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Papo furado

 

Vou dizer aqui uma coisa que você talvez não acredite: nunca pensei em me tornar conhecido, muito menos famoso.

É verdade que sempre fui atrevido, pensando por minha conta e risco. Quando ainda adolescente, afirmei, certa vez, na presença de um padre, que não acreditava em Deus e passei a enumerar argumentos, o padre, escandalizado, afastou-se exclamando: "Ih, filósofo, filósofo!".

É claro que quem defende ideias polêmicas termina chamando atenção para si, mas não era esse o meu propósito: só queria afirmar meu ponto de vista, o que, aliás, faço até hoje.

O leitor, porém, poderia alegar, contra minha suposta modéstia: não queria ser conhecido, mas seu primeiro emprego foi o de locutor de rádio... É verdade, mas não o busquei, fui levado por um amigo que trabalhava na Rádio Timbira do Maranhão. Fiz o teste, fui aceito e, modestamente, adotei um pseudônimo: Afonso Henrique.

Aliás, o que mais tive na vida foram pseudônimos, em parte para fugir da polícia, é verdade. Nada mais coerente, uma vez que, se não desejava ser conhecido, muito menos queria que o fosse pelos agentes do DOI-Codi.

Estou certo de que, à mente do leitor, ocorrerá uma indagação inevitável: se eu não sonhava em ser famoso, por que me tornei poeta?

Sei que você não vai acreditar, mas a verdade é que jamais havia pensado em me tornar poeta, nem mesmo sabia que isso me tornaria conhecido. Veja bem, eu tinha 13 anos, nascido na família do quitandeiro Newton Ferreira, com dez irmãos e numa casa onde não havia livros; só havia exemplares da revista "Detective", leitura predileta de meu pai, enquanto eu e meus irmãos líamos histórias em quadrinhos. Talvez por isso, quando, pela primeira vez, li um poema, levei um susto.

Um susto bom, tão bom que tive vontade de escrever coisas bonitas como aquelas. Era uma ideia de jerico, sem muito propósito, já que, na minha infundada opinião, todos os poetas já haviam morrido (Camões, Bocage, Gonçalves Dias, Castro Alves) e, ainda assim, decidi entregar-me àquela atividade de defuntos.

A maior prova de que não queria ser conhecido foi trocar meu nome verdadeiro por um pseudônimo. Por isso mesmo, até hoje, quando alguém me pergunta se sou eu o poeta Ferreira Gullar, respondo: "Às vezes". Sim, porque, às vezes, sou José de Ribamar Ferreira; aliás, na maioria das vezes.

Mas o famoso não é ele, é o outro, o Gullar. E veja você, embora o subversivo fosse o Gullar e não o Ribamar, no final das contas, para minha surpresa, era este e não o outro que a polícia da ditadura buscava.

Só soube disso, mais tarde, aliás, tarde demais, depois que retornara do exílio, dado como absolvido pelo STM (Superior Tribunal Militar).

Ao receber o documento do STM informando-me da absolvição, não era o Gullar nem o José de Ribamar Ferreira que tinham sido processados e julgados, mas outro Ribamar, também maranhense, de quem nunca ouvira falar.

Soube depois que ele aderira à luta armada, na certeza de que, juntamente com Marighella e mais meia dúzia de revolucionários, ia derrotar o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, além de todas as polícias militares do país. Eu, o Ribamar, filho de dona Zizi e do Newton Ferreira, era menos insensato.

A verdade, porém, é que, querendo ou não, me tornei conhecido e, mais ainda, agora, ao ser eleito para a ABL (Academia Brasileira de Letras).

Mal sabia eu o que estava perdendo, negando-me a candidatura à ABL. Nunca fui tão cumprimentado e saudado nas ruas do bairro quanto agora. Descobri, assim, que, se a consagração erudita é dada pela crítica literária, a consagração popular é dada pela ABL.

Agora sou saudado pelo vendedor de picolé, pelo barraqueiro da feira, pela moça do caixa do supermercado. Não há um dia em que saia de casa, para ir à farmácia ou à banca de jornais, que não seja cumprimentado por numerosos e simpáticos desconhecidos.

Não resta dúvida de que boa parte dessa popularidade se dá graças à televisão. Ainda assim, como explicar que um mendigo, imundo e seminu, murmure ao me ver passar: "Poeta Gullar, imortal!".

No fundo, todos repetem aquela mesma frase do cara, também bêbado, que, anos atrás, quando me viu atravessando a rua, gritou: "Ferreira Gullar, famoso e eu não sei quem é!". Nem eu, tampouco.

Para Susana de Moraes, meu adeus carinhoso.

Folha de S. Paulo, 01/02/2015