo Facó, Barrroso acabou colaborando em quase toda as seções, indo da Política ao humor, do editorial à anedota. Foi a época de atacar e ser atacado, época em que vivia sob ameaças, despejando o governo sobre ele as suas baterias. Tornou-se vítima de variadas perseguições, a começar pelas que lhe negavam qualquer intelectual, procurando humilhá-lo ou desmoralizá-lo. Evidentemente era a reação contra as suas agressões, que muitas vezes primavam pelo humorismo. Mas a situação ia-se agravado e por fim “as ameaças do governo exigiam medidas de prudência e segurança pessoal”. Ele não chegou a apanhar, embora havendo sido muitas vezes ameaçado. “Deixei o Ceará antes que as ameaças se realizassem... Malgrado minhas precauções, não me era possível continuar em Fortaleza. Violenta discussão na imprensa e o que escrevia constantemente contra o governo teriam fatalmente como fim a surra policial ou coisa pior. Era forçoso emigrar, destino do cearense pela seca, pela pobreza ou pela política.” Dessa atividade, alguns trabalhos iriam aparecer mais tarde em livros tendo por vezes difusão no estrangeiro. Por esse tempo já colaborava na imprensa do Rio, da qual tornar-se-ia depois um dos elementos mais fecundos e representativos. Usava então pseudônimo de João do Norte, com o qual primeiramente se celebrizou na Literatura. Em abril de 1910, parte para o Rio, abandonando o Jornal do Ceará, depois de uma disputa com o redator chefe, quelhe quis modificar o artigo de fundo, enxertando elogios ao candidato à presidência da República. “O caso decepcionou-me quanto à pureza de intenções de certos oposicionistas.” Parte para o Rio, quase como um emigrado, pronto para a luta, sem saber o que o iria esperar. Muitos o dissuadem da empreitada e, por diversas vezes, parece que é ele próprio que se arrepende, mesmo quando já está colhendo vitórias que muitos os invejariam. Há informações de que passou fome e dormiu em bancos de jardim, sendo ele próprio que informa que andou sem vintém na algibeira, mas com muitos sonhos na cabeça. Lutou à cata de emprego e muitas vezes apertaram as saudades e o desejo de voltar para o Ceará. “Mas como enfrentar a família e os amigos depois de fracassado?” Ainda no fim da vida, lastimava haver deixado a sua terra, perdendo as suas belas frutas, os cajus, as mangas, as atas, as laranjas, os sapotis, sobretudo as graviolas!

NO RIO

Depois de cursar a Faculdade de Direito do Ceará durante três anos, de 1907 a 1909, vem concluir os estudos na do Rio.

Não perdi um ano. No primeiro, prestei exames na época normal. Nos outros, em segunda época, porque trabalhos de professor, desenhista, cenógrafo e jornalista, com que ganhava a vida, não me permitiam freqüentar
aulas. Obtive sempre boas notas. Alguma vezes, as melhores.

Estudava com prazer as matérias do curso, sobretudo as de caráter mais filósofo. Um professor, Soriano de Albuquerque, que reunia em sua casa, nas tardes de quinta-feira, os alunos que só tiravam distinção, considerava-o o seu melhor aluno. Soriano era professor de Filosofia de Direito e naquelas tertúlias a conversa era sobre os grandes espíritos que haviam ilustrado o mundo. Ele tinha aversão pelas outras cadeiras do curso, detestando os livros e os autores de tais disciplinas. Detestava-os cordialmente e com o meu espírito de tendência militar; mas, como não havia outro remédio, engolia-os certo de não os digerir muito bem. Plenamente e distinções choviam-me na cabeça. Decididamente tomara vergonha de uma vez como estudante. Longe os tempos das vadiagens do Liceu”. Estava dando para gente, surpreendendo os seus velhos mestres e conhecidos! Torna-se um jovem esforçado, apaixonado pelos trabalhos intelectuais, ávido de conhecimentos.

Desde cedo, tornou-se oposicionista e acredita-se envenenado pelo espírito de análise do século XIX, que evidentemente estava mais de acordo com as suas tendências de revolta e oposição. Um professor de francês, com quem aperfeiçoa conhecimentos nessa língua, instila-lhe “o ódio da burguesia e o amor do proletariado, um grande anseio da justitiça social que até hoje não se acalmou no meu espírito. Deu-me a ler Bakunine e Lasalle, Proudhon e Karl Max, muito influindo em minha formação mental”. Passei também esse mesmo caminho, participei desses mesmos sentimentos, tendo a justiça social feito parte dos meus entusiasmos, até hoje! É o estalo que explode comumente na mocidade, em geral envolvendo o problema religioso, embora variável de intensidade e não obrigatório na cabeça de todo mundo.

Quando vem para o Rio, como quase todos os provincianos, anda à procura de emprego, das coisas mais difíceis de alcançar naquela época. Basta dizer que o conseguiu no interior de Minas, na velha cidade de Congonhas, onde foi trabalhar como agrimensor, profissão que desconhecia e da qual precisou aprender o necessário à execução da sua tarefa! Dessa cidade, enviava colaboração para o Jornal do Commercio do Rio, onde mais tarde passou a trabalhar na redação. “Completei a minha educação de jornalista dentro do velho órgão e lhe atribuo a couraça com que pude resistir a todas as seduções da imprensa escandalosa, preferindo antes o retraimento do que certa publicidade.”

O que se percebe freqüentemente nos trabalhos de Gustavo Barroso é a sua independência, a sua sinceridade, o seu entusiasmo pelo que é justo, digno, superior. Numa conferência sobre Rodolfo Teófilo, diz que, na sua vida intelectual, um dos títulos que mais o envaideceu foi haver merecido a estima e a consideração desse escritor, dada a pureza da sua alma, a limpeza das suas intenções, a incorruptibilidade do seu caráter. Ninguém foi mais puro do que Teófilo. Embora acrescente que nunca houve apóstolo que não levasse pedradas. Mostra que ninguém superou Teófilo nas descrições da seca do Nordeste, da qual foi um observador emocionado. Revolta-se pelo fato de a sua obra não ter a repercussão merecida e ajunta:

Que me importa, nesse grande louvor, o descuido na maneira de escrever, pronome mal colocado, francesismo, este ou aquele vício ou erro, se ele pinta verdadeiramente o drama angustioso do elemento humano”. Fala então do charlatanismo, do elogio mútuo, da sofisticação em torno da mediocridade, ao passo que Teófilo era “o novelista nato pelas qualidades de observação e descrição, pela imaginação criadora, pela capacidade de transmitir emoções e pelo íntimo conhecimento do assunto tratado.

GOETHE

Barroso tinha pouco mais de vinte anos quando a Livraria Garnier, em 1914, poucos meses antes da Guerra Mundial, deu-lhe a incumbência de traduzir o Fausto para o nosso idioma, do qual existia apenas o trabalho de Castilho, em verso. A tradução apareceu em 1920 e mereceu referências elogiosas, por exemplo de Sérgio Buarque de Holanda, que achou “mais de acordo com o original que a de Castilho, excelente, utilíssima”, pois visava antes de tudo a difusão educativa dessa obra da Literatura mundial. Naquela época, Barroso não se animou a meter-se pela segunda parte do Fausto, cuja tradução justificava a opinião de Madame de Stäel, que a julgou intraduzível, porque “obrigava a meditar sobre tudo e sobre alguma coisa mais do que tudo”. É Barroso que o repete, acrescentando que “a grandeza da obra de Goethe está justamente em que, nas menores coisas, é tão profunda como nas maiores. Suas raízes vão muito longe na gleba inesgotável das tradições, dos sentimentos, das ciências”. Muitos anos depois, relata a sua passagem por Weimar, antes da derrocada nazista da Alemanha e a destruição da cidade. Viveu aí alguns dias e, pelas visitas que fez à residência e à casa de campo de Goethe, à habitação de Schiller e a outros monumentos históricos, acredita ter sido dos últimos brasileiros que peregrinou “por aquela cidade célebre, ainda intacta, em visita aos lugares imortalizados pela vida e pelas obras de Goethe e Schiller”. Eu também por lá andei, uma dezena de anos antes, e hospedei-me no Parkhotel Erbprinz, o mais tradicional da cidade, fundado em 1749, onde estiveram Napoleão, Liszt, Mendelssohn, Weber, Humboldt, Hebel, Berlioz e inúmeras outras grandes personalidades, de algumas das quais existiam os apartamentos que habitaram e receberam o seu nome. Foi aí que encontrei, numa das paredes, o retrato do nosso D. Pedro II, com a data da sua visita a Weimar. Relato essa particularidade porque a ignorava e nunca a vi citada por nenhum autor, provavelmente havendo escapado a Gustavo Barroso, que se hospedou em outro hotel, no Elephant, também histórico, ainda mais velho que “Erbprinz”, fundado em 1521. Barroso refere-se ao livro de W. Hoffman-Harnische – Goethe e o Brasil, onde vem assinalado que o pensador alemão, na sua obra, refere-se 84 vezes ao nosso País, não havendo dedicado a nenhum outro, fora da Europa, tanto interesse. Goethe conhecia a História do Brasil, lera algumas das obras sobre ciências naturais, procurara conversar com viajantes sobre o nosso País, estudava as suas plantas, os seus minerais, as suas formações geológicas. Entusiasmara-se pelas nossas palmeiras, tão majestosas e variadas, mas não conseguiu obtê-las cultivando sementes. Foi tão longe que chegou a traduzir para o alemão canções dos nossos índios! Por todas essas razões, Barroso considerou um dever de gratidão celebrar o centenário desse gênio, “cidadão do mundo pela beleza da sua vida e o espírito universal da sua obra”. Pergunto agora, lembrando-me do retrato de D. Pedro II que vi em Weimar: quanto haverá o nosso imperador contribuído pessoalmente para Goethe interessar-se pelo nosso Brasil? Acredito, que como no caso de Wagner, poderosamente, para glória do seu nome e do Império, dessa Monarquia que, como diz Barroso, era a única república do Continente!

