DISCURSO DO SR. GUILHERME DE ALMEIDA
SENHORES Acadêmicos,
Existe, no mundo, uma terra que “Braçir”, “Braxil”, “Brazylle”, “Ó Brasile”, “Terra de Vera-Cruz”, “Santa-Cruz”, “Pindorama”, “Terra de Pau Brasil”, “Terra dos Papagaios”, “Terra Brasiliæ sive América” foi chamada, e que Terra dos Poetas o é de fato.
Ora, aí, sob a invocação do descobridor da poesia plástica dessa terra (Gonçalves Dias), um poeta (Olavo Bilac), o revelador da poesia lírica dessa terra, fundou e deixou a outro poeta (Amadeu Amaral), o modelador da poesia inteligente dessa terra, uma poltrona acadêmica: esta Cadeira. E porque ela é, assim, na sua contextura, o amálgama firme e coeso da forma, da emoção e do pensamento brasileiros; e porque é toda a música, todo o amor e toda a idéia do Brasil, isto é, toda a poesia brasileira, pois poesia é ritmo no dizer, no sentir e no pensar; esta é, legitimamente, a cátedra da nossa poesia.
Assim, tal Cadeira, em tal país de poetas, tem que ser o “angulus ridet”, o mais alto título, a recompensa mais elevada, a mais ousada ambição, o sonho mais enfeitado, o prêmio maior e melhor de todos os fascinados homens que fazem versos por aqui.
Todos estes têm o direito de desejá-la, de querê-la para si. Todos, indistintamente: os que se dizem ou são julgados antigos; os que são julgados ou se dizem modernos. Todos, indiferentemente, desde que sejam poetas de verdade. Porque não se compreende poesia verdadeira, como se não compreende nenhuma verdadeira arte, sem liberdade. Liberdade de quem não tem nem pode ter escolas, isto é, prisões, outras que não sejam a sua própria vontade, a sua própria personalidade. Liberdade, por exemplo, de ambicionar, ou não, este posto acadêmico... Li-ber-da-de!
Eu fui um destes ambiciosos: o mais vaidoso, sem dúvida, por me considerar um poeta; e o menos merecedor, com certeza, por ter sido o contemplado. Sim, que é da sorte ser vária, irônica e incoerente...
E já que assim é, bem haja a fantasia esdrúxula do destino, que quis, com sua variedade, sua ironia, sua incoerência, dar a este lugar da Academia, para humanizá-lo um pouco, o seu primeiro, único, pequeno defeito: a presença do supérfluo, do inútil. Porque, na sua essência e no seu sentido e no seu destino, esta Cadeira acadêmica estava completa: tinha toda a realização natural, serena e íntegra de uma árvore.
Uma árvore... Ela estava presa à terra verde e virgem pelo trabalho múltiplo, obscuro e secreto das raízes pacientes que subiram e firmaram o tronco teso e a galharia forte: Gonçalves Dias, o ritmo brasileiro; rebentara no ar de sol a loucura das flores estalando de perfume e cor: Olavo Bilac, o lirismo brasileiro; pendera para o chão guloso a copa redonda e pesada de frutos como uma fronte que cisma: Amadeu Amaral, o pensamento brasileiro. Rama, flor e fruto – que mais lhe faltava? A inutilidade intrusa, a superfluidade intrometida... O vagabundo leviano e passageiro que viesse repousar um pouco na sua sombra, porque essa sombra lhe parecera amiga e boa, para dali partir, uma tarde, descuidado e frívolo, apenas deixando gravadas naquele tronco umas iniciais vadias, e levando, na alma e no corpo descansados, a cantiga livre daquela fronde musical, a tontura forte do cheiro daquelas flores e o gozo longo do gosto daquelas frutas...
É isso, só isso – e essa glória me basta – o que explica a minha passagem por aqui, sob esta árvore.
* * *
Esta árvore...
Muda que veio, por ondas quentes, sob ventos casuais, em caravelas sonhadoras, de uma árvore cantante e nobre, de além dos mares. Árvore heráldica. Árvore genealógica da nossa poesia.
