Carregado de sabedoria, santificado de honradez, ungido de brasilidade, morreu Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho após realizar a proeza de ter vivido em três séculos diferentes. Desencantou – diria Guimarães Rosa –, e dele acabais de traçar o perfil, nos moldes do ritual acadêmico, em magistral panegírico. Foi, realmente, um extraordinário exemplar humano, por sua dignidade, por sua intrepidez, por sua cultura, por sua autonomia, por sua coerência. Figura emblemática, pertenceu à Academia Brasileira de Letras durante mais de seis décadas, foi seu presidente e era seu decano.
Esse varão admirável não deixou fortuna, só um bem de raiz, a casa antiga, de moradia, bem simples. Dentro dela, alfaias modestas, nenhum adorno valioso.
O que ele acumulou, avaramente, a vida inteira, foi a biblioteca dispersada por todos os cômodos, em estantes bem cuidadas, livros primorosamente encadernados, os clássicos e os modernos, incunábulos raríssimos, prosa e poesia, alimento e bálsamo de sua curiosidade intelectual. Ávido e guloso de conhecimentos, abasteceu-se e regalou a vida inteira com os acepipes e iguarias dessa despensa, provedora contínua das exigências culturais de seu espírito.
Bens imateriais, deixou-os à larga, inumeráveis, as suas virtudes, caráter inamolgável, hábitos austeros de vida, o seu exemplo de homem símbolo como defensor intransigente da ética e da moralidade no exercício da função pública. Deixou ainda um legado muito valioso entre nós – o decanato – ao ilustre confrade Josué Montello, como se fosse um propósito do acaso para premia-lo, por seu amor a esta Casa, seu ex-presidente, maior historiador da instituição e da vida e obra de seus vultos proeminentes, autor de uma obra literária, que o coloca entre os maiores escritores do país e de um finíssimo diário em que esquadrinha os fastos da Academia como se fossem os anais dos bastidores da nossa confraria, de presumidos letrados e videntes.
A vaga tinha um quê muito especial, era de um dos nossos abades, que prior já fora e aqui permaneceu mais da metade de sua longa vida, plena de grandes feitos, aureolado por um halo consagrador de autoridade e de respeito, que se projetava por toda a Nação, à qual serviu e defendeu ardorosamente, como jornalista e homem público.
Josué Montello assumiu automaticamente o galarim que lhe coube e seguiu a prática de Machado de Assis e de Joaquim Nabuco, de atrair, convidar, convocar alguém de indiscutível envergadura para ocupar a cadeira que Barbosa Lima honrou e enalteceu durante mais de meio século. E teve a sabedoria de lembrar o nome de um intelectual, já consagrado pela própria Academia, quando lhe deu o Prêmio José Veríssimo, em 1959, pelo livro Os Donos do Poder, um clássico de nossa historiografia – o senhor Raymundo Faoro –, que hoje recebemos com gáudio nesta solenidade. Se digo que Josué Montello teve olho de lince na escolha é porque há muitos pontos de contato, parecenças, similitudes entre sucessor e sucedido: ambos historiadores, ambos sociólogos, ambos cientistas políticos, ambos articulistas insignes da nossa imprensa, ambos bacharéis em direito, ambos advogados e, coincidência ainda maior, fizeram ambos a opção profissional pela defesa do erário, do interesse público, como procuradores do município e, depois, quando a capital se mudou para Brasília, do Estado do Rio de Janeiro.
Ao tomar conhecimento do convite, temi pela não confirmação de vossa aquiescência. Tocado pela razão e pelo sentimento, porque a predileção me pareceu sumamente bem inspirada, por vossa obra de pensador político, por vossos talentos, pela admiração que sempre nutri por vossa notável posição no cenário intelectual do país e, particularmente, por vossa atuação de sumo relevo, como presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, quando desempenhastes um papel deveras importante para extirpar a ignomínia da tortura, que se praticava, indiscriminadamente, nos quartéis para onde eram levados os presos políticos, o que nos envergonhava ante nós mesmos e ante os olhos do mundo inteiro.
A Academia já vos esperava há muito tempo, desde quando vos concedeu a medalha José Veríssimo. Não sei de aceno tão expressivo como o que vos foi feito naquela ocasião.
Com a vossa inscrição, pela minha condição de advogado, que vos teve como battonier e sabia da vossa corajosa, inteligente e eficaz atuação, colocado em posição estratégica, no meio das trevas de uma ditadura, senti o dever e o contentamento de aliar-me aos partidários de vosso triunfo, tal o conjunto de qualidades que sei possuirdes para honrar o galardão que ora recebeis. Éreis o diácono ideal, para ocupar o vazio deixado por vosso especial e admirado antecessor, tais os vossos títulos, como escritor primoroso, pelo estilo despojado e, ao mesmo tempo, terso e puro, de vossa obra, pelo conteúdo, extensão e profundidade de invejável cultura humanista nela revelados, e sem favor nem lisonja, por serdes um dos mais destacados intelectuais do Brasil contemporâneo. Por merecimento, já vos recebemos promovido, pelo consenso de vossos confrades, como um dos nossos abades, eleito, paradoxalmente, até pelo voto antecipado de Barbosa Lima Sobrinho, no PEN Clube, quando ali vos saudou, em discurso de recepção. Fiquei desvanecido com a honrosa missão de representar a Academia nesta noite de gala, com toda a pompa da liturgia instituída para a posse de cada novo companheiro de devoção à cultura da língua e da literatura nacional.
Afrânio Peixoto, um dos grandes desta Casa, em todos os tempos, ao discursar neste salão, quando o inaugurou, na sua presidência, deixou bem claro que “a Academia Brasileira recebeu de seus fundadores e da sua missão intelectual, a convicção que suas energias, individual e coletivamente, estão a serviço da cultura nacional” (grifo nosso). E, citando Aristóteles, evidenciou que o nosso papel não está limitado a esquemas apriorísticos:
O governo dos melhores, no sentido aristotélico, lá está na sua Retórica, é a aristocracia dos mais educados, mais polidos, mais cultos, mais letrados, que, portanto, podem pretender uma orientação eficaz da Pátria: na Academia, e pela Academia, não nos falece a ambição de que sejamos uma mestra de inteligente e liberal direção dos brasileiros, para os grandes destinos da Pátria.
