Adonias Filho nasceu em Itajuípe, Bahia, em 27 de novembro de 1915, e faleceu na cidade de Ilhéus, em 1990. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, ao tempo do seu conterrâneo Jorge Amado, ambos de Ilhéus. Com exceção de Wilson Martins, Eduardo Portella, Octávio de Faria, Afrânio Coutinho e algum outro na estelar esfera dos críticos literários, existe um injustificado silêncio sobre a ficção extraordinária de Adonias Filho, que nos tempos da ditadura militar ajudou tantos intelectuais presos e vítimas de injustas perseguições. Esse silêncio jamais deveria ser o preço a pagar por tantas e tão corajosas atitudes.
Chegou, porém, o tempo de reconhecê-lo e de amá-lo. Sua grandeza é a sua obra, o resto é resto, nem chega a silêncio. Adonias era de grandes gestos, um romântico seco e fraterno, retido, porque alarmado e um tanto tímido, concha de tempestades e branduras.
Começou o itinerário como romancista, depois de um percurso ensaístico. Os servos da morte, seu primeiro livro, já veio pronto, com as qualidades que o caracterizariam: a paixão da terra e a terra da paixão, além do rigor de linguagem para que se tornasse mais belicoso, num mundo selvático, onde os fortes sobrevivem. Surgiu longe dos modelos da tradição brasileira, mais próximo de Faulkner, John dos Passos, Heminguay ou Malraux, que, segundo Edmund Wilson (Man's fate), ''cria as personalidades de seus personagens de um modo orgânico e as explora inteiramente''.
Também em relação ao seu segundo livro, Memórias de Lázaro, referindo-se ao que ressuscitou através da palavra, os heróis de Adonias aproximam-se dos guerreiros de Homero, afrontando a sina, apesar do vaticínio dos deuses, ou até enfrentando os deuses do sangue e do jugo. Ocorrendo não a poesia da prosa, mas a prosa da poesia, esta alavanca instintiva funde o maravilhoso com o dramático, sempre com a corda esticada do enredo.
Seu novo livro, O Forte (homem, muralha) situa-se na cidade de Salvador. Obra-prima de recurso estilístico e de humanidade. O Forte é Jairo, o Forte é Salvador, o povo e o amor se personalizam em Tibiti. O amor de Jairo e a terra que também é guerreira. O incêndio do Forte recorda o incêndio das muralhas de Tróia, por invasão dos gregos.
É impressionante o uso da ação dos verbos no particípio presente, o que mereceria exame à parte. Aliás, Adonias revela-se mestre nos processos ficcionais mais contemporâneos. Um José de Alencar rijo, atordoante e retido, essencial num Faulkner. E o círculo se repete no Corpo vivo, onde sua visão e tipos são universais: ''Os homens não se dispersam, não quebram o círculo, imóveis, os pés descalços''.
Usando a alegoria com pertinência, enraiza-se como um rio pelos juncos. Malraux afirma: ''Quanto mais Balzac descreve um rosto, menos eu vejo o rosto que ele descreve''. Em Adonias, os rostos que descreve existem para serem imaginados. E usa metáforas e símbolos que se distraem, ajustados, tal o musgo nas pedras.
Nesse Corpo vivo, outra obra-prima sua, à semelhança de Faulkner, Adonias tem aqui sua cidade encantada, Macanã. Porque, em amplitude, o seu território é o interior baiano e Salvador. De Itajuípe ao mundo, o romance começa e termina, no ninho; a serra, como um círculo, seguindo a lição de Carlos Fuentes, que ensina a importância da primeira e da última frase de um romance, personagens vigorosas, solidárias, com Itajuípe e suas léguas de promissão, léguas de um mundo se desintegrando, chocante e chocado, o povo negro como abelhas no açúcar: ''As estrelas chegaram - eles viram - as estrelas do sul da Bahia. Deitaram-se na terra, abraçados, para o sono''.
No livro seguinte, Luanda, beira Bahia, emerge o sentimento religioso, o palco mais uma vez em Salvador. Adonias renova a capacidade da dureza, do corte, a volúpia de contar, reunindo o sincretismo cultural afro-baiano no ambiente marítimo, cadenciado de ondas e paisagem.
Com seu romance, As velhas, Adonias volta à subjacente mitologia grega, agora a das Parcas, tecedoras do destino humano. Como as da Grécia, também essas de Adonias são quatro: Tari Januária; Zefa Cinco; Zonga Rainha Preta e Lina de Todos: ''As velhas - ele ainda pensa - todas as velhas têm os seus mortos. A questão é saber se esses mortos ficaram ou se estão esperando na frente''. É um clássico. E o valor dos clássicos está na razão direta do seu teor de vida. E do seu teor de memória.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 01/06/2005