Filha de reis, brotara na Provença de há dez séculos, entre oliveiras e laranjeiras e amoreiras e toda abraçada das vinhas pejadas do sul do Loire. Do seu lenho aristocrático, sensível e vibrátil cortaram-se lâminas secas e acústicas que se vergaram, finas, para o bojo gemente da “mandore”, ou se enrolaram, ásperas, para a roda rangente da “vielle”. E da “vielle” e da “mandore” poetas-reis, poetas-barões, poetas-senhores, poetas-cavaleiros tiraram o ai langoroso das “aubades'”, ou o riso fino das “sirventes”. Era o natal da canção. Era Guillaume de Poitiers dizendo à sua terra, a caminho da Palestina, o seu cortado e rouco “Chant d’Adieu”; Ricardo Coração de Leão pedindo, com Blondel, do torreão onde estão cativos, o seu resgate, na lamentação cavalheiresca de uma “rotrouenge”; Guy, castelão de Coucy, poeta-cruzado, chorando a sua “dame, compagne et amie”, que ficava em França; Jean de Brienne, rei de Jerusalém e imperador de Constantinopla, conquistando, numa “pastourelle”, uma “pastoure”; era Bertram de Born, senhor de Hautefort, no Périgord; Rambaut III d’Orange, Bernard de Ventadour, Conon de Béthune, Arnaut de Mareuil... Eram todos aqueles grandes gentis-homens de almas bruscas e nomes sombrios que, entre as pedras sombrias e bruscas dos “manoirs” da linda França, sabiam “la gaye science”, e aí ficavam, pelas primaveras inteiras, até o primeiro cair das folhas, a “tourner gentiment des vers” na “langue d’oc” de tambor dos “troubadours”...
* * *
Desceu daí, dessa Provença capitosa, do cheiro de amor das suas flores de laranjeira, do sabor aperitivo das suas olivas, do beijo de boca pintada das suas amoras quentes, do mosto fresco das suas uvas acres pisadas nas tinas...; desceu daí uma fina e perfurante raiz da árvore sonora e alastrou-se, estirou-se, subterrânea, longa, verrumante, furando a rocha funda dos Pireneus, varando as terras, eriçadas de Espanha, para rebentar o solo simples e laborioso da Galiza e aí respirar, tomar fôlego e subir no ar em planta nova e forte.
A gleba era boa. Adubada generosamente de sangues invasores derramados em lutas escuras, aí vicejava uma língua abundante, compósita, variegada e versátil; à policromia, à flexibilidade, à inquietude, ao bulício, à vivacidade imitativa do latim juntara-se a aspereza de tropel das línguas germânicas despejadas do Norte brumoso em hordas de vândalos, suevos e alanos, que ruem, ruivos, bruscos, brutos, esporeando ancas, entre estrépitos bárbaros de corcéis sem brida, brandir de montantes brunidos, roçar rústico de adagas e toques roucos de toscas buzinas; e juntara-se também a languidez cantante da modulada algaravia mourisca, cheia de estalidos de almenaras, tatalar de estandartes nas albarrãs das alcáçovas, bandurras e arrabis tangidos sobre alcatifas e alfombras, nos pátios coloridos de pavões, alfaias, esmaltes, azulejos, e cheirosos de sândalo, cânfora, almíscar, rosas, granadas...
Ora, um lirismo próprio, independente, original, já aí cantava pelo ritmo mais velho dessa língua, pela monotonia plangente e repetida do verso “paralelístico”, que em Espanha se chamou “cossante”: cantava “solo ramo verde florido, solo verde florido ramo”; e cantava as “ondas do mar salido” e as “ondas do mar levado”... Cantava... Era a Galiza. Era a Arcádia Católica: terra de romarias e lavras, com avelaneiras, estorninhos, pastoras louçanas, verdes pinos, ribeiras, bodas, hermanas, madres e amigos... Cantava... Ia cantando sozinha, planta agreste de serras, as suas serranilhas soluçadas de alalalas, quando pelo seu caule se enroscou a árvore moça e aclimada de Provença. E, juntas e trançadas, cresceram no céu pastoril. E, na voz e na sombra da árvore dupla, começou a bailar o ritmo novo, estrangeiro dos “troubadours”.