Sendo, pois, uma casa da cultura nacional, a Academia não está indiferente ou cega à realidade social e humana de um mundo atordoado, à procura de rumos, no meio de uma difícil transição, talvez a mais dramática de sua história. Embora comedida e cautelosa, ela não é uma torre de marfim ou uma redoma de santo e se tem pronunciado, no momento preciso, cauterizando o ato despótico e arbitrário de entidade congênere, através de um dos seus mais notáveis integrantes, o saudoso Alceu Amoroso Lima, figura exponencial da intelectualidade brasileira: “Quando vemos um Pasternak ser levado ao desespero e à morte pela intolerância de uma Academia, é que o espírito dela se ausentou, colocando-a ao serviço do Poder Absoluto e do fanatismo das novas classes.”
Ou, como observou a poeta Myriam Fraga, na Academia Baiana de Letras, às Academias
muito mais que guardiãs da sabedoria cumpre-lhes a função de medianeiras do conhecimento. Não uma fechada confraria, mas uma escola aberta à comunidade, uma diretriz e um exemplo. Não a imortalidade na inércia, mas a permanência no aperfeiçoamento e sua mudança. Impossível fugir à responsabilidade do intelectual frente às novas ameaças que afligem a humanidade. Neste momento a omissão é imperdoável. Às instituições, por seu poder de conduzir e desfraldar bandeiras, estará reservado um desempenho vigoroso no desdobrar do futuro.
Esta é mais uma razão de regozijo, Sr. Raymundo Faoro, por vossa presença entre nós, como grande cientista político, para debater e apontar os caminhos minados de riscos, cuja travessia é o pesado desafio feito aos homens de saber nesta hora crucial para a humanidade.
A GRANDE OBRA DO HISTORIÓGRAFO RAYMUNDO FAORO
O carro chefe de vossa obra, Sr. Raymundo Faoro, é, sem dúvida, o livro Os Donos do Poder, uma análise completa da formação do patronato brasileiro, publicado inicialmente em 1958, depois ampliado e refundido em 1974. Por uma armação caprichosa do destino, o inspirador principal das observações iniciais deste discurso é o vosso antecessor. Ao receber-vos, no PEN Clube, Barbosa Lima Sobrinho, partindo da epígrafe do último capítulo de Os Donos do Poder – “Uma Viagem Redonda – Do Patrimonialismo aos Estamentos” –, disse que teríeis ido “na companhia do sociólogo alemão Max Weber, que foi para vós, nessa excursão, como a presença de Virgílio para o poeta florentino. Quem sabe se não mereceu a mesma saudação enternecida: Tu so lo mio maestro e il mio autore?”.
Estamento: – esclareceis em vosso livro – quadro administrativo e estado maior de domínio, configura o governo de uma minoria. Poucos dirigem, controlam e infundem seus padrões de conduta a muitos.” Já antes havíeis caracterizado a sua origem e a sua distinção da classe e da casta, como sendo palavra “incorporada ao português, por via do espanhol, derivada da mesma raiz da palavra Estado. Status de stare – foi sugerida na sociologia moderna por Weber. Stand-der – em alemão corresponde ao état francês... A tradução da palavra, visto que o conceito é hoje universalmente empregado, causa algumas perplexidades.
Com a vossa probidade intelectual e científica, deixais bem nítido, antecipando-vos a algumas “restrições veementes, talvez mesmo ásperas, que não vos impressionaram, pois que não podíeis ignorar que a História não consegue caber em formas de metal, fabricadas nas oficinas do apriorismo” (Barbosa Lima Sobrinho); vós dizeis que para Marx e Engels, ciosos do bom emprego do conceito Stand, comprometido com a realidade pré-capitalista – a burguesia moderna, atualmente uma classe, gerou-se do estamento (o “terceiro estado da política francesa) anfangs seebst feudales Stand ”... Clara, para eles, a distinção entre classe e estamento... E registrais, com justeza: “O dogma marxista vê na luta de classes o motor, o centro dinâmico da sociedade.” E provais, nesta síntese do Manifesto Comunista: “A história da sociedade até aqui existente é a história da luta de classes [...] o marxismo reduziu todas as forças sociais a um problema econômico. [...] Atente-se, todavia, que o conceito de classes para Marx e Engels compreende, sem negá-lo, o conceito de estamento.” E a delimitação do conceito de estamento é por vezes veemente nas palavras de Marx e Engels: “A burguesia, por ser uma classe (Klasse) e não mais um estamento, se organiza no plano nacional [...] reconhecem os autores, a independência do Estado das classes, devido a um estágio histórico no qual os estamentos não se convertem em classes.”
O tempo mostrou, com o seu simples decorrer, a incorreção, a injustiça e, especialmente, o erro dos críticos da vossa obra magnífica. O vosso antecessor já havia enxergado o despropósito desse erro. Barbosa Lima Sobrinho está movendo a minha mão para responder a vossos adversários, pois não havíeis pretendido ter achado a pedra filosofal, ou o elixir milagroso, ou o pó cabalístico, para produzir a verdade definitiva. As teses estão sempre sujeitas a debates futuros.
Mesmo os vossos críticos mais destacados fazem sempre a ressalva da importância de Os donos do poder, como Francisco Iglésias, que começa as suas observações, por vezes contrárias às posições do autor, neste tom, mais para encomiástico do que para demolidor, em linguagem sem insultos ou contumélias:
Publicado em 1958, o livro Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, foi a revelação de um autor, inscrevendo-se logo entre os indispensáveis ao conhecimento do Brasil. Teve alguns comentários – raros, que não há crítica no país – mas não a análise que merecia; pode-se dizer mesmo que conheceu alguma repercussão, o que não é regra em obras da qualidade da que surgia, sem qualquer concessão ou apelo à popularidade. Dada a modéstia do autor, avesso a aparecer e sem o mínimo de promocional, o livro fez carreira entre os estudiosos mais alertas, notadamente no meio acadêmico: os professores de Ciências Sociais, que o incluíram entre suas leituras básicas. Como esses professores são em número reduzido, que o quadro universitário nativo é convencional e pouco dado a leituras, a carreira não foi fulminante. Pouco a pouco, no entanto, era conhecido pelos especialistas, como se vê em sua frequente citação em quase todas as obras recentes.
