O QUE NÓS VEREMOS
Eu vos falei do comércio e da dificuldade do seu desenvolvimento, da facilidade de transporte e comunicações e do incremento das relações amistosas. Estou convencido que os obstáculos de tempo e distância serão removidos. As cidades exiladas na América do Sul entrarão em contato direto com o mundo de hoje. Os países distantes se encontrarão, apesar das barreiras de montanhas, rios e florestas. Os Estados Unidos e os países sul-americanos se conhecerão tão bem como a Inglaterra e a França se conhecem. A distância de Nova York ao Rio de Janeiro, que é agora de mais de vinte dias de viagem por mar, será reduzida a 2 ou 3 dias. Anulados, o tempo e a distância, as relações comerciais, por tanto tempo retardadas, se desenvolverão espontaneamente. Teremos facilidades para as comunicações rápidas. Chegaremos a um contato mais íntimo. Seremos mais fortes, nos nossos laços de compreensão e amizade.
Tudo isto, Srs., será realizado pelo aeroplano.
[...]
A possibilidade da navegação aérea entre os Estados Unidos e a América do Sul é mera especulação fantasiosa?
Intimamente creio que a navegação aérea será utilizada no transporte de correspondência e passageiros entre os dois continentes. Algum de vós demonstrará incredulidade e rirá desta predição.
Sem embargo, faz 12 anos que eu disse que as máquinas aéreas tomariam parte nas futuras guerras e todos, incrédulos, sorriram.
Em 14 de julho de 1903, voei sobre a revista militar de Longchamps. Nela tomavam parte 50.000 soldados e em seus arredores se acotovelavam 200.000 espectadores. Foi a primeira vez que a navegação aérea figurou em uma demonstração militar. Naquela época, predisse que a guerra aérea seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares. Minha predição foi ridicularizada por alguns militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcançaram as futuras e imensas utilidades da navegação aérea. Dentre este é, para mim, grato recordar o nome do Sr. General André, então Ministro da Guerra de França, de quem recebi a seguinte carta:
MINISTÈRE DE LA GUERRE
Gabinet du Ministre
Paris, le 19 juillet 1903
Monsieur.
Au cours de la revue du 14 Juillet, j’avais remarqué et admiré la facilité et la sûreté avec lesquelles évoluait le ballon que vous dirigiez. Il était impossible de ne pas constater les progrès dont vous avez doté la navigation aérienne. Ils semble que, grâce à vous, elle doive se prêter désormais à des applications pratiques, surtout au point de vue militaire.
J’estime qu’à cet égard elle peut rendre des services très sérieux en temps de guerre ...
Général ANDRÉ
Consideremos, entretanto, os acontecimentos desde aquela época. Consideremos o valioso trabalho que o aeroplano tem produzido na atual guerra.
A aviação revolucionou a arte da guerra.
A cavalaria, que teve grande importância em momentos valiosos, deixou de existir.
[...]
A aviação demonstrou-se a mais eficaz arma de guerra tanto na ofensiva como na defensiva. Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos.
Quem, há cinco anos atrás, acreditaria na utilização de aeroplanos para atacar forças inimigas? Que os projetis de canhões poderiam ser lançados com efeitos mortíferos de alturas inacessíveis ao inimigo?
[...]
Se o aeroplano, Srs., se tem mostrado tão útil na guerra, quanto mais não o deverá ser em tempos de paz?
Há menos de dez anos o meu aparelho era considerado uma maravilha. Nele havia lugar apenas para uma pessoa; eu me utilizei de um motor de menos de 20 HP. A princípio apenas consegui voar alguns metros, e pouco depois alguns quilômetros. Meu recorde foi de 20 quilômetros. Eu carregava gasolina apenas suficiente para um voo de 15 minutos. Naquele época o aeroplano era considerado um brinquedo. Ninguém acreditava que a aviação chegaria ao progresso de hoje. Nesses tempos voávamos apenas quando a atmosfera estava tranquila, geralmente ao nascer do sol ou ao seu pôr.