O que sobressai da obra de Barroso é o seu interesse pelas coisas de espírito, o seu ardor de trabalho que o levam a aprofundar-se em variados terrenos culturais, por vezes regiões inesperadas, que sabe explorar com mestria. Nesta Academia, fez duas conferências sobre Eça de Queirós, que mostram quanto conheceu profundamente esse escritor, quando penetrou a sua psicologia, revelando também quanto depende do leitor a maneira de compreender qualquer autor. Desde cedo, é empolgado por Eça, numa época em que as suas predileções levavam-no ainda a Ponson de Terrail, Júlio Verne, Dumas, Cooper. Depois, sobe na escala cultural, passa a ler Walter Scott, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva e então mais ativamente Eça, que acaba sendo o seu autor predileto, autor que irá reler e estudar em Portugal, achando-o o mais português dos seus escritores. “Sua obra toda está impregnada de Portugal, sabe a Portugal, cheira a Portugal!” Na sua conferência – “Meus encontros com Eça de Queirós” – há páginas de magníficas observações, que mostram a evolução intelectual do próprio Gustavo. Eu passei igualmente por essas fases de desenvolvimento antes de chegar ao Eça, mas fiquei por mais tempo ancorado ou fixado em Júlio Verne, assim como Barroso fê-lo em relação a Fenimore Cooper. Mas Eça tornou-se para ele, assim como para mim, o deus soberano, que certamente chegou a conhecer a fundo, tal como acredito ter sido o meu caso. O que ressalta dos seus “Encontros” com o escritor, assim como de outra conferência que proferiu nesta Academia em novembro de 1945 sobre Eça de Queirós e a Política Internacional –, é ser esse escritor um dos mais atilados correspondentes de jornal que tem existido. Alicerçado numa cultura invulgar, servido por um estilo maravilhoso, sabia observar e comentar com tão fina sensibilidade, tanta graça, tanto a propósito e espírito crítico que suas crônicas e correspondências na maioria não envelhecem e conservam saboroso gosto de atualidade.

Eu próprio tenho esta impressão a julgar pela leitura recente das Cartas de Inglaterra e dos Ecos de Paris, que me fizeram reviver com delícia meus entusiasmos literários da juventude. Passaram-se desde então muitas dezenas de anos, mais de meio século, mas acredito que foram as leituras daquela época que conservaram no recôndito do meu espírito os ensinamentos literários, que mais tarde viriam possibilitar-me a tarefa de escritor, acabando por abrir-me as portas desta Academia. Barroso exclama, com toda a razão, que foi uma época maravilhosa aquela em que um cônsul de Portugal, servindo numa Nação estrangeira, podia criticar-lhe abertamente a Política sem que nada lhe acontecesse. Fala da formidável liberdade que gozavam os diplomatas daqueles velhos tempos, hoje reduzidos a escravos dos protocolos, sempre cheios de medo quanto às opiniões que devem externar.

Um outro autor pelo qual Barroso teve grande predileção é Balzac, como bem mostra a sua conferência – O Segredo de Balzac, pronunciada em novembro de 1950 nesta Academia. O escritor francês era, como Barroso, filho de tabelião, mas desde cedo revelou aversão por essa carreira e tendência para as Letras. O seu segredo foi uma mulher, mulher vinte anos mais velha do que ele, mãe de nove filhos, culta, inteligente, sentimental, mas infeliz no casamento. É espantoso o papel que representou na vida de Balzac, que por sua vez “prestou imenso serviço às mulheres pelo que elas nunca lhe serão suficientemente gratas, duplicando-lhes o período do amor. Antes dele, todas as apaixonadas dos romances tinham vinte anos. Ele prolongou até os quarenta a sua vida ativa. Defendeu para elas a causa da Natureza e da verdade. Livrou o amor do preconceito da mocidade... Foi esse o dom imortal que, na sua generosidade, fez o gênio de Balzac às mulheres e humanidade”. Barroso, citando essas frases de Harotauy e Vicaire, termina a conferência sobre Balzac, glória da França e da nossa civilização, dizendo: “Inclinemonos diante do seu gênio e ajoelhemo-nos diante da bondade daquela mulher que foi o mais belo segredo da sua vida”. Isso depois de citar Victor Hugo que afirmou: “Debaixo do céu somente há uma coisa adiante da qual nos devemos inclinar – o Gênio, e uma coisa diante da qual devemos nos ajoelhar – a Bondade”.

ENTRADA PARA A ACADEMIA

Gustavo Barroso foi eleito para esta Academia no dia 8 de março de 1923, concorrendo com o grande historiador Rocha Pombo, que teve sete votos, enquanto ele 23. Dostrês candidatos restantes, um recebeu dois votos, outro apenas um e último nenhum. Tinha então 35 anos, sendo o mais jovem dos imortais. Fora Secretário do Interior eJustiça do Ceará, depois deputado federal, partindo como secretário da Embaixada à Conferência da Paz, sob a direção de Epitácio Pessoa, em 1919. Teve as funções deinspetor escolar, que deixou quando passou a diretor do Museu Histórico. Entrou para esta Academia depois de haver concorrido a quatro vagas, uma vez em duas delas aomesmo tempo, conforme vem declarado no seu pedido de inscrição. Quando eleito e recebido em 1923, tinha publicado dezessete volumes, entre os quais três traduçõeseditadas em Paris: Fausto, de Goethe, Lições de Moral e Vocabulário das Crianças, todos de 1920. O seu primeiro livro é Terra de Sol, editado no Rio em 1912. Depois vem: A Balata; Praias e Várzeas; Idéias e Palavras; Heróis e Bandidos; Tradições Militares; Ronda dos Séculos; Casa de Maribondos; Ao Som da Viola; Coração da Europa e Mula Sem Cabeça. Tratado de Paz, da época em que faz parte da Missão Epitácio Pessoa na Europa, foi por ele traduzido e – Uniformes do Exército e Pergaminhos aparecem em Paris em 1922. Eram esses os seus livros, acompanhados de abundante bagagem jornalística, quando entrou para a Academia. Depois, a sua produção foi crescendo rapidamente, abrangendo variados territórios das Letras. Ao mesmo tempo, a sua atividade na imprensa foi sempre das mais produtivas, havendo certa vez informado a Josué Montello que se reunisse tudo que publicou daria mais de trezentos volumes. Escrevia fluentemente, quase sem corrigendas, sempre à mão, numa letra firme,ligeiramente arredondada.

É necessário acompanhar a obra de Gustavo Barroso através de toda a sua extensão para se poder calcular o valor do homem e do escritor. Um dos seus característicos principais são as suas tendências regionais, o sentimento da sua terra, as afinidades que tem pelo Nordeste e o Brasil, o que explica muitos dos seus livros e das suas produções históricas, sempre de caráter mais nacionalista. Ainda no Ceará é Araripe que lhe diz: “O Ceará vive sempre dentro de nós, por mais que nos afastemos dele. Às vezes teima em sair e sai! E despedindo-se: “Menino, ponha logo para fora o Ceará que você traz aí dentro!” Seguiu-lhe o conselho e publicou, como primeira obra,Terra de Sol, o seu melhor livro!

TERRA DE SOL

O que ressalta ainda da sua obra é a erudição, a massa imensa de conhecimentos que adquiriu, não para explorá-los com um critério científico frio, objetivo, impessoal, sim dando-lhe forma mais sugestiva, mais colorida, mais sentimental, na qual transparece o seu temperamento, o seu patriotismo, o seu amor pelas coisas do Brasil. O Brasil está sempre presente nas suas lutas e nas suas criações. É o fator mais constante da sua obra, penetra tudo que ele pensa e observa, mesmo no estrangeiro. Há, em quase tudo que escreve, um sabor local, quase lembrando o Ceará, a presença da sua terra. Por isso, vive também muito do passado, nele encontrando as melhores fontes de inspiração e criação. Assim, serve-se da erudição, da imaginação, da emoção para trabalhar temas que lhe trazem a vida ou a história. E por que deve ser a sua opinião sobre esses temas única, fixa, irredutível, invariável, se a própria psicologia que os domina está sujeita a variações? O que há talvez de mais marcante na obra de Gustavo Barroso é justamente a sua espontaneidade, a sua inspiração natural que decorrem dos fatos e das suas observações pessoais, não provindo unicamente da leitura de outro livros e trabalhos, que podem dar mais harmonia, mais igualdade, menos variações e contradições, uma vez que já estão padronizados pela atividade de outros cérebros. Barroso é mais livre, mais espontâneo, mais original, razão pela qual muitos de seu livros, a começar por Terra de Sol, conservam-se novos, atuais como no dia em que apareceram. É Afrânio Peixoto quem diz que as suas idéias e os seus documentários são sóbrios, fixando “sem insistência a documentação necessária. Ao cabo, tem-se a cena ou a figura, evocada no seu meio, vivendo para nós. É um efeito de Arte que não traz artifício algum, tão natural aparece”. 