Iglésias continua: “Ao questionar o destino que o autor lhe deu, se o fazemos é pelo respeito e até culto por obra que tanto marcou nos desperta desde seu aparecimento”. Destacando a vossa vocação para a literatura, Iglésias assinala, no início da longa crítica ao livro:
O escritor se manteve fiel ao estudo, dedicando-se à ciência social, o que o levou a escrever Os Donos do Poder sem desconfiar que produzia algo importante. Não abandonou a literatura, pois no que publica há alguém que sabe escrever, com segurança e estilo. E dedicou o volume a Machado de Assis, revelador de gosto refinado.
Em livro póstumo e recente, Historiadores do Brasil, editado no ano 2000, numa reunião de textos inéditos, Francisco Iglésias acentua o “lugar proeminente” de vosso livro, “já clássico na bibliografia, notadamente historiográfica”, e faz entusiástico elogio à obra e ao autor:
Suas virtudes são a extraordinária erudição, o conhecimento de ciências sociais que lhe dão instrumental interpretativo e originalidade de vistas, cujas hipóteses e conjecturas estão em aberta rebeldia aos padrões consagrados... Os Donos do Poder é análise sutil, em parte fundada em Weber e em Marx, além do domínio da melhor ciência política contemporânea. Sem falar no conhecimento da bibliografia de história do país, familiar ao autor. Embora escrito por um jurista também cientista político, é obra eminentemente historiográfica, um dos exemplos mais notáveis de ciência social bem compreendida como totalidade. De fato, Raymundo Faoro é um historiador de primeira grandeza no limitado universo patrício. Mais que cientista social que fez história, é um historiador no cultivo da ciência social no seu todo.
E acrescenta a importância do vosso papel na presidência da OAB, que citaremos mais adiante, quando traçarmos o vosso papel de homem público para a redemocratização do país.
Respondendo a observações feitas sobre os comentários dos que vos queriam filiar servilmente ao notável sociólogo alemão, escrevestes: “Advirto que este livro não segue, apesar de seu próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. Não raro as sugestões weberianas seguem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido”, acrescentando que “se afasta do marxismo ortodoxo”.
Barbosa Lima Sobrinho já havia notado que
Max Weber vos deu apenas o método para a pesquisa, como quem empresta uma luneta para a observação de galáxias ignoradas. E havia, no fundo dessa preferência, a recusa de outro método, em que deveriam prevalecer os fatores econômicos, vendo na luta de classes o verdadeiro motor da História [...] Max Weber apenas vos indicou um caminho, e o percorrestes deslumbrado com os panoramas que iam surgindo à margem de vossas pesquisas.
É preciso não esquecer que o vosso antecessor refere um nome, de quem foi testemunha muito próxima da vossa segura participação em acontecimento importantíssimo da vida política do país:
E eu gostaria de recordar a palavra que ouvi daquele piauiense que tanto admirávamos, Sr. Raymundo Faoro, e que era Petrônio Portela. Conquistado pela vossa bravura, impressionado com a vossa cultura e vosso destemor, não conteve o entusiasmo, e nos advertia: – Tomem nota desse nome: Raymundo Faoro. É um dos grandes valores com que conta o Brasil.
Parece misteriosa, ilusória, imaginária, a coincidência desses dois acontecimentos em vossa vida. No PEN Clube, a cadeira a ocupar era a de Pontes Miranda, um dos mais facundos e fecundos juristas brasileiros, que também foi nosso confrade, e cujo centenário há pouco comemoramos; aqui, ides suceder a quem lá vos saudou, Barbosa Lima Sobrinho, ícone da nacionalidade, figura apostolar, da veneração de todos nós, cidadão cuja morte desfalca o país de um dos seus filhos mais aguerridos na defesa dos interesses nacionais.
Da peroração feita lá, é só trocar o nome do antecessor. Ei-la, substituídos os nomes de Pontes de Miranda e do PEN Clube:
O que dá melhor a medida de nosso apreço, Sr. Raymundo Faoro, é menos a vossa presença ou a vosssa escolha do que a sucessão dessa extraordinária figura de Barbosa Lima Sobrinho quando a Academia Brasileira de Letras procurava alguém que dignificasse o posto que viria ocupar, e pudesse prestar, ao seu antecessor, com a substituição, a homenagem que ele tanto merecia.
MACHADO DE ASSIS – A PIRÂMIDE E O TRAPÉZIO
No estudo sobre Machado de Assis, revelais ser um dos mais profundos conhecedores de sua obra e nele fazeis um verdadeiro trabalho de ourives, no exame detalhado dos tipos e personagens, que ele criou, através dos quais retratais o seu interesse e preocupação com os problemas políticos e sociais do seu tempo. De começo, advertis que o vosso livro tentará “desvendar, atrás do papel teatral, as funções sociais e espirituais do escritor”, “não o homem e a época, mas o homem e a época que se criaram na tinta e não na vida real”. E para que o leitor melhor compreenda o sentido da obra, no tempo e no espaço, esclareceis:
Nitidamente, há uma estrutura de classes – banqueiros, comerciantes e fazendeiros – sobre outra estrutura de titulares, encobrindo-a e enfumaçando-lhe os contornos. É a camada da penumbra que decide os destinos políticos, designa deputados e distribui empregos públicos... a classe em ascensão coexiste com o estamento; muitas vezes a classe perde sua autonomia e desvia-se do seu destino para mergulhar no estamento político, que orienta e comanda o Segundo Reinado.
