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A peixada

 

As palavras têm estranha transfusão de realidade. O sabor frutuoso, bom, depois de uma experiência negativa, com mesmo nome muda tudo. Pela imaginação.

Explico. Quando viajava de Porto Alegre ao interior do pampa, com meu carro que estava estacionado, tive o dissabor de receber no veículo, em cega marcha à ré uma batida ou pechada de um caminhão. Com dano no para-choque e na lanterna.

Fiquei triste, continuei a viagem abatido e no caminho, recordo, num restaurante, comi uma peixada. Saborosa, apetitosa. E esqueci a batida.
Na minha mente o desgosto foi substituído pelo prazeroso jantar.

Outro dia veio-me uma notícia ruim, que a vida sempre está preparando e há coisas que acontecem e não dependem de nós ou das estações.

Simplesmente fui ao shopping, degustei um filé sapientíssimo e comprei uma bermuda e camisa nova. Esqueci completamente a má notícia. Como se tivesse virado a página.

Não podemos ruminar o que nos sucede, há que mudar os tempos do verbo de existir. Ademais, Deus sabe melhor das coisas do que nós.

E basta que Ele saiba. Senão nos gastamos no que é penoso, ou suportamos a condição que Luiz Vaz de Camões chamava de “bicho da terra tão pequeno”.

É preciso ver além, sabendo o luminoso peso das palavras.

E Cervantes tinha inteira razão, ao acreditar que, quando o sofrimento se alonga, é porque se aproxima uma grande vitória ou felicidade.

E a existência é feita de intervalos. E há intervalos de treva e outros, luminosos. O humano é incompleto.

Tribuna Online, 22/11/2020