Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Paulo Carneiro > Paulo Carneiro

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Ivan Lins

Senhor Paulo Carneiro,

Ao receber-me nesta Casa, Rodrigo Octavio Filho, a quem me ligavam quarenta anos de amizade, judiciosamente lembrou o prolóquio: Amo Platão, porém ainda mais a verdade. Terei em vista esta advertência na saudação que passo a fazer-vos.

A IGREJA POSITIVISTA

Quem, no bairro da Glória, sobe a Rua Benjamin Constant, depara, à direita, com inesperado edifício, cuja fachada reproduz, em menores proporções, a do Panthéon de Paris: é a Igreja Positivista do Brasil. Aí se realizou, em 2 de agosto de 1900, o casamento religioso de vossos pais.

Em volta desse templo agremiavam-se, com suas famílias, a partir de 1881, vários adeptos da Religião da Humanidade, conquistados pela catequese ardente de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. A fim de assegurarem a independência de sua ação doutrinária, abstinham-se de qualquer função oficial, quer no setor político, quer no do ensino, e consagravam o melhor do seu devotamento ao problema da incorporação do proletariado na sociedade. Não temiam se chocassem os seus contemporâneos com a altitude de seus ideais, visto serem estes, em moral, o que, em Matemática, é o limite: para ele tendemos sempre, sem jamais alcançá-lo.

Apesar do seu visceral ceticismo, com eles concordaria Medeiros e Albuquerque ao observar que “os sonhos muito puros, muito nobres, muito altos, resistem a tudo”. Foi por isto que, apesar das falhas inevitáveis, inerentes à própria natureza humana, conseguiram, não obstante o seu insignificante número, desenvolver uma atuação social de larga envergadura.

Liberdade religiosa, liberdade de ensino, liberdade de testar, liberdade de profissões, liberdade de greve, liberdade de imprensa, por toda parte e em todos os momentos, mesmo os mais críticos e perigosos, por elas se bateu, com denodo, o Apostolado. Quando, logo após a Proclamação da República, o Governo Provisório cerceou a liberdade de imprensa, acarretando o desaparecimento do órgão monarquista A Tribuna Liberal, de que era redator Carlos de Laet, um único protesto se registrou em todo o País: o do Apostolado Positivista, pela voz do seu Diretor, na seção livre do Jornal do Commercio de 26 de dezembro de 1889.

Além de apreciar, com grande acuidade, as questões internacionais, clamaram Miguel Lemos e Teixeira Mendes sem cessar em defesa do proletariado. Os seus apelos e advertências encerram, em germe, toda a legislação trabalhista atualmente em vigor. Sob vários aspectos as suas reivindicações ultrapassam de muito as garantias até agora asseguradas às classes trabalhadoras. Em matéria de moradia, educação, lazer, amparo à mulher e à criança, as medidas por eles propostas ainda hoje constituem audaciosas antecipações. Os deveres dos ricos em relação aos pobres, e o destino social de toda fortuna particular ou pública, foram temas constantes da sua pregação, tão distanciada, nesses assuntos, das utopias subversivas quanto da corrupção e cegueira reacionárias. Eis por que em 24 de outubro de 1888, em sua coluna de O País – Campo Neutro, escrevia um dos mais prestigiosos fundadores desta Casa – Joaquim Nabuco:

Há muito considero o Centro Positivista a mais elevada afirmação do sentimento moral coletivo em nosso País e o respeito como a vocação espiritual mais sincera e a mais heroica que registra a nossa história. Respeito-o tanto mais quanto não vejo futuro algum para nenhuma espécie de ascetismo em nosso País. Há aqui a resistência indestrutível do meio, a oposição cósmica, a mais forte de todas.

 

A FAMÍLIA

Este, Sr. Paulo Carneiro, em linhas gerais, o ambiente espiritual em que viveram vossos pais, Mário Barbosa Carneiro e D. Maria Teodora de Berredo Carneiro. Ele era, pelo lado materno, neto de Luís Antônio Barbosa, que foi, no Segundo Reinado, presidente de Minas, senador e ministro da Justiça, sendo irmão do Conselheiro Paulo Barbosa, Mordomo da Casa Imperial. Casado com D. Antônia Luísa Horta, assim se formou a família Horta Barbosa, à qual têm pertencido destacadas figuras do cenário brasileiro, como, entre outros, o Acadêmico e político de grande projeção na primeira República – João Luís Alves; o General Júlio Caetano Horta Barbosa, que decisivo papel desempenhou na fundação da Petrobrás; o médico e memorialista Cássio de Rezende, que, aos 92 anos, ainda clinica; o Engenheiro Luís Hildebrando Horta Barbosa, a quem se devem, entre muitas obras públicas importantes, a localização da Universidade Federal na Ilha do Fundão, o planejamento e o início de sua construção e o Embaixador Júlio Barbosa Carneiro que, na glória dos seus oitenta anos, continua a prestar serviços ao Brasil no B.I.T., em Genebra.

Vosso avô paterno, Sebastião Muniz Carneiro, descendia de velha família portuguesa, estabelecida no Rio de Janeiro desde a instalação da corte de D. João VI. Oriundo de família rica, formara-se no seio da alta burguesia, com o apuro de gostos e costumes da corte de então.

Vosso pai, Mário Barbosa Carneiro, desde cedo voltado para as causas sociais, acompanhou, com entusiasmo, mal saído da adolescência, o evolver da Abolição e da República. Aos 21 anos foi ardoroso soldado de Floriano, alistando-se no Batalhão Benjamin Constant, onde valentemente lutou, em defesa do novo regime, no combate da Armação, de que deixou fiel relato. Em carta de 10 de fevereiro de 1894, dia seguinte ao daquele combate, onde, a seu lado, atingido por uma bala, perecera seu primo dileto Oscar Piquet Carneiro, escreveu a seus pais:

Coragem, coragem e convençamo-nos todos de que a Pátria está realmente acima da família. Coragem e mais coragem é o que peço a todos para que assim ela não me falte nunca. Resignação bastante para que eu também possa tê-la nesta situação angustiosa em que me acho. Viva a República, digamos todos, e, cada vez mais dedicados a ela, prossigamos confiantes em nossa próxima vitória para honra de nossa Pátria.

Através de dois brilhantes concursos encarreirou-se na Secretaria do Ministério da Marinha, ponto de partida de longa vida inteiramente dedicada ao serviço público, que culminaria com a chefia do Ministério da Agricultura nos primeiros anos do governo de Getúlio Vargas.

Desde muito jovem militou nas hostes do Apostolado Positivista, levando vossa avó, D. Luísa Barbosa Carneiro, personificação admirável da Mãe brasileira, a ingressar, com seus numerosos filhos, na Igreja fundada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes.

Vossa Mãe – D. Maria Teodora Leal de Berredo, de insuperável bondade e ternura, era neta do Dr. Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, o maior amigo de Gonçalves Dias, e sobrinha neta da inspiradora do poeta – Ana Amélia.

Descendia, pelo lado paterno, do Governador e Capitão Geral do Maranhão Bernardo Pereira de Berredo, autor de famosos “Anais”, valiosa fonte da história de largo período atinente ao Amazonas, Pará e Maranhão. Além dos seus méritos como governador e historiógrafo, teve ainda o de haver concorrido, em larga escala, sem preconceito social ou de cor, para povoar aquelas desérticas paragens d’El Rei, através de inumerável prole, podendo-se aplicar ao vosso antepassado luso o que, em São Paulo, se dizia de João Ramalho: “Era muito aparentado pelos sertões afora”...

Muito cedo na orfandade, vossa mãe foi educada por sua madrinha, exemplo típico da bondade portuguesa. Nesse tempo estava o Maranhão mais ligado a Lisboa do que ao Rio de Janeiro. Em idas frequentes àquela metrópole, costumava a família Leal Berredo veranear em Caldas da Rainha, hospedando-se na casa amiga de D. Maria Teodora Frazão, que foi convidada para batizar vossa mãe. E, quando esta perdeu os pais e parentes mais próximos. D. Maria Teodora, aos 74 anos, após vender tudo o que possuía em Portugal, atravessou o Atlântico a fim de encarregar-se da afilhada e de uma de suas irmãs. Trouxe-as para o Rio e aqui as fez cursar a Escola Normal, com elas residindo na Rua Benjamin Constant, junto à casa de Teixeira Mendes, em companhia da mãe do Apóstolo, tia avó das pequenas maranhenses. Estava assim, pelo destino, urdido o encontro de vossos pais.

NASCIMENTO

Nascestes, Sr. Paulo Carneiro, em 4 de outubro de 1901, e hoje inaugurais a quadra que Fontenelle considerava a mais feliz da existência, visto ser aquela em que, plenamente realizados, colhemos o que semeamos ao escalar a íngreme encosta da vida.
 
Viestes ao mundo no seio de tradicionais famílias brasileiras, com raízes profundas em Minas Gerais, no Maranhão e no Rio de Janeiro, modelando-vos a alma tudo o que de terno e grande construiu o passado.

Em 4 de dezembro de 1902, ministrou-vos Teixeira Mendes, no Templo da Humanidade, o sacramento da apresentação e recebestes, como patronos, São Paulo e Santo Estevão. Foram vossos padrinhos o então Major Cândido Mariano Rondon e sua mulher, o Sr. Malaquias Pereira da Silva, companheiro de mocidade de vosso pai, e D. Adelaide Bagueira Leal, que ainda hoje acompanha os vossos passos e os vossos triunfos com o interesse e o afeto de quem vos viu nascer.

UMA EDUCAÇÃO POSITIVISTA

Vossa educação foi orientada pelas linhas mestras estabelecidas pelo fundador da Sociologia, desde a filosofia primeira, ou seja, a sua teoria do conhecimento, até a sucessão hierárquica das ciências básicas.

