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Zélia Gattai

CINEMA MUDO

O cinema representava o ponto alto da nossa programação semanal. Próximo à nossa casa, único do bairro, o “Cinema América” oferecia todas as quintas-feiras uma “soirée das moças”, cobrando às senhoras e senhoritas apenas meia-entrada. Era nessas noites que mamãe ia sempre, levando consigo as três filhas: Wanda, Vera e eu, e também Maria Negra, que a bem dizer era quem mais ia, adorando filmes e artistas, não abrindo mão de seu cinema por nada do mundo. Muitas vezes, em noites de chuva, quando a patroa desistia de sair com as crianças, chegava mesmo a ir sozinha. Os meninos não perdiam as matinês aos domingos. Papai não se interessava por cinema, preferia o teatro, as óperas e operetas.

O conjunto musical que acompanhava a exibição dos filmes compunha-se de três figuras: piano, violino e flauta. Ano entra, ano sai, o repertório dos músicos era sempre o mesmo. Os primeiros acordes do piano, do violino ou da flauta anunciavam ao público o gênero da fita a começar. Ninguém se enganava. As sessões eram iniciadas com um documentário ou o “natural”, como era chamado por todos, que mostrava os acontecimentos relevantes da semana. Nós, crianças, detestávamos o tal “natural”, e quando terminava, gritávamos em coro, numa só voz, num imenso suspiro de alívio: “Graças a Deus!” Em geral, logo em seguida vinha a fita cômica. Morríamos de rir com os pastelões voando à procura do alvo, sempre acertando na cara do desprevenido. Os filmes de Carlitos fascinavam a meninada; torcíamos por ele quando, dono de artimanhas incríveis, derrotava seu rival, o imenso vilão. O frágil homenzinho de chapéu-coco e bengala acabava sempre por levar a melhor, conquistando as graças de sua formosa e a admiração das plateias Aplaudíamos suas vitórias batendo palmas ensurdecedoras e gritando a plenos pulmões: “aí, Carlitos!”, suspirando de pena ao ver escrita na tela a palavra Fim (a primeira palavra, por sinal, que aprendi a ler).

Chico Boia, com toda a sua gordura, fazia misérias, era a glória! Harry Langdon, o meigo cômico, conseguia arrancar gargalhadas da plateia e me transportar em suas asas de ternura.

Carmela Cica, a violinista do conjunto, era nossa vizinha, morava na esquina da Consolação com Alameda Santos. Éramos não apenas vizinhos, mas muito amigos da família. À Carmela cabia dar os primeiros acordes para o início dos filmes em série. Seu violino gemia na valsa “A rapaziada do Brás”. Valsa melancólica, pungente, dilacerante. Em seguida aparecia na tela o título do filme. A quantos seriados assisti? Nem sei, perdi a conta. Lembro-me de vários, interpretados por Elmo Lincoln, Maciste, Eddie Polo, e outros igualmente famosos. Recordo-me de Pearl assenta praça, com a maravilhosa Pearl White (a preferida de mamãe). Por fim, O braço amarelo — história de Júlio Baín e do detetive Vu-Fang, interpretado, se não me engano, por Sessüe Hayakawa. Quando aparecia o rosto asiático do detetive na tela, olhos quase fechados, o cinema vinha abaixo: gritos histéricos e batidas de pés abafavam o som da valsa.

Vidrada no personagem oriental, Wanda chegou a batizar minha bonequinha de porcelana japonesa com o nome de Júlia-Faing. Nome do pai? Vu-Fang, ora! Ambos tinham olhos puxados, não tinham? Então!

Acompanhávamos os seriados durante meses a fio, um pedacinho por semana, parando sempre na hora do maior suspense, é claro. As luzes se acendiam, os comentários no intervalo, enquanto todo mundo se ajeitava e se refazia da emoção sofrida, eram sempre os mesmos: “Vamos ver como vão se safar dessa!...” Eu me levantava para rápida e movimentada escapulida: a torneira da pia quase sempre entupida, do malcheiroso toalete, era nesse momento disputadíssima pelas crianças na ânsia de tomar água. Eu me acotovelava entre elas e, mesmo que não chegasse a matar minha inventada sede, pelo menos molhava o vestido. Dava pontapés e empurrões nas portas das privadas, sempre ocupadas, mesmo não tendo necessidade de lá entrar. Tudo valia como divertimento. Corria para a frente, junto aos músicos, e puxava um dedinho de prosa com Carmela Cica antes de voltar para o meu lugar. Puro exibicionismo. Gostava que todos soubessem da minha intimidade com a violinista.