Fazeis uma observação, atualíssima para os dias de hoje, para a era em que vivemos, da globalização da economia, em que o mundo está engolfado: “Há uma sociedade de classe em plena ascensão, cifrada, nas expressões mais gloriosas, nos banqueiros, nos prósperos comerciantes, nos capitalistas donos de rendas, nos senhores de terras e de escravos. O dinheiro é a chave e o deus desse mundo, dinheiro que mede todas as coisas e avalia todos os homens.”
Machado de Assis chasqueia desse poderio da moeda, como apontais, através de um personagem do conto “Anedota pecuniária”, que comentou, no enterro de um amigo: – “Pegavam no caixão de três mil contos!” E como um dos presentes duvidasse, acrescentou: – “Fulano quatrocentos, Sicrano seiscentos..., há dois anos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos”... E foi por diante, demonstrando, somando e concluindo: – “Justamente, três mil contos!”
E, assim, de tudo que acontece, apontais o nosso patrono, ora zurzindo a injustiça social, ora escarnecendo das situações ridículas que se apresentam na sociedade.
Se fôssemos referir todas as manifestações de Machado de Assis, de igual natureza, contidas no vosso livro, levaríamos horas intermináveis, o que seria impróprio nesta solenidade.
Vejamos, por exemplo, o assunto fundamental da escravidão, que vós analisais, em diversas passagens, acentuando que somente Machado de Assis ante “o enquadramento social do trabalhador livre no contexto da miséria”, pôde “medir o escravo sob ângulo original”, e, assim,
insistiu na calamidade que a alforria poderia significar para o cativo. O escravo seria livre, mas ficaria sem trabalho e sem pão, entregue à mendicância. O senhor, só ele, lucraria com o ato de generosidade, ao se desfazer de uma boca inútil, envelhecida ou estropiada no trabalho. A liberdade não passava, nas circunstâncias, de retórica cruel ou de mentira...
Do mergulho profundo na obra pesquisada, chegastes à conclusão de que
seria temerário construir de alguns retalhos soltos, uma teoria social da qual Machado de Assis estava longe, quer por falta de preparo filosófico, quer por aderência aos valores dominantes. Há menos do que uma doutrina na sua obra, e mais do que o protesto intuitivo. Não desconhecia Machado de Assis o confuso rumor que o fim do século XIX projetava da Europa para o mundo, rumor que confundia, apaixonadamente, socialismo, anarquismo e comunismo.
E acrescentais uma circunstância desconhecida do grande público: “Proudhon merece explícita referência, com a observação que, graças a um folheto seu, teve um ‘vislumbre de política’, porque entendeu o rumor e suas causas.” O próprio nome de Marx é evocado, sem que Machado de Assis jamais o tenha lido. Notou que
os socialistas procuravam discernir, atrás dos fatos, de modo mais amplo que os moralistas, amarrados aos motivos das ações como pecados capitais... Eu, pela minha parte, não tinha parecer. Não era por indiferença, é que me custava a achar uma opinião. Alguém me disse que isto vinha de que certas pessoas tinham duas e três, e que naturalmente esta injusta acumulação trazia a miséria de muitos; pelo que, era preciso fazer uma grande revolução econômica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-o à fava. Foi outro verso, mas vi-me livre de um amolador. Quantas vezes não me acontece o contrário!
O sociólogo e cientista político Raymundo Faoro observa, com acuidade:
Tudo está a testemunhar que há, na visão do escritor projetada sobre o problema servil, um processo novo na tomada de conhecimento da realidade. Ao seu cuidado antigo de descobrir na ação o móvel íntimo que desfigura o fato exterior – para quem ‘o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão’ – sobrepõe-se a preocupação de ver, no acontecimento público, as razões, não mais de ordem moral, mas oriundas da organização social. Atrás da alforria do escravo não está apenas a cobiça, mas a tranquila exploração do empregado, que o sistema do salário explica e legítima... Ele, quase solitariamente, vê atrás da liberdade, o fundamento da liberdade, assentado sobre a autonomia econômica. Percebe que a libertação do escravo pode ser apenas um bom negócio para o branco e o caminho da miséria para o preto. A liberdade, a bela e milagrosa liberdade dos comícios e dos panfletos, também ela esconde a escravidão.
Depois dessa constatação, fazeis a correta ponderação do cientista:
Cético com respeito à abolição e às alforrias, a escravidão existe na obra de Machado de Assis, independente de sentimentos. O entusiasmo abolicionista, a piedade com a sorte do escravo, o protesto contra o mau trato, não encontrarão nenhum eco na palavra do escritor, senão em expressões polidamente convencionais.
Diante da abolição consumada, o moralista se apaga, e é esse o vosso comentário:
Parece que o sociólogo usurpa o seu lugar, atento à realidade exterior, fixada na história e na sociedade. O sociólogo tem a função exclusiva, ao contrário de revelar a sociedade, de denunciar a presença de uma trama inacessível à vontade humana e ao protesto. Mostra, sob a aparência de estudioso das instituições sociais, a impotência para reagir diante do monstro inexorável que comanda homens e coisas. As relações sociais, a ordem social, a instituição não são feitas pelo homem; são a ele superiores, esmagando-o, inflexivelmente.
Está enfaticamente registrado no vosso livro que, “antes de tudo Machado de Assis não é uma natureza voltada para a política, como não o era José de Alencar”. Apesar disso, “fora da ficção, em página de raro encanto evocativo, cuidou do velho Senado, apontando-lhe, lucidamente, alguns traços: o congraçamento, a elevada despreocupação, figuras que perdiam a atualidade, com o curso de longos anos alheados dos acontecimentos”.