É hábito muito comum falar-se mal das academias, assim como dos seus membros. Isso é da natureza humana. Aquele que não pode subir e alcançar níveis superiores, contenta-se com rebaixar os que estão no alto. Gustavo Barroso tem sido vítima dessas imprecações, alguns querendo ver na sua obra o superficial, o apressado, o incompleto, “o que pode ser verdade numa parte dela, pela sua extensão no tempo e as proporções que alcançou”. Mas sobre o que não pode haver dúvidas é sobre a erudição do autor, o seu trabalho afanoso através de toda a vida, a sua cultura que se veio fazendo desde os primeiros anos da existência e desenvolveu-se através de toda ela, sempre com um máximo de interesse, dedicação, de quase devoção ou abnegação. É esse o característico supremo da sua personalidade, que me leva a poder falar dela com a mais sincera admiração. Os loucos nunca devem ser julgados pelos atos normais e perfeitos que praticam, como também não os literatos e os artistas pelos trabalhos mais fracos ou menos felizes que produzem. No entanto, essa regra é freqüentemente violada, quer admirando-se o bom senso dos dementes, quer menosprezando o intelectual pelo que produziu de menor valia. O bom de cada um é o melhor que pode oferecer! Nesse sentido, a situação de Gustavo Barroso é ótima, porque a sua formação é das melhores e os seus imperativos dos mais nobres e elevados. Neste momento, refiro-me à sua cultura, que resplandece nas conferências desta Academia, quer falando de Isabel, a católica, a criadora da América cristã, quer de Eça de Queirós, de Balzac, de Cervantes, de Camões, de Rodolfo Teófilo ou recebendo visitantes como Kipling, Durtain, Júlio Dantas, o ministro Gimenez ou recepcionando acadêmicos como Olegário Mariano e Pedro Calmon. Mas, acima de tudo, quero colocar as suas conferências sobre Goethe, falando uma vez sobre o Sabat na sua obra genial e da outra em comemoração ao bicentenário da sua morte. É de vantagem lembrar que Barroso desde cedo aprendeu línguas, o inglês, o italiano, o alemão e sobretudo o francês, que chegou a conhecer profundamente. Ainda no seu leito de morte, sem se dar conta da gravidade da doença, recitava poesias em línguas estrangeiras, em francês, inglês e mesmo em latim, como nos revelou Austregésilo de Athayde, o nosso presidente, que o acompanhou carinhosamente até a terminação fatídica da moléstia.

NA ACADEMIA

Na Academia, Barroso realça o mérito de muitos dos seus conterrâneos, alguns dos valores mais elevados da nossa nacionalidade. É assim que fala dos cearenses José de Alencar, Juvenal Galeno, Araripe Júnior, Tomás Pompeu e outros, mas também dos grandes de outros Estados e do estrangeiro. É ele ainda que recebe Durtain e agradece a Robert Garric pelo curso de Literatura francesa dado na Academia, então sob a sua presidência. Além disso, fala de Lope de Vega numa conferência que é uma revelação pelo que tem de estudo da obra e compreensão do autor. Fez ainda outras conferências sobre diversos temas, em geral mais ligados às suas tendências históricas: uma sobre Ouro Preto, Cidade Sagrada, outra sobre Petrópolis, uma terceira sobre Mauá e o Prata, e ainda: O México e o Catolicismo, O Brasil dos Brasileiros, A Alma das Catedrais, Walter Scott, Tomada de Lisboa aos Mouros, A Morte de Gonçalves Dias, Vida, Obra e Morte de D. Quixote, Conferência na Bahia e inúmeras outras.

Esplêndida a lição que aqui realizou no Curso de Poesia em 1953, tratando da Poesia popular, na qual analisa em profundidade o mecanismo da sua criação entre os diversos povos, ilustrando-a com numerosos exemplos da nossa gente. Conclui que essa Poesia é sempre semelhante no seu pensamento fundamental, é um grito de sentimento, uma expansão que eleva e sublima, sempre idêntica, porque “o homem é o mesmo onde quer que apareça, quando chora, quando ri e quando canta, sobretudo quando canta”. Num outro ciclo de conferências ocupa-se do conto popular, uma preleção rica de ensinamentos, onde a erudição liga-se intimamente à sua observação pessoal. É uma lição magistral, que dá interpretações próprias a alguns dos fenômenos estudados, sempre com grande perspicácia e conhecimento de causa. É estudo que merece atenta leitura e que julgo das suas melhores produções.

Depois da sua entrada nesta Academia, fazendo o elogio de D. Silvério Gomes Pimenta, recebe Olegário Mariano e mais tarde Pedro Calmon. Passa três vezes pela presidência desta ilustre Casa, numa delas falando longamente sobre Francisco Alves, que trata com imenso carinho e reconhecimento. Há sempre nas suas palavras muita sinceridade, a preocupação de exaltar a justiça,a bondade, a dignidade. Referindo-se à morte de Getúlio Vargas, diz que foram sempre amigos, amigos velhos, embora as suas idéias políticas divergissem, como é fácil verificar nas suas publicações. Mas ele próprio acredita que as suas nunca se modificaram, sendo, “em matéria de política, um vencido, não um convencido”. Em outra ocasião, declara que não tem “outra autoridade senão aquela que emana de uma fidelidade às minhas crenças e opiniões e duma independência moral mantida sem desfalecimentos, tanto ao sol da liberdade, quanto nas tristes sombras das prisões políticas”.

ERUDIÇÃO

O que surpreende em Barroso e demonstra a sua erudição é não só a variabilidade das questões de que trata, mas também a maneira pela qual a faz, sempre empregando linguagem rica em termos apropriados, técnicos, militares, náuticos ou do exército, assim como da indumentária e de todas as coisas do presente e de épocas passadas, sabendo o nome de todas as aves, de todos os peixes, de todas as árvores, de todos os utensílios, tanto no linguajar do nosso povo através do folclore e das suas expressões mais variadas quanto em relação aos hábitos de outros povos. É todo um dicionário de língua brasileira, do qual se serve com profundo conhecimento regional, mas que, em outras obras, resplandece pela contribuição do passado, a começar pela linguagem, por exemplo toda medieval em Pergaminhos, obra impressionante pelo que tem de sabedoria, de fantasia, de finura espiritual. Fiquei perplexo diante da abundância de termos aí empregados, para mim desconhecidos, mas certamente também para a maioria dos homens cultos da época atual. É tão variada a terminologia, que se tem de usar dicionário, não raro, muitas vezes para uma mesma página. É realmente extraordinário o seu vocabulário, quer o regional, quer o de culturas passadas, que traduzem os acurados estudos a que se entregou. Além disso, sabe pintar paisagens e descrever personagens com mestria, sejam da vida ou do folclore, da realidade ou da imaginação. É tanto o romancista e o folclorista que conhece as minúcias e o colorido do ambiente e dos indivíduos, quanto o observador ou o repórter ágil, arguto quando anda pelo estrangeiro e traduz as suas impressões. Pode ser exato, preciso tanto nas linhas e contornos, quanto sentimental, lírico, fantasioso nas suas criações e interpretações. Pode ostentar sabedoria e observação como em Terra de Sol, Pergaminhos, Ronda dos Séculos, Sertão e o Mundo, Através dos Séculos e outros dos seus livros, quanto explorar o sentimento místico, a delicadeza espiritual, por exemplo no Livro dos Milagres e outras produções, assim como a ficção nas suas numerosas novelas, mas ainda também a anedota ligeira, o conto faccioso, a sofisticação alegre e divertida, como em Mulheres de Paris e outras publicações. Onde impera, porém, pela superioridade é nos estudos das nossas tradições, do nosso folclore, dasnossas lendas, que foram desaguar nos seus livros de história e de folclore, sobretudo nos das nossas guerras e dos seus heróis. O que não lhe falta, antes lhe sobra, é a espontaneidade, o talento de escritor, a sinceridade de sentimento. Ele sabe exaltar tanto o caboclo e o sertanejo, na sua simplicidade ou na sua bravura indômita, quanto atacar e agredir os poderosos quando se deixam levar por interesses subalternos ou escusas manobras políticas. Barroso tem muito de quixotesco quando vem lutar em campo aberto havendo sido o integralismo a sua maior e mais desastrada aventura. O mais significativo é que todas as suas tendências e rompantes podem ser explicados pelo desdobrar da sua vida, poderosamente influenciada pelos tempos da sua infância.

Vimos que os seus brinquedos de criança, ainda muito pequenina, já tinham caráter militar, sendo caracterizados por uma extraordinária capacidade de imaginação. Não é isso que ressalta também da sua obra, na qual se revela muito mais escritor do que historiador? Os temas são de História, mas o autor é por demais instintivo para ser o historiador tipo Topsius, que procura aprofundar-se investigando minúcias. Por temperamento, encontra-se acima dessas algemas e restrições, deixa liberdade para poder vibrar e impressionar-se segundo o jogo das circunstâncias. Representa isso um erro ou uma inferioridade? Não do ponto de vista intelectual e artístico e, menos ainda, dos da dignidade e liberdade espiritual. Um mesmo tema pode ser retratado das mais variadas maneiras, segundo seja o autor um poeta, um literato, um filósofo, um historiador. Todos estão certos à sua maneira, não sendo os escritores que se ocupam de História nem uma exceção nem uma anormalidade. A situação é tanto mais natural quanto a própria História comporta múltiplas e variadas interpretações, segundo a visão que conduz o escritor. Aliás, é regra muito geral de a extensão prejudicar a profundidade, de a variabilidade levar à superficialidade. É isso, no entanto, um mal, um defeito, uma insuficiência? De forma alguma, porque na criação literária há lugar para todos os temperamentos, cada qual podendo externar-se segundo as suas tendências. O historiador grave, solene, profundo é um tipo intelectual que tem os seus característicos próprios, naturalmente comandados também pela vida e o passado do autor, as suas vivências desde criança, certamente dependentes de outros atributos, quer orgânicos ou psíquicos. É um todo  que tem as suas razões de ser tão próprias e imanentes que somente elas poderão tornar compreensível o conjunto.

