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A autoridade da morte

 

Parece que um escritor para ser plenamente reconhecido, tem que morrer. Vejam os exemplos de Jorge L. Borges, Sábato ou Bioy Casares, na próxima Argentina. Suas obras se multiplicam por livrarias e até em bancas de jornais. E pela "autoridade da morte", usando a expressão feliz de Machado de Assis, que também pressentiu o que lhe sucederia, postumamente.Porque em vida não foi poupado nem por Sílvio Romero, nem por José do Patrocínio.
 
De um lado, a morte é reveladora do que se mostrou grande, em qualquer arte. De outro, é caridosa com o medíocre. Faz com que tudo dele desapareça, como se nunca tivesse existido.

De um lado, ilumina e de outro, esconde com pudor qualquer laivo de ignorância ou vergonha. Por ter a morte estranhíssima piedade com o mais frágil ou limitado. E a morte parece não ter soberba alguma. E é a mais aguda investigadora que se conhece, levanta documentos ocultos, histórias secretas, datas esquecidas. Mostrando ser a morte amiga da verdade e atenta aos extravios. Portanto, não nos caberá encobrir, o que ela evidencia. E o que dela reluzir será necessariamente ouro.
 
Isso se dá com o escritor, a grande personalidade, ou o estadista. Quando vivos põem à mostra seus defeitos e algumas qualidades que nem sempre vêm à tona. Com a modéstia, o orgulho, a simplicidade, ou a pose. Porque a grandeza possui o hábito de não desconfiar de si mesma, os demais seres, sim. O Gênio de Cosme Velho e Dostoievski, por exemplo, deviam causar vexame ao que assistiam aos seus ataques epiléticos, em via pública. E ninguém jamais percebeu que pode ser epiléptica a esperança. E todos os que conheceram, pessoalmente , os grandes criadores ou os eminentes governantes, poderão guardar deles, pormenores, momentos sensíveis ou insensíveis, jamais o segredo do que os tornou insubstituíveis.

E o futuro se aborrece do transitório. Nem preserva a pobre e desamparada penúria ou a fatura da imperfeição dos que nos legaram obras imorredouras. Há uma triagem das coisas aparentes, das superfícies, dos sentimentos ou ódios. Fica o durável que a traça e os ratos não roem. Fica a memória de uma grandeza, o rastro de algo divino, o que só a autoridade da morte sela e cristaliza. E não é em vão que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na homenagem pelos seus oitenta anos, confessou, perplexo:" Às vezes me pergunto se já morri, porque no Brasil só se fala bem quando se morre". E não só no Brasil.

Jornal do Commercio (RJ), 5/7/2011