TERRIBILIS DEA
(Impressões do combate de Riachuelo)
Quando ela apareceu no escuro do horizonte,
O cabelo revolto e a palidez na fronte...
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão,
Resplandente de sol, de sangue fumegante,
O raio iluminou a terra... Nesse instante
Frenética e viril ergueu-se uma nação!
Quem era? De onde vinha aquela grande imagem
Que turbara do céu a límpida miragem,
E de luto cobrira a senda do porvir?
De que abismo saiu? do túmulo? do inferno?
Pode o anjo do mal desafiar o Eterno?
Da fria sepultura o espetro ressurgir?
Deixai que se levante a grande divindade!
Seu templo é a terra e o mar, seu culto a mortandade;
Enche-lhe o peito o sopro das paixões.
É uma mulher fantasma! Uma visão de Dante,
Dos campos da batalha a hórrida bacante,
Que mergulha no sangue e ri das maldições!
A deusa do sepulcro! A pálida rainha!
A morte é sua vida. Impávida caminha,
Ora grande, ora vil, nas trevas ou na luz;
A corte que a rodeia é lúgubre coorte;
Tem gala e traja luto: é o séquito da morte,
A miséria que chora, a glória que seduz.
Desde que o mal nasceu, nasceu aquele espetro!
De raios coroou-se! Ao peso de seu cetro
A terra tem arfado em transes infernais.
Do mundo as gerações têm visto em toda a idade,
Sinistra, aparecer aquela divindade,
Celebrando no sangue as grandes saturnais!
No seu olhar de fogo há raios de loucura...
Tem cantos de prazer! tem risos de amargura!
Muda sempre de céu, de rumo, de farol.
Aqui - pede ao direito a voz forte e serena,
Ali - ruge feroz, feroz como uma hiena,
Assassina nas trevas, mata à luz do sol!...
Levanta o gládio nu em nome da Verdade,
Acorda em fúria acesa à voz da Liberdade,
E no punho viril derrete-se o grilhão!
Como é bela!... Depois... sem fé, sem heroísmo,
Despedaça a justiça, e atira com cinismo
A virgem Liberdade nos braços da Opressão!
É uma deusa fatal! Quer sangue e atira flores!
Abraça, prende, esmaga os seus adoradores,
Embriaga-os de glórias e os cerca de esplendor:
E esses loucos - depois de feitos de gigantes -
A túnica lhe beijam ardentes, delirantes,
E morrem a seus pés na febre desse amor.
Quando Átila, o monstro, - o tigre cavaleiro,
Espumando a correr, calcava o mundo inteiro,
A deusa o acompanhava, e ria-se... a cruel!
Tinha a face vermelha, ardia de coragem,
Dava beijos de amor na face do selvagem,
Enterrando o aguilhão nos flancos do corcel.
Era ela que em Roma erguia-se funesta!
O ídolo do povo em sempiterna festa!
O amor de Cipião, de César, de Pompeu.
Vergava com seu braço o braço do destino...
Prendeu nações e reis ao monte Palatino,
E em douda bacanal depois desfaleceu.
Foi de Carlos o Grande a excelsa companheira:
Deu-lhe o trono de bronze, a espada aventureira,
E o globo imperial, glórias e troféus...
Quando no escuro val, Rolando, moribundo,
Embocava a trombeta a despertar o mundo,
Erguia o colo a deusa além dos Pireneus...
Seguiu Napoleão da França até o Egito,
Nos mares, no deserto, em busca do Infinito,
Das terras do Evangelho às terras do Coran,
Dos delírios da Europa aos sonhos do Oriente...
Teve medo afinal daquela febre ardente;
Lá no meio do mar prendeu esse Titan!
Ela estava também serena e triunfante
Ao pé de Farragut, o intrépido almirante,
Lá no tope do mastro, enquanto o monitor,
Em doudas convulsões, das túmidas entranhas
Vomitava metralha a derribar montanhas,
E do mundo arrancava um grito de terror...
Ela estava também - espetro pavoroso -
Do Amazonas a bordo, ao lado do Barroso,
De pólvora cercada, em pé sobre o convés...
Quando, à voz do valente, o monstro foi bufando,
Calados os canhões, navios esmagando,
A deusa varonil de amor caiu-lhe aos pés!...
Salve, da guerra deusa, arcanjo da batalha,
Que voas no vapor, que ruges na metralha,
Que cantas do combate os infernais clarões,
Quando arrancas do bronze os cânticos malditos:
O céu é fogo e aço, o ar - pólvora e gritos -
E corre e ferve o sangue em quentes borbotões.
Salve, tu, que nos deste o sangue da vingança!
O gládio da justiça, o raio da esperança,
E da glória cruenta o mágico esplendor.
É para te saudar que brame a artilharia
E que repete ao longe a voz da ventania
Das trombetas da morte o hórrido clangor!
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Quando ela apareceu no escuro do horizonte
O cabelo revolto, a palidez na fronte,
Aos ventos sacudindo o rubro pavilhão,
Resplandente de sol, de sangue fumegante,
O raio iluminou a terra... Nesse instante
Frenética e viril ergueu-se uma nação!...
1869
O LEQUE DE MARFIM
Ela estava bonita a enlouquecer a gente!
Viva, fresca, feliz... gostei de vê-la assim!
Da música ao murmúrio estremecia ardente
E, rindo, machucava o leque de marfim.
Seus olhos eram negros, veludosos, puros...
Dois abismos! Dois céus! Fitei-os a tremer!
Costumado a trilhar caminhos sempre escuros,
Tenho medo da luz... Meu Deus, eu não quis ver.
Mas ela fascinava... Era um olhar, mais nada...
Rebelde, o coração nessa hora me traiu!
Aos dedos dessa virgem a ânfora sagrada
Entornando perfume à luz do sol se abriu.
Encostei-me ao piano. A chácara viçosa
Entoava das flores lânguida canção.
Eu cismava... - sei lá! - no céu, no mar, na rosa...
E minh’alma se foi nas asas da paixão.
Bem como o viajante em regiões polares
Que recorda chorando o seu torrão natal,
E avista de repente, incendiando os mares,
O divino esplendor da aurora boreal,
Assim eu triste, só, sem sombra d'esperança,
Dos gelos da descrença aonde vim parar
Sondei aquele riso! Amei essa criança,
Foi-me aurora de amor o negrejante olhar.
Brilhe embora uma vez... Banhou-me a luz divina
Vale uma eternidade um dia sempre assim...
Sempre hei de me lembrar da cândida menina
Que rindo machucava o leque de marfim.