A obra de Gustavo Barroso é, nesse sentido, das mais interessantes, quer pela extensão, quer pela vida ou o ardor que soube insuflar em seus personagens. É uma obra bem arquitetada, suficientemente baseada na bibliografia existente, na qual perpassa o trabalho da sua imaginação, bem servida pelo instinto e a erudição. Não é uma história fantasiosa, sim respeitosa dos fatos e dos documentos, trabalhados ou explorados pela visão do literato. É o próprio Gustavo Barroso que declara que, nos seus trabalhos históricos, deixou lugar para expandir a sua fantasia, não raro usando enfeites e atavios literários para tornar o texto mais agradável. Para ele, a História deve ser antes uma obra de Arte do que de Ciência e assim condena “a mania generalizada de cientificismo” que dominou nesses estudos e acabou mostrando o seu exagero ou a sua irrealidade. Acrescenta que é preciso “iluminar a história com o esplendor solar das idéias, com a luz maravilhosa da vida espiritual”, que se refletirá melhor na obra dos pensadores, escritores, poetas, dramaturgos, críticos, deixando de ser uma simples enumeração cronológica. Ele cita Anatole France, que diz “ser extremamente difícil escrever a história, pois não se sabe nunca como passaram os acontecimentos, crescendo as dificuldades do historiador com a abundância dos documentos”. Barroso, que tem sido atacado como historiador, declara que os “seus livros sobre as guerras não têm a pretensão de ser mais do que a singela narração do que ficou na memória do nosso povo, no nosso folclore militar, minuciosamente documentado”. Mesmo nos seus trabalhos, que parece imporem-se pelo caráter histórico, a julgar pelos títulos, prepondera o elemento literário, não raro mais subjetivo e emocional. É, aliás, o que ele próprio põe em relevo quando, em Guerra dos Rosas, em Guerra do Lopez e em outros livros declara, no subtítulo, que se trata de contos, e episódios dessas Campanhas.

VALOR DA OBRA

João Ribeiro, em 1931, falando de Barroso, conclui que, atenta à sua idade, é o mais fecundo dos nossos escritores, pois já contava então perto de cinqüenta volumes sobre os mais diversos gêneros literários, principalmente o romance histórico, a história e o folclore, que justificam a reputação merecida que aureola o seu nome... Essa fecundidade de escritor tem raros exemplos na Literatura da nossa língua... Não fazemos absolutamente o elogio dos escritores fecundos. Por vezes, a quantidade é danosa à qualidade, e não é fácil em Gustavo Barroso notar alguns números bibliográficos de secundário interesse”. Eu me louvo na opinião de João Ribeiro, das mais autorizadas do nosso País, e que se distende encomiástica aos seus livros sobre as guerras do Lopez, de Artigas, do Flores, do Rosas, de Videu, “quase romances de Literatura histórica,que constituem uma série de admiráveis panoramas da História brasileira em seus contatos com a vizinhança argentina”. Outros críticos elogiam igualmente a obra histórica de Gustavo Barroso, por exemplo Pedro Calmon que, referindo-se à Guerra do Rosas, diz que é um relato verídico, autêntico, escrupuloso”, enquanto Afonso Celso, falando da Guerra do Flores, diz que “o livro empolga, comove, entusiasma”. Eu próprio não me animo a dar opinião, por me sentir incompetente e por demais afastado dessas questões. Procurei ler diversas obras de Gustavo Barroso e deliciei-me nos contos, romances, novelas, não raro esplêndidos, cheios de vida, de finura e movimento. O autor sabe manobrar os personagens, sabe colocá-lo em ambiente apropriado, sabe tirar delas tudo que podem fornecer. É essa, sem dúvida, a habilidade maior do escritor, aquela que dá o verdadeiro valor do seu talento. E, nesse particular, Barroso corre toda a gama das possibilidades, indo da anedota e da futilidade às mais profundas fantasias e percepções psicológicas. Mas não é nunca um vulgar, um medíocre, um terra-a-terra, um sofisticado, que trabalha com recursos espúrios ou de pequena ou falsa significação. Nele há cultura, muito da vida que soube viver, do trabalho obstinado que foi a sua devoção e, antes de tudo, o seu temperamento, a sua vocação literária, a predominância das suas tendências instintivas. Não é por outra razão que se tornaram tão numerosas as árvores da sua floresta, que facilmente se pode perder a perspectiva do conjunto.

Impressionante na obra de Barroso é a sua enorme extensão, sobretudo se o leitor se deixar guiar pelo número e os títulos dos livros. É quase impossível uma orientação precisa, se não tiver à mão todos os volumes e puder compulsá-los para dar-se conta da sua extensão e do seu conteúdo. Se o fizer, como foi nosso dever, tarefa muito facilitada pela boa organização da Biblioteca desta Academia e o prestimoso auxílio dos seus funcionários, então verá quanto é desigual e dispersa a produção, talvez pela preocupação de aumentar o número das publicações, multiplicando títulos de pequenos volumes. Mapirunga publicado em inglês, em Londres, em 1924, tem menos de trinta páginas e Mesquita Muerta, em espanhol, menos de dez. No Anel das Maravilhas, história infantil de poucas dezenas de páginas, aparece também a fantasia do autor na execução das próprias ilustrações. Praias e Várzeas são onze contos, num volume de 140 pequenas páginas, Mula sem Cabeça, bem menor, compreende apenas três contos, dos quais um é dado separado na bibliografia, traduzido para o inglês. Ronda dos Séculos, Pergaminhos, Livro dos Milagres, Bracelete de Safiras são coleções de contos e novelas. Alguns dos seus trabalhos constituem estudos de fundo mais social, como Heróis e Bandidos, Livro dos Enforcados, Almas de Lama e de Aço e ainda outros. De grande significação são as suas numerosas publicações sobre folclore, terreno em que se tornou um dos nossos mestres supremos. Ao Som da Viola, Maribondos, O Sertão e o Mundo, Através do Folclore, Colunas do Templo são excelentes repositórios de nossas lendas e tradições, que se aprimoram em Mythes, Contes et Légendes, editado em Paris em 1930, contendo lustrações, certamente escrito diretamente em francês pelo autor.

Se o que predomina na obra de Barroso é o elemento regional, representado por contos, novelas, vivências das mais variadas, com títulos que se multiplicam, não há dúvida de que o conjunto ganharia por uma aproximação mais consentânea, fundida em volumes de maior número de páginas. É verdade, porém, que essa dispersão está mais de acordo com o temperamento e as tendências do autor, embora a sua produção ganhasse em conglomerados mais unidos e definidos. Talvez possa ser essa sugestão posta em prática pela Academia de Letras, reeditando as suas obras com um melhor critério de distribuição. Assim, haveria uma rubrica de romance, englobando O Santo do Brejo, Tição do Inferno e talvez A Sra. de Panguim, não se casasse este melhor com outros estudos de erudição. Neste último setor e no de Ensaios entrariam: Idéias e Palavras, Inteligência das Coisas, Aquém da Atlântida, Luz e Pó, e no de viagens: Ramos de Oliveira, da viagem com Epitácio Pessoa à Europa e aos Estados Unidos, e Coração da Europa, no qual se ocupa da Tchecoslováquia, Memórias compreenderiam: Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China.

Um dado surpreendente no conjunto da obra de Barroso é de o seu primeiro livro – Terra de Sol, que cito no meu Nordeste Brasileiro, mas acabo de reler para melhor conhecimento do autor, haver tido sucesso imediato, conservando-se até hoje como a sua produção mais elevada. Rui Barbosa, José Veríssimo, Graça Aranha, Sílvio Romero e diversos outros intelectuais de renome exaltaram-lhe os méritos, mas desejo basear-me principalmente em João Ribeiro que, ao seu aparecimento, traçou-lhe uma crítica que permanece invariável até nossos dias e provavelmente para todo o sempre. É elogiosa tanto para o autor quanto para o próprio crítico, que previu que Terra de Sol, a todas as luzes que se considere, é uma obra notável, destinada a vasta e duradoura popularidade... No Brasil raro se publicam livros de tamanha valia e tão profundamente nacionais como este... Há ali páginas primorosas. Sentese na sinceridade e espontaneidade do estilo, com a magia da verdade, a boa educação artística do autor. É exatamente o que podemos repetir ao reler agora essa obra memorável, escrita quando o autor tinha pouco mais de vinte anos. João Ribeiro compara-a aos Sertões, achando que a obra de Euclides da Cunha “tem mais poesia que realidade, mais imaginação e fantasia que experiência e conhecimento das coisas”. É aí, na realidade, que se encontra o motivo primacial, que faz de Terra de Sol um grande livro, um livro definitivo. É que está ele de acordo com a vida do autor, um observador perspicaz que foi aproveitando o que encontrava pelo caminho, aquilo que entrava imperativamente pela sua existência adentro. É mais uma vivência do que um estudo literário, dentro da qual se encontra aquele mesmo menino, aquele mesmo adolescente, cujas recordações aparecem nas suas Memórias. Sente-se quanto bebeu na fonte a mãos cheias, sempre a verdade excedendo a fantasia, quando muito, servindo esta para dar àquela maior força e maior brilho. Aliás, o menino e o jovem Barroso perpassam freqüentemente na sua obra e quando qualquer deles domina nas suas páginas, então, atinge o escritor a sua mais alta expressão, alcança as regiões olímpicas da criação.

Otto Kankeleit, especialista de doenças nervosas em Hamburgo, em livro recente, estuda o inconsciente como fonte de criação intelectual, passando em revista grande número de sábios, escritores, literatos, poetas, pintores, compositores, muitos dos quais lhe forneceram o seu próprio depoimento. Ele chega à conclusão de que todas as criações desse gênero partem do inconsciente, nelas representando o consciente papel secundário. Para basear melhor seu ponto de vista, apresenta citações de Goethe, Schiller, Jean Paul e também de escritores modernos, mesmo de alguns em cujas produções há participação de processos patológicos, como Rilke, Hoffmann etc.

