Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel Sinceramente, não fiquei surpreendido. Em 2003, quando fazia uma série de palestras na Sorbonne (Nantes, Lyon, Rennes e Paris), um jovem professor pediu-me para falar sobre Maura Lopes Cançado, cujo livro "O Hospício É Deus" estava estudando para uma tese de doutorado na própria Sorbonne. Ele sentia dificuldade em encontrar material crítico e biográfico sobre a autora, sabia vagamente que eu fora seu amigo -estava citado no livro- e guardara uma crônica que eu publicara na Ilustrada há tempos, falando de Maura e um pouco de sua personalidade humana e literária. Passa o tempo e recebo, no último sábado, a visita de uma aluna que a escolheu como tema de sua tese de mestrado na PUC-Rio. Forçando a memória, lembro que, no passado, estudantes de faculdades espalhadas pelo Brasil já me haviam escrito pedindo informações sobre Maura, que também tem outro livro publicado ("O Sofredor do Ver") e uma série de contos no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", no final dos anos 50. É um fato mais ou menos comum em todas as literaturas: escritores de talento, alguns beirando a genialidade, passam desapercebidos por seus contemporâneos e somente aos poucos vão conquistando espaço entre os estudiosos fatigados de analisar as obras já exaustivamente analisadas pela massa crítica que se forma nas academias, nas editoras e na mídia. Temos alguns exemplos entre nós -e o de Maura me parece o mais recente e emblemático. Morreu há pouco, esquecida e conformada, aparentemente curada da loucura que a levou a diversas internações em hospícios e clínicas psiquiátricas. Não mais escrevia, não procurava ninguém e por ninguém era procurada, a não ser por seu filho, Cesarion Praxedes, que morreu dois anos atrás. Naqueles anos, eu também colaborava no "SDJB" e freqüentava o andar ocupado pelo suplemento, cuja fauna está toda citada nos livros de Maura: Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, Mário Faustino, José Guilherme Merquior, Carlos Fernando Fortes Almeida, José Louzeiro, Alaôr Barbosa, Walmir Ayala, Barreto Borges, Oliveira Bastos e outros que agora não lembro. Reynaldo Jardim foi o criador e era o editor do "SDJB", recebeu um conto de Maura e ficou entusiasmado, publicou-o na primeira página, na diagramação competente de Amílcar de Castro. Foi o início de uma série de contos magistrais; falou-se em Katherine Mansfield, em Mary McCarthy e, principalmente, em Clarice Lispector, que parecia a influência mais próxima da desconhecida contista. Estava longe de ser uma imitadora. Seu universo era mais denso e concentrado naquilo que, mais tarde, ficamos sabendo ser a sua loucura. Eu havia estreado na literatura em 1958, e Maura me procurou, dizendo que desejava escrever um romance. Tirei o corpo fora, não se ensina ninguém a escrever um romance, um ensaio, uma poesia. Ajudei-a apenas materialmente, dando-lhe uma máquina de escrever. O resultado foi "O Hospício É Deus". Não se trata de um desabafo. Mas de um mergulho complicado no seu universo interior, quando a matéria da carne se decompõe antes da morte, e sobra apenas a convulsão, "a noite escura da alma" (Maura nunca leu São João da Cruz). Convulsão que ela experimentou fisicamente na série de eletrochoques, nos acessos de cólera contra o mundo e contra a humanidade. Em duas de suas crises mais violentas, matou uma enfermeira e um namorado, cumpriu pena em presídios psiquiátricos, foi libera- da por parecer de médicos que a examinaram e por juízes que absolveram. Era doce quando superava a loucura, amante, querendo aprender tudo para melhor desprezar o mundo e a humanidade. A literatura poderia ser o seu refúgio, se Maura acreditasse nela mesma e na própria literatura. Lia pouco, observava muito; sua frase era simples, não erudita, mas de uma precisão cruel. Não era feia, mas se julgava belíssima. Adolescente em Minas, ganhou um avião de seu pai, pilotava bem, batizou o aparelho com o nome de seu filho, Cesarion. Um acidente cortou a sua carreira -aliás, ela nunca pensou numa carreira, queria apenas ser ela mesma, com as suas manias, o seu sofrimento de ver o mundo e as coisas, a sua loucura, o seu deus.