Refeitos das emoções e suspenses do seriado, partíamos para as “fitas de mocinho”. Tom Mix, o bonitão, valente como ele só, enfrentando centenas de índios, recuperando tesouros roubados das diligências, seu revólver mágico atirando sem parar até a completa destruição do inimigo. Terminava sempre recebendo um doce beijinho de sua namorada, que o esperava montada de lado num belo cavalo ou sentada na porteira do rancho. O cinema, repleto de crianças, chegava a tremer durante todo o tempo em que o bangue-bangue permanecia na tela.

Eu não era das mais amarradas em fitas de cowboys. Ia muito pela opinião de minhas irmãs, pouco entusiastas de Tom Mix. Elas preferiam William S. Hart, o cowboy de olhos azuis, herói dos westerns, cuja especialidade era enfrentar, numa roda de baralho, o adversário. Revólver sempre à mão, dedo no gatilho, não errava o alvo, boa pontaria. Admirava Maciste, quase o temia (“Maciste, o Poderoso”), o homem mais forte do mundo...

Mesmo à noite, quando a frequência de garotas era menor no cinema, na hora dos westerns o barulho tornava-se ensurdecedor. Ninguém ouvia mais nada: nem violino, nem piano, nem flauta. Apenas assobios e gritaria. Eu cheguei a aconselhar à Carmela que parasse de tocar durante os filmes cômicos e nos outros dois da preferência das crianças: bangue-bangue e seriado, pois ninguém ouvia patavina da música. Até mamãe, que costumava ler os letreiros em voz alta para uma pequena audiência que a circundava, fazia uma pausa, economizava a goela. Impossível, nesses momentos, se entender fosse lá o que fosse. Esperava o intervalo para explicar a sequência do enredo às interessadas: dona Ursuriela e suas filhas Ripalda e Joana (que jamais haviam frequentado uma sala de aula) e a outras nas mesmas condições que as “Ursurielas” - como eram chamadas pelas costas, por Wanda. Somente assim elas podiam ficar a par das coisas, graças à solicitude da boa dona Angelina. Na verdade, para mamãe, o fato de ler em voz alta no cinema não representava nenhum trabalho, nenhum ato de bondade, apenas sentia prazer nisso. Acostumara-se de tal forma a fazê-lo que muitos anos mais tarde, em plateias mais letradas, era preciso cutucá-la mil vezes para que não incomodasse os vizinhos com suas leituras.

O barulho diminuía sensivelmente, chegando quase ao silêncio, durante o desenrolar dos filmes românticos, dos dramas de amor, o último da sessão, quando, exaustas, as crianças adormeciam. As mulheres ajeitavam-se nas duras e incômodas cadeiras de pau: por fim, era chegada sua hora de chorar.

A sala de projeção ainda clara, eu era transferida para os braços de Maria Negra, sentada algumas carreiras mais à frente, junto à Wanda, que lhe lia os letreiros. Todos os esforços feitos para ensinar Maria Negra a ler haviam sido inúteis até então. Seu orgulho era maior que tudo. E se não aprendesse? Não queria dar parte de burra, dar demonstração de inferioridade.

Eu mal assistia ao começo do drama, meus olhos pesavam, recusando-se a abrir. Mas não perdia muito, pois em casa ouvia mamãe repetir a fita, detalhe por detalhe, às pessoas que não tinham podido ir ao cinema e que a procuravam depois. Isso acontecia sempre.

Muitos dramas de amor fizeram dona Angelina chorar: Honrarás tua mãe!, “de arrancar lágrimas das pedras...” — dizia. O preço do silêncio, com Lon Chaney e Dorothy Philips; Altares do desejo, com Mae Murray; A pequena Annie Rooney, com Mary Pickford; O âmago do romance, com June Caprice; Lábios de carmim, com Viola Dana; A mulher disputada, com Norma Talmadge e Gilbert Roland; Cleópatra, com Theda Bara; A letra escarlate, com Lilian Gish. Todos esses filmes buliram com a sensibilidade de dona Angelina, principalmente o último, onde Lilian Gish, abrindo a blusa, mostrava no peito, marcado em sangue, um imenso A. “Pode haver coisa mais comovente?”