A CRÍTICA

Tem sido mau vezo dos críticos colocarem determinada obra, em certo nível, devendo ficar as outras, de um mesmo autor, abaixo ou acima dele. Em geral, abaixo, porque o lugar de cima tem de ser ocupado por uma única, que se torna soberana. O que se procura são comparações malévolas, que se repetem, sobretudo com os que sobem, porque o que se deseja é rebaixar o artista ou inferiorizar a sua obra. Isso é de todos os dias e parece ter sido de todos os tempos. No entanto, constitui um absurdo ou uma monstruosidade porque ninguém é invariável, permanece fixo dentro da natureza, principalmente o que vem do espírito, representa produto da sua atividade. A variabilidade, a desigualdade, mesmo a contradição e a oposição podem fazer parte da criação de um mesmo indivíduo, variável segundo o seu estado mental, as funções dos seus órgãos, as circunstâncias do ambiente. Os próprios vegetais variam a sua produção de ano para ano, havendo as boas e as más colheitas, boas e más, tanto na qualidade das flores e dos frutos, quanto na sua quantidade. O homem e os bichos não fazem exceção a essa regra, variando os seus produtos segundo múltiplas circunstâncias, internas e externas. Por que exigir fixidez no padrão artístico ou literário, que não deve variar de nível, nunca descendo abaixo de certo ponto? Essa exigência é sem dúvida maléfica, pois pode tirar a liberdade do artista, pondo-o de atalaia à sua obra, embora, mais tarde, o julgado melhor possa ser o pior, e o pior salvar-lhe a reputação. Isso tem acontecido muitas vezes em todas as artes, especialmente na da escrita.

O que se pode afirmar é que a liberdade de espírito é essencial para que se possa atingir um máximo de elevação e de possibilidades. Qualquer entrave, qualquer interesse secundário, qualquer imposição forçada ou aceita pode rebaixar a qualidade da criação e tolher a sua produção. Certamente não é por outro motivo que Gustavo Barroso foi tão avesso à crítica literária, dela falando com azedume. É o que fez numa conferência desta Academia em julho de 1955, numa lição do Curso de Crítica. Diz que o assunto lhe foi imposto, em desacordo com os seus pendores, “que ama o vôo e a luta, fugindo sempre que pode às exegeses e às hermenêuticas”. E acentua: “A crítica é uma espécie de vegetação parasitária das obras de Arte, quando não passa muitas vezes de simples esmiuçamento dos seus pormenores.” Em certo ponto, fala do amor próprio e do orgulho dos críticos, “cujas vaidades persistentes e amargas os levam sempre a encontrar defeitos na obra criticada, ao invés de preferirem a exaltação de suas belezas”. No seu estudo, “A Crítica em Portugal do Século XVI ao Século XX”, mostra quanto pode ser ela variada, indo da psicologia e da erudição ao cotejo, à exposição educativa, à precisão histórica, ao fator social, à beleza literária, muitas vezes, quase sempre adubados pelo azedume pessoal ou a agressividade política. “São espelhos curvos, côncavos, convexos, torcidos, que dão imagens destorcidas, enquanto que a Arte criadora deve refletir o belo na sua exata perspectiva de luz, de cor, de realidade”.

Quando Barroso publicou Casa de Maribondos, falaram da decadência precoce do escritor, da mesquinhez dos “seus contos e historietas populares e picarescas, intercalados às facécias tradicionais e inocentes, sinal de mau gosto e regressão”. Alberto Faria refuta a aleivosia, achando que a educação de Barroso era o penhor de que, malgrado os atrativos pecuniários, jamais cultivaria ele a fruta malsã. A própria Terra de Sol recebeu ataques, até de plágio e do roubo, mas o autor ficou acima dessas pequenas misérias e em breve, pela continuação de seus trabalhos, mostrou quanto era poderosa a sua personalidade e fecundos os recursos de que se servia para realizar a sua obra.

A CRIANÇA NO ADULTO

Houve na vida de Gustavo Barroso momentos épicos, desses que facilmente descambam para o grotesco e o ridículo. Um deles, dos mais surpreendentes, foi quando se entregou ao Integralismo, passando a um dos seus elementos mais ativos e ardorosos. Vestiu a camisa verde e partiu pelo vasto Brasil fazendo propaganda da doutrina. Entrou em lutas e desavenças, foi atacado de todas as maneiras possíveis e imagináveis, chegando a renunciar à Presidência da Academia de Letras. No entanto, naquele momento, encontrava-se numa situação definida e gloriosa, tanto como presidente da Academia, quanto como diretor do Museu Histórico, além de escritor de grande renome, com extraordinário número de publicações. Por que deixar situação tão digna e superior e lançar-se numa campanha política, cujas idéias não estavam muito de acordo com as suas próprias, nem a indumentária do partido com as suas tendências para galões e uniformes? Não houve como uma daquelas peraltices e oposições da infância, que ele punha em execução até as últimas conseqüências?

Na sua vida gloriosa de adulto, ressurge por vezes o antigo moleque da primeira infância, que parece saudoso das suas travessuras de antanho. Ele está na Grécia e, nos arredores de Atenas, passa perto de uma oliveira, velha de 25 séculos, sob cuja sombra descansou o divino Platão. É o que informa uma tabuleta ali posta pela Municipalidade. A árvore, cercada de um gradil de ferro, apresenta um tronco monstruoso, de dois metros de altura por talvez um e meio de diâmetro, “rugoso, retorcido, escuro, gretado e esburacado, verdadeiro aleijão vegetal”, tendo no alto alguns ramos débeis de folhas vivas acinzentadas. Barroso quis apanhar um daqueles galhos para oferecê-lo à Academia de Letras, como Joaquim Nabuco fizera com o carvalho de Tasso, enviando a Machado de Assis um dos seus ramos. A polícia andava perto e o companheiro avisou-o do perigo que corria, podendo ser preso, ele, então Presidente da nossa Academia de Letras, como depredador das coisas públicas! Foi-se embora e voltou à noite no escuro, quando não havia mais policiais à vista. “Cheguei ao gradil, trepei na sua base, segurei-me a um varão e, estendendo a destra, colhi um ramo com certa dificuldade. Estava cometida a infração. Não creio que tenha sido um sacrilégio pela intenção glorificadora que guiou o meu ato.”Trouxe esse ramo, que se encontra no Museu da Academia. Não há dúvida que é o Barroso da primeira infância que aí aparece, porque o outro, o presidente da Academia Brasileira de Letras, poderia ter obtido facilmente, por via diplomática, um ramo maior, muito maior e mais vistoso!

Quando homem maduro, no mais alto pedestal da vida, torna-se integralista, exalta-se pela Política e passa a servi-la com a sua impetuosidade natural, com todas as forças da sua personalidade. Fala, escreve, discursa e sua atividade alcança proporções extraordinárias. Publica alguns livros sobre a doutrina, em alguns deles agredindo os judeus, deblaterando contra a maçonaria, atacando o comunismo, julgando o Brasil uma colônia de banqueiros. Gasta alguns anos nessa empreitada, dissipando talento e energias, por vezes em contradição com os seus trabalhos e as suas convicções anteriores. É arrastado pela corrente, como o fora na meninice pela travessura e a vadiagem, como também o podia ser pela Literatura, quando explora gêneros mais leves, mais agradáveis, de quase pura sofisticação. Era capaz de adaptar-se às mais variadas circunstâncias, podendo ser tanto o melhor aluno da classe, quanto outras vezes o pior. Por vezes, era contraditório nos seus impulsos, que o podiam levar aos extremos, embora soubesse sair com galhardia da situação, mesmo das piores e menos aconselháveis. O adulto quase repetiu o menino terrível, que foi perfeito no lar assim como exemplar dirigindo o Museu Histórico. Ainda bem que, desde cedo, conseguiu adquirir renome, tornando-se uma grande figura das nossas Letras. Apesar disso, talvez jamais haja existido no Brasil intelectual mais combatido e agredido pela imprensa quanto Gustavo Barroso. Certamente, em primeiro lugar, por ser jornalista, a mais venenosa ou perigosa das profissões. É ele próprio quem diz:

A vida dos jornalistas aparece aos olhos de toda a gente como um castelo maravilhoso, iluminado pelos focos elétricos da publicidade e da fama. Mas os que mourejam na imprensa bem sabem o que ela é o que ela vale... O jornalista é tal qual o papel de jornal. Este, claro, limpo, virgem, é colocadono prelo. Sobre ele rodam os cilindros e sai por fim achatado, dobrado e sujo de tinta. Para nada mais serve depois disso... Maldita sejas tu, ó tinta de escrever! És negra como a treva e, se tens causado alguns benefícios, inumeráveis são os males que tens causado. És tu quem afasta da vida prática os sonhadores do verso e da prosa. És tu quem ajuda a imprensa a viver sua vida escandalosa. Por ti tomam vulto os ódios e as vinganças. Em ti se concretiza a calúnia... Servir ao público no Jornalismo é a pior das escravidões, porque se serve ao mais impiedoso dos senhores. 

LUTAS E INCOMPREENSÕES

Por tais razões, não é de admirar as lutas que sofreu e que provinham do seu temperamento e das suas oposições, embora não se canse de lastimar-se das perseguições e injustiças de que se julga vítima. Em 1932 escreve:

Há 25 anos, soam e ressoam para mim os clarins da luta. Há cinco lustros,combato dia a dia pela minha vida. Há 25 anos, não tenho um minuto de repouso e, mal repilo uma investida do inimigo, outros se apresentam em campo, armados de ponto em branco, forçando-me a nova batalha. Há cinco lustros dura, sem tréguas, essa árdua peleja e eu não mando dar o toque de retirada, esperando sempre e sempre ouvir a marcha batida da vitória... Ao iniciar a descida da encosta que leva ao túmulo tenho os pés sangrando. Ninguem vê os meus pobres pés ocultos na poeira. Eu atingi o cume, acha-me no rosto sinais de triunfo e todos me invejam. Um gênio bom aconselha-me:
– Mostra-lhes teus pés para que te queiram menos mal. Mas continuo e continuarei a escondê-los.

Estão vendo quanto a criança mimada e rebelde pode sofrer tornando-se adulto, mesmo alcançando glória e renome?