Vivaldo Coaracy, que foi pupilo de Licínio Cardoso, e teve, no Internato Pedro II, professores positivistas, salienta em suas Memórias:

Como os jesuítas, os positivistas deixam a sua marca, profunda e indelével, na mentalidade, na inteligência e na moral daqueles cuja educação dirigem. É natural e compreensível. Tanto uns como outros seguem um sistema filosófico íntegro e coerente, as suas ideias e noções inspiram-se numa doutrina que os orienta. Isso dá-lhes unidade ao pensamento. Essa unidade impregna e vivifica as noções, os conhecimentos, os preceitos que transmitem, conferindo-lhes harmonia e solidez. Grande parte da anarquia mental que, em nossos tempos, pode ser notada mesmo entre indivíduos de alta cultura geral, provém da ausência de uma orientação filosófica firme e sistemática no período de formação do espírito.

Aprendestes as primeiras letras e vos iniciastes no cálculo aritmético e algébrico, na História e Literatura Universais sob os cuidados de vossa Mãe e de vossa tia Sílvia Barboza Carneiro. Mais tarde, uma extraordinária professora – D. Maria Albina Ribeiro, vos familiarizou com o francês e o inglês através dos seus melhores clássicos.

Vosso professor de Matemática foi o inflamado republicano e florianista, também de formação comtiana, Raul Guedes, um dos mais famosos mestres da ciência de Arquimedes entre nós. E, enquanto vos preparáveis intelectualmente, fazíeis, ainda de acordo com o plano educacional de Augusto Comte, uma iniciação prática, frequentando, como aprendiz de ferreiro, no Engenho de Dentro, as grandes oficinas de Trajano de Medeiros. Saíeis de casa às seis da manhã, levando o vosso almoço, como qualquer jovem operário. Datam desta época o vosso contato direto com o povo e a vossa simpatia pelo proletariado.

FORMAÇÃO CULTURAL

De inestimável valia, para a vossa formação cultural, foram, em vossos anos de juventude, as prédicas e cursos de Teixeira Mendes, por vós considerado a mais forte cabeça entre os discípulos de Augusto Comte em todo o mundo.

Expressivo, a esse respeito, é o depoimento de Elói Pontes:

Em torno de pequeno trecho do Catecismo Positivista, Teixeira Mendes tecia críticas seguras a fatos do momento com uma bravura de que ainda hoje guardo memória. A sua segurança verbal era qualquer coisa de extraordinário. A clareza, a penetração, a perfeita medida, lhe davam interesse que não pude depois encontrar em outros. Os mais enfadonhos temas adquiriam, nas suas mãos, encantos excepcionais.

Ao lado dessas práticas, seguistes, na Igreja e Apostolado Positivista, sob a direção de Sílvio Vieira Souto e Luís Bueno Horta Barbosa, vários cursos de caráter cultural. Estudioso, desde muito cedo, das ciências básicas e dos sistemas filosóficos, jamais figurastes entre aqueles inumeráveis, apontados por Eça de Queirós, os quais, “no imenso in folio do mundo, apenas têm vagar de percorrer açodadamente o índice”.

Depois de acompanhardes as aulas de Física e Química ministradas por Francisco Venâncio Filho, que se tornaria um de vossos melhores amigos, ficastes aparelhado para prestar exames de preparatórios no Colégio Pedro II. E assim vos matriculastes, em 1921, na Escola de Química Industrial anexa à Politécnica do Rio de Janeiro, onde tivestes a boa sorte de encontrar o Professor Carlos Ernesto Júlio Lohmann, trazido da Holanda para o Brasil pelo Ministro Miguel Calmon, que o conhecera em Java, no Jardim Botânico de Buitezorg, onde fazia pesquisas de química vegetal. No Rio tornou-se, depois de ruidoso concurso, catedrático de Química Geral da Escola Politécnica, vindo a ser o principal reformador do seu ensino no Brasil. Dele recebestes profunda influência, tomando-vos seu discípulo dileto e seu assistente na cátedra por ele conquistada na Politécnica. Terminastes o curso em 1923 e fostes o orador da turma numa estreia sensacional, porque não confundíeis, com a eloquência, uma declamação arrebatada, só empregando as palavras para traduzir ideias e sentimentos. Jamais incorrestes na censura daquele escritor do século XVII que condenava os que falam só por falar, salientando: “tomam a palavra, não para dizer alguma coisa, mas, apenas, para não permanecer calados – ‘hoc dictum est non ut aliquid diceretur, sed ne taceretur’.”

A cerimônia de vossa colação de grau foi presidida pelo então ministro da Justiça e Negócios Interiores, vosso primo João Luís Alves. Ao vosso padrinho, o já então General Rondon, presente à cerimônia, declarou o paraninfo da turma, Miguel Calmon du Pin e Almeida, nesse tempo ministro da Agricultura, haver sido o vosso o mais belo discurso por ele jamais ouvido de um jovem em cerimônia de formatura. Disse na mesma ocasião, profeticamente, o Professor João Felipe Pereira, antigo ministro de Floriano, prenunciar o vosso discurso a vossa entrada nesta Academia.

 

O CASAMENTO

Na infância e adolescência, passastes longos períodos na fazenda de vossos tios Aurora e Octávio Barbosa Carneiro, situada em Sobragi, às margens encachoeiradas do Paraibuna, onde aprendestes a adestrar cavalos, candiar bois, laçar novilhos, arar a terra, semear e colher cereais, descobrir nas capoeiras araçás, goiabas, jabuticabas e guabirobas.

Durante os meses de férias, ali se reunia grande parte da família Carneiro, toda ela afeiçoada à vida do campo, aos banhos de rio, às cavalgadas, às iguarias e tradições mineiras. E foi assim que começastes a extasiar-vos com as noites de luar e os violeiros, as manhãs orvalhadas de sereno e o plangente ranger dos carros de boi, no alto dos morros, sob o azul puríssimo do incomparável céu de Minas.

Mais tarde, no Vale de Itaipava, retomastes, com vossos pais, irmãos e amigos, o hábito das vilegiaturas campestres. Aí, ao acaso de um veraneio, deparastes, entre menina e moça, com aquela a quem consagraríeis os vossos primeiros versos de amor: Corina de Lima e Silva, da preclara estirpe de Caxias, então com quinze anos, radiosos de graça e de beleza. Com ela vos casastes em 1927 e tivestes dois filhos – Beatriz e Mário, encanto e orgulho de vosso lar, completado por duas lindas netas. Um dos ensaios de vosso livro Vers un Nouvel Humanisme, traz, como dedicatória, este testemunho de gratidão e ternura: “A Corina, Beatriz e Mário – minhas razões de ser e de esperar.”

NA CÁTEDRA E NO LABORATÓRIO

Premiado, no curso de Química Industrial, com uma viagem à França, permanecestes em Paris de 1927 a 1931, e, durante três anos, realizastes pesquisas científicas no Instituto Pasteur, doutorando-vos pela Universidade da capital francesa ao defender, na Faculdade de Ciências, a tese “Le Guarana et Paullinia cupara H.B. et K”, preparada no laboratório do Professor Gabriel Bertrand, um dos fundadores da Química Biológica, que tão grande papel desempenharia em vossa trajetória científica.

De volta ao Brasil em 1932, fizestes, no ano seguinte, concurso para livre docente de Química Geral na Escola Politécnica do Rio, sendo aprovado, com distinção, em todas as provas, por uma banca examinadora composta de prestigiosos homens de ciência: Álvaro Alberto, Carneiro Felipe, Júlio Lohmann, Mário de Brito e Mário Saraiva.

Já em 1925, em casa do nosso comum amigo Rodolfo Paula Lopes, a quem nos une, a vós e a mim, mais de meio século de amizade sob a égide de Augusto Comte e sua obra, havíeis ministrado, perante pequeno grupo de amigos, esplêndido curso de química, que tive a satisfação de acompanhar.

Também lecionastes a ciência de Lavoisier na Escola Normal e no Instituto de Educação, no Curso Andrews e no curso pré-médico da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil.

O CIENTISTA DE VISÃO DE CONJUNTO

Ao deixar vosso pai em 1933, depois de memorável gestão, o posto que ocupava à frente do Ministério da Agricultura, convidou-vos o seu ilustre sucessor, o então Major Juarez Távora, para servir como assistente técnico de seu Gabinete naquele Ministério. Aí passastes dois anos, ocupando-vos especialmente dos problemas da Diretoria-Geral de Pesquisas Científicas entregue ao vosso dileto amigo, o grande sábio baiano Arthur Neiva.

Chefe do Laboratório de Química Vegetal e Animal do Instituto Nacional de Tecnologia, fundado graças à patriótica visão de um dos nossos mais completos homens de ciência – Ernesto Lopes da Fonseca Costa – participastes, em 1933, em Paris, da Conferência Preparatória do III Congresso Internacional de Indústrias Agrícolas na qualidade de delegado do Brasil.

Atravessava então o mundo uma de suas mais agudas crises econômicas: havia, em estoque, um excedente de 9 milhões de toneladas de açúcar e de 18 milhões de toneladas de trigo, e um excesso de milhares de cabeças de ovinos. As medidas alvitradas para solucionar essa pletora eram de se queimarem os produtos superabundantes, inclusive o nosso café.

Com a visão de conjunto, decorrente de vossa formação filosófica e científica, propusestes, naquela Conferência, que no programa do III Congresso Internacional de Indústrias Agrícolas se incluísse “o aproveitamento, para novos fins, alimentares ou não, dos produtos em superprodução”.