Acreditava-se que um aeroplano só poderia voar quando não houvesse vento. Hoje fabricam-se aparelhos que podem transportar 30 passageiros, capazes de viajar nos ares durante horas, de percorrerem cerca de mil milhas sem tocar em terra, movidos por motores num total de mais de mil cavalos.
[...]
Eu, para quem já passou o tempo de voar, quisera, entretanto, que a Aviação fosse para os meus jovens patrícios um verdadeiro esporte.
Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras Escolas de Aviação no Brasil. Ver o aeroplano - hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte - percorrendo as nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.
Santos-Dumont
A Encantada
Morro do Encantado - Petópolis – 1918
INTRODUÇÃO EM FORMA DE FÁBULA
RACIOCÍNIOS INFANTIS
Dois meninos brasileiros, dois ingênuos meninos do interior, que nada mais conheciam a não ser o movimento das lavouras primitivas, desprovidas de quaisquer dessas invenções feitas para aliviar o esforço do trabalho humano, passeavam pelo campo conversando.
[...]
Eram garotos refletidos, mas os assuntos que discutiam no momento excediam, em muito, tudo quanto eles tinham podido ver ou ouvir.
- Por que não se arranja um meio de transporte melhor que o lombo dos animais? - dizia Luís - No verão passado atrelei cavalos a uma velha porta e sobre esta carreguei sacos de milho; assim, transportei de uma só vez mais do que dez cavalos poderiam transportar. É verdade que foram precisos sete cavalos para arrastar a carga, além de dois homens ao lado, para impedi-la de escorregar.
- Que quer você? - ponderou Pedro. - Tudo se compensa na natureza. Não se pode tirar alguma coisa do nada, nem muito do pouco.
- Coloque rolos debaixo desse trenó e uma pequena força de tração chegará.
- Ora! ... Os rolos se deslocarão; será indispensável pô-los sempre nos lugares, e perderemos neste trabalho o que houvermos ganho em força.
- Mas - observou Luís - fazendo um furo no centro dos rolos, você poderá fixá-los ao trenó em pontos fixos. Ou então, por que não adaptar peças circulares de madeira aos quatro cantos do trenó? Olhe, Pedro, o vem lá embaixo, na estrada. Exatamente o que eu imaginava, de maneira ainda mais perfeita. Basta um cavalo para puxá-la folgadamente!
Uma carreta aproximava-se. Era a primeira que aparecia na região. O condutor parou e pôs-se a conversar com os meninos. As perguntas surgiam umas atrás das outras.
- A essas coisas redondas - explicou o homem - chamamos rodas.
- O processo deve esconder qualquer defeito - insistiu Pedro. - Olhem em torno. A Natureza emprega esse instrumento que você chama roda? Observe o mecanismo do corpo humano; repare a estrutura do cavalo. Observe ...
- Observe que o cavalo, o homem e a carreta com as suas rodas estão nos deixando aqui - interrompeu Luís, rindo. - Você não se rende à evidência do fato consumado, e me enfastia com seus apelos à Natureza. Será que o homem realizou algum dia um verdadeiro progresso que não fosse uma vitória sobre ela? Por acaso não lhe é fazer violência o derrubar uma árvore? Nesta questão, atrevo-me a ir mais longe: suponha um gerador de energia mais poderoso do que este cavalo ...
- Muito bem; atrele dois cavados à carreta.
- É de uma máquina que estou falando - retificou Luís.
- De um cavalo mecânico, de pernas muito poderosas? ...
- Não. Antes, de um carro-motor. Se descobrisse uma força artificial, eu a faria atuar sobre um determinado ponto em cada roda. A carreta levaria por si mesma o seu propulsor.
- Ora, isto seria o mesmo que alguém tentar elevar-se do solo pelos cordões dos sapatos - comentou Pedro, em ar de troça. - Escute, Luís: o homem está na dependência de certas leis físicas. O cavalo, é verdade, carrega mais que o seu peso, mas a própria Natureza o fez com pernas apropriadas a este trabalho. Tivesse você a força artificial de que fala, e do mesmo modo seria obrigado, na sua aplicação, a se conformar com as leis físicas. E aí fico! Você fá-la-ia exercer-se sobre longas hastes, que empurrariam a carreta por detrás.