Todos os fatos importantes mereciam o seu exame e a sua crítica. Leiam-se as longas páginas escritas sobre o encilhamento, as trocas de favores entre o comércio e a política, a República e seus próceres, Rui Barbosa apontado como o formulador do federalismo. Também aparece Campos Salles, precursor do retorno à estabilidade financeira, e, como lembrais, por “transparente coincidência”, “com a entrega da economia ao setor privado”. Aí aparece a vossa voz de alerta: “Mas não haja ilusões: este aparente liberalismo era apenas o afastamento do Estado – seria uma abstenção vigilante e não o abandono a uma função que o verdadeiro liberalismo acoimaria de ilegítima, monstruosa, irracional.”
Machado de Assis via o aspecto exterior, decorativo e extravagante, como Nabuco e Taunay também viam, “na classe que emergia, classe sem moral, sem escrúpulos, sem maneiras e sem gramática, o fim de uma época e de um estilo”.
E ele ainda revelava, nas suas crônicas e nos seus escritos de então, conhecimento do progresso advindo com as estradas de ferro, segundo o pensamento de Rui Barbosa, ministro da Fazenda do Governo Provisório.
Machado de Assis, Nabuco e Taunay não se adaptam às novas circunstâncias – dizeis – o primeiro por “seu fino alheamento”. Havia uma mudança, “o encilhamento havia criado uma nova classe – os especuladores... nasceu a questão operária da Bolsa, da febre da agiotagem, os lucros consagradores e rapidíssimos da especulação desenfreada e dos golpes aleatórios e arriscados”.
Machado de Assis “não percebe que, no lugar do velho estamento aristocrático, outro poderia ocupar-lhe o lugar, estamento composto de militares”.
Aí vem toda a história do começo da República, com o poder assomado pelos militares. Machado de Assis não fica indiferente aos acontecimentos e Agripino Grieco, por vós citado, comenta que, aos seus olhos hostis,
a intervenção da espada se equipara à invasão estrangeira... Ao tempo em que desdenha o oficial do Exército, valoriza positivamente o oficial da Armada... Em suma, mais uma vez toma o escritor o escudo de salvaguarda das instituições, finamente advertido da direção do vento contrário. Os militares, por isso – já se observou – não gozam, para ele, de boa imprensa.
Machado de Assis – anotais – “desqualifica o oficial do Exército com a nota do sarcasmo”, e transcreveis trecho de um texto do escritor que, “nas ocultas nuanças, nos pequenos detalhes” debica de um tenente do exército, como orador numa cerimônia de casamento”.
Há longo trecho do livro sobre Deus e o Diabo, em que o escritor se dedica exclusivamente a apresentar deliciosos textos puramente literários, como “A igreja do diabo”, “Adão e Eva”, Poesias Completas, Dom Casmurro, Iaiá Garcia, Memórias Póstumas de Brás Cubas...
Neste discurso, o objetivo cinge-se a mostrar, através da vossa magistral obra sobre Machado de Assis, a improcedência da crítica ao nosso patrono, quando o apoda de indiferença ou omissão em relação a temas políticos ou sociais.
Aqui, não é possível ignorar ou deixar de referir as Memórias Póstumas de Machado de Assis, de Josué Montello, nosso querido decano e também grande conhecedor da obra do padroeiro de nossa Academia.
Josué Montello define-o, sob esse aspecto, empregando uma expressão do próprio Machado, que se inculcava como um “solteirão da política, mas um solteirão antes voluntário que frustrado e, por isso mesmo, sem o travo do desencanto”. E cita o testemunho do saudoso R. Magalhães Júnior, que apurou ter sido Machado de Assis candidato a deputado pelo Segundo Distrito de Minas Gerais.
E acentua:
A política, se não constitui um tema prevalecente na pena do escritor, não deixa de incluir-se no âmbito de sua reflexão e de seu comentário, ajustada ao momento que passa. Entretanto, não sendo um militante, não foi também um omisso. E sim um homem de seu tempo, aberto às novas ideias, para entendê-las e discuti-las, sem contudo praticá-las.
O PRESIDENTE DA OAB – RAYMUNDO FAORO
E SUA MAIOR FAÇANHA COMO HOMEM PÚBLICO
Fostes, Sr. Raymundo Faoro, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil no biênio 1977 a 1979, e aí a vossa atuação contra a ditadura militar instalada no poder passou a destacar-se, em vigorosa posição assumida contra os Atos Institucionais absolutistas e ilegítimos sob os quais se amordaçavam as liberdades públicas de modo tirânico, os cidadãos sem quaisquer garantias, retirados até os chamados predicamentos da magistratura, transformada num organismo inócuo, sem poder político, sem vitaliciedade, com as funções amesquinhadas e limitadas apenas ao julgamento dos litígios de natureza privada. A OAB intimidada e ameaçada tinha a sua ação coarctada pelo arbítrio ilimitado de uma constante suspeição nas suas atividades. A violência contra os advogados defensores de presos políticos chegou à brutalidade da prisão de profissionais que tinham a bravura de enfrentar os sinistros órgãos da repressão política, onde a tortura se instalou, com toda a sua infâmia e ignomínia, como método de investigação criminal. Vivíamos um período de terror, inseguros e assustados, sem esperar uma saída para os teatros de atrocidades em que se transformaram os calabouços civis e as cadeias dos quartéis. Eram os espancamentos de homens e mulheres, velhos e moços, dia e noite, os “paus de arara”, os choques elétricos, o suplício em todos os seus requintes de perversidade, de crueldade, com o cinismo da negação daquilo que a sociedade inteira sabia e as organizações internacionais de direitos humanos denunciavam no mundo inteiro.
A Ordem dos Advogados, sob vossa direção, tornou-se um foco de resistência pacífica contra o regime militar. Foi de lá que partiu a primeira denúncia circunstanciada contra a tortura dos presos políticos. Quando se aproximava a data da Conferência Nacional dos Advogados, em 1978, certos episódios de morte de presos políticos em São Paulo começaram a transpirar e correram rumores de desentendimento entre as autoridades superiores da República. O Presidente Ernesto Geisel, que já demitira, em outubro de 1977, o ministro da Guerra, opositor da abertura política, demitiu também o general comandante do Exército naquele estado, em seguida ao assassinato de dois presos políticos. A demissão estaria ligada à omissão ou leniência dos demitidos em relação a torturas sofridas por aquelas vítimas da sanha criminosa dos encarregados e participantes das investigações em torno das atividades subversivas dos presos. Voltava-se à época em que os padecimentos impostos aos suspeitos ou acusados eram aterrorizantes, cruéis, bárbaros, um teatro de horrores, como nos tempos de antanho, e o seu “aparato se engrenava no funcionamento político da penalidade”, como retrata Michel Foucault, com a força e o vigor de um estilo incomparável,desde a primeira página de seu livro monumental (Vigiar e punir).
