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O pátio da língua

 

Jorge Luis Borges flagrou o paradoxo de que os escritores mais representativos de cada país tinham poucas características do seu povo. E alude na Inglaterra a Shakespeare, por sinal espalhafatoso, mais italiano ou judeu no temperamento do que inglês. E o tolerante Goethe, com sua frieza, imensa racionalidade, no que tange ao conceito de pátria, anti-passional, nada tinha de alemão. E Victor Hugo com seu jogo metafórico e as avalanches de hipérboles nada possui do cartesianismo francês. Muito menos o satírico e sapiente Cervantes , contemporâneo da Inquisição , pouco guarda da Espanha. E para ampliar essa galeria, o nosso Machado de Assis, com sua contenção de estilo, sua mordaz ironia, filho de Sterne, parece ter mais nascido em alma na Inglaterra que no tropicalismo brasileiro.   

E o próprio Borges é um europeu que contrasta com a dramaticidade e melancolia argentina. Talvez por conseguirmos ver melhor um país, trabalhando o mesmo idioma, caminhando no pátio da mesma língua, sendo diferentes. Como se olhássemos de uma janela para dentro do povo. Ou de uma sacada, os passantes tão diversos ou bizarros. O que é igual, tenta contemplar apenas a si mesmo e a imagem no espelho é siderada pelo impositivo "eu". 

Só o que é diverso contempla e critica objetivamente o outro, que mostra características ou peculiaridades que não são suas, sentindo de outra maneira, buscando compreendê-lo. E o entendimento é mais lúcido da sombra para a luz ou da luz para a sombra. São os opostos que mutuamente se afeiçoam e se discernem. E o idioma é o rio que vai de roldão pelas coisas e não preserva margem, sempre acabando por desaguar em outros.

Como no amor, o pátio da língua só é visto através do pátio da alma. E uma alma se aparenta com todas as almas. Como a luz se aparenta com as estrelas. Ou então nada. Cabendo razão à ficcionista francesa Marguerite Duras: "O escritor é um país desconhecido". Para os outros e para si mesmo. Valendo recordar, escritor ou não , seja na fala , seja no convívio diário, além das esferas, o dizer do Mestre do Cosme Velho, quando exclama , entre apoteótico e verdadeiro: "Toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas". Ou talvez sejam as botas curtas, a mais gloriosa síntese da sabedoria. As botas curtas no pátio da língua.

 Jornal do Commercio (RJ), 19/7/2011