(Anarquistas, graças a Deus, 1979.)

PAPAI, O GIGANTE

O grupo saiu de casa, como previsto, muito antes da hora costumeira e eu fiquei entregue aos cuidados de vovô Eugênio, pai de mamãe, que passara a morar conosco desde a morte de vovó Josefina. Chorei baixinho, arrasada, vendo a caravana partir. Não me consolou o olhar penalizado de Maria Negra — a única a se preocupar comigo —, ao contrário, me fez ainda mais infeliz.

Papai havia saído à tarde, não voltara para jantar. Minha esperança era de que ele chegasse logo, queria desabafar minha mágoa. Sabendo que encontraria nele ora peito aberto, resolvi esperá-lo no portão da rua. Ali me plantei, encostada às grades de ferro, e depois de longa espera, cansada, resolvi sentar-me na borda da janelinha do porão, à sombra de uma enorme árvore da rua. De repente parou um carro, papai saltou dele. Não perdi, tempo, rompi num pranto convulso. Papai aproximou-se: quem chorava ali, daquele jeito?

— É você, minha filha? — perguntou-me alarmado. — Por que é que está chorando aqui na rua?

Os soluços quase me impediam de falar.

— Foram todos para o cinema e me deixaram sozinha em casa... — desabafei.

— E o Nono não está?

— Está dormindo...

— Vamos lá pra dentro, você vai me contar tudo direitinho, o que foi que te fizeram.

A par do sucedido, enxugando com um lenço as lágrimas de sua inconsolável caçula, falou-me:

— Vá depressa se arrumar, passe água na cara e vamos dar uma lição naquelas mulheres malvadas.

Não esperei segunda ordem, entrei em meu quarto, ligeira, apanhei um gorro de crochê de lã, verde com listas vermelhas, enterrei-o na cabeça, quase até os olhos, enrolei no pescoço um cachecol preto e verde de papai, e me apresentei:

— Pronto!

Saímos de mãos dadas, papai aquele gigante, eu lá embaixo. Coisa boa ter um pai daqueles!

— Agora nós vamos comprar uma frisa para nós dois. Quero ver a cara delas quando descobrirem a gente lá... — Papai ria divertindo-se com seu plano, contente de sentir a minha emoção, de poder me vingar e, sobretudo, de ter conseguido secar minhas lágrimas, de me restituir o riso.

A sessão começara havia muito. O “natural” já terminara — graças a Deus! — e a fita cômica chegava ao fim. Coisa mais estranha! Não havia o barulho costumeiro que provocavam as comédias, apenas algumas gargalhadas. O maxixe que acompanhava a fita era ouvido perfeitamente, o violino de Carmela fazendo misérias. O cinema estava repleto, sobravam apenas algumas frisas vazias. Bem razão tinha Terêncio ao anunciar à Vera que naquela noite as crianças iriam cedo para a cama. Segundo as teorias de mamãe, “vítimas dos sanguessugas do povo”.

Que delícia estar ali naquela frisa acima da plateia, ao lado de meu pai! Puxa! Eu nunca sonhara com tal coisa! Meu interesse pela comédia, naquele momento, deixara de existir. Tudo o que eu desejava era o acender das luzes. Por fim a sala clareou. A primeira a nos descobrir— não podia ser outra — foi Vera. Deu um grito!

— Olhem só papai com a Zélia numa frisa!

Gritou e veio correndo.

— Aqui ninguém senta — foi anunciando papai, categórico. — Esta frisa é só de nós dois. Pode ir correndo dizer à tua mãe e às outras. Aqui não entra mais ninguém.

Meu coração estourava de contentamento. Pena não estarem presentes as crianças com quem eu disputava sempre. Haviam de morrer de inveja.

