QUADRAS
Do escuro norte, ave prófuga,
Fugiste em busca do sul...
Mas todo o espaço hoje é límpido,
E é todo o espaço hoje azul.
Vem, que hoje o sol doira as árvores
E doira os campos em flor...
Terás a carícia intérmina
Do meu intérmino amor.
Dá que me envolvam teus lúcidos
Olhos, num lúcido olhar,
Qual me envolvera uma esplêndida
Auréola feita do luar...
Vem! A tua face puríssima
Seja-me sempre louçã,
Tanto ao tombar do crepúsculo,
Como ao romper da manhã...
Dá que em teus lábios eu, sôfrego,
Sorva esse olor que eles têm,
Comoum beduíno a um cântaro
Sorve o líquido também...
Vem! Que te importa que inóspita
Seja a existência depois...
Doce embora, embora aspérrima,
Vivê-la-emos nós dois!
PAÍS DISTANTE
Doido, talvez, se o sol que me alumia
Claro, e belo, e brilhante,
Rompe, a treva a espancar desta noite sem dia;
Fico a sonhar um lúcido e distante
País, onde serena
Fosse toda a existência e todo o amor constante,
Onde, de alegre e tímida camena,
Docemente tranquila,
Pudesse a voz ouvir em meio à noite amena.
Enquanto que também lúcido, a ouvi-la,
Do azul em cada fresta,
Brilhasse um sol assim como o outro sol rutila.
- Um país onde nunca a atra e funesta
Mágoa fosse, enfadonha,
De pranto encher o olhar que o contemplasse em festa.
Lá, julgado feliz como quem sonha,
Por certo que invocara
Tua imagem feliz, e adorada, e risonha.
E se àquela de gozos fonte rara
Tu chegasses ainda.
E se ainda a tua alma esses gozos achara;
Por certo o nome dessa estranha e infinda
Fonte de primaveras,
Tu pediras, e então eu te dissera, Linda:
- “Chama-se este país, o país das quimeras!”
DISTANTE
A Álvares de Azevedo Sobrinho.
Hoje soluça o vento nas palmeiras
E um gemido das árvores arranca...
Partiu! Corra mais límpida e mais franca
A torrente das lágrimas ligeiras.
Partiu! De longes terras estrangeiras
O bálsamo que as lágrimas estanca.
Traga-mo a asa tenuíssima, a asa branca
Da mais branca das pombas mensageiras.
Vendo-a. Cale-se a dor, vão-se os soluços...
Fique ela só de longes terras vinda
Para consolo desta soledade,
Fique, e possa eu contar como, de bruços,
Doido, chorei sobre as tuas cartas, e inda
Como punge esta indômita saudade!
TENEBRAS
A Aluísio Azevedo.
Porque mais te não vejo, mais te sinto
Perto... Mais perto dos teus olhos ando.
Diz-mo não sei que delicioso e brando,
Como os vagos instintos, vago instinto.
Estás perto, sinto-te... E de quando em quando,
“Busca-a!” - manda uma voz. “Busca-a!” Consinto.
E ando de labirinto em labirinto,
Cego, paredes úmidas tateando...
Quem me há de os olhos descerrar? Teus olhos,
Pela doce alegria de trazer-mos,
Quem mos há de mostrar nesta ansiedade?
E amontoam-me escolhos sobre escolhos...
- Almas enfermas, corações enfermos,
Qual de vós é que sofre esta saudade?
PELA NOITE
A Rodrigo Otávio.
Digam do amor com que eu acarinhava,
Todos os astros, todas as estrelas...
Digam quanto as fitava e como, ao vê-las,
Ela, a estrela mais lúcida lembrava.
Dos céus em fora, pela noite, e pelas
Nuvens que eu tristemente contemplava,
Digam como daquele afeto escrava
Minh’alma ansiava por compreendê-las.
Tudo contem... Do meu estranho afeto
Falem da minha dor funda contida
Por largos meses e por largos anos,
E esse que for o astro mais indiscreto
Conte como me viu a alma ferida,
Por desenganos sobre desenganos.
SONETO
A Alcindo Guanabara.
Mágoa horrenda, ânsia horrenda, ciúme horrendo
Esta mísera página continha,
E Ela, por lê-la, dos seus olhos vinha,
Vinha um fio de lágrimas descendo...
Esta os seus olhos que choravam lendo,
Mais do que as outras páginas detinha,
E àquele pranto pela angústia minha
Iam-me os versos desaparecendo...
A sua última lágrima desfê-los...
Hoje estes mesmos pobres versos choram
O lugar dos antigos ocupando,
E estes, como os primeiros, que os seus belos,
Seus tristes olhos apagando foram,
Vão-se-me agora aos poucos apagando.
