"Glauber Rocha jamais venceu a escuridão pessoal" - escreveu Heitor Cony, em Eu,aos pedaços. Não seria essa escuridão para alguns, a marca de genialidade, como a luz é para os outros, bem poucos? Lembrei-me do amigo Iberê Camargo. Várias vezes quando viajava ao Rio, ia visitá-lo no ateliê, assistindo ao espetáculo quase pirotécnico de sua criação, como se a tinta fosse sangue e o sangue, pintura. Mas a escuridão no seu processo inventivo tinha janelas de fogo ou janelas de céu roído de azul, junto à espessa escuridade.
Do abstrato chegou ao figurativo, como se remoesse as entranhas para o dia, ou o dia fosse estas entranhas de absoluto silêncio.E no figurativo, vieram os seres de bicicleta no Parque Redenção gaúcho, pedalando coisas imprevistas, pedalando destino.
Depois, na aproximação da morte, assumiu a escuridão da terra. Poucas vezes vi quadro tão pungente, pondo-se deitado, profética e serenamente sobre a grama.
Não segurava seu gênio, nem o gênio o segurou até o fim. Quando recordo o que me falava, no seu jeito pampiano de Restinga Seca, na obsessão dos carretéis e no medo da velocidade (não andava de carro mais do que 60 km horários), que "sua trincheira não se rendia", mais prevejo quanto lutava da escuridão placentária do cosmos para a luz.
Os anos passaram, sua pintura recebeu um museu condigno em Porto Alegre, as telas estão agudamente vivas,nenhuma cor se extinguiu. E definitivamente a trincheira de terra e fogo, que se chamou Iberê Camargo, trazendo a resistência dos heróis libertários do Pampa, jamais se rendeu.
Diário da Manhã (GO), 21/1/2011