Já então reinava, metrificando a vida, a corte poética d’El Rei Dom Dinis. A lei era a poesia. A canção era a fala do trono... Mas o Rei Trovador não invejava o provençal, porque sentia que “os proençais soem muy ben trobar” mas “non an tal coyta qual eu ey sen par”... Verdade! Dom Dinis descobria, definia e fundava, assim, intuitivamente, a poesia mais poética, o lirismo mais lírico, a melhor poesia e o maior lirismo de todas as línguas. Só mesmo a tristura dulçurosa de Portugal e a doçura triste do português seriam capazes de dar o que faltava – sentimento e alma – à bravura e gentileza da canção de Provença. E deram. E o endecassílabo limosino, fundido no “tono” e no “son” da “arte que mayor se chama”, e cantado aí onde o lugar era amorável e a gente amorosa, ora encolheu-se todo da timidez dos que sabem viver de amor, ora todo se alargou da grandeza dos que sabem morrer de amor...
O lugar e a gente eram favoráveis, porque d’amores era a terra, e de velidas e todalas de muy bon parecer... E porque havia por toda parte, pastor’s que cantan en as fontanas frias cantares que tuan, Deus mi perdom, que queiman candeas en as romarias e van por amigo fazer oraçom... E porque se ouviu, um dia, en o leer, um cantar que das barcas vinha que iam para o mar. Cantar que chorava, poys que o partyr e o ficar sam males de igual trestura, ca o coydar e o sospyrar sam dambos desaventura... E foi cantando... E eis senão quando as naves, qual se esse canto a voz dos ventos fosse, ou fosse a voz das ondas tão mudáveis, ou de enganosas ninfas a voz doce, asas abriram no ar quais alvas aves, e o mar sumisso ante elas ajoelhou-se. E de uma à rija proa alguém seguia, sobre as ondas curvado, que dizia: – A terra em tal maneira é graciosa e é toda a praia chã e tão formosa e o arvoredo é tão muito, tão diverso de fruito, e os homens e as mulheres, quartejados de cores, tão gentis e tão curados, com seus corpos apenas asetados de penas como São Sebastião; e as aves de tão vária casta são; tamanha é a terra e de muito bons ares, tantas as águas, tantos os manjares, tanta a gente, que para o bem contar fora mister usar mais palavras que as ondas têm de bolhas, de astros o céu, as árvores de folhas, de areias estas praias, de lamentos e ais o cantar guaiado destes ventos...
* * *
Essa terra era este Brasil.
E assim foi que, nas quilhas dançantes das naves descobridoras, chegou à terra pura e nova um galho – o melhor – da árvore melodiosa. E aqui plantou-se. E aqui arraigou-se.
Por muito tempo – por três séculos – pareceu, porém, seca e morta a muda importada. Em torno do seu tronco triste praguejaram senhores brancos, grosseiros, armados, mandões, tomando conta de tudo, assaltando, saqueando, incendiando, derrubando; foragidos, degredados, expatriados, deportados, condenados a galés, transformando em alforria desregrada o que era castigo de crimes... Acorrentado ao seu tronco triste, gemeu de poracé o índio verde, enquanto em volta todas as liberdades riam como guizos: o quiriri chiava fino nas caatingas, e as pororocas borbulhavam, e Boitu ululava no mato, e havia, entre folhas, trilos de sabiá, de curió, de araquá, de sanhaçu, de juriti, de tapiranga, de inhambu, e miados de onças nas clareiras, e a voz distante e úmida e surda das cachoeiras... Crucificado no seu tronco triste, o negro bronco, descadeirado, gorila torto, macambúzio, trombudo, mandrião, fujão, fungou de calundu do banzé modorrento das senzalas, da cambada buzuntada dos mocambos, da bagunça esmolambada dos quilombos...
Num meio como esse, que os homens irreverentes e cobiçosos tornaram corrupto e corruptor, não podia mesmo viver quem nascera filha de reis. Que princesa saberia existir numa “Cour des Miracles”?... Por isso a pequena planta ofendida toda se retraiu, tímida e sensitiva, dentro da sua própria delicadeza. E por muito tempo – três séculos – pareceu seca e morta a muda importada da grande árvore.
Era preciso que uma brisa solta e higiênica esvoaçasse por ali. Era preciso um pouco de oxigênio naquela atmosfera impura. Era preciso arejar a estufa fechada. Era preciso o Romantismo, o nosso Romantismo, o duplo Romantismo brasileiro: essa coincidência de duas emancipações, essa libertação político-literária, essa agressão artística e patriótica, que fez uma literatura e fez uma Constituição. Era preciso Pátria. Era preciso...