Em torno do nome de Gustavo Barroso criou-se um acervo de opiniões desencontradas, que correm toda a gama de julgamento, indo da ofensa grosseira à glorificação entusiástica. É possível que todos tenham razão, como é comum nas coisas humanas, cada um à sua maneira. A perfeição não é deste mundo e, quando alcançada, não o pode ser senão em doses insignificantes, à custa de esforços incalculáveis. Não era isso muito do temperamento de Barroso, sempre movido pelo instinto e os rompantes da sua personalidade. Era sincero consigo próprio, embora tal sinceridade pudesse andar impregnada de complexos, vindos desde a infância e que agiam poderosamente, o conjunto, porém, é que conta, havendo material de sobra para fazer de Barroso uma das figuras mais marcantes do nosso mundo intelectual. Não foi por outra razão que Rui Barbosa admirou o talento da sua pintura literária, tão cheia de colorido e de vida. Tristão de Athayde classificou “sua Arte de sadia e vibrante, colorida e quente, autônoma, variada”. Múcio Leão, em 1922, falando de Mula sem Cabeça, diz que o artista logo se impõe fazendo-se amar por todos nós. Luís Murat, dois anos depois, refere-se à Alma Sertaneja: “Não conheço livro algum em que se dê tão larga visão, atinentes todas a refletirem um pedaço da nossa alma.”

Antônio Torres, tratando dos seus escritos, disse que revelavam “graça, espontaneidade e uma qualidade indispensável ao escritor: o espírito comunicativo, escrevendo com clareza coisas simples que obrigam o leitor a ir até o fim”. E Afonso Celso acrescenta que se vai ao fim seduzido, subjugado, satisfeito, desejando mais. Este autor, analisando seus livros sobre as guerras do sul, diz que neles escrupulosa exatidão histórica é realçada pela imaginação... As asserções sobre os acontecimentos e o caráter das personagens baseiam-se sempre em irrecusáveis documentos e conscienciosas pesquisas. É a História romanceada com fidelidade proibida de rigorosas,
de modo a excluir o mínimo erro intencional. É a exposição do ocorrido como deveras ocorreu objetivamente,ou devia subjetivamente, logicamente, naturalmente ter ocorrido.

Julgo essa apreciação de grande valor psicológico, porque deixa perceber quanto o subjetivo pode influenciar o objetivo, quanto um ator pode ser conduzido subconscientemente na feitura da sua obra. No caso de Gustavo Barroso, aquele homem singular vem da infância, serve-se de uma imaginação poderosa para brincar com bonecos, atravessando depois a existência numa luta perpétua, no qual a fantasia procura dominar a realidade. O fardão da Academia e as condecorações representam sonhos da meninice, assim como a sua obra literária desafogo das suas variadas tendências instintivas. A sua adesão ao integralismo é quase uma tropelia para espantar burgueses e reviver sensações das suas terríveis brincadeiras infantis. O mais grave é que brincadeiras e oposições desse gênero, quer de criança, quer de adulto, são tudo que há de mais sério e importante na vida, tal a força que recebem do inconsciente. Por isso, não são todos que podem recalcá-las na austeridade dos dias que surgirão mais tarde. Barroso foi sempre um instintivo e é sob esse ponto de vista que precisam ser analisadas a sua vida e a sua obra, vida esplêndida e cheia de ensinamentos, obra notável e de extraordinárias proporções! Isso explica que Pedro Calmon, que o acompanhou num largo percurso da existência, tenha podido afirmar recentemente haver sido ele “um fracassado nas aspirações terrenas e um glorioso nas aspirações espirituais”, deixando “uma obra cheia de vida e brasilidade, vazada na preocupação das coisas sérias e nobres, como um eterno namorado do Brasil”. Calmon foi seu companheiro de trabalho, “desde os seus mais verdes anos de iniciação literária”, seu secretário no Museu Histórico e mais tarde seu afilhado e colega na Academia de Letras. E acrescenta: “Barroso era aparentemente um teutão, mas no íntimo um sertanejo, bom, grande, generoso.”

INTEGRALISMO

Barroso deixou uma obra que alcança quase as proporções de uma biblioteca, sem contar o jornalista fecundo e variado, que passou dos jornais da sua província ao Jornal do Commercio e às revistas do Rio, desde o Fon-Fon e a Seleta, em longínquos tempos, até terminar na Ilustração Brasileira, na A Manhã e no O Cruzeiro, tendo neste a sua crônica semanal durante anos seguidos, que ainda prosseguiu meses depois da sua morte, o tal material que organizara. A sua força suprema foi talvez a sua extraordinária capacidade de trabalho, que se revelava tudo em que punha as mãos. Quando se dedicou ao Integralismo, escreveu livros sobre a questão, sem contar os artigos e as duras polêmicas que teve de enfrentar. O seu ardor atingiu aí um máximo de intensidade, como ressalta dos numerosos trabalhos que deu então à publicidade: O que o Integralista Deve Saber, A Palavra e o Pensamento Integralista, Integralismo e Catolicismo, Integralismo de Norte a Sul, Integralismo em Marcha, O Integralismo e o Mundo, Corporativismo, Cristianismo e Comunismo, descambando daí para violentos ataques aos judeus, aos maçons e aos comunistas, ele vê congregados como uma força política, social e econômica que domina o Brasil e outras nações. É o que mostram outros dos seus livros: Brasil Colônia de Banqueiros, Sinagoga Paulista, Reflexões de um Bode, Judaísmo, Maçonaria e Comunismo, A Maçonaria, Seita Judaica, Os Protocolos dos Sábios de Sion, nos quais a sua agressividade não tem limites. O judeu, o maçom e o comunista tornam-se para ele responsáveis por todos os males, estando bem organizados e precisando ser combatidos e extirpados. É a tarefa do Integralismo, que trai a sua aproximação com o Fascismo e o Nazismo. Nessas obras, a sua preocupação maior é descobrir o judeu, o maçom, o comunista, escondidos ou disfarçados em todas as atividades. Parece ter sido essa uma das grandes armas do Integralismo, que Barroso manobra com aquela mesma fúria com que atacou com um garfo de jardim o luso que chicoteava crianças brasileiras. O Nacionalismo transforma-se em Integralismo e assim ataca José Américo como comunista, Armando Salles e os Roosevelt como judeus, pouca gente de valor, do passado e do presente, deixando de ter sangue semita.

Tudo andava embuçado, sendo o materialismo o maior fator desmoralizante da humanidade. Era preciso estudar a história subterrânea dos acontecimentos, despir estes dos seus mistérios e das suas mistificações. A sua História Secreta do Brasil anunciada em quatro volumes, dos quais não foram publicados senão três primeiros, está impregnada desses pontos de vista, que ele procura justificar ou demonstrar à custa dos mais vados argumentos e documentos. Mas, em muitos deles é fácil verificar quanto o autor é conduzido pelos seus sentimentos, que o levaram a opiniões extremas, tanto no ataque, quanto na defesa. No fim, parece que se cansou de tanta luta, deixando até de escrever o quarto volume dessa História Secreta, onde ia entrar na fase contemporânea, estando ainda vivos alguns dos personagens ou tendo parentes no cenário. Isso certamente iria acarretar novas e terríveis ondas de revolta e oposição. Já em 1932 parece cheio de desalento quando pergunta: “Por que não tive a sorte de não dar na vista? Por que não me contemplou o destino com a obscuridade? Por que as fadas não me cobriram com o véu da mediocridade feliz? Por que não passo despercebido entre os outros homens sem despertar seus sentimentos hostis? Por quê?” Antes, dissera:

Tenho feito sempre o meu caminho pela vida entre rosas ou espinhos,observando e aprendendo, como um dos personagens de Dostoievsky. Do mesmo modo que ele, vou amando a humanidade em geral e detestando o homem em particular. E, como no coração desse indivíduo, quanto mais aumenta o meu amor pela humanidade mais cresce o meu desprezo pelos indivíduos... Julgo-me capaz de um grande sacrifício pela grei humana esinto-me absolutamente incapaz de dar metade do meu lençol para cobrir o meu semelhante friorento... 

Aliás, a sua luta pelo Integralismo deve ter feito decair as suas forças e a sua impetuosidade, aumentando as suas desilusões. Desde então, sua produção literária decresce extraordinariamente, o que talvez sirva de exemplo para mostrar quanto a Política pode prejudicar um homem de letras. Também, por isso, não é de admirar que o pêndulo pudesse oscilar em sentido contrário, alcançando igualmente deste lado um máximo de amplitude. Depois da luta e da destruição é preciso a salvação e a regeneração. Então, torna-se ele um soldado de Deus, aquele que, desde pequenino, vinha vivendo como um exaltado da Pátria. Em 1935, traduz Jesus Desconhecido e publica O Quarto Império, que termina com as seguintes palavras: “Os dias são chegados do reinado do Cordeiro Divino que resgatou os pecados do mundo: Cristo vive! Cristo reina! Cristo impera! E a glória infinita de Deus resplandecerá na Unidade Espiritual dos Povos! Amém.”

No meu estudo sobre a vida e a obra de Gustavo Barroso há uma lacuna, que desejaria haver preenchido, o que não me foi possível por não haver encontrado elementos suficientes para fazê-lo, quer na trajetória da sua existência, quer na sua produção literária. Refiro-me à sexualidade, que, como é fácil verificar, foi deixada de lado, nunca fornecendo ele informações para permitir qualquer interpretação. Nas suas Memórias, não trata da questão, apesar da sua vida de menino arteiro e de, como jovem, ser dado a prazeres, certamente favorecidos pelo físico e a sua inteligência. Em Luz e Pó, fala do amor e das mulheres como um literato, de qualquer época, usando frases e sentenças mais convencionais do que reais. Em Mulheres de Paris sofisticado amor e das mulheres à maneira dos que se ocupam do assunto como simples Literatura. Assim, nessa questão, Barroso conservou-se sempre afastado, como se vivesse na pré-história da época freudiana. Por essa razão julgo o meu trabalho por demais falho e incompleto, sobretudo porque esse componente da vida impõe-se como dos mais importantes no estudo de qualquer personalidade. Deixo assim, em aberto, capítulo tão significativo da existência de Gustavo Barroso, tanto mais significativo quanto a escapatória ou a renúncia ao assunto devem traduzir o papel fundamental que representou na sua vida, a julgar pelos ensinamentos psicanalíticos.