O acréscimo constante dos estoques de produtos agrícolas, resultantes, em grande parte, da diminuição de consumo das populações industriais assoladas pela falta de trabalho, criou o problema de dar-se escoamento a esse excedente de produção, impossível de ser indefinidamente conservado. Até agora, para atender a tal fim, tem-se feito exclusivamente apelo aos meios de destruição. Ficará como um dos mais graves índices do desequilíbrio econômico em que nos agitamos, esse inominável desbarato da produção mundial. Atualmente, 18 milhões de homens sem trabalho debatem-se à míngua de alimento, e, ao mesmo tempo, queimam-se toneladas de carne nos campos de criação de carneiros da Patagônia; inundam-se, na América do Norte, extensas áreas cultivadas com trigo; fazem-se arder milhões de sacas de café no Brasil; vertem-se tonéis de vinho nos rios da Itália. A soma imensa de energia de toda espécie, mecânica, física, química, biológica e social, acumulada nesses produtos é totalmente desperdiçada”.

Propusestes então fosse afastado o recurso empírico à destruição, seriando-se as formas possíveis de aproveitamento segundo a ordem natural de degradação energética. Podem os produtos naturais ou artificiais ser classificados, relativamente ao homem e ao mundo, numa escala de nobreza, de acordo com os seus atributos biológicos, químicos, físicos e mecânicos. Segundo essa ordem de complexidade decrescente e de generalidade crescente, paralela à gradação energética, é que deve ser racionalmente orientado o aproveitamento de um produto qualquer existente em superprodução. No caso de excedentes de uma matéria alimentar do homem, impõe-se, em primeiro lugar, o seu aproveitamento na nutrição animal; em caso de impossibilidade, nas indústrias químicas, primeiro orgânicas, depois inorgânicas, e só em último recurso nas indústrias físicas e mecânicas.

“Se o café” – exemplificáveis,

[...] pode fornecer, por processos de fermentação, forragem para o gado e, como subprodutos, taninos, glicerina, cafeína, alcoóis, ácidos, cetonas, aldeídos e outras substâncias orgânicas, é um contrassenso fazê-lo retrogradar irreversivelmente à forma rudimentar de sais minerais, de vapor d’água, de anidrido carbônico, óxido de carbono, carbonetos de hidrogênio, amoníaco, etc., por violenta combustão – absurdo tanto maior quanto nenhum dos produtos assim formados encontra aplicação industrial. É a destruição irremediável de um capital social imenso e de uma estrutura viva extremamente complexa, elaborada por um concurso de ações físicas, químicas e biológicas, dentro de condições de tempo e de lugar.

Esta sugestão, Sr. Paulo Carneiro, deu a medida de vossa capacidade técnica e científica.

NA SECRETARIA DE AGRICULTURA DE PERNAMBUCO

Em fevereiro de 1935 o Governador Carlos de Lima Cavalcanti convidou-vos para remodelar a Secretaria de Agricultura de Pernambuco.

O que foi a vossa atividade durante os nove meses em que estivestes à frente dessa Secretaria faz supor que os vossos dias tinham não apenas 24, mas 144 horas...

Tivestes, nesse cargo a felicidade de contar com a colaboração de vários técnicos de valor e de dois fraternais amigos, Nelson de Vincenzi e Álvaro Fagundes.

Ainda no Rio, concedestes ao Diário da Manhã, de Recife, uma entrevista sobre o vosso programa de ação. Tamanha sensação causou, em Pernambuco, essa entrevista que se esgotou a edição do jornal, obrigando-o a reproduzi-la em dois números consecutivos.

Começastes por criar um Conselho Agronômico a fim de assegurar a continuidade de programas e métodos da Secretaria, qualquer que fosse o seu titular. Logo em seguida organizastes o Fundo de Fomento da Produção destinado a serviços de caráter reprodutivo e trabalhos de pesquisa científica.

Segundo um relatório das Empresas Elétricas, um serviço que, nesse tempo, era feito em Pernambuco por dezoito homens, era executado, no Rio Grande do Sul, por dez, no mesmo prazo e nas mesmas condições de trabalho. Atribuístes esta berrante disparidade à subnutrição do operário pernambucano e procurastes resolver o problema abastecendo a população em peixe, carne, leite, ovos e verduras a preços acessíveis ao pauperismo da grande massa proletária. Passou a carne, em açougues de emergência, a ser vendida com a redução de cerca de 40%. Ao mesmo tempo incentivastes a pesca através de barcos frigorificados e providenciastes a higienização do leite, que, pela sua má qualidade, concorria para o elevadíssimo coeficiente da mortalidade infantil em Recife. Como medida complementar instalastes restaurantes populares, destinados a fornecer refeições balanceadas ao preço de custo. E, para assegurar a fiscalização da qualidade dos gêneros alimentícios, instituístes uma taxa bromatológica.

A fim de racionalizar os trabalhos a cargo de vossa Secretaria criastes o Instituto de Pesquisas Agronômicas com laboratórios destinados ao estudo dos solos, matérias-primas vegetais e animais, adubos e inseticidas, indústrias de fermentação, Meteorologia agrícola, Botânica experimental, Genética vegetal, Fitopatologia, Microbiologia, Entomologia agrícola, Ictiologia, Genética animal, alimentação animal e Imunologia.

Na criação deste Instituto trilhastes a senda aberta por Barbosa Lima, o eminente homem público que, nas vossas palavras, tantas obras meritórias deixou implantadas em Pernambuco, por ele administrado com incomparável sabedoria. Para fundar uma Escola Agrícola e campos experimentais trouxera da Europa um grupo de profissionais de renome, mas, findo o seu governo, cessou essa notável iniciativa, afinal por vós posta em prática alguns decênios mais tarde.

Não é possível registrar aqui todas as frentes de trabalho que abristes para a Secretaria a vosso cargo. Limito-me a lembrar vossa preocupação com o trabalhador rural. Pernambuco era então obrigado a importar farinha de mandioca, feijão, arroz, óleos vegetais e animais, e o próprio algodão em inúmeras oportunidades, porque a terra estava toda transformada em canavial. Daí propugnardes por uma emenda aditiva à Constituição do Estado destinada, entre outros objetivos, a proporcionar, mediante lei especial, a localização dos trabalhadores rurais que se associassem em cooperativas, promovendo para esse fim, a reserva, em cada propriedade agrícola, de uma área de habitação proporcional à população trabalhadora, além da constituição de missões e de centros rurais de divulgação e cultura que disseminassem no interior do Estado educação, higiene e ensinamentos agrícolas. Propúnheis ainda a desapropriação das reservas florestais e dos latifúndios inexplorados, que seriam incorporados ao patrimônio do Estado e sujeitos a um regime administrativo de economia mista.

Para sustentar esta série de alvitres fostes à Assembleia Constituinte de Pernambuco. Era a primeira vez que um Secretário de Estado a ela comparecia a fim de defender sugestões do Governo. E proferistes empolgante discurso, ouvido pelo então jovem e hoje nosso querido Confrade Mauro Mota, que sempre o rememora com entusiasmo.

Dizendo, em aparte, um deputado que as medidas por vós propostas eram devaneios, respondestes:

Benditos os poetas que devanearam! Foram eles que defenderam Pernambuco contra o invasor holandês, foram eles que sublimaram os movimentos de 17 e 24, fizeram a abolição com flores, a República com salvas e a Revolução de 30 entre clamores de vitória. Diante de tais realizações não descremos deles, certos de que serão também os argamassadores do Brasil de amanhã! Sorria o cético; moteje o indiferente. A nós nos cumpre trabalhar e servir.

Desse discurso quero ainda destacar o passo onde vos referistes a insigne vulto do Abolicionismo e da República:

Para melhorar o homem é preciso antes de tudo dar-lhe fixação. É um nômade o habitante do nordeste. Não tem pouso, não morrerá onde nasceu, e, se hoje vive no sertão, amanhã a seca o trará para o litoral, para de novo o devolver às regiões áridas, subitamente fecundas, por uma precipitação maior. A instabilidade dessa população produtora é incompatível com toda organização racional de trabalho agrícola. É preciso transformar de nômade em sedentária a população rural do nordeste.

Um grande governador de Pernambuco, figura diante da qual se inclinam os que a esta terra vêm trabalhar, como diante de um grande profeta do passado, Barbosa Lima, numa de suas memoráveis mensagens, já dissera:  “Torna-se inadiável a confecção de uma lei de terras, que oportunamente regulamentarei para localização de tantos conterrâneos que se encontram sem trabalho nem meio de vida, mas que, amparados pelos poderes públicos, dariam os melhores operários da reconstrução do nosso regime industrial.”

“Orgulho terá o Governo de Pernambuco” – finalizastes – “se puder realizar o voto de Barbosa Lima: uma lei de terra.”

As questões agrárias, Sr. Paulo Carneiro, desde os Gracos, foram sempre incendiárias e não podíeis escapar à indignada fúria dos possuidores de latifúndios. Mas, 33 anos mais tarde, isto é, em 1968, foi adotado em Pernambuco exatamente o que pleiteáveis. Nesse ano o Presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, Sr. Francisco Oiticica, assinou a regulamentação do decreto que concede dois hectares ao trabalhador em usinas ou plantações de cana para uma lavoura de subsistência familiar. Esta era exatamente, em vossa opinião, a providência preliminar para a fixação do operário nordestino à terra em que moureja, providência já prevista, aliás, no Estatuto da Lavoura Canavieira, elaborado pelo nosso eminente Confrade Barbosa Lima Sobrinho e sancionado, em 1941, pelo Presidente Getúlio Vargas.

O APELO AOS BISPOS

Sempre preocupado com a sorte do trabalhador, dirigistes, em 25 de setembro de 1935, ao arcebispo de Olinda e Recife, e aos bispos de Garanhuns, Pesqueira, Nazaré e Petrolina, memorável apelo onde dizíeis:

As condições atuais do trabalhador urbano ou rural, neste Estado, V. Exa. bem as conhece, por força do seu alto ministério, e pode, melhor do que ninguém, julgá-las em sua iniludível gravidade. Não é apenas à precariedade dos salários que cabe a pesada responsabilidade da míngua de alimentação, impropriedade das habitações, insuficiência de instrução, falta irremediável de assistência sanitária, mortalidade infantil desmesurada e, como consequência desse conjunto de circunstâncias opressivas, baixo rendimento econômico de cada trabalhador. Com o mesmo nível de salários atuais, seria possível melhorar-se de muito a angústia da população proletária deste Estado, mediante um esforço conjugado da iniciativa particular e do Governo dentro de uma orientação de reforma social lenta mas ininterrupta. Nada será, no entanto, exequível, sem um apelo ardente às consciências adormecidas num egoísmo que as torna gradualmente indiferentes, senão hostis à situação moral e material do homem rude e depauperado por uma miséria orgânica que se agrava de geração a geração.