Foi na presidência da Ordem dos Advogados do Brasil que vós, Sr. Raymundo Faoro, encontrastes o posto ideal para externar e dar vazão a outra faceta de vossa personalidade: a do homem público, com a capacidade para dar solução aos problemas diagnosticados pela sociedade, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos. Tínheis a visão premonitória de como era possível encontrar solução para o opróbrio da tortura, institucionalizada e ostensiva, mácula que deslustrava a dignidade nacional perante nós mesmos e diante do mundo. Uma facção minoritária, porém afoita e arrogante, se assenhoreara do comando da repressão penal aos adversários da ditadura e, com o manto protetor de superiores omissos ou desatinados e de áulicos, bajuladores e cortesões do poder, praticava atos abjetos e desvairados. Criou-se uma atmosfera de pânico, que era preciso dominar e vencer. Encontrastes a tribuna livre da classe dos advogados e, mesmo sob a ameaça de retaliações, optastes pela resistência. A vossa arma era a palavra, era a denúncia, era sacudir o poncho do bom gaúcho, era desnudar a infâmia da tortura oficializada nas investigações torquemadescas dos quartéis. Fostes, sem dúvida, um dos comandantes da operação contra a violência e a brutalidade, no que tivestes a solidariedade do vosso bravo antecessor, o nunca assaz lembrado Barbosa Lima Sobrinho, e de grande parte da Igreja católica. Foi a união dos três bês, OAB, ABI e CNBB, com o apoio do povo brasileiro. Foi esse movimento em que estáveis na linha de frente que despertou a atenção e a confiança de uma parte dos ocupantes dos postos mais importantes do governo, e, justiça seja feita, o Presidente da República, General Ernesto Geisel, já começara a dar sinais de que não estava de acordo com a estupidez instalada nos porões da repressão. Nessa hora, Sr. Raymundo Faoro, a vossa presença foi importantíssima – digo-o no superlativo –, porque, com inteligência e sabedoria, sustentastes a fórmula ideal, para desarmar os brutamontes partidários da tortura, com uma providência de ordem legal, com a qual eles ficavam ameaçados de perder os galões se persistissem nas suas práticas odiosas e desumanas. Foi a solução que pregáveis desde muito antes. Era simples e eficaz: bastava restabelecer o habeas corpus, na sua plenitude, que a tortura desapareceria dos quartéis, como por encanto, porque, com essa providência, sob a tutela do judiciário, nenhum oficial arriscaria a perda de seu posto e patente, se apanhado pela queixa do torturado ou pelo conhecimento do próprio juiz, obrigado, por lei, a promover a responsabilidade de autor de crime, seja quem for. A segunda providência por vós sempre defendida era o restabelecimento das garantias da magistratura, sem a qual a primeira poderia ser inócua, pois o juiz sem independência não se sentiria protegido para processar quem tinha o poder de demiti-lo através de um ucasse, sem direito de defesa.
Soube naquela época que estivestes com o Presidente Geisel, pouco antes da Conferência da OAB em Curitiba, para convidá-lo a presidir a abertura daquele conclave. E nessa ocasião pudestes convencê-lo da eficácia da medida por vós exposta, se restaurado o habeas corpus em sua plenitude, porque havia opiniões de autoridades ligadas ao governo no sentido de serem feitas ressalvas, especialmente em relação ao terrorismo. Tivestes a capacidade e a sabedoria de persuadi-lo que o habeas corpus, com ressalvas, tiraria a essência do próprio instituto, que, por sua natureza, há de ser amplo. O habeas corpus seria desnaturado se trouxesse qualquer restrição no seu bojo. Conhecíeis as lições de Rui Barbosa, patrono dos advogados, membro eminente e fundador desta Casa, seu presidente durante dez anos, em substituição a Machado de Assis, que a dirigiu enquanto viveu. E também conhecíeis a magistral monografia de Pontes de Miranda, a quem substituístes no PEN Clube, na qual se ensina, precisamente, que o habeas corpus há de ser sempre interpretado com largueza e extensão.
Basta repassar os Anais da Conferência da OAB, em Curitiba, para ver que a plenitude do habeas corpus e a restauração da independência do poder judiciário foram os temas predominantes dos debates. As três últimas páginas desses Anais mostram que fostes vós quem, transformado em
personalidade de estatura nacional, engajou a OAB no diálogo promovido pelo senador Petrônio Portela, conversou com os presidentes Ernesto Geisel e Jimmy Carter, fez-se um interlocutor respeitado e importante nos debates sobre reformas políticas.
E mais: “Faoro é, hoje, provavelmente, uma das melhores expressões brasileiras de homem público, capaz de pensar e agir com humor.” Sua corrosiva ironia o leva a acreditar que os tempos agora são outros, “porque o número de puxa-sacos caiu drasticamente. Sua equação: menos bajuladores, mais fraco o poder” (reportagem da revista Veja, de 10.5.78).
Vossa posição, Sr. Raymundo Faoro, já era a de um comando consciente e firmemente disposto a reimplantar o “Estado de Direito”, nome dado como objeto e tema da conferência. E diríeis, como lúcido estrategista político: “O raciocínio desaconselha a guerra aberta contra o poder autoritário.” As guerras de movimento, citando o filósofo italiano Antonio Gramsci, “em geral são malsucedidas. Derrubadas as muralhas do Estado, surgem as casamatas e fortalezas de uma sociedade civil basicamente conservadora”. E, cientista político, lembráveis: “De 1824 até hoje tivemos no Brasil 94 anos do arbítrio mais descarado, amparado por constituições outorgadas, contra apenas sessenta anos de regimes democráticos, fruto de arranjos entre as elites, sem participação popular.”