O MUSEU HISTÓRICO

Depois das explanações apresentadas, podemos chegar à parte mais importante e gloriosa da vida de Gustavo Barroso, que é a sua passagem pelo Museu Histórico Nacional, do qual foi fundador e criador, permanecendo como diretor enquanto viveu. É obra das mais notáveis, em 1922 criada por um decreto do governo Epitácio Pessoa, graças a uma sugestão de GustavoBarroso, que se entregou de corpo e alma à tarefa, de início modesta e insignificante, mas que nas suas mãos transformou-se numa das realizações mais valiosas da nossa Pátria, como pude dar-me conta recentemente visitando esse Museu e suas numerosas e extraordinárias coleções. Na verdade, fiquei vivamente impressionado diante dos valores encerrados naquela casa, dentro de uma ordem e organização perfeitas, a começar pelo edifício, imponente pelas transformações que sofreu e que deram grandeza à sua arquitetura. Acumulam-se aí tesouros de incalculável valor, que precisamos todos conhecer, quer do ponto de vista material, quer sobretudo do histórico. E foi tudo obra de Barroso, obra de dedicação, de abnegação, que servirá como a maior glória da sua imortalidade. É uma particularidade que deve ser posta aqui em evidência, porque, em certo momento, Barroso foi destituído das suas funções e exonerado do cargo, por motivos políticos, depois de uma revolução! Foi, então, exilado “por ser contrário”, como diz, “ao chamado espírito revolucionário, nunca até hoje definido, que se desencadeou sobre o Brasil pelas forças das armas”. Felizmente soube defender-se, pondo em relevo o esforço, o desinteresse, a dedicação que empregara na realização dessa grande obra. É uma página histórica que merece ser rememorada, pois mostra quanto podem as injunções políticas mesmo contra uma obra patriótica, digna do maior respeito e admiração. Em 1930, quando caiu o governo, Barroso oficiou ao novo ministro da Educação pedindo uma devassa naquela repartição e na sua vida particular para que ficasse provado que, no cargo de diretor do Museu, servira o País sem ônus, com uma verba insignificante, obtendo de particulares, pela sua intervenção pessoal, dinheiro, móveis, objetos que representam hoje a grandeza da Instituição. Em vez da devassa solicitada, que deveria demonstrar a seriedade e a honestidade do seu trabalho, o ministro oficiou-lhe dizendo que o governo provisório aceitava a exoneração que ele não havia pedido! Barroso protestou violentamente contra essa aleivosia, declarando que havia sido nomeado em caráter efetivo, que contava muitos anos de serviço sem licenças ou férias, o que garantia a sua vitaliciedade. Acrescentava que seria uma exoneração arbitrária, contra um funcionário que sempre soubera cumprir o seu dever com a máxima honestidade e dedicação. Houve barulho pela imprensa, tanto maior quanto o novo governo propunha-se regenerar costumes, fazendo prevalecer a justiça! Barroso acabou sendo reconduzido ao cargo, recebeu um banquete de desagravo por parte dos amigos, e prosseguiu como diretor do Museu até a sua morte, há meses passados. 

O Museu Histórico representa um alto padrão de glória para o renome de Gustavo Barroso, sentindo-se em todo ele, através das suas salas numerosas e coleções riquíssimas, o seu trabalho criador. Na verdade, foi essa a menina dos seus olhos, hoje um dos monumentos mais valiosos e imponentes do nosso Brasil. Quando chegou à aposentadoria compulsória por limite de idade, foi mantido no lugar graças à solicitação de um grupo de intelectuais, reconhecendo o governo quanto era justo e necessário conservá-lo no posto de diretor. A Instituição tomara enorme incremento, desdobrando-se em múltiplas direções. Assim, publicou Barroso O Catálogo Geral do Museu Histórico, diversos volumes dos seus Anais, um sobre A Coleção Miguel Calmon, dois sobre Introdução à Técnica de Museus, um sobre História do Palácio Itamaraty, além de um Catálago Comentando da Exposição Histórica do Brasil nos Centenários de Portugal; O Brasil na Lenda e na Cartografia Antigas; Portugal, Semente de Impérios, e diversos outros. No Museu, criou cursos que o tornaram uma verdadeira Faculdade de ensino dessa especialidade, devendo os alunos visitar cidades e regiões históricas do nosso País e cursar três anos para obtenção do diploma. Entre os diversos cursos, há o de Técnica de Museus, criado e ministrado pelo próprio Barroso, que publicou um Tratado em dois volumes sobre a questão, ilustrado de numerosas figuras e escrito com tanta proficiência que pode empolgar mesmo pessoas leigas. É o que posso declarar ao tomar conhecimento dessa obra esplendidamente didática, ao mesmo tempo profunda pelos conhecimentos que apresenta e extensas bibliografias, em grande parte revelando a importante colaboração do autor. Acredito ser uma publicação das mais úteis ao Brasil, pois como base do curso de técnica, tem permitido formar todos os conservadores de museu atualmente em função no nosso País. É também do Museu que partiu o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico do Brasil, cuja atuação têm sido das mais relevantes para conservação e elevação da nossa cultura. O Museu Histórico representa hoje um patrimônio de incalculável valor para a nacionalidade, ainda enriquecido pela sua biblioteca e um arquivo fotográfico. É com razão que Pedro Calmon exclama: “Poucos homens trabalharam com tanta probidade e com tão desinteressado amor quanto Gustavo Barroso defendendo com intransigência e patriotismo os interesses do Museu.”

DRAGÕES DA INDEPENDÊNCIA

Quero chamar a atenção para o fato de a criação desse Museu constituir obra exclusiva de Gustavo Barroso, que a vinha imaginando há muitos anos e soube servir-se das suas relações com Epitácio Pessoa para transformar o plano em realidade. Esse plano tinha raízes profundas e longínquas, vinha do menino que gostava de se fantasiar de almirante e que, mais tarde, como acadêmico, tornou-se cônsul de uma república de estudantes, presidindo as sessões vestido de mandarim chinês. Daí partiram também as suas tendências para estudos históricos, tão impregnados de patriotismo e imaginação. Desde os tempos de criança, gostou de brincar com soldados e batalhões, o que estava mais de acordo com as suas propensões e ideais. Isso explica por que, em 1917, no seu livro Idéias e Palavras, vai ocupar-se dos Dragões da Independência, o que faz nos seguintes termos:

Porque não o temos ainda, precisamos criar o culto de nossas tradições,especialmente das tradições militares. Sem o amor do passado e a lição dos feitos antigos, não pode haver nacionalidade. Amar a História é amar a a terra.Uma não passa de corolário de outra. Até hoje quasenão temos feito esforços nesse sentido. Façamo-los. Os ensinamentos das lutas atuais nos mandam defender o Brasil das ambições que se possam elevar contra ele.Devemos executar esse programa materialmente – fomentando o desenvolvimento os brasileiros a religião do passado, que é a alma mesma da Pátria. Seria de grande alcance, para tal fim, rememorar constantemente ao povo as coisas antigas, colecionando em museus adequados objetos representativos da vida militar da Nação, expondo-os, explicando sua significação, familiarizando as gentes com eles. Somos o povo que menos guarda e, portanto, menos estima as coisas do passado. Necessitamos ser educados. Trata-se agora do levantamento do espírito patriótico e militar do Brasil. Há uma verdadeira cruzada.Patriótica e nobre é a idéia de um museu militar. Queiram os numes que ainda se realize, para nele depormos os nossos troféus como os gregos suspendiam os broquéis vencidos nas métopes de mármore dos templos. Todas as nações têm museus militares, guardando tradições guerreiras, documentando o progresso dos armamentos e das táticas, exaltando o culto das glórias passadas. Somente nós não os possuímos ainda. Até hoje não tivemos o cuidado de guardar as tradições militares, abrigá-las, cuidar delas, roubando à ferrugem, à destruição, as armas dos que desapareceram depois de combaterem pela Pátria.

Não estava mais do que maduro para ser o criador do Museu Histórico, que permanecerá como o seu maior título de glória e imortalidade, mesmo quando quaisquer outros já tiverem sido destruídos pela marcha do tempo e dos acontecimentos? E não é esse criador do Museu Histórico aquela mesma criança que, com poucos anos de idade, desabalara num choro tremendo vendo o velho uru de compras atirado à rua como objeto inútil e desprezível?