Diante do imperioso dever de abrasar cada coração ao exemplo franciscano de sacrifício e devotamento pela pobreza, dando cada um de si tudo que tenha de supérfluo, em favor daqueles a quem falta o necessário, cumpre levantar um clamor de opinião pública, em que se fundem preces de todos os credos, forças de todos os partidos, vozes de todas as classes. O que está em perigo é o homem em sua integridade física e moral, e para ele devem voltar-se, sem distinções nem rivalidades, todos quantos saibam colocar acima de interesses pessoais, transitórios e subalternos, os destinos mais altos da coletividade. Não é um movimento de repressão, mas de fraternidade, que se impõe para com esses incontáveis “irmãos menores” deserdados até da mais elementar justiça social. Está aí em jogo o futuro de nossa nacionalidade, ameaçada, de um lado, pela decadência de seu tipo racial e de outro, pelos germes de revolta que fermentam em suas massas produtoras.

E, depois de enumerar os pontos fundamentais do programa para o qual a colaboração do clero católico de Pernambuco representaria imprescindível contribuição, acrescentastes:

Pregados, do púlpito, aos ricos e aos poderosos, ressoarão esses deveres como mandamentos da Igreja, atenta aos destinos daqueles por quem foi sempre sua missão desvelada cuidar. A obra leiga do Governo, no âmbito restrito de suas atribuições temporais, não prescinde, de modo algum, da assistência espiritual das religiões que se imponham livremente pelo prestígio de sua fé e de seu sacerdócio.

A Igreja Católica do Brasil nunca se divorciou dos grandes movimentos políticos e sociais, desenrolados no País. Tomou parte ativa na colonização, amparando, na medida de suas forças, o índio, e, mais tarde, minorando as torturas do negro. Teve figuras preeminentes nos movimentos republicanos de 1817 e 1824. Representou-se, com destaque, na Conjuração Mineira e na proclamação da independência política do País. Bastaria só a figura de Feijó para religá-la, indissoluvelmente, à formação de nossa nacionalidade.

As reformas sociais que a situação do mundo moderno impõe a todos os povos, por irrefragável determinismo histórico, não podem encontrar o clero indiferente. Dentro de sua função de conselho, sem de nenhum modo imiscuir-se nas atribuições de mando político ou administrativo, cabe ao poder sacerdotal o insubstituível papel de diretor de consciências, orientando a opinião pública para a aceitação das medidas que melhor convenham à solução do grande problema de incorporação social do proletariado, que nos legou o passado.

UM ARTIGO DE AUSTREGÉSILO DE ATHAYDE

A propósito deste apelo escreveu Austregésilo de Athayde no Diário da Noite de 21 de outubro de 1935:

Em certos meios é proibido dizer que há miseráveis no Brasil. Muitos patriotas não gostam que a triste verdade apareça. Quando alguém mais ousado alude ao regime de escravidão em que jazem os trabalhadores dos seringais, surgem indignados protestos dos hipócritas a quem não é grata a ideia desses sofrimentos sem remédio. Mesmo quando a gente se inspira no Cristianismo e fala em nome dos mandamentos da caridade, retrucam que tais protestos são comunistas e escondem a intenção malévola de envenenar o espírito das massas.

Creio que o Secretário da Agricultura de Pernambuco, Sr. Paulo Carneiro, vai ser tachado de vermelho, só porque voltou os olhos para os mocambos e quis melhorar a sorte dos operários das usinas e dos engenhos, que se alimentam de farinha e rapadura... Para isso lançou um apelo comovido aos padres a fim de que empreguem a força inigualável do seu ministério sagrado, fazendo a campanha da casa e do pão para os pobres. Alguma coisa de semelhante ao apostolado de São Vicente de Paulo.

O melhor meio de evitar que os regimes extremistas se implantem no Brasil, é atender às necessidades das populações sofredoras, que moram em palhoças e não têm o que comer, porque a média dos salários é de mil e quinhentos por dia e com esse dinheiro é impossível sustentar uma família de cinco pessoas. O plano do Sr. Paulo Carneiro, se for executado, será uma barreira às reivindicações violentas das massas oprimidas, porque onde todos vivem confortavelmente não há lugar para a luta de classes. Teremos que fazer a justiça social, perfeitamente cabível nas instituições democráticas e liberais, em que todo o poder vem do povo. Voltemo-nos de boa vontade para os miseráveis se não quisermos que eles um dia imponham pela força o seu direito aos benefícios da vida.

Ao deixardes, pouco depois, o posto de governo que ocupáveis, consignastes em carta os princípios norteadores de vossa ação:

Como positivista, fiz voto de não violência, sendo formalmente contrário às reformas sociais impostas por motins ou revoluções. Nunca tomei nem tomarei parte em quaisquer agitações da ordem, por ferirem de frente os princípios da evolução pacífica aos quais devem obedecer, a meus olhos, os fenômenos sociais como quaisquer outros. Contrário sou a tais processos em virtude mesmo de seu caráter antissocial. O problema humano é de fraternidade acima de tudo e eu não compreendo fraternidade pelas armas, pelas conspirações, pela violência.

NO INSTITUTO PASTEUR

Ao regressardes ao Rio em fins de 1935, vistes que, naquele momento, não havia no Brasil ambiente para as vossas atividades científicas. Resolvestes, pois, retomar as vossas pesquisas no Instituto Pasteur de Paris, que vos ofereceu, para esse fim, uma bolsa de estudos. Nele passastes de 1936 a 1942, entregando-vos, com afinco, a isolar os princípios ativos do curare, oriundo de várias espécies do gênero Stricnos.

Os resultados de vossas pesquisas foram consignados em diversas comunicações à Academia de Ciências da França, o que vos valeu, em 1942, o Prêmio Nativelle, com que vos laureou a Academia de Medicina de Paris. A partir de vossos trabalhos, a utilização dos alcaloides do curare, pela primeira vez isolados, permitiu-vos retificar os conceitos clássicos de Claude Bernard e Lapicque sobre a curarização e a transmissão do influxo nervoso, abrindo novas sendas para o aperfeiçoamento da Fisiologia e da Medicina.

Nos laboratórios do Instituto Pasteur, ao lado de Gabriel Bertrand, famoso pela descoberta dos oligoelementos e do seu papel na matéria viva, passastes nove anos de vossa existência. A esse mestre de escola ludis com ternura num escrito sobre “A vida científica em França durante a Ocupação”:

No dia 10 de junho de 1940, o Professor Gabriel Bertrand reuniu, como de costume, no Instituto Pasteur, os seus colaboradores, para com eles trocar ideias sobre as pesquisas em curso. A atmosfera estava carregada de apreensões. Nossa equipe encontrava-se então reduzida a uma dezena de pesquisadores, achando-se em armas a maioria de nossos camaradas: uns, imobilizados na linha Maginot, outros, dispersos nos regimentos em retirada. O comandante militar de Paris acabava de afixar o aviso de que a capital seria defendida rua a rua, casa a casa. Diante da gravidade da situação, havia o Instituto decidido transferir uma parte de seus serviços para Angers, a fim de manter contato com as Forças Armadas que se esperava seriam reagrupadas em formação de combate, às margens do Loire.

Com a sua serenidade habitual, deteve-se Gabriel Bertrand na mesa de trabalho de cada um de nós, comentando as experiências em andamento ou sugerindo novas. Depois, terminando o diálogo científico, disse-nos com a voz ligeiramente alterada pela emoção, até aí contida: “Nossos colegas e colaboradores mobilizados sofrem, neste momento, terríveis provações; muitos morreram no campo de batalha, outros foram aprisionados. Qualquer que seja o desfecho da grande luta travada, nosso posto de combate pela civilização continuará a ser o laboratório. Aqui, ou em qualquer outro lugar, permaneceremos fiéis ao nosso dever e prosseguiremos, sem descanso, os trabalhos iniciados. A pesquisa científica não pode parar diante do invasor: somos soldados da Humanidade”...

Vejo ainda a figura do grande Mestre, cuja força moral sabia dominar, nessa exortação de fé, o tumulto que rugia em torno de nós. Alguns dias mais tarde toda esperança estava perdida. Sem chefes e sem armas, a França, com os seus efetivos militares ainda parcialmente intactos, sofreu uma capitulação de todo inesperada. A ocupação de mais da metade do País pelo inimigo ia implantar, por toda parte, um regime de perseguição e terror.

PRISIONEIRO EM GODESBERG

Em 6 de agosto de 1940, em carta a vossos pais, descrevestes, ao vivo, a retirada de Paris, no caos provocado pelos bombardeios aéreos das estradas, dos campos e das cidades. Atendendo a um pedido do Embaixador Sousa Dantas – vosso inseparável amigo – o acompanhastes a Tours, e, depois, a Bordéus, onde se refugiara o Governo francês. Vossa narrativa constitui precioso documento histórico:

Deixei Paris a 11 de junho à tarde, com o projeto de alcançar Angers, onde devia reunir-me a alguns serviços do Instituto Pasteur que ali seriam instalados, na suposição de prolongada resistência francesa. Os quatro últimos dias haviam sido de desolação e desesperança. Hora após hora, crescia o êxodo da cidade, avolumando-se sem cessar, numa onda que tudo arrastava após si, em trens, automóveis, caminhões, carroças, bicicletas, levando cada qual tudo o que lhe era precioso ou caro, desde alimentos e móveis, até brinquedos de criança, pássaros, gatos e cães.