* * *
...Era preciso Gonçalves Dias.
Esse podia ser a vida do arbusto que parecia seco e morto. Porque nas suas veias estava consumado, pelo rito amoroso da mestiçagem, o milagre da raça. Ele já era o Brasil. E, pelo caule raquítico da planta, as suas veias desceram, finíssimas, estriadas, por todas as nervuras, por todas as fibras do fuste, da cortiça ao alburno, do alburno ao cerne, do cerne à medula; e foram, na terra, trama tênue e trêmula de radículas ínfimas, contorção torva, tortura torta de raízes grossas... Desceram, para que por elas pudesse infiltrar-se e subir, por capilaridade, a seiva nova, o sangue virgem, o suor verde da terra. E subiu essa seiva, subiu esse sangue, subiu esse suor. E a árvore elevou-se toda, ascensional e altiva; e desdobrou no céu, como os dedos de uma grande mão que abençoa, a galharia curva; e toda se arrepiou do verde tenro dos rebentos; e espirrou e espalmou um repuxo esplêndido de esmeraldas polidas sob o sol...
E a árvore começou a cantar, então, o nosso ritmo primeiro. Cantou, no assovio dos ventos sedosos que passam nas folhas moventes e frescas, a igara que voga na fuga dos rios; a voz da Mãe d’Água nas lisas correntes que lavam e levam seus finos cabelos; a flecha que foge; Tupã nos trovões; os cantos dos Piagas; o uivar de Anhangá nas noites de lua, por selvas e praias... E cantou a cantiga guerreira de janúbias, borés, maracás; e dançou o seu guau emplumado – kanitar, arasoya, enduape – pelas tabas sagradas, em torno dos Y-Juca-Piramas atados pela embira da vil muçurana; e cantou os tacapes tupis; o cauim que referve na argila; o Gigante de Pedra dormindo; e cantou o seu canto de morte... Manitôs, que prodígios cantou!
*
Mas o vento romântico, que assim fez tanto e tanto cantar a árvore, dedilhando-lhe os galhos como cordas e batendo-lhe as folhas como teclas; o sopro impulsivo do Romantismo estacou, súbito, no ar. E um nimbo oco de silêncio e quietude emborcou-se, em redoma, sobre a planta maravilhada. Uma atmosfera de milagre pairou, então, religiosa e clara, em torno dela. Um hálito vaporoso de metamorfose espiritualizou-a toda, pálido e sagrado. Qualquer coisa divina ia operar-se ali. E no pasmo parado da terra foi apontando, e apontou um pouco, foi-se entreabrindo, e entreabriu-se mais, foi-se escancarando, e escancarou-se toda, loucamente, triunfalmente, a floração.
Flores e flores. Tontura de cor; doidice de perfume. A primavera. Olavo Bilac.
Parnasianismo? Mas, como é possível insensibilidade no Brasil?
Ora, Bilac fez, para a forma brasileira, uma fôrma: a do seu coração. Ele foi todo o nosso amor: a flor reprodutora da árvore milagrosa. E tudo, em volta – os homens e os bichos na terra; as estrelas e as aves no céu – parou, para sentir a alucinação das cores e a palpitação dos perfumes da florada mágica. E, nessa embriaguez afrodisíaca, tudo da terra e tudo do céu foi, para mais e melhor amar, tomando a forma humana, que é a forma divina do amor, num antropomorfismo sexual, lascivo, ofegante, lânguido, desfalecido... Tudo, ao magnetismo excitante dessas cores e desses perfumes, foi ficando de carne viva e quente; foi ascendendo de uma chama estranha os seus sentidos: foi olhando com delírio, ouvindo com gula, provando com beijos, tocando com luxúria, aspirando com espasmo, humanamente... A terra., morna, suada e palpitante, era toda um só leito de um só amor...
Então, o índio guerreiro de Gonçalves Dias, envelhecido num Tapir, começou a sentir
o rumor do noivado estremecendo a mata,
sob o plácido olhar das estrelas de prata...