- É sobre as rodas que penso levar a força.
- Pela natureza das coisas, haveria uma perda de energia. É mais difícil movimentar uma roda aplicando a força motriz no interior da circunferência, que dirigindo-a sobre o exterior, como, por exemplo, impelindo ou arrastando uma carreta.
- Para diminuir o atrito, eu faria correr o meu veículo motor sobre trilhos de ferro muito lisos. A perda de energia seria assim compensada por um ganho de velocidade.
- Trilhos de ferro bem lisos! - exclamou Pedro, com uma gargalhada. - As rodas patinariam. Só se houvesse rebordos nos aros e ranhuras correspondentes nos trilhos. Outra coisa: como impediria você que o veículo saísse dos trilhos?
[...]
Os dois brasileirinhos achavam-se agora à margem de um grande rio. O primeiro navio que singrava suas águas aparecia ao longe. Mas, para os nossos jovens amigos, era apenas, ainda, uma forma indistinta.
[...]
O navio atracou. Dirigindo-se para ele, os meninos experimentaram a alegria de encontrar no tombadilho um velho amigo da família, plantador das vizinhanças, que os saudou, convidando:
- Subam, meninos! Venham conhecer o navio!
Os dois petizes não se fizeram de rogados. Instantes depois estavam a bordo, examinando demoradamente a máquina. Por fim, foram sentar-se à proa, com o seu obsequioso guia.
- Pedro - segredou-lhe o companheirinho - será que os homens não poderão inventar um navio para navegar no céu?
O fazendeiro olhou com ar apreensivo para o autor da pergunta, que baixou os olhos, enrubescendo.
- Anda construindo castelo no ar? - perguntou-lhe.
- Não faça isso - tranquilizou Pedro. - Ele sempre fala assim, de coisas aéreas. É mania.
O velho sorriu, e sentenciou, convicto:
- O que você sonha é impossível. O homem não pilotará nunca um navio no espaço.
- Mas - insistiu Luís - no São João, quando se acendem as fogueiras, costumamos soltar balões de papel cheios de ar quente. Se se encontrar um meio de construir um balão muito grande, bastante grande para levantar consigo um homem, uma viatura leve e um motor, não poderia ele ser dirigido no espaço do mesmo modo que um navio nas águas?
- Meu caro amiguinho, não diga disparate - replicou o velho com vivacidade, ao perceber, ainda que tardiamente, que o capitão do navio se aproximava.
Este ouvia porém a observação, e longe de considerá-la disparatada, justificou-a:
- O grande balão que você idealiza existe já desde 1783. Infelizmente, porém, posto que capaz de levantar um ou mais homens, não pode ser dirigido. Está à mercê do mais leve sopro de brisa.
[...]
- Nestas condições, não haveria senão uma coisa a fazer: construir uma máquina inspirada no modelo de um pássaro - sugeriu Pedro, categórico.
- Pedro é um menino de bom senso - observou o velho fazendeiro. - Pena que Luís não se pareça com ele e se deixe dominar por visões. Mas, diga-me, Pedro, por que motivo você prefere o pássaro ao balão?
- Motivo muito simples. E de uma lógica elementar. O homem voa? Não. O pássaro voa? Voa. Por conseguinte, se o homem quiser voar, tem que imitar o pássaro. A Natureza fez o pássaro e ela não se engana. Se o pássaro fosse apenas um saco cheio de ar, possivelmente eu ficaria com o projeto de um balão.
- Bem pensado - confirmaram, ao mesmo tempo, os dois homens.
Luís, porém, não se deu por convencido. Do seu canto, murmurou, com a incredulidade de um Galileu:
- Ele será dirigível!
(O que eu vi, o que nós veremos, 1918)