Sangrava por todas as portas a grande capital, esvaindo-se, desamparada, sem chefes e sem guias. O espetáculo das estações de estradas de ferro era de verdadeiro assalto popular, diante de um mar humano em que predominavam mulheres e crianças acampadas à espera de trens cada vez mais raros e incertos. Quando, da estação de Austerlitz, parti com o embaixador, às 7 da noite, as plataformas estavam coalhadas de gente adormecida e exausta. Um serviço de enfermeiras distribuía leite às mulheres e às crianças, muitas delas vindas da Bélgica e do Norte da França. Enquanto esperávamos o trem, a céu aberto, travou-se intenso combate aéreo acima dessa pobre multidão. Uma só bomba teria bastado para ceifar milhares de vidas.

Cerca de três milhões de parisienses partiram, assim, nessa tormenta, numa alucinação coletiva, movidos pelo terror da ocupação e pela esperança de se reagruparem nas margens do Loire. Nesse tropel humano, só a mulher não capitulou. Vi-a, por toda parte, com indômita energia vencendo a insônia e a fadiga, transportando crianças ao colo, arrastando malas, escalando os muros das estações, alimentando uns, apaziguando o pranto de outros, e guardando, nesse inferno, altiva confiança e serena doçura.

Assinado o armistício, e não estando o Brasil ainda envolvido na guerra, voltastes a Paris, onde retomastes os vossos trabalhos no Instituto Pasteur e no Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do nosso País, dirigido pelo Ministro João Pinto da Silva. Foi-vos, então, por ele confiada a publicação de importante trabalho sobre o Brasil como potência econômica, trabalho em grande parte por vós mesmo redigido.

Haveis de escrever um dia, eu espero, Sr. Paulo Carneiro, a narrativa desses terríveis anos transcorridos sob a ocupação alemã, numa Paris quase deserta, sem alimentos, sem transportes, sem aquecimento e sem luz, sujeito diariamente às perseguições e represálias, às torturas e aos fuzilamentos, em permanente regime de pânico e opressão.

Com a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França Livre, desde então sob o comando do General de Gaulle, fostes, por duas vezes, internado com a nossa missão diplomática, primeiro em Baden-Baden, onde tivestes como companheiro o nosso inolvidável Guimarães Rosa, e depois, durante quatorze meses, em Godesberg, na companhia do Embaixador Souza Dantas.

Foi aí que melancolicamente decorreu o vosso 42.º aniversário. Certo, apesar de tudo, da vitória da Humanidade, escrevestes, nesse dia, em vosso diário íntimo:

Em meio da tormenta que me cerca, sinto, mais do que nunca, estável e confiante a minha vida interior. Dominando a crescente desordem que me envolve, convergem, cada vez mais meus sentimentos, pensamentos e atos para o culto e a causa da Humanidade. A fim de melhor servir meus contemporâneos, vivo, principalmente, entre os grandes mortos que me guiam e os porvindouros a que me consagro com o melhor de minhas forças. Afetam-me, por isto, menos do que a outros, os desmandos e os desastres a que assisto; enlutam-me sem desesperar-me, porque tenho constantemente sob os olhos o quadro redimido do futuro. Mais extensa do que profunda, a recrudescência atual da imensa crise intelectual e política que penosamente atravessa a Humanidade, desde fins da Idade Média, acelerará, por certo, o surto da única solução que comporta. A violência material do conflito que ensanguenta e arruína o mundo inteiro, desvendará aos mais cegos a necessidade imperiosa de profunda reorganização espiritual.

NA UNESCO

Terminada a guerra, participastes, como delegado adjunto do Brasil, da Conferência das Nações Unidas, realizada em Londres em janeiro de 1946. Ao ser aprovada, por essa Conferência, a criação da UNESCO (United Nations Educational Scientific and Cultural Organization), fostes designado pelo nosso Governo para nela representar o nosso País, a princípio como ministro (1946-1958), e, depois, como embaixador (1958-1965). Ingressando, assim, na diplomacia, tivestes de afastar-vos das pesquisas puramente científicas, voltando-vos para o campo da Educação, da História e dos problemas diretamente ligados ao homem.

O que tem sido a vossa atuação na UNESCO e o tom que lhe tendes impresso como uma de suas mais atuantes e poderosas inteligências, merece um dia estudo especial, aprofundado. Vossas intervenções em nome do Governo brasileiro sempre deixaram clara a nossa posição e a nossa soberania, ali tendo mantido o Brasil, graças à vossa desassombrada vigilância, situação de destaque inigualável. Vale recordar o testemunho de um grande educador, Fernando Tude de Souza:

O nome de Paulo Carneiro deve ser colocado ao lado de Julian Huxley, Torres Bodet, Luther Evans, Léon Blum, Pierre Auger e tantos outros que foram decisivos para o progresso da UNESCO. Não sei, ali, de nome de maior prestígio e de melhor conceito do que o do cientista brasileiro. Presidente do Conselho Executivo e de várias das principais Comissões das Conferências Gerais, atuou sempre como grande diplomata na solução das crises surgidas na vida da entidade. Não há exagero em dizer-se que dos cientistas brasileiros foi a pessoa que melhor compreendeu e sentiu as altas finalidades da UNESCO. Paulo Carneiro e a UNESCO são, hoje, dois nomes inseparáveis, e não há exemplo de um brasileiro que tenha prestado maiores e melhores serviços ao País no estrangeiro.

Esse depoimento de um educador ilustre que, durante longo tempo, acompanhou de perto os trabalhos da UNESCO foi de ano para ano repetido e ampliado por testemunhas de igual valor. O saudoso Nestor de nossa Academia, nosso querido Levi Carneiro, mais de uma vez narrou em nosso Plenário um episódio ocorrido entre ele e um representante da Grã-Bretanha naquele organismo internacional. Sabendo ser Levi brasileiro, felicitou-o. Perguntou-lhe então o nosso confrade se conhecia o Brasil, e, sendo negativa a resposta, retrucou-lhe: “Como pode o senhor apreciar o Brasil se nunca o visitou?” Ao que o inglês redarguiu: “Na verdade, nunca fui ao Brasil, mas conheci na UNESCO dois admiráveis brasileiros: Miguel Osório de Almeida e Paulo Carneiro. Um país que sabe aproveitar homens de tal categoria, incumbindo-os de missões de responsabilidade, somente pode ser um grande País”.

O INSTITUTO INTERNACIONAL DA HILEIA AMAZÔNICA

Ao traçar-se, em 1946, o programa da nova Organização, apresentastes à Comissão de Ciências Naturais o projeto de criação de um Instituto Internacional de pesquisas na Hileia Amazônica. Tínheis sem dúvida em mente a advertência de Euclides da Cunha em Terra sem História: “De toda a América a paragem mais perlustrada pelos sábios é a menos conhecida. Quem quer que se abalance a deletrear (a literatura científica amazônica) ficará, ao cabo desse esforço, bem pouco além do limiar de um mundo maravilhoso.”

O plano que submetestes à consideração das entidades científicas e culturais brasileiras e à Assembleia Geral da UNESCO delas recebeu aprovação sem reservas. Devidamente autorizado pelo então Ministro das Relações Exteriores, nosso saudoso Confrade João Neves da Fontoura, solicitastes ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciências e Cultura que amplamente discutisse o assunto. Depois de largo debate, o presidente desse Instituto, nosso Confrade Levi Carneiro, assim se manifestou ao dirigir-se à Comissão Parlamentar de Valorização do Vale Amazônico:

Só o pormenorizado conhecimento cartográfico, geológico, pedológico, climático, botânico, zoológico, antropológico e higiênico da Hileia Amazônica poderá orientar a sua racional valorização, estabelecendo os critérios seletivos para a agricultura, a silvicultura, a piscicultura, a pecuária, as indústrias agrícolas e minerais, a educação, a alimentação, a habitação e a proteção sanitária que se tornam imprescindíveis ao desenvolvimento de uma grande civilização nessa imensa área tropical. O Instituto Internacional da Hileia Amazônica foi projetado para satisfazer a esses objetivos num espírito de cooperação, de lealdade internacional e eficiência científica.

Em abril de 1948 enviou o Governo brasileiro a Iquitos uma delegação, escolhida e nomeada pelo Ministério das Relações Exteriores, para elaborar e assinar, ad referendum, a convenção criando o Instituto da Hileia. Os delegados do Brasil foram o Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, Dr. Lineu de Albuquerque Melo, a diretora do Museu Nacional, D. Heloísa Alberto Torres, o diretor do Instituto Agronômico do Norte, Dr. Felisberto Camargo, além de um representante do Conselho Nacional de Geografia, Dr. Lúcio de Castro Soares, e de um representante do Serviço Especial de Saúde Pública. Depois de amplo debate e cuidadosa redação, assinaram a Convenção, ad referendum dos respectivos Governos, os delegados do Brasil, da Bolívia, do Peru, do Equador, da Colômbia e da Venezuela, da Guiana Francesa, da Guiana Holandesa e da Itália. Contrariamente ao que tem sido dito, com malévolos intuitos, o Governo dos Estados Unidos não tomou parte na Conferência de Iquitos, nem participou em grau nenhum do projeto do Instituto da Hileia.

A mensagem dirigida ao Congresso Nacional, solicitando a ratificação do Governo de Iquitos, foi redigida pelo então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Raul Fernandes, um dos nossos mais lúcidos juristas, e assinada pelo Presidente da República, Marechal Eurico Gaspar Dutra.