Tudo é gente, em derredor. E tudo ama. E tudo é amor. A Via Láctea debruça-se no céu, sobre a árvore florida e namorada, o olhar celeste para o seu baixando. E na floresta secular, sombria, o sol do amor, que não entrava outrora, entra doirando a areia dos caminhos. As estrelas conversam com os homens. Como um amante aos raios de um olhar, todo colado à terra enorme, o rio dorme aos raios de prata do luar. A névoa é toda um só rumor vibrante de atritos longos e de beijos quentes. Pelos jardins há falas misteriosas. A luz é um beijo longo; o vento é um choro... Arde uma sarça – e no ar o fumo toma formas e gestos de mulheres nuas, alexandrinamente portentosas: é Frinéia, exibindo ao Aréopago surpreso o triunfo imortal da carne e da beleza; são rainhas tentando santos na Tebaida; é Satânia, na alcova quente e perfumada; é Laís ante a cisma fria de Xenocrates, que o envolve, e enlaça, e prende, e a aperta loucamente... Agora, num gemido, uma alma inquieta passa: e há nas vozes da terra um desespero mudo, há palavras de fé que nunca foram ditas, há confissões de amor que morrem na garganta... A Pátria é uma mulher: é a namorada verde, que mostra ao bandeirante, entre as selvas dormida, o mundo por nascer que trazia no seio... Sobre a árvore amorosa, enfim, desce uma tarde; a última tarde dessa primavera. E tudo é mais amor sob o adeus dessa tarde. Há mais amor à língua que falamos, pelo viço que tem e pelo aroma de virgens selvas e de oceano largo; e porque em sua música ela encerra todo o feitiço do pecado humano. E há um vale sobre o qual almas de sinos expiram longamente pela bruma; e uma montanha que é feliz por ser última a receber o adeus do dia, primeira a ter a bênção das estrelas; e há rios que soluçam a ansiedade de todos os que morrem de esperança, de todos os que vivem de saudade; e há estrelas que caminham como ovelhas; nuvens de arquiteturas imprevistas, árvores que amam e que gesticulam à esperança e ao mistério do horizonte...
Gesticulam... Gesticulam... E porque é tarde assim, e porque uma sombra má, a sombra de uma noite sem fim, já se insinua sobre a terra; antes que o seu abraço negro possa sorver toda a cor de amor e todo o perfume de amor das suas flores, a árvore cantante gesticula, braceja, sacode doidamente, alucinadamente a fronde toda; e, num choro aéreo e leve de pétalas soltas, de cores volantes e de aromas livres, deixa sair sobre a carne moça do seu chão todas as suas flores para glorificar tudo que amou na terra!
* * *
Agora, é outono na árvore milagrosa. Ela se completa. Ela chega ao seu termo. Ela define a sua finalidade. Da seiva ascensional solidificada em tronco e rama, que era todo o ritmo elevado da terra, e da floração embriagadora borrifada em cores e perfumes, que era todo o lirismo sensual da terra, vai resultar a frutificação substanciosa empolhada em alimento e doçura, que será toda a idéia madura da terra. Vai afirmar-se, formada, íntegra, total, a poesia brasileira. À música do Brasil e ao sentimento do Brasil vai juntar-se o pensamento do Brasil. Depois de Gonçalves Dias e de Olavo Bilac, vai vir Amadeu Amaral.
Começa a pesar sobre a árvore adulta uma serena majestade. E ela inclina-se um pouco e fica imóvel e concentrada, como uma cabeça que medita. Globos verdes, polpudos, borbulham, pululam na copa, entre as folhas; bolhas sólidas espocam e empolam a pele mole dos galhos. Os frutos! São alguns, são muitos, são tantos, são demais. A árvore é toda um só fruto...
Amadeu... Um só fruto, feito só de uma substância, de uma só doçura, para um destino só. Ao alcance de toda mão. E quem o colhia e quem o provava sentia logo, entre os dedos e entre os lábios, um como novelo que fosse feito de fios de mel e todo se desenrolasse, derramando-se todo, assim suave e meigo, delicado e tímido, envolvente e duradouro...
Amadeu... Parece que o sinto, vivo, neste instante, aqui, perto de mim. Alto e calmo. Alto como uma aspiração para o céu. Calmo como uma conformação com o mundo. Seus movimentos têm uma moleza lenta de carícia. Há pureza e inteligência e resignação no seu perfil certo de águia prisioneira. Pelos seus olhos azuis, firmes e vagarosos, rondam vôos de pensamentos brancos, como asas soltas na manhã de um céu. Fala: e é como se estivesse dizendo uma prece. A sua voz é um fio moroso e baixo de água límpida. Não bate, não estala: flui, fleumática, paciente, alimentícia como o sumo fácil de uma fruta tropical.