MANA MINDUCA
Volto, afinal... Espera-me; irei hoje... Mana Minduca sorriu. De pé, ao lado, o moleque esperava. Era em 80, na velha casa da Rua de Riachuelo, ao canto da rua dos Inválidos. “Volto, afinal...” Mana Minduca fitava atentamente os olhos no papel; sofria acaso da dúvida de que aquela não fosse a sua letra... E mirava o talhe delgado da escrita. Verdade é que não parecia a mesma. Um pouco mais firme... Daí, em doze anos a gente muda de letra. Valha-lhe Nossa Senhora! O moleque esperava, tímido, amarrotado o chapéu entre as mãos.
Bendita carta! E Mana Minduca o talhe delgado da escrita. Agora já lhe parecia que era dele; o corte daquele t, os ll... “Volto, afinal...” Era. Mana Minduca sorria; o sorriso derramou-se-lhe por todo o rosto, apareceu brilhando nos olhos. Nem havia mais dúvidas, era dele; Nossa Senhora trazia-o enfim. A mesa redonda, ao centro, coberta de poeira e de livros, era justamente agora tocada de um raio de sol.
Esses que há doze anos lhe falam do rosto pálido, das lágrimas e da voluntária clausura, vissem-na agora! Mana Minduca sorria: nem se lembrava mais do moleque. Se alguém houvesse, que fosse passando pela rua, que surpresa não haveria de ter quando visse que ela abria as janelas. Abriu-as todas; não um bocadinho, como o fazia há doze anos, não como aquela por onde entrou o raio de sol; abriu-as de par em par. Debruçou-se bem para fora, cantarolando. Voltou, sentou-se. O moleque esperava, olhos fitos no chão, amarrotando o chapéu. Levantou a cabeça, olhou timidamente. Mana Minduca relia a carta. Por certo que era dele... Milagrosa Nossa Senhora das Dores!
- Tá intregue?
O amo que fosse ficaria para ali, sem resposta, como o moleque. Mana Minduca estava que não cabia em si de contente. “Volto, afinal...” E aquele “afinal” dizia bem. Doze anos há que o espera. Viram-se no fogo da Lapa. Que festa! Povo assim. Mana Minduca deixava-se levar à toa. Chegou a pensar que aquilo já se ia demorando muito. Mas, de súbito, o coração estremeceu-lhe, quase parou, até... Corou muito. Que tinha? Nada. Não deu mais um passo que se não voltasse para trás; os olhos dela achavam sempre um par de olhos que iam em sua procura.
Doces, bem-aventurados olhos! Não unicamente os dela; os de ambos. Os dele então, foi tamanha a impressão que lhe fizeram, a ela, que ainda agora se lhe destaca a cena da primeira noite em que os viu. Atenta bem no modo por que ela a faz reviver agora, à simples leitura daquela carta. Parece-lhe que lá vai outra vez pelo meio o largo. Povo, assim... O dono dos olhos lá está, apoiado a um lampião, quase juntinho do coreto. Doze anos passaram já sobre tudo isto, e ela ainda os revê, aqueles doces olhos. Que festa! Mana Minduca demorava o passo. “Anda mais depressa...” - recomendaram. Era o pai. Ela disse que sim: - “Sim, senhor.” E voltou a cabeça para o lado do lampião. Daí por diante andou ainda mais devagar.
- Tá intregue?
- Ah! Diga que está entregue... Olhe... Diabo de moleque! Diga que venha cedo, ouviu? Às 6 horas. Passe pela porta que eu estou na janela. Que venha cedo, ouviu?
O moleque batia longe. Deitara a correr pela Rua de Riachuelo acima. Em pouco já se não o avistava. Mana Minduca ficou à janela; os olhos vagavam-lhe ao longe. Se ele não viesse... Mas havia de vir. E fechava os olhos, para revê-lo bem. Que figura teria ele agora? Há doze anos era magrinho, com um pequeno buço, mas em doze anos a gente muda. Deve estar gordo; dizem que em S. Paulo se engorda, por causa do frio. E ele volta de lá - bacharel em Direito.
Levou doze anos a fazer o curso. É muito tempo, mas há tanta contrariedade, anos perdidos, moléstias, um horror! Outros se demoraram mais tempo, e vieram de lá sem diploma. Um vizinho, para amostra - o Quincas, neto do Conselheiro Domingos. Levou dezoito anos em S. Paulo, e veio com o curso ainda por acabar. Concluiu-o em Pernambuco. Bacharel em Direito! Dr. Eduardo de Campos Lustosa. Os olhos viam-lhe já o nome do marido, à entrada da casa, num quadro, assim:
Campos Lustosa
Advogado.