O memorável parecer que emitiu sobre o assunto o Estado-Maior das Forças Armadas, então chefiado pelo ilustre General Salvador César Obino, pôs em relevo a importância e o verdadeiro sentido do projeto. Quisera recordá-lo na íntegra, mas a exiguidade do tempo só me permite citar alguns de seus tópicos:

A ideia da criação de um organismo internacional destinado a, de um lado, orientar e apoiar a execução de pesquisas científicas na região amazônica e a, de outro lado, centralizar e difundir os resultados daquelas pesquisas não pode sofrer oposição de quem quer que tenha um conhecimento mesmo ligeiro da vastidão daquela região e da complexidade de seus problemas. O conhecimento dessa imensa área que abrange quase 50% da superfície da América do Sul, em cujo coração se situa, é trabalho que está a desafiar a ação de gerações e que foge indubitavelmente às possibilidades de nações isoladas, tanto mais quanto é ela constituída de porções substanciais do território da maioria das nações do Continente Americano.

Em virtude da orientação geral da calha do Amazonas, sensivelmente paralela, aquelas porções dos diferentes países apresentam, grosso modo, características semelhantes que as identificam e as integram em um mesmo todo. Essa identidade geográfica sugere a ideia de se procurar uma fórmula que possibilite o estudo do todo como um conjunto, congregando, para obter uma resultante eficiente, os esforços que, dispersos, seriam anulados pela pujança agressiva da selva.

Equacionado o problema nesses termos, a fórmula óbvia que se impunha, como muito bem compreendeu o Itamaraty, era a criação de um organismo internacional que se incumbisse de efetivar aquela desejada conjugação de esforços.

No atinente à segurança nacional, assim se manifestou o Estado-Maior das Forças Armadas:

Torna-se fundamental para inteligência da Convenção de Iquitos, uma correta interpretação da letra C, do art. II. Se for entendido e assim expressamente declarado que esse dispositivo obriga o Instituto a submeter previamente à aprovação do Estado interessado cada empreendimento pretendido dentro do seu território, importando sua não aprovação em veto às atividades consideradas, direito esse já explicitamente reconhecido às nações que possuem territórios na Hileia Amazônica, em relação às emendas à Convenção (letra B do artigo XIV), parece que a interpretação aqui preconizada converteria o citado dispositivo em uma garantia concreta onde estribar a defesa de nossos interesses.

Certamente foge ao Estado-Maior das Forças Armadas apreciar a questão da possibilidade, face às normas internacionais, de na fase atual do projeto ser introduzida unilateralmente uma declaração explanatória do espírito dentro do qual é a Convenção aceita.

Opina, portanto, o Estado-Maior das Forças Armadas que a Convenção assinada na cidade de Iquitos só poderá, sob o ponto de vista da Segurança Nacional, ser aceita pelo Brasil se for dada à letra C do artigo II a interpretação acima exposta, de molde a poder o Instituto em apreço corresponder aos nobres desígnios dos seus iniciadores.

À vista deste parecer, decidiu o Ministério das Relações Exteriores complementar o texto anterior com um Protocolo Adicional em que figurasse de modo explícito o sentido que, no espírito dos seus redatores, já tinha, de fato, a letra C do artigo II da Convenção.

Todos os signatários, sem exceção, do Convênio de Iquitos, subscreveram, no Rio de Janeiro, a 12 de maio de 1950, o Protocolo Adicional preparado pelo Itamaraty, com a vossa constante colaboração.

Resguardadas, assim, a segurança e a intangibilidade do território de cada país, deveria cessar a celeuma entre nós levantada em torno do Instituto da Hileia. Tal não se deu, porém, porque, conforme frisa D. Silvério Pimenta em sua Vida de Dom Viçoso, “a bondade das empresas neste mundo se pode avaliar pelo peso das contradições que encontram, sendo tanto melhores quanto maiores montes de obstáculos lhes apresentam os homens”.
 
Oposições idênticas sofreram quase todas as grandes conquistas científicas e sociais e vós mesmo recordais uma carta onde Pasteur confidenciava a D. Pedro II, em julho de 1883: “Há um ano me tenho abstido de comparecer às sessões da Academia de Medicina de Paris, na qual, cada semana, eu devia defender a verdade contra as mais frívolas objeções. Houve mesmo um dia em que um cirurgião dessa Academia me desafiou, em sessão pública, para um duelo!”

Esse desafio para um duelo, lançado ao fundador da Patologia infecciosa, como um desforço contra as suas descobertas, assume, em vossas palavras, “o valor de um símbolo”.

Na Conferência que em 1951 pronunciastes na Escola Superior de Guerra, abordastes todos os aspectos da questão. Ali dizíeis:

O sentido político de um Instituto Científico de caráter regional, localizado em Manaus e destinado a estudar áreas consideráveis do Brasil, das três Guianas, da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia, é tão importante quanto a sua significação econômica. Um Centro de Estudos dessa importância no Vale Amazônico constituirá naturalmente um elo extremamente poderoso entre os diversos países da região, abrindo novos horizontes à cooperação dos mesmos em todos os domínios.

A Bacia do Prata polarizou até hoje, de tal modo, a atenção geral, que o Amazonas permaneceu quase despercebido dos nossos homens de Estado. O primeiro anúncio de rumos novos foi proclamado pelo Presidente Getúlio Vargas, no famoso discurso proferido em Manaus a 10 de outubro de 1940. Pequeno foi, porém, o progresso realizado desde então, por falta de um plano de conjunto, abrangendo os problemas do homem e da terra, cientificamente elaborado. Alguns órgãos isolados, como o Instituto Agronômico do Norte e o Serviço Especial de Saúde Pública, demonstraram, no entanto, através dos admiráveis resultados dos seus esforços, quanto poderá vir a ser fecunda uma ação conjunta e prolongada de investigadores científicos.

Não é apenas o destino de um Instituto de Pesquisas que está neste momento em jogo, mas a orientação que deverá presidir por longo tempo à solução de um problema econômico e social da maior relevância para o Brasil e para todo o nosso Continente. A Amazônia só será realmente nossa quando a conhecermos e utilizarmos. Enquanto isso não se der e continuar ela a ser misteriosa mancha verde na configuração geográfica do Brasil, faltará ao nosso potencial técnico e humano o mais valioso contingente que o destino lhe reserva.

A convite do Almirante Álvaro Alberto, então presidente do Conselho Nacional de Pesquisas, prestastes, mais tarde, ativa colaboração à criação do Instituto de Pesquisas da Amazônia, transferindo para ele uma parte das atribuições que o Instituto da Hileia devia ter.

Oxalá, Sr. Paulo Carneiro, a construção da Transamazônica leve o nosso Governo a complementá-lo, estendendo-lhe o campo de estudo, atraindo para ele grandes cientistas do mundo inteiro e restituindo-lhe o caráter regional que patrioticamente propusestes há vinte e cinco anos.

AINDA  NA UNESCO

Muitos outros projetos de interesse para o Brasil foram por vós levados a bom termo no quadro das atividades da UNESCO. Além de obter para o nosso País, no transcurso de cinco lustros, algumas centenas de peritos e de bolsas de estudo, fostes o principal promotor da criação do Instituto de Pesquisas em Ciências Sociais e do Centro Latino-Americano de Física, todos com sede no Rio de Janeiro.

Depois de presidirdes, em 1950, o Conselho Executivo da UNESCO, fostes, em 1962, eleito, por unanimidade, presidente da sua Conferência Geral. Vossa atuação nesse posto, durante o período de dois anos, está consignada nos discursos que proferistes ao iniciar-se e ao concluir-se o vosso mandato. Reproduzidos em vosso livro Vers un Nouvel Humanisme, constituem eles importantes marcos em vossa carreira. Dedicastes o primeiro a vosso tio, o Embaixador J. A. Barbosa Carneiro, como testemunho de vossa admiração pelo papel que tem desempenhado, com alto sentimento público, no cenário internacional; o segundo foi consagrado à memória de João Neves da Fontoura, em sinal de reconhecimento pela confiança que em vós depositou ao designar-vos, em 1946, para o posto de Delegado Permanente do Brasil junto à UNESCO.

Membro do seu Conselho Executivo desde a sua criação, ali tendes exercido as mais altas funções. Ao inaugurar-se, no seu novo local, o Templo de Abu Simbel, recordastes a obra ingente levada a efeito para salvar cerca de vinte monumentos, quase todos da era faraônica, ameaçados de desaparecer sob as águas montantes do Nilo, transformado, nessa região, em imenso lago de 157 bilhões de metros cúbicos de água. Graças aos esforços do Comitê que presidistes, reuniu a UNESCO os 25 milhões de dólares de que carecia, doados por cinquenta países.

Papel de igual relevo vos coube ainda no preparo, mediante a colaboração de mais de quinhentos historiadores, homens de ciência e homens de letras, da História do Desenvolvimento Científico e Cultural da Humanidade, publicada em francês em dez volumes, e traduzida já em numerosas línguas.

Como excelentemente frisastes, “não se tratava de elaborar uma filosofia da história à luz das leis econômicas, intelectuais e morais que regem o evolver social, mas de descrever sob um ponto de vista internacional, a contribuição de cada época, de cada região, de cada povo, ao surto científico e cultural da Humanidade”.

De alto nível foi a colaboração brasileira a essa obra à qual associastes desde o começo, a título de consultores, os nossos Confrades Miguel Osório de Almeida e Fernando de Azevedo, além de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Ao nosso atual Confrade José Honório Rodrigues e ao nosso confrade em potencial Arthur César Ferreira Reis, confiastes a elaboração de importante capítulo sobre o Brasil.

Não poderia silenciar aqui o vosso contínuo e apaixonado empenho em orientar cada vez mais a ação da UNESCO para a organização racional da paz, fundando-a sobre sólidas bases sociológicas. Por sugestão vossa, convocou o diretor-geral da UNESCO, em 1966, uma Mesa Redonda, composta de todos os seus antigos diretores, dos presidentes da Conferência Geral e do Conselho Executivo, a fim de dirigirem um apelo solene a todos os Governos para que rejeitem definitivamente a guerra como instrumento de política internacional, renunciem a todo recurso à violência no ajuste de seus dissídios, e respeitem o direito de todos os povos à autodeterminação e à independência.

