Alguns mencionam a história que o homem faz ou a sofre. Ou a história é o pesar do tempo nos acontecidos, ou a maneira como eles se desfazem nos dias.
E o terrível hoje, pode ser o aprazível amanhã. Ou vice-versa. Quando no extremo do espírito mora o corpo e no extremo do corpo mora o espírito.
E vi meu metafísico cão Desidério, o devorador de livros, puxar pelo focinho meu sapato, encalhado como barco no cais. E foi puxando pela casa e eu atrás.
Ele estava delirante, obsessivo, com olhar de certos políticos, exaltando as próprias e exímias qualidades cívicas num comício.
Estranhei, pois o meu cão às vezes parece sábio, pensativo nos cantos, entre ossos e mesmo os ossos ficam pensativos com ele.
E me veio a imagem que a história é um cachorro com um sapato na boca, sem querer soltá-lo.
A forma como prendia o sapato, tinha a avidez de um matemático digerindo o teorema de Pitágoras.
E se a história gane como um cachorro e não percebemos, a história é a velocidade com que Desidério foge com o sapato quase roto, entre os dentes, obrigando-me a correr atrás dele, a correr atrás da história.
Talvez presa na mandíbula canina, como o sapato, não queira mais andar, ou aceite o jugo até que eu retire o sapato e a liberte.
Mas, leitores, não desejamos todos que a história deixe de caminhar tão depressa e, ao estancá-la, o tempo cesse e a vida coletiva se prolongue?
Depois meditei, achando que todos devemos um agradecimento, ainda que breve, ao cão Desidério, por segurar nos dentes, entre tão esquivos momentos, este furtivo sapato da história.