“Todos os meus personagens existem” – escreveu Guimarães Rosa. Decerto sempre existiram na sua imaginação e passam a existir no aluvião das palavras.
E se bem meditarmos, nada do que se viveu ou viu ficou apagado ou incólume sobrou no imaginamento. Mesmo que não tenha nome, rosto ou identidade, misturando-se o conhecido com o desconhecido.
E o que ignoramos não quer dizer que não acontece. A escuridão é um alfabeto decifrável de tanto alvorecer.
Embora um escrito seja o menos autobiográfico possível, há de sê-lo naturalmente nalgum recanto de frase, ou fisionomia ou no secreto de alma. O autobiográfico é rastro, ou o dito no não dito.
Infundindo-se o mistério nalguma dobra da infância ou do futuro do leitor. Porque escrever é criar uma cumplicidade que se apraz no ocultamento. E um ocultamento de sonhar que se compraz na cumplicidade. Quando a cumplicidade também é do universo.
Todo manual de lógica criadora termina no manual da alucinação. Pois o que mais alucina é o esplendor da lógica. E o momento só conta porque nele cintila a eternidade.
E a eternidade não é lógica, algébrica, tem sempre outra trajetória, ou dimensão.
E se o autor escreve em fogo, ou água, ou luz, escreve em alma, derramando neste repuxo o que existe no que não existe. Não escreve apenas o que deseja, esquivando às vezes o assunto de sua alçada, como quem atrás do arbusto não divisa o mar. Inda que, vivo, o mar o divise.
O autor escreve simplesmente o que pode, por não saber fazer diferente. Ou se foi inventando, independente do pensamento, ou fora do mecanismo do raciocínio.
Como se tivesse vindo ao mundo para expressar somente o que lhe brotou.
E não brotaria duas vezes, apesar de ser em mesmo rio, ou mesma sombra. Pois o idioma voa no sonho que voa e é a grande ave do paraíso. Por isso, reafirmo: todos os personagens existem e ninguém ousará negá-los.