Vejo-o e escuto-o ainda, tal como o escutara e vira, uma noite, há quatorze anos. Ele pousava a mão amicíssima no meu ombro e contava. Contava-me um caso singelo e tranqüilo, que lhe acontecera, havia dias. Andara por aí, uns meses, tratando de tudo, tratando de todos, menos de si mesmo. Tinha os cabelos crescidos desordenadamente, exageradamente. Era preciso cortá-los, civilizá-los. E Amadeu entrou num salão qualquer de um barbeiro qualquer de bairro. E todo se entregou, esquecidamente, à leitura de um jornal e à fúria do cabeleireiro. O trabalho deste artista foi longo e completo. Cortou, desbastou, raspou, acertou, escovou, penteou à vontade. A navalha e a tesoura tagarela de Fígaro fazem um dueto com o silêncio e a abstração de Almaviva... E Fígaro, afinal, coloca um espelho-de-mão atrás da nuca renovada do freguês.
– Então, que tal, seu doutor?
Amadeu tem um susto. Volta ao mundo, isto é, ao espelho. Olha-se ligeiramente e aplaude com um gesto leve de cabeça. Então, o barbeirinho ladino, extasiado ante a própria obra, sedento de aplausos, exclama, impetuoso, exaltado, numa atitude de ópera:
– Agora, sim! Antes, o senhor até parecia um poeta!
Parecia um poeta! É possível que Amadeu tivesse, por um instante e aos olhos de um barbeiro, parecido um poeta. Foi um momento só e para um só homem. Passou.
Ora, Amadeu foi justamente o poeta que nunca “pareceu” um poeta. Porque ele “foi” um poeta. A sua vida e a sua obra dizem isso. Numa e noutra nunca houve cabotinismo, nem coube nunca a maldade. Há poetas (poetas?) de cabelos curtíssimos e que, entretanto, por mais que se mostrem tosquiados, hão de, sempre e somente, “parecer” poetas. Eles têm cabeleiras na alma, têm melenas na inteligência, têm gaforinhas no caráter. Sob essas comas insondáveis morreu sufocado o pouco que podia haver de bom numa natureza humana; e, na sua espessura, parasitas inconfessáveis vicejam e proliferam. Não são poetas, porque não são bons. E não pode haver verdadeira poesia onde não há bondade. Porque a bondade é a forma inteligente da beleza, e a beleza é todo o único material de todo puro artista.
Bondade! Amadeu foi o bom por excelência. Da sua vida de resignação, como da sua obra de pensamento, que é o fruto opimo e sadio da grande árvore da poesia brasileira, escorre, constantemente e para todos e para tudo e nutritivo e dulcíssimo, “the milk of human kindness”. Não se pode logicamente separar a sua vida da sua obra, isto é, a causa do efeito. Uma e outra são coerentes, justapostas, adaptadas, exatas, iguais. Uma e outra são uma só e longa bondade. Ler e sentir os versos serenos e puros de Amadeu é ver e provar a sua existência mansa e branda. Eu abro os seus livros como se abrisse os seus dias. Porque são um diário íntimo, são uma autêntica autobiografia.
Leio. Vejo.
Há recolhimento e quietude de outono sob a árvore milagrosa, em cuja sombra estou pensando e sentindo, um instante. O grande fruto maduro e fácil solta-se, reto, do galho alto, e vai varando, num roçar de sedas rangentes, a folhagem farfalhante, e vem tombar, calmo, a meus pés, entre relvas neutras. Toco-o. Feriram-lhe a polpa sensitiva os espinhos bruscos de umas urzes. Urzes... Mas esse contacto de pele ferida é bom, porque é como, numa vida alheia, o contacto de outra vida dolorida, sofrida sozinha, sangrando na sombra, morrendo em silêncio. E essa carícia toda triste fala-me da existência muito interior de um
monge vagando em corredor escuro,
alheio aos ecos da comunidade,
que pára, às vezes, para ouvir uma ave
que seus arrulhos amorosos canta
no beiral de uma pobre casa antiga;
que fica desejando ver a vida deslizar pelo céu como a fumaça
que se eleva em bulcões pelo ar sereno afora,
e mansamente, e pouco a pouco se adelgaça;
que estaca, às vezes, numa volta do caminho; para olhar como ao longe, em sua vida,
além, além, alveja, alegre e mansa,
a aldeiola nativa da esperança;
que indiferente vai, pois sabe que, no mundo,
cada sorriso de alegria pura
promete mil soluços de tristeza...
