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A canoa do corpo

 

Remo com força para a direita. A canoa é um pouco mais que o corpo.A canoa é o corpo; o rio, alma. A voz das águas tende a vir pelas narinas do sono.


Roço a brisa que me beija e entra pelas entranhas da noite, como se um grande peixe.

 

E o tempo conta história de rio aos ouvidos, eu sou história de um rio que não termina.


Um passarinho, de rubras plumas, como se uma flor em pétalas voasse. E vai por cima de minha cabeça, depois belisca a água e segue adiante.

 

E eu na canoa, atraído,  vou atrás do passarinho.


E o remo é polido na mão, compassado, enquanto o pássaro abre sulco no céu e eu, sulco no chão do rio.

 

Depois para numa árvore da encosta e me contempla e canta.


A vida é mais do que esta pequena embarcação, é maior que o repuxo e a percepção do ignoto. E a moleza do ar se cola à pele, como se me filiasse.


Ou de repente, nada mais me filia, vem-me um senhorial aceno.De algo mais forte do que eu, mais imperioso.

 

E me dou conta de que toda a infância é isto: um passarinho gorjeando sobre a árvore.


Levo a linha mas não pesco, nem quero. Peixes me espreitam de abobada testa para fora. E emerjo abobado de silêncio.


Mas o passarinho canta e nada mais me absorve, nada mais importa, nenhuma filosofia me convence, nenhuma benevolência me acresce ou alucina, salvo este momento absoluto, que não se atrofia, que não quer morrer.


 Diário da Manhã (GO), 19/9/2010