A Ordem dos Advogados do Brasil esteve no Rio de Janeiro, onde realizou a sua sessão mensal, quando vos concedeu a Medalha Rui Barbosa, láurea maior da instituição sob a presidência do advogado Rubens Approbato Machado, que está sentado à mesa diretora, a convite do presidente, em vossa homenagem. E, para prestigiar este ato, estariam presentes os conselheiros federais, não fosse o adiamento da vossa posse em virtude de luto da Academia pelo falecimento de um de seus membros efetivos.
Na Conferência de Curitiba, o assunto dominante foi a restauração do Estado de Direito, que era um tema abrangedor. Forte corrente queria a revogação dos Atos Institucionais e a convocação de uma assembleia constituinte, o que não era descartado por ninguém, mas a vossa opinião era a prioridade a ser dada ao habeas corpus, em sua plenitude, e à independência da magistratura. Nesse Congresso, se ficou sabendo que o vosso diálogo com Petrônio Portela vinha desde outubro de 1977.
É simples, por uma simples leitura, verificar que os dois pontos essenciais de vossa posição estão reconhecidos destacadamente na própria exposição de motivos do governo para a reforma da Constituição, restabelecendo o habeas corpus, sem qualquer ressalva, e as garantias da magistratura.
Foi uma solução surpreendente e alvissareira. A tortura, esse mal planetário, como diz Maurice Garçon, citado por outro grande advogado francês, Alec Mellor, autor de uma monografia sobre o tema, cessou como por encanto, no mesmo instante em que a Emenda Constitucional n. 11 revogou o Ato Institucional n.o 5.
A Nação vos é devedora de uma contribuição efetiva e inteligente para extinguir tal suplício então usual nos quartéis. A avaliação do resultado de vossa proposta foi um presságio espantoso, um prenúncio do futuro. Tereis agido como vidente, com o dom de um profeta ou com a visão do sociólogo? Dons proféticos muitos têm enxergado nos vossos livros, ensaios, crônicas e artigos. Quase ninguém teria intuído alcance tão largo para a vossa proposição, aparentemente modesta. Só depois se percebeu que ela estava calçada pela outra recomendação: o restabelecimento das prerrogativas do poder judiciário. Não foi o adivinho, nem o mágico, que anteviu a consequência, foi o cientista social, foi o weberiano Raymundo Faoro, que, afeito a ideias claras e procedimentos rigorosos, adotou o racionalismo cartesiano e considerou o problema com a sua especificidade. O vosso raciocínio, assim analisado, justifica plenamente o sucesso, o êxito obtido.
O reconhecimento de que a vossa atuação teve peso específico na redemocratização do país está registrado na obra póstuma de Francisco Iglésias:
Advogado e escritor, ganhou justa notoriedade com o exercício da presidência da OAB; transformou o órgão, erguendo-o à posição de força decisiva no encaminhamento do impasse gerado pelo malogro da ditadura militar – político, econômico, ético. Poucas vezes um homem se projetou tanto, pela inteligência e pela coragem.
A vossa contribuição foi um achado, um “ovo de Colombo”, que remitiu da tortura os que a estavam padecendo e criou uma situação legal que a tornou impraticável daí por diante, a não ser com os riscos e consequências da perda dos galões ou do emprego, para os seus autores.
E agora a prova real da vossa atuação: era Consultor Geral da República o hoje ministro aposentado Rafael Mayer, do Supremo Tribunal Federal, que representou o Presidente Ernesto Geisel na Conferência da OAB, em Curitiba. Também envolvido e conhecedor das démarches relacionadas com a atuação dos promotores das articulações para a redemocratização do país, a quem pedi informação sobre aqueles acontecimentos, é um dos poucos sobreviventes da época, e o seu esclarecimento é sumamente valioso, sobre ser de testemunha de reconhecida idoneidade, de ilibada reputação. O Ministro Rafael Mayer respondeu gentilmente à carta que lhe escrevi, resposta que principia com estas palavras:
Passo-lhe o meu depoimento sobre a participação de Raymundo Faoro no restabelecimento do Estado de Direito, a meu ver decisivo pelo apoiamento de que o Governo Geisel necessitava para promover a abertura firme, gradual e constante, enfrentando a resistência dos bolsões, sinceros, mas radicais, como se dizia no linguajar da época.
Para que pôr mais na carta?
É com o maior júbilo que dou a merecida divulgação a esse episódio, pródromo de outros avanços posteriores, como a anistia, por exemplo, de que também fostes arauto, para o restabelecimento do Estado de Direito, que se não é o dos nossos sonhos, pelas injustiças sociais que o corroem, ao menos permite clamar e lutar para corrigir os erros e descaminhos dos nossos dirigentes, incapazes de extinguir a miséria e a fome de milhões de excluídos, ante a indiferença das elites e a incompetência do estamento burocrático tão bem retratadas no vosso clássico Os donos do poder.
CONCLUSÃO
Dizeis, caro Confrade Raymundo Faoro, ter lido um livro em que vos atribuíam dom profético. E respondestes, ensinando:
O profeta não é exatamente o que prevê coisas. Isso é uma tradição tardia na história do judaísmo. Profeta é a pessoa que tem uma mensagem e que vem para dizer alguma coisa. É esse o sentido originário da palavra. E que vem, inclusive, para fazer a crítica. Os profetas tinham incolumidade. Tanto que foi um escândalo quando foi morto João Batista. Ele vinha fazer a crítica em termos ásperos e foi morto. Isso foi uma violação da imunidade dos profetas, que vinha desde o começo do judaísmo.
Pois bem, quando dais à palavra profeta um sentido além do conceito vulgar de adivinho, e a empregais, semanticamente, com a significação de alguém que tem uma mensagem, que faz uma crítica, não deixais de admitir, lato sensu, que possa ser tida como uma profecia a visão ou a expectativa de um acontecimento futuro.