Coube-vos a redação desse apelo, o que vos valeu o caloroso agradecimento que vos dirigiu, em sessão plenária da Conferência Geral, o presidente da mesa redonda – Noel Baker, Prêmio Nobel da Paz:

Acima de tudo quero agradecer ao nosso relator, Dr. Carneiro, por tudo quanto fez. O grande poder intelectual do Dr. Carneiro, sua alta autoridade pessoal são conhecidos de todos os que têm tomado parte, por mínima que seja, nos assuntos da UNESCO. Qualquer que haja sido o mérito de nossa participação, foi, em grande parte, devido à paciência, ao talento e ao que talvez se possa chamar requintada arte de redigir, que o Dr. Carneiro, do começo ao fim, revelou. Aqui lhe apresentamos nossa mais calorosa gratidão.

RUMO A UM NOVO HUMANISMO

Embora vazado em estilo cristalino, vosso volume – Vers un Nouvel Humanisme – é um desses livros insolentes, de que falava Stendhal, os quais obrigam o leitor a meditar.

Falta-me tempo para deter-me nesse esplêndido livro, mas não posso deixar de mencionar os estudos consagrados a Ventura Garcia Calderón, Galileu, Rondon, Jefferson, Cecília Meireles, e à obra civilizadora e cultural dos jesuítas no Brasil. Percebe-se, em todos esses capítulos, que os escrevestes com amor, guiado pelo pensamento de que o culto prestado aos grandes homens é um culto dado à Humanidade.

Nesse livro provastes serdes, assim como vosso ilustre antecessor Clementino Fraga, um humanista no mais lídimo sentido do termo, porque, tal como ele, somente tendes por objetivo o homem e seus problemas, sua formação moral e intelectual, a busca de sua felicidade, preocupando-vos em apurar-lhe as faculdades de amar, pensar e agir a fim de que possa plenamente integrar-se na comunidade social.

Daí decorre, a vossos olhos, a necessidade urgente de fundir-se a ciência com o Humanismo para assegurar-se um surto harmonioso às gerações futuras.

O capítulo sobre Galileu revela profundo conhecimento do século, da pessoa e da obra do fundador da Física, surpreendendo pela multiplicidade e segurança dos informes. Vossos comentários sobre a experiência de Michelsen e vossa sugestão relativa a possíveis aplicações das leis de resistência dos materiais aos fenômenos e às organizações sociais, serão provavelmente o ponto de partida de novas pesquisas sobre essas questões.

A propósito de vosso estudo sobre Tomas Jefferson e o Brasil quero ressaltar haver sido uma conversa com vossa avó, quando éreis adolescente, que vos levou, muitos anos depois, a obter, na Biblioteca do Congresso, em Washington, uma cópia fac-similar das cartas dirigidas a Jefferson por José Joaquim da Maia, sob o pseudônimo de Vendek. E, nos arquivos da casa do autor da Declaração da Independência Americana, encontrastes cópia das cartas por ele enviadas, de Paris a Nimes, ao nosso compatriota marcando um encontro na velha cidade a fim de examinar a possibilidade de apoiar o seu país a causa de nossa independência.

Ninguém mais do que vós conhece a necessidade de se encarar a História sob o prisma filosófico e sociológico, porque permanecerá estéril e falaciosa quando nela vemos apenas imensa e indigesta mole de dados em vez de sucessivas preparações, cuja principal eficácia procede de seu encadeamento através dos séculos, considerando-se, nas palavras de Pascal, a humanidade como um homem único que vive sempre e aprende continuamente.

E disto destes um exemplo característico em vossas Considerações sobre o Passado e o Futuro da Europa, onde traçastes o evolver da civilização desta última desde o seu berço nas margens do Eufrates, passando pelo Egito, pela Grécia, pelo Império Romano até chegar, através da Idade Média e da Renascença, aos nossos dias. Aí salientais, com muita procedência, que, se as grandes potências não cumprirem sem demora a recomendação das Nações Unidas no sentido de amplo desarmamento, toda a humanidade está ameaçada de desaparecer por uma rajada de loucura ou de pânico, aniquilando-se, de um momento para outro, trinta séculos de civilização.

Representa esse capítulo um grito de alarme, tão lúcido quanto objetivo, sobre a angustiante encruzilhada em que se acha hoje a humanidade em decorrência das armas atômicas, justificando haja Ana Amélia Queirós Carneiro de Mendonça dito, na Associação Brasileira de Educação, que não sois apenas “um alto cientista consagrado em várias demonstrações de valor inequívoco, mas ainda um alto poeta da paz e da fraternidade em plena atividade na UNESCO”.

O eminente cientista J. Duclaux frisou ser o vosso livro escrito num francês que fará inveja a muitos de seus compatriotas e Étienne Gilson assim o comentou:

Li o volume – Vers un Nouvel Humanisme – com o interesse que inspirará a todos os fiéis do Humanismo, antigo ou novo, sobretudo se, ao mesmo tempo, forem, como eu o sou, admiradores de Augusto Comte. Tendes muita razão em celebrar-lhe a memória. Ele é o Aristóteles dos tempos modernos e eu não chego a compreender que o seu curso de Filosofia Positiva não se tenha tornado o modelo de um plano de estudos aplicável em todas as universidades modernas. É a única enciclopédia, no sentido grego desde Aristóteles, e dever-se-ia poder sempre atualizá-la e completá-la.

O INFANTE D. HENRIQUE

Representastes o Brasil nas comemorações do 5.º centenário da morte do Infante D. Henrique e o discurso que proferistes em Lisboa, em 5 de março de 1960, vos conquistou para sempre a amizade e a admiração de Portugal. Aí ressaltastes:

Ao gênio criador do Infante D. Henrique, deve a Humanidade a conquista final do seu planeta. Do promontório de Sagres perscrutou o seu olhar o horizonte infindo dos mares e pressentiu que só os seus caminhos incógnitos assegurariam a Portugal a expansão que lhe não permitiam estreitas delimitações de fronteiras...

As caravelas que lançou pelos mares levaram consigo a herança cultural de todo o Ocidente. Cada uma representava vinte séculos de investigações e descobertas pacientemente acumuladas por cientistas e navegantes gregos, árabes e europeus da orla mediterrânea. Levavam também em seu bojo precioso patrimônio filosófico e moral. Os monges que iam rezar as primeiras missas em terras de infiéis e de gentios eram mensageiros dos ensinamentos de São Bento, de São Bernardo, de São Domingos, de São Francisco de Assis, de todos os fundadores de Ordens Religiosas que desde muito haviam criado as regras espirituais da missão que se ia então cumprir. Eram também os herdeiros intelectuais dos grandes pensadores da antiguidade, de Platão, de Aristóteles, de Cícero e Marco Aurélio, e prenunciavam já, através de sua formação escolástica, o Renascimento a despontar. Quão pobres se afiguram, em confronto, os carregamentos de ouro que alguns anos mais tarde trariam as mesmas naves de retorno a Portugal!

ROQUETTE-PINTO

Entre os vossos estudos sobre grandes figuras se destaca primoroso elogio de Roquette-Pinto, mestre insigne de nossa geração. Referindo-vos a Seixos RoladosEnsaios de Antropologia e Ensaios Brasilianos, assim lhe caracterizais a obra:

O retrato do Brasil pintado nessa trilogia tem os contornos e os matizes de um painel realista. Não procurou jamais Roquette-Pinto encobrir as faltas ou os desvios de nossos homens e de nossa História, mas repeliu sempre, com o mesmo espírito de objetividade, toda deformação, por pessimismo ou malevolência, de nossos feitos e de nossa raça. Ao lado das falhas que nos oprimem, assinala as virtudes que nos enaltecem. Da portentosa tela que esboça, ressalta o perfil atormentado e vigoroso de um grande povo em marcha, a lutar sem tréguas contra as asperezas do meio físico e as carências do meio social, num esforço titânico para elevar-se ao nível de prosperidade e de cultura que o destino lhe reserva.

Antropologista antes de tudo, consagra Roquette-Pinto a maior parte dos seus Ensaios aos problemas do homem, no afã de melhor conhecer a sua natureza e aperfeiçoar as suas condições de existência física, biológica e social. Aos que persistem em duvidar das qualidades eugênicas do nosso povo, adverte: a antropologia prova que o homem no Brasil precisa ser educado e não substituído.

TRABALHOS INÉDITOS

Possuís numerosos trabalhos: discursos, conferências, teses, memórias e monografias, escritos ao longo da vida, e injustamente, por excesso de severidade, até hoje guardados inéditos. Posso citar, entre outros, os estudos sobre A Universidade de Coimbra e o BrasilA Proteção aos Nossos ÍndiosHorizontes e Perspectivas da Pesquisa Científica em Nosso PaísAspectos Lógicos, Filosóficos e Morais da Ciência.
 
Se todos os escritores se condenassem, como vós, a plenamente se contentarem a si mesmos, nenhum publicaria jamais uma só página, como aconteceu com Virgílio ao pretender entregar às chamas a Eneida, depois de nela trabalhar doze anos.

O ORADOR

A propósito de vossos dotes oratórios, todos os que têm acompanhado a vossa carreira são unânimes em assinalar o impacto que provocais quando falais em público. Excepcionais são a presteza, a elegância e a precisão com que, de imediato, respondeis às interpelações que vos são dirigidas.

Ainda este ano, depois de uma exposição sobre o nosso problema indígena, feita em Paris, perante a Academia de Ciências Morais e Políticas, foi perfeita, no depoimento do nosso Confrade Aurélio de Lyra Tavares, a maneira pela qual replicastes a alguns intelectuais imbuídos da campanha que, na Europa, atribuía ao nosso Governo o genocídio do índio brasileiro.