O recado de papai deixou mamãe contrafeita. “Homem mais sem juízo!” Fazendo-lhe as vontades desse jeito, acaba estragando a menina. Aliás, já está estragada. Se Ernesto estava pensando que ela desejava sentar em frisa, estava redondamente enganado. Para ela, Angelina, bastava a cadeira comum. A fita era a mesma tanto para os “burgueses” das frisas quanto para os “proletários” das cadeiras.

Esses recados insultuosos — e outros mais — foram transmitidos por Vera, tintim por tintim, num leva e traz de não acabar, até a hora de recomeçar a sessão.

Assisti a todos os lances do diabo e da sombra até o fim. Nessa noite não dormi nem no cinema, nem na cama, mais tarde. Fita mais apavorante! Mamãe tinha razão. O diabo a colocar um candelabro com velas acesas atrás do violinista durante o seu concerto, no palco, para que todos percebessem que o músico já não possuía sombra. Devia ser horrível uma pessoa não ter sombra. Nunca pensara nesse problema antes.

Jamais confessei a ninguém, muito menos à minha mãe, o medo que senti ao ver Petrolini transformado em diabo.

Voltei para casa de mãos dadas com papai. Eu lá embaixo, ele um gigante quase alcançando o céu, me protegendo. Sempre me protegeria — disso estava certa — com sua força e sua bondade, contra todas as injustiças, contra qualquer diabo que quisesse se apoderar de minha sombra.

(Anarquistas, graças a Deus, 1979.)

 

O BONDE

Wanda e Vera liam em voz alta os anúncios de remédios fixados no bonde. Até eu, que não sabia ler (não lia mas podia apontar com o dedo, sem errar, o remédio anunciado), entrava no páreo, repetindo rapidamente os textos decorados de tanto ouvir. Muita gente se admirava ver criança tão pequena ler daquele jeito: “Veja ilústre passageiro / o béllo typo faceiro / que o senhor tem a seu lado. / E no entretanto acredite / quási morreu de Bronchite / salvou-o o Rhúm Creosotado!” — “Cantando espalharei por toda a parte: Tosse? Bromil!”; quem tomava Bromil era Bruno, meu primo, sempre com bronquite. “Pílulas de vida do dr. Ross”, o remédio de tia Clara, mulher de tio Remo, que sofria de prisão de ventre crônica. “Tônico Iracema, conserva os cabelos negros, naturalmente”, esse era de tio Augusto, marido de tia Dina. “Fermento Láctico Fontoura, contra azia e má digestão”, esse o da mamãe; inventei muitas vezes dor de estômago para ganhar algumas das deliciosas pastilhinhas. “Abaixo drogas cacetes / no mundo dos sabonetes / raiou deslumbrante sol / apareceu o bendito / sabonete de Eucaliptus / denominado Eucalol.” Esse mamãe não comprava; ela gostava de um — não lembro a marca — perfumado a heliotrópio. “Biotônico Fontoura - o mais completo fortificante!” Jamais contei a ninguém o que acontecia comigo sempre que via o rótulo verde-claro desse conhecido remédio, pois eu guardava segredo acerca da associação de ideias, insólita se eu não tivesse uma explicação para ela, que me ligava àquele anúncio. O frasco do ‘Biotônico” me fazia lembrar um chapéu de toureiro, todo bordado de miçangas coloridas.

Tia Eugênia, mulher de tio Aurélio, irmão de papai, fora criada desde pequena pela família Baruel, proprietária da mais conceituada drogaria de São Paulo, a “Drogaria Baruel”. Cria da casa, ou seja, durante muitos anos, empregada doméstica sem salário.

Tia Eugênia era mulata acaboclada, despachadíssima, língua solta, alegre. Contava-nos, com grande orgulho, histórias da família que a criara. Visitava-a periodicamente, voltando sempre da visita carregada de pacotes: roupas usadas para ela e para os filhos que eram muitos. Ganhava de vez em quando frascos de fortificantes para as crianças.

Ao regressar, certa vez, de uma de suas incursões à mansão Baruel, tia Eugênia resolveu dar uma paradinha lá em casa. Queria exibir as maravilhas que acabara de ganhar. Do pacotão desfeito sobre a mesa de jantar, saltaram vistosos trajes de carnavais passados.