Campos Lustosa é um nome que fica bem à porta, numa chapa escura, com letras pintadas a ouro. Que depressa que ia o sonho de Mana Minduca! “O Dr. Eduardo de Campos Lustosa e D. Carminda de Barros Lustosa participam a V. Sa. o seu casamento...”
Pensamentos de Mana Minduca, detende-vos! Coisas há em que toda a precipitação é perigosa. Mas vão lá deter o pensamento de uma moça que esperou doze anos pelo noivo e tem-no agora à mão. Vejam com que delícia ela lhe repete o nome, e como o espírito se lhe não afasta das participações de casamento. Dr. Campos Lustosa... “O Dr. Eduardo de Campos Lustosa e D. Carminda de Barros...” Aí a dificuldade do nome futuro. Carminda de Barros ou Carminda Viana Lustosa? O pai é Francisco Viana de Barros; Chico Viana, conferente da alfândega. Viana talvez ficasse melhor, ou Viana de Barros. E ei-la que sonha já com os seus cartões de visita - lilás, doirado nas extremidades, com uma pontinha dobrada e o nome, em corpo minúsculo – “Carminda Viana de Barros Lustosa.”
Volta, afinal! Doida era ela que se não preparava para recebê-lo. E Mana Minduca correu para o quarto. Abria gavetas, fechava gavetas. Três vezes saiu pronta. O espelho, porém, gritava-lhe que já se não sabia vestir. E Mana Minduca voltou. Destrançou os cabelos, soltou-os, trançou-os de novo. Davam cinco e meia. Valha-lhe Nossa Senhora! Mana Minduca veio para a janela.
Veio para a janela. Santa de que ela é devota, poupei-lhe a dor de ficar eternamente a esperá-lo. Fora, ia caindo a noite. Mana Minduca debruçou-se quase toda para as trevas; interrogava o fim da rua, longe. Ninguém; a noite apenas. Mana Minduca mergulhava bem os olhos na escuridão da noite. Um homem passou, lépido, correndo de um para outro lado. Atrás dele iam ficando acesos os lampiões de gás... O frio aumentava sempre; frio de junho, frio que penetra a alma.
Valha-lhe Nossa Senhora! Mana Minduca distinguiu alguém, longe. Não lhe via bem o rosto, via-lhe apenas o vulto. Vulto de homem. Debruçou-se mais da janela. O homem apoiara-se a um lampião; alguém, perto, dizia-lhe qualquer coisa. Agora ei-lo que metia a mão no bolso, tirou um objeto, deu-o. O outro desapareceu, a correr. Em pouco já se não o avistava. E o homem aproximou-se. Talvez fosse o Lustosa... Não era. Era um sujeito baixo, gordo. A barba inteira cobria-lhe o rosto antipático. Mana Minduca teve vontade de sair da janela. Antes saísse! Mas ficou.
O homem aproximava-se. Quem quer que fosse com certeza que andava à procura de alguém. Demorou-se um bocadinho ao canto da rua dos Inválidos. Depois, veio, devagarinho. Mana Minduca viu-o passar, olhando-a muito. Parecia que o homem tinha vontade de lhe dizer o que quer que era. Ela própria julgava que já o vira. Mas onde? Não sabia. O homem foi até mais adiante, e voltou.
Agora, vinha resolutamente. Deteve-se à porta, tirou o chapéu. Que diabo queria ele? O homem murmurava alguma coisa. Mana Minduca debruçou-se mais, para ouvi-lo.
- O sr. Viana de Barros?
- É papai; mora aqui mesmo.
O homem levantou a cabeça, fitou-lhe bem o rosto magro. Que olhar curioso! E agora o rosto dele tomava uma expressão de piedade:
- E... E uma sua filha solteira?
Mana Minduva não respondia. O homem não lhe tirava os olhos do rosto.
- E uma sua filha solteira?
- Minduca? Sou eu.
- Ah! É a senhora?
E o homem levou a mão ao chapéu. Santa de que Mana Minduca é devota, dizei-lhe que esse que aí está é o mesmo que ela espera há doze anos. Mas o homem levou a mão ao chapéu:
- Ah! é a senhora! Pois, minha senhora, queira desculpar...
E seguiu. Que bem verdade é que doze anos de lágrimas envelhecem a gente. Nessa que aí ficou à janela, quem há que possa reconhecer a moça do fogo da Lapa? O tempo encheu-lhe a face de rugas. Pérfido tempo! A ele a culpa de que esses dois namorados já se não reconheçam ao cabo de doze anos. Vejam como o Lustosa lá vai, a toda pressa, à procura do bonde. Esse não volta nunca mais. E Mana Minduca ficou à janela. Não sabe quem ele é, não compreende nada. Espera sempre, como na véspera, como há doze anos. E a noite aumenta, o frio cresce com ela; Mana Minduca mergulha bem os olhos na escuridão da noite...
(Alma alheia, 1895.)