Costuma o meu querido amigo Monsenhor Olympio de Mello contar que, estando em Paris em 1951, foi por Perilo Gomes levado à presença do Cardeal Roncalli, então Núncio Apostólico em França. Ao vê-lo, o Cardeal, que se tornaria depois o Papa João XXIII, disse-lhe: “Felicito-o por ser compatriota do Embaixador Paulo Carneiro, hoje um dos melhores oradores de língua francesa. A comemoração por ele realizada do 5.º centenário de Isabel a Católica foi notabilíssima.”

Este juízo seria, em 1966, confirmado por Etienne Gilson, membro da Academia Francesa e professor do Collège de France, numa carta em que, ao aceitar o convite para escrever um trabalho sobre o Cristianismo e o Humanismo vos declarou: “Serei somente obrigado a vigiar o meu estilo, pois a incumbência me vem de ‘um dos mais perfeitos oradores franceses, que já tive oportunidade de escutar’. Eu jamais vos esqueci, nem do meu deslumbramento em vos ouvir.”

O COLABORADOR DO VATICANO

Através de vossa atuação conseguiu o Vaticano manter, junto à UNESCO, um representante. A isto se opunham argumentos estatutários, visto não poder a Santa Sé ser considerada um país. Resolvestes o impasse e o Sumo Pontífice Pio XII fez questão de receber-vos em audiência especial, para testemunhar-vos o seu reconhecimento.
De alta autoridade eclesiástica ouvi ter-lhe enviado, em 1956, o Cardeal Montini, então secretário de Estado do Vaticano e hoje Santo Padre Paulo VI, uma carta onde declarava haverdes sido sempre zeloso colaborador da Santa Sé. Nisto sois fiel a vosso Mestre Augusto Comte em seu projeto de Liga Religiosa, posto em prática, em nossos dias, pelo espírito ecumênico do Sumo Pontífice João XXIII.

Ao subir ao sólio pontifício, condecorou-vos o Santo Padre Paulo VI com a Grã-Cruz de São Silvestre.

FIDELIDADE AO VERNÁCULO

Todos se admiram como tem sido possível passardes longos anos no exterior sem contaminar-se o vosso português por línguas estrangeiras.

A explicação é fácil: jamais interrompeis o vosso diálogo interior com o Brasil, sendo um daqueles que trazem em si a indelével marca do seu povo, jamais se desprendendo de suas raízes pátrias. A ausência não faz senão exaltar-vos o fervor do apego ao berço natal.

Em 1951, a convite de Anísio Teixeira, tão comovidamente evocado no discurso que acabais de proferir, fizestes, em Salvador, um curso de conferências sobre os Aspectos lógicos, filosóficos e morais da ciência. Otávio Mangabeira, ex-governador do Estado que assistiu a todas, e, terminada a última, vos disse: “Não vim ouvi-lo só atraído pelo assunto, mas também para ver como anda o seu Português, que, mercê de Deus, continua ótimo”... Otávio, que passou longos anos no exílio, conhecia bem os perigos que, no estrangeiro, corre o vernáculo de nossos compatriotas.

O AMIGO

Apesar de largo tempo exclusivamente entregue às pesquisas científicas, escapastes ao reparo de Júlio Ribeiro: “Ninguém é sábio impunemente. A Ciência é uma túnica de Djanira: uma vez vestida, gruda-se à pele, deixa pedaços de forro, que é o pedantismo.” Conheço-vos há meio século e pecado em que jamais vos vi incidir é esse. Vosso estilo, mesmo quando dissertais sobre temas científicos, é límpido e corrente, sem aquela sobrecarga de termos técnicos a que Alexandre Herculano chamava ‘gongorismo científico’.

Eis por que desmentis a observação de Erasmo segundo a qual “os escritores, assim como as tapeçarias de Flandres com grandes personagens, só de longe produzem todo o seu efeito”. Convosco ocorre o contrário: só de perto é possível apreciar todo o encanto de vossa inteligência, a variedade de vossa cultura e a magnética força de vossa simpatia.

Sois um conversador delicioso e o vosso constante convívio social impediu adquirísseis o mau vezo dos escritores que, vivendo ensimesmados, se tornam intratáveis, visto não serem as suas ideias contrastadas e fecundadas por outras.

Ao contrário daquele Luís Garcia, de Machado de Assis, que amava a espécie e aborrecia os indivíduos, cultivais carinhosamente a amizade, possuindo, como poucos, a capacidade de compartir alheias dores e alegrias. Condescendente para com a fragilidade humana, estais sempre disposto às interpretações favoráveis e ninguém, mais do que vós, sabe achá-las. Quer no Rio, quer em Paris, vossa casa é um ponto de atração, permanentemente aberto aos que vos procuram em busca de vosso saber, de vosso conselho, de vossa generosidade.

Por não constarem mais do número dos vivos, estando, entretanto, continuamente presentes em vosso afeto e em vossa lembrança, evoco aqui as figuras de Anísio Teixeira, Ana Amélia Queirós Carneiro de Mendonça, Branca Fialho, Cecília Meireles, Sousa Dantas, Roquette-Pinto, Miguel Osório, Guimarães Rosa, Ernesto Lopes da Fonseca Costa, Paulo Bittencourt, Venâncio Filho, Edgard Süssekind de Mendonça, Alberto Jacobina, Edgar Serra, Tavares Bastos, Tude de Sousa, Vinícius de Berredo e Benjamin Barradas – que vos acompanharam de perto em diferentes fases de vossa vida e hoje não poderiam faltar à vossa festa.

A CASA DE AUGUSTO COMTE

Ao lado de intensa vida social e diplomática, tendes, anos a fio, dado prova de serdes capaz do desinteressado devotamento de um beneditino, dedicando-vos, em Paris, à conservação da casa de Augusto Comte, que se tornou um dos museus de grandes homens mais primorosamente organizados em todo o mundo. A este propósito invoco o testemunho de Pierre Seghers:

Nosso país deve a Paulo Carneiro o Museu Augusto Comte, sediado no próprio apartamento do fundador do Positivismo, à Rua Monsieur Le Prince, 10. Filho espiritual do filósofo, nosso amigo brasileiro consagrou seu tempo e parte de seus vencimentos a essa obra de piedade, onde se encontram reunidos todos os livros que constituíam a biblioteca de Augusto Comte, dispostos na mesma ordem em que este os mantinha. Os documentos, manuscritos e correspondência, e, em particular, as cartas a Clotilde, foram igualmente reunidos pelo fundador do Museu. Consultando essas coleções, minuciosamente classificadas por Paulo Carneiro, descobriremos muitos elementos que esclarecem e enriquecem a história do Movimento Positivista e de sua época. Graças a esta Fundação, devida a Paulo Carneiro, uma documentação única, que teria sido dispersada, e, sem dúvida, em grande parte destruída, se acha hoje reunida e restituída ao patrimônio da França.

Neste apartamento inteiramente restaurado, como no tempo em que nele Augusto Comte recebia seus amigos e discípulos, um pensamento permanece vigilante e vivo. Cadeiras cujos forros foram de novo tecidos em Lião, de acordo com os modelos originais; papéis das paredes reimpressos especialmente pela mesma fábrica onde o próprio Augusto Comte os havia escolhido; objetos pessoais colocados cada qual em seu lugar – inefavelmente fiéis diria Max Elskamp. À vista de tudo isto, pode-se dizer que das gravuras e quadros que acompanhavam uma vida tão secreta quanto ardente, um calor e uma luz se desprendem: os da fidelidade de um homem ao que o homem tem de melhor dentro dele. Queira Paulo Carneiro aceitar o nosso agradecimento pelo exemplo que nos dá, a nós franceses, ao encarnar esse homem.

Entretanto, admirando muito o fundador da Sociologia, não o seguis cegamente. Se adotais numerosos de seus postulados, jamais deixais de repensá-los, porque o Positivismo para vós, como para mim, em vez de um ponto de chegada, é, ao contrário, um ponto de partida, não havendo o relógio do pensamento parado no instante da morte do filósofo.

Mas, tal qual aconteceu com Martins Júnior, Vicente de Carvalho e Roquette-Pinto, não é pelas vossas convicções positivistas que aqui ingressais, porque a nossa Academia, assim como a Francesa, conforme advertia Renan a Pasteur, não patrocina doutrinas: apenas discerne talentos. Salientava com razão Aloísio de Castro: “Jamais houve aqui dogmatismos de qualquer natureza; aqui não se denunciam excomunhões e não é da Academia que vem o grito: nós é que somos a verdade!”

Sr. Paulo Carneiro:

Estou certo de que, assim como ao autor de Rondônia, o que vos seduziu nesta Casa é não ser ela “uma instituição estática, ancorada na corrente dos destinos da nacionalidade”.

Aqui chegais com um passado ilustre. Sois professor e cientista, e, durante vários anos, fostes embaixador do Brasil. Muitas são, no estrangeiro, as instituições a que pertenceis. Sois presidente da União Latina, desde 1952, e presidente da Academia do Mundo Latino, desde 1967. Integrais, como membro correspondente, o Instituto de França. Desde 1946, tendes sido eleito e reeleito para o Conselho Executivo da UNESCO, estando em curso até 1972 o atual mandato que vos foi conferido a título pessoal.

Vindes para a nossa companhia depois de haverdes sido acolhido pela Academia Brasileira de Ciências. Chamando-vos ao nosso convívio muito espera esta Casa de vosso talento. Através de nossa tribuna e de nossa Revista continuareis a beneficiar a Cultura Brasileira e podeis, neste momento, repetir as palavras do nosso querido e inesquecível Clementino Fraga: “Não entrei para esta Casa pelo beiral do telhado, nem varei num salto a janela entreaberta. Arribando a porto conhecido, sou fiel à morada de minha inteligência e à casa do meu pensamento.”

Eu sabia ser muito grande o vosso valor, mas, ao estudar-vos de perto, vejo serdes ainda maior do que eu supunha.

Sede bem-vindo, Sr. Paulo Carneiro!

4/10/1971