Conheci José Guilherme Merquior. Foi meu confrade e amigo, o que considero um privilégio. Viveu 50 anos e era como se tivesse vivido um século. No auge da intensidade e do fulgor. Foi um erudito sem perder a humanidade; foi inteligentíssimo, para não dizer cintilante, sem esquecer o toque, "a essência real que o tato exige", na expressão feliz de Lope de Vega.
O mais bem dotado para a crítica de minha geração. Com a chama da genialidade que consumiu sua vida tão cedo, não podendo consumir-lhe o espírito. Os temas que abarcou em inúmeros livros, mostram a avidez e a curiosidade da sua cultura. Desde "Razão do Poema" ( 1965), que chamou atenção pela coragem e lucidez, atacando a falência do formalismo, até "Ástúcia da mímese" ou" Verso, universo em Drummond", ou "Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin", ou "Marxismo Ocidental".
Com sofreguidão, argúcia e rutilância buscou abranger a cultura deste tempo, tanto na sociologia, na arte, na filosofia ou na literatura, que tem um panorama resumido no volume "Crítica ( 1964-1989)", que saiu pela editora Nova Fronteira, em 1990, onde começa com exemplar estudo da "Canção do exílio", de Gonçalves Dias, proclamando numa espécie de programática :"Temos coisa melhor do que permitir que nosso pensamento e sensibilidade se escravizem a uma sovada e infundada ideologia de negação e desespero", avançando contra o "modernismo congelado ou uma vanguarda enlouquecida".
Lembro sua figura fraterna que resguardava sábia e intocada meninez. Sou-lhe grato. Foi dos que insistiram na minha candidatura à Academia Brasileira de Letras, que honrou, como poucos. Enviou-me dois votos (o primeiro se extraviou).
Alegrou-se imensamente ao ver-me eleito e nunca me cobrou. Num tempo, como o nosso, em que escasseiam os verdadeiros críticos, os que, militantes, se voltam para a contemporaneidade, quando alguns se albergam nas universidades e outros, em si mesmos, sentimos a falta de Merquior, Embaixador fidalgo, ensaísta maior da inteligência e da cultura.
Jornal do Commercio (RJ), 25/4/2011