Aspiro longamente o fruto suave. Há frescura de céu no seu cheiro saudável: frescura que ele traz daquelas névoas que bailaram na altura e todo o envolvem ainda, aqui em baixo. Névoas... É o aroma discreto que paira nas coisas que cercam as vidas caladas: aquelas vidas foscas de quem guardou da terra, como as conchas guardam do mar,
um remoto fragor de vagas e de ventos;
de quem apenas foi, na infeliz e confusa
escuridão do mundo, o paradigma
da Renúncia e da Paz, uma sombra e um enigma
perpassando sem ruído a caminho do Além;
de quem deixou
na terra uma reminiscência,
a de alguém que assistiu às lutas da existência,
triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém;
de quem rolou como os arroios que
lá se vão num rolar manso e tristonho;
cumprindo seu destino sem clamores
e sonhando consigo um grande sonho;
de quem amou a solidão porque ela
É um bem que nada custa. É um bem que jamais passa.
Goza-o quem o quiser, quando quiser;
e por mais que se goze e que nos satisfaça,
ninguém no-lo maldiz... Que mais se quer?;
de quem bem sabe a glória de ser bom:
glória que, como as outras, não encerra
o fulgor que envaidece e que fascina,
mas cuja luz é a única na terra
que parece divina;
e de quem sabe que a ilusão é assim:
antes vê-la fugir com uma luz perdida,
que possuí-la na mão como um pouco de lama...
Provo, agora, o fruto saboroso. Seu gosto é uma dulcíssima carícia. Nem há acidez no seu sumo, nem azedume entre os seus gomos. Tudo é brandura. Brandura de espumas: aquela brandura branca e macia que alisa o contorno na onda brava, que veste de noiva a rocha brusca. Espumas. “Este é o livro do poeta. Porque este é o evangelho da bondade. Porque este é o poema da bem-aventurança. Porque este é o cântico da sabedoria. Ele verte, por todos os seus poros, uma mesma, constante filosofia plácida e carinhosa de resignação, de tolerância, de consolo, de perdão, de sacrifício, de estoicismo, de abnegação, de renúncia. É quase budista na sua quietude, no seu desprendimento, na sua piedade. É o artista que confessa, com enternecedora humildade:
Eu não construo: canto... E entre todas as glórias
basta-me a de espelhar, em poemas incolores,
o perpétuo esplendor das coisas transitórias.
É o sonhador que quer que o sonho apenas possa
pairar na luz por um momento,
ser a nuvem que arrasta o olhar perdido – embora
suceda a cada esboço um desmoronamento!
É o apóstolo que diz ao discípulo moço:
Basta crer na Beleza! E basta a Mocidade...
[...]
Ama o que é forte e puro, odeia o que é perverso,
o que é baixo, o que é vil, tudo o que anda de rastros.
[...]
Que importa que o final, de todo humano esforço
seja um enigma, além, e, inda mais longe, nada?
[...]
E que importa, afinal? Afronta essa incerteza,
afronta a escuridão, glorificando a vida
no minuto de luz que arde, às vezes, num gesto!
É o crente, que parece a palmeira entre os raios:
solitário, na turba imensa que o rodeia,
erguendo para o céu, no doce arfar das palmas,
o anseio ascensional de uma fé que não verga.
É o sábio que repreende a tristeza dos fúteis:
Só vós, moços, chorais à vida que alvorece!
Só vós pedis à vida o que ela dar não pode
e só vós recusais os bens que ela oferece!
É, humanamente, o homem que sabe que, entre os homens,
A glória de durar é uma longa miséria...
[...]
O sonho de beleza, esse estado de graça,
não se fixa jamais: move-se como a vida...
A obra viva e perfeita é a que não foi concluída!