Senhores acadêmicos,

Estou no fim da minha humilde oração, que tem um único mérito, o de ter de falar dos meus predecessores, sobretudo do último e maior deles – Gustavo Barroso. Vimos que a sua obra é quase ciclópica pela extensão e das mais variadas pela erudição, a imaginação, a observação. É antes de tudo original, nativista, regional, mas distende- se por temas internacionais de regiões e épocas diversas, embora tendo sempre algo do sabor do seu nordeste e da força do seu instinto. Trabalha tanto com a ficção quanto com a observação, tanto se ocupa da História quanto do folclore, escreve ensaios, romances, novelas, contos de todos os gêneros, ocupando-se quer do caboclo, quer dos seus colegas da Câmara e da Academia ou das mulheres de Paris. É um literato que sabe servir-se da História da Ciência para traçar quadros da Natureza ou penetrar profundos recessos psicológicos. É um namorado eterno do Brasil, que deixa ressumbrar essa paixão através de todos os anseios da sua personalidade. É, porém, antes de tudo, o trabalhador, o homem que atravessou a vida a lutar e produzir, num tremendo esforço de criação, como bem mostram as proporções da sua obra, na qual aparece sempre a individualidade do autor, respeitoso da tradição, sincero nas suas manobras, cioso da sua Arte, obediente às injunçõesdo seu temperamento. Também por isso, torna-se fácil acompanhar a evolução da sua vida, as peripécias do seu espírito. É assim que, na sua primeira fase, sente-se o influxo da sua infância, que se reflete poderosamente na sua obra. Terra de Sol é o seu melhor livro, porque nele convergem todas as vivências da sua meninice e da sua adolescência, que encontram aí esplêndida moldura para enquadrá-las. Depois prossegue, amadurece, elevase, deixa progressivamente de lado as fontes que o nutriam e que agora brotam de outras regiões. Emancipa-se do passado e passa a viver solto no mundo, no mundo das Letras, onde a erudição que adquiriu e o talento que possui permitem-lhe penetrar em todos os territórios, colhendo a mancheias o que vai encontrando. A colheita é fecunda e abundante, embora também por vezes toque em espinhos e fira-se em abrolhos. Parece não ter mais necessidade de farda, do galão, do uniforme, mas é ainda aí que se vão espraiar as suas tendências, quando se sente livre de todas as peias, dentro da glória da sua obra literária, no fardão desta Academia, que lhe deveriam ter bastado. Mas a Política é a hidra de mil cabeças, capaz de nos assaltar quanto menos atentamos aos seus botes. As suas feridas podem ser graves e até mortais, se a vítima não está imunizada pelo seu valor ou o valor da sua obra.Foi esse o caso de Gustavo Barroso, que celebro aqui como intelectual, devendo o elogio acadêmico ser feito principalmente ao escritor, embora também ao homem, sincero nas suas lutas , nobre nos seus imperativos, infatigável no seu trabalho. Foi uma existência que se realizou à custa de esforços e dedicações, daquilo que se pode chamar os impulsos de uma verdadeira vocação. Por isso, julguei de vantagem estudar não somente a obra, mas também a trajetória do autor como ser humano na face da Terra. É quase uma autópsia, que precisa ser realizada enquanto os dados objetivos estão presentes e podem ser devidamente analisados. A própria obra, em si, é  perpétua,conserva-se nos arquivos e nas bibliotecas ao alcance de todos os olhos, podendo ser consultada em qualquer época, presente ou futura. Já por essa razão, deve o discurso de sucessão acadêmica ocupar-se da personalidade desaparecida, cujo rastro pode apagar-se rapidamente no tumultuar da vida de todos os dias, enquanto a obra produzida é perene, podendo estar sempre presente. Não foi por outro motivo que dei essa forma à minha oração, tarefa extremamente facilitada pelas “Memórias” de Gustavo Barroso, embora, mesmo nelas tenha aproveitado o que me pareceu mais consentâneo com o panorama psicológico para permitir uma visão de conjunto do homem e da sua obra. Mesmo contando a nossa própria história pessoal, podemos nos enganar quanto a engramas guardados do passado, como pode, por vezes, o interlocutor perceber. Haverá, assim, verdadeiros entreatos de psicologia, cuja interpretação dependerá da perspicácia dos participantes. Também, por isso,é de praxe deixar em aberto os julgamentos, passíveis de outras intepretações. 

TENDÊNCIAS MILITARES

Em relação a Gustavo Barroso, não há dúvida de que os seus primeiros impulsos para a vida militar podem explicar muito da sua obra, principalmente a tendência que mostrou para sua obra, principalmente a tendência que mostrou para assuntos históricos e militares. Grande súmero dos seus livros versam sobre guerras e os seus heróis. Guerra do Videu dá-nos conta da campanha Cisplatina, de 1825 a 1828; Guerra do Flores refere-se aos episódios da Campanha do Uruguai, de 1864 a 1865; Guerra de Artigas é a campanha das Missões, em que se cruza o Uruguai para atacar São Bórgia Guerra do Lopez é a nossa guerra do Paraguai. Depois, vem ainda um livro sobre O Brasil em face do Prata; um outro sobre História Militar do Brasil, que atinge diversas edições, além disso: Tradições Militares, Uniformes do Exército e outros, sem contar biografias uma de Caxias; outra de Osório, o Centauro dos Pampas uma terceira sobre Tamandaré, o Nelson Brasileiro.

Será por acaso que se interessou por tais temas, deixando tantos livros sobre a questão? Não se vê aí que procurou dar corpo às suas tendências infantis, quando brincava de almirante e gostava de estudar história e geografia? É o próprio Gustavo Barroso que afirma “que nada é mais curioso para os que se preocupam com coisas do espírito do que conhecer os primeiros escritos, prosadores e poetas que atingiram certa notoriedade. Palpa-se assim, o ponto de partida da sua evolução mental”. Lastima que não tenham sido publicadas as primeiras páginas dos grandes das Letras, a exemplo do que se fez com Flaubert. Não há dúvida que a sugestão é de grande valor, pois permitiria investigar o desenvolvimento de qualquer intelectual, tornando a sua obra mais interessante ou compreensiva pelo melhor conhecimento do autor.

A CRIANÇA LIVRE

Quando em 1932, na presidência desta Academia, Barroso deu as boas-vindas ao Barão Henri de Rothschild, o conhecido milionário, que foi escritor e criou o Teatro Pigale de Paris, referindo-se aos seus livros autobiográficos, disse:

Li, nessas páginas singelas e sentidas a história da vossa infância triste,murada em palácios, no meio de saias de nurses e rabonas de pedagogos. Como Colete, lamento-o e não o invejo. Fui criado selvagem e livre, na imensa liberdade dos sertões e praias do Nordeste do Brasil. Não trocaria, por todos os vossos tesouros, a minha meninice pela vossa. E por isso murmurei,ao terminar o capítulo de vossa tortura infantil: “Pobre criança rica!”.

Desejo chamar a atenção para cada confissão, que ilustra a riqueza e a variedade da vida de Gustavo Barroso, fazendo compreender melhor o desdobrar da sua existência.Se ele se atira nos braços do Integralismo, numa época em que já devia estar tranqüilo e contente com os triunfos alcançados, traduz bem isso a revivescência daquelas velhas tendências infantis, quando cometia tropelias, dando-lhes não raro aspectos de vingança justiceira. Agora, ia baterse pela Pátria, por Deus e pela Família, movido por antigos engramas do passado. Sai para a liça como um ferrabraz, aquele mesmo que assombrava transeuntes com fantasmas ou esgrimia na calada da noite para desnortear soldados de polícia. Explica que se tornou integralista porque era preciso salvar a Pátria, que ele amava acima de tudo. E saiu de lança em riste para acabar com mouros e judeus, para dar moralidade e dignidade ao Brasil, que estava sendo devorado pelas forças corruptas da política. Era sincero em seus sentimentos e viera para a luta com convicção, como fizera sempre na vida. Desta vez, já adulto e imortal, procurou na filosofia recursos para dar mais consistência às suas convicções. É sempre o mesmo lutador, sedento de justiça, pronto para arremessar contra tudo que não se case com os seus desejos e convicções. É contra os judeus e os maçons, bate-se pela religião católica, levanta-se contra o comunismo, torna-se integralista. Despreza a política, profliga a sua concorrência nas Letras, contenta-se com o seu lugar de Diretor do Museu Histórico, obra silenciosa, paciente, ignorada, mal recompensada e mal compreendida... Repartição de ordenados parcos, de verbas humildes de promoção dificílima. E desafia os seus contendores a apontarem uma cavação, um negócio escuso feito por ele, em qualquer tempo.“Tudo quanto possuo tem sido ganho com o meu esforço e a minha pena. Nunca herdei de ninguém nem pretendo herdar. Não recebi jamais dotes ou presentes.” Numa conferência, em Petrópolis, diz que está ligado à cidade por coisas de espírito e acrescenta: “Os títulos de que me valho não são os de dinheiro ou de política. Dinheiro e política morrem com o tempo. O espírito é imortal”.

Agora, senhores acadêmicos, posso terminar esta longa e modesta oração, longa não por mérito ou arte do autor, sim por ser o tema tão vasto, tão variado, tão cheio de recursos e possibilidades que o mais bisonho dos escribas encontraria facilidade para desenvolvê-lo e por ele se empolgar.

MORTE DE BARROSO

Gustavo Barroso faleceu em 3 de dezembro de 1959 e o féretro, como do rito, saiu desta Academia, recebendo as despedidas do seu Presidente, numa das orações fúnebres mais comoventes a que tenho assistido. No cemitério, além de outros oradores, é Pedro Calmon que na sua palavra sugestiva, inexcedível de calor e emoção, vem chorar o amigo e o mestre, o companheiro de trabalho, que voltava à terra, partindo para a Eternidade e a Imortalidade. Era ao cair da tarde, uma tarde luminosa e azul, que banhava de luz a paisagem dos mortos em derredor. Calmon não deixou escapar a grandiosidade daquele espetáculo para a despedida final. Vi lágrimas em muitos olhos e correu um arrepio quando a sentinela avançada, um soldado dos Dragões da Independência, no seu grande uniforme, do alto de um túmulo, fez soar o clarim, dando ao toque de silêncio. Era a última homenagem ao morto, homenagem vibrante como fora a sua existência, quase um símbolo da sua vida. Ali estava o soldado com que ele havia sonhado, paramentado com o uniforme que fora da sua criação! Imagino, no seu monumento funerário, essa sentinela de pé, empunhando o clarim e, ao lado, a imagem da Pátria reverente, chorando o filho que tanto a amou. Também eu hoje aqui, dentro do meu uniforme solene, não passo de uma simples sentinela que vem velar pela imortalidade do meu antecessor. Devo, porém, pedir perdão por não possuir uma voz mais moça, mais vigorosa, mais significativa para traduzir a mensagem que esta Academia deve a Gustavo Barroso, que eu venho substituir humildemente na Cadeira 19.

16/8/1960