Tanto que temperais a frase com o advérbio exatamente. Vimos que vós, em acontecimento importantíssimo da vida do país, fostes um profeta, no sentido que dais à expressão, consciente e benfazejo, pela mensagem que transmitíeis e pelo desejo e sentimento de vossos concidadãos não contaminados pela perversão de sádicas criaturas, praticantes da torpeza da tortura de seus semelhantes, presos e indefesos.
Como sabeis, Maurice Garçon, o notável advogado criminalista francês, chegou à Academia, em 1947, por seu talento de escritor, que não se limitava a publicar obras ligadas à profissão, como Eloquence Judiciaire, Plaidoyers Chimeriques, Defense de la Liberté Individuelle, Procés Sombre, todas elas de sabor especial para um seu modesto colega, admirador de seus sucessos e que atuava na mesma área de sua especialidade, num longínquo país sul-americano. Garçon destacou-se como autor de seis ou sete livros em torno da magia negra, da feitiçaria, do Diabo, das ciências ocultas, das religiões primitivas, todos hoje de edições esgotadas, mas de três deles, estou de posse, e o devo à gentileza, à amabilidade e ao empenho de nosso querido Confrade Sergio Corrêa da Costa. Li esses livros, achei-os atraentes, pitorescos, um tanto inquietantes, e neles se diz que a grande época do Diabo teria ocorrido nos séculos XV a XVII.
Com essas leituras, veio-me à mente o conto de Machado de Assis, “A igreja do diabo”, bem apropriado neste difícil momento, em que o mundo atravessa a crise maior de sua história. O Diabo, certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja e foi até Deus. No diálogo, escrito com a ironia e a finura de seu gênio, Machado de Assis exprime a pretensão do Diabo: “... vou fundar a minha igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa.”
“Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai. Vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!”
Uma vez na terra, o Diabo “entrou a espalhar uma doutrina nova... era a que podia ser na boca de um espírito de negação... isso quanto à substância, porque, acerca da forma era umas vezes sutil, outras cínicas e deslavadas”.
O Diabo continuou na sua pregação, clamando pela substituição das virtudes aceitas por outras: “a soberba, a luxúria, a preguiça... a avareza... a ira” e, “para rematar a obra... cortar toda a solidariedade humana...” A previsão do Diabo verificou-se... e ele “alçou brados de triunfo”.
Os fiéis do Diabo, “longos anos depois”, foram debandando: “às escondidas praticavam as antigas virtudes”.
O Diabo “voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta” de sua derrota. E Deus, “com infinita complacência, disse-lhe... que queres tu, meu pobre Diabo?... é a eterna condição humana”.
Aproveitando o instante favorável, com a contradição de agora, envenenando o ambiente universal, o Diabo parece estar voltando à carga, com toda a força, alçando de novo “brados de triunfo”. Pavorosos atentados terroristas, guerras em andamento, ameaças do emprego de armas nucleares, químicas e biológicas devastadoras, crise econômica estendida a todos os recantos da terra, com a perversa consequência do aumento da miséria, da fome, do desemprego e da criminalidade. Será mesmo a igreja do Diabo, rediviva, a provocar essa onda de insânia, que varre o planeta?
Hoje, desgraçadamente, o mundo é um mundo cão para três quartos de seus habitantes. Não será decerto com a magia negra ou as feitiçarias dos personagens dos livros de Maurice Garçon que vamos abrir vias novas para eliminar erros centenários no longo processo civilizatório da humanidade. André Siegfried ironiza os devaneios literários do novo acadêmico francês, ao saudá-lo, comentando que se sectários numerosos continuam cultuando o poder através de engodos, bruxarias, rezas e amuletos, o mundo pareceria mais explicável se tivesse sido o Diabo e não Deus que o criou. Se o nosso ser espiritual provém, não do Príncipe do bem, mas do Príncipe do mal, Deus nos convida ao afastamento desse mundo, que só se mantém pela concorrência, pela cobiça, pelo ódio, pelo lucro, pelo predomínio do mercado, uma vez que a sobrevivência do mais apto elimina o mais fraco, nessa inglória batalha. Deus nos aparece então não mais como o criador de um Universo que nossa consciência reprova, mas como o chefe da oposição de uma criação maléfica... Todos seguiremos, como Siegfried, o pensamento de Renan: o chefe da oposição tomará um dia o poder, é preciso ajudá-lo... Como agir? Confiamos nos vossos dons, de cientista social para sugerir e indicar as medidas eficazes destinadas a aplacar a intranquilidade universal diante do quadro dramático que está pondo perplexa e inquieta a humanidade. Invoco a lição do grande jurista católico Fábio Konder Comparato, no seu livro mais recente, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, onde ele faz magistral diagnóstico da crise atual, que “aponta para uma espécie de entropia ou desordem universal, causada por carência governativa, tanto no interior das nações quanto na esfera internacional”.
E, após considerações apropriadas, o mestre paulista oferece um roteiro magnífico de humanização do mundo, e concluiu: “O caminho para a instituição de um governo mundial democrático, no seio das Nações Unidas, desenha-se com nitidez, a partir desse diagnóstico.”
É uma alentadora utopia, o sumo da fraternidade humana, um mundo só, a verdade de amanhã.
De qualquer forma, o Diabo será derrotado; “é a eterna contradição humana”, repetirá o Senhor.
***
Tomai a vossa cadeira, Sr. Raymundo Faoro. Os manes de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Lúcio de Mendonça, Barbosa Lima Sobrinho, Levi Carneiro, fundador da Ordem dos Advogados do Brasil, sob o comando de Maria Pompéia, a mãe de vossos filhos, onde se encontrarem, estarão festejando conosco a vossa glória. As palmas, que agora ouvireis, refletem o contentamento de vossos amigos e admiradores e são também dirigidas à Academia, que não vos premiou mais cedo, porque só agora viestes receber a consagração do vosso merecimento.
17 de setembro de 2002