Entre as amarfanhadas peças coloridas, destacava-se fascinante fantasia: um toureiro completo, com capa e chapéu bicorne. “Credo!” — exclamei – “que chapéu mais galante!” De veludo negro, todo bordado de miçangas e lantejoulas!

— Os corninhos são de lado, Tia? — perguntei preparando-me para enterrá-lo na cabeça.

Um grito agudo de advertência partido de tia Eugênia — escandalosa com ela só — me assustou, fez-me largar o chapéu num gesto rápido.

Como num passe de mágica, a dona da rara prenda agarrou-a e, de seu interior, retirou um vidro de “Biotônico Fontoura”.

— Salvo por milagre! — resmungou tia Eugênia, brandindo o frasco, fuzilando-me com um olhar de recriminação, enquanto outros vidros foram surgindo, em meio a golas de pierrôs e colombinas.

Chegava a hora do anúncio proibido: “A Saúde da Mulher” — duas figuras de mulher ilustravam o reclame; a cara triste de uma antes de tomar o remédio, a cara alegre da outra, depois. Por que diabo mamãe proibia as meninas de lerem esse anúncio em voz alta? Coisa mais esquisita! “Não fica bem”, era a sua explicação. Assunto encerrado. Eu surpreendi risadinhas e olhares maliciosos trocados entre Wanda e Maria Negra. Não gostava de ficar boiando, de fora; busquei encontrar urna explicação para aquela censura. Busquei e encontrei: “A Saúde da Mulher” fazia com que eu me lembrasse de dona Ada, moradora da Alameda Santos, embora dona Ada fosse uma loira exuberante, ao passo que a mulher do anúncio do remédio era discreta morena. Dona Ada vivia sozinha, servida por duas empregadas. Não visitava ninguém nem era visitada pelos vizinhos. À noite, via-se chegar um carro que estacionava à sombra de copada árvore, na rua, próxima à sua casa. Um cidadão descia do automóvel e sorrateiramente entrava pelo portão apenas encostado da residência da vistosa senhora.

Certa vez ouvi mamãe comentar com dona Regina que o “marchante” de dona Ada devia ser um “pezzo-grosso”, pois escondia-se, não queria ser reconhecido. Achando que mamãe se referia à maneira do homem andar, dei meu palpite: nunca vira o homem marchando, ele dava, isso sim, uma corridinha... Dona Angelina achou muita graça na ingenuidade da filha: “l’innocénza!” Essa foi mais uma das “gracinhas” da filha de dona Angelina a ser contada e repelida.

Mamãe não riu, muito pelo contrário, enfureceu-se, quando lhe contei que dona Ada me chamara, me oferecera “gianduias” e especulara a nossa vida. Entre outras coisas, mostrara-se interessada em saber se papai e mamãe costumavam brigar.

Furiosa, dona Angelina subiu a serra! “Mulher mais atrevida! Bem que dona Eponina me preveniu — dona Eponina era outra vizinha que vivia debruçada na janela fuçando a vida alheia; fala doce e sibilada, ia atirando verdes para colher maduros — que aquela sujeita não é boa bisca! Mulher cheia de saúde — daí a minha associação com a “Saúde da Mulher” — não trabalha, não faz nada, uma vagabunda que vive na janela e precisa de duas empregadas para servir a baronesa! Um velho de noite e mocinhos de dia... Não chega? Agora ela está querendo o quê? Por que tanta pergunta? E você — dirigia-se a mim — não me fale mais com aquela “troia”, viu, “signorina”?

Baratinei-me toda com aquela zanga de mamãe e, sobretudo, com a empolgante frase: “...aquela sujeita não é boa bisca!” A bisca que eu conhecia era um dos jogos de baralho, comuns lá em casa: a bisca, a escopa, o truco.

Não havia dúvida, mamãe proibia a leitura do anúncio da “Saúde da Mulher” simplesmente por não gostar de dona Ada. Era isso.

Os anúncios de remédios, nos bondes, nos distraíam tanto — a mim pelo menos, com as associações de ideias — que me faziam esquecer a canseira de viajar de pé, encurtava o tempo do trajeto. Quando menos esperava, já estávamos chegando.

(Anarquistas, graças a Deus, 1979.)