É aquele amigo em quem constantemente o amigo
procura a mão serena que o procura:
mão de que o afago se derrama,
como de um galho se desprende a sombra...
É o poeta que assim fala a um poeta improdutivo:
Sábio, soubeste erguer no silêncio um asilo,
claustro branco onde canta o sonho azul do poeta,
como a fonte que flui, sonora, no ar tranqüilo,
a encher perenemente a piscina repleta...
É o justo, é o puro, é o bom que pensa:
qualquer prêmio
macularia o alvor do sonho que me leva...
É o humilde que pergunta, entre as glórias do mundo:
A onda humana avançou, cresceu, ergueu-te numa
investida triunfal; depois, recuou desfeita...
Como há de a onda parar para que brilhe a espuma?
É o lutador, que se consola, consolando:
Tudo quanto me alenta o esforço é o próprio esforço...
[...]
O esforço é bom quando nos ergue e nos arrasta
no turbilhão da vida e do sonho! E isso basta.
Que me fica do fruto, agora, para a saudade dos meus sentidos? Uma semente casta e promissora e viva. Uma pérola na concha da minha mão. Devo lançá-la ao chão fechado e avaro? Devo guardá-la entre os dedos egoístas? E Amadeu me dá a sua derradeira lição de bondade. A sua voz vem tímida, de longe, como a luz velada, opaca, íntima, vagarosa de uma lâmpada antiga. De uma Lâmpada Antiga... Vem falar-me pelos poucos versos de um soneto: aquele “em que se considera a vida semelhante à lavra da terra”, e que eu acho central na obra do poeta, porque é central na sua vida, Em torno dessas quatorze linhas parece ter-se formado e gravitado e, afinal, concentrado a obra toda de Amadeu, a vida inteira de Amadeu. Ele me diz:
A terra é dura, o sol é bravo; a geada
destruidora; aves más e más formigas
assolam tudo, e a planta acarinhada
mal resiste a essas forças inimigas.
Que importa! Lavra sempre. Não maldigas
a terra ingrata. Não maldigas nada.
Talvez um dia o preço das fadigas
brote do sulco da robusta enxada.
Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo
o sol e as aves são cruéis, e o resto,
mais valor mostrarás em continuar.
Que é gentileza não viver escravo
de ganância, e plantar só pelo gesto
religioso e sereno de plantar!
* * *
Senhores,
Aqui está, derramando sombras sobre mim, a árvore encantada da poesia do Brasil. Está inteira, em toda a sua pujança vegetal, completada harmoniosamente, da raiz ao fruto: ela tem o ritmo de Gonçalves Dias por fronde, o lirismo de Olavo Bilac por flor, o pensamento de Amadeu Amaral por fruto. De nada mais e de ninguém mais ela precisa. Mas alguém ou alguma coisa dela podem precisar.
Não há de faltar, um dia, na sua trama folhuda, festas ariscas de pássaros que aí venham esconder o amor dos seus ninhos, ou cantar a cantiga alegre ou triste da sua vida, ou buscar, no alimento alto, a força ligeira das suas asas... Nem hão de faltar lianas amorosas que a enlacem e protejam; ou parasitas péssimas que finjam existir, existindo apenas da existência estranha da árvore... Nem hão de faltar namorados que fiquem sentindo, na sua sombra, a exaltação dos seus sentidos: o contacto de veludo do tronco musgoso, a linguagem múltipla das folhas espertas, a cor doida das flores luminosas, o perfume desvairado das corolas fascinantes, o gosto profundo de beijo das frutas cor de sangue... Nem hão de faltar lenhadores cegos que tentem abatê-la; ela, porém, sem um só gemido do seu lenho, sacudirá apenas ao golpe rude a fronde tranqüila e, numa bênção de folhas, de flores e de frutos, cobrirá de brando perdão a ignorância bravia dos bárbaros...
A todos – tudo ela dará de si.
E a mim, Senhores, que me resta ser para ela? E ela, que me reserva?
Já que um acaso propício aqui me pôs, que há mais que eu possa desejar e conseguir, que hei de querer e alcançar aqui, nesta sombra amiga, senão a felicidade bem simples de ser o efêmero e frívolo que chegou para passar? Aquele que chega apenas pela alegria de chegar; e passa apenas pela glória de passar!