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Otávio de Faria

IVO

Nesse momento de suprema tentação para Ivo, padre Luís, na tranqüilidade do seu quarto, já de luz apagada há muito, acabava de se colocar mais uma vez o problema que a confissão de Ivo o obrigara a formular: será possível dizer a um menino que é preciso não dormir, que talvez seja necessário que não durma a vida toda?

Depois de passada a surpresa inicial, voltara sobre a confissão de Ivo, preocupado com o que dissera e mais ainda, talvez, com o que intencionalmente deixara de dizer. Passara um dia dificil, tentando evitar o assunto para poder cuidar corretamente de suas obrigações imediatas. À noite, porém, quando, terminadas as últimas orações, se entregara ao exame do caso, compreendera que a angústia do dia todo fora até um descanso. Agora, de joelhos, no escuro do quarto, começava o maior tormento.

No fundo, não sabia se fizera bem ou mal. Teria errado não dizendo tudo?

Poderia ter feito de outro modo? Não sendo absolutamente necessário - como não lhe parecia - poderia lançar sobre a vida calma de Ivo uma angústia que provavelmente não desapareceria nunca mais? Poderia aconselhar que não dormisse, vigiasse incessantemente? "Mas Ivo é uma criança" - murmurou padre Luís angustiado: - "Não é possivel dizer-lhe assim... Sem preparação alguma, que é preciso não dormir. É uma loucura querer pô-lo diante de um problema desses, quando talvez baste auxiliá-lo a vencer as tentações, a resistir com energia..."

Não durou muito a tranqüilidade restaurada. É que havia na confissão de Ivo uma qualquer coisa de novo, capaz de alterar a equação que justificava o seu silêncio relativo. A princípio não notara, porém agora, refletindo cuidadosamente sobre os acontecimentos, tudo parecia evidente, gritante. Ivo era uma criança, sim. Mas, era uma criança que estava se transformando da noite para o dia num rapaz, num homem. Pensando bem, naqueles três ou quatro últimos meses, as mudanças tinham sido enormes. Ele as presenciara e era obrigado a testemunhar. A última conversa mais prolongada que haviam tido, no domingo anterior, ligada à confissão daquela manhã, falava de um modo bastante claro. No domingo, não prestara muita atenção, mas agora percebia bem a razão de ser de tudo quanto Ivo lhe dissera sobre os seus planos de futuro. Tudo aquilo não passava, evidentemente, de um entusiasmo global, indistinto, pela vida, por tudo que, de um modo ou de outro, dizia respeito à vida. Lembrava-se muito bem: fora um entusiasmo rico de afirmações de sucesso, de triunfo na realização de grandes tarefas, de insustentáveis compromissos com a Pureza, com a Nobreza, com a Beleza (tudo pronunciado enfaticamente, como se estivesse sendo escrito com letras maiúsculas). Na hora, julgara simples excitação de momento, sem a menor importância. Agora, no entanto, percebia que não se tratava unicamente de bolhas de sabão sopradas para longe apenas porque o vento estava dando naquela direção.

Havia, por certo, alguma coisa por detrás de tudo aquilo. E sua primeira palavra, depois dessa descoberta, foi uma lástima pela situação em que Ivo estava. "Pobre Ivo" - murmurou, de joelhos diante de sua cama. E os olhos, habituados já ao escuro do quarto, procuraram na parede o brilho conhecido do crucifixo de metal. "Pobre Ivo" - tornou a murmurar. E durante alguns instantes ficou imóvel, sem nem mesmo saber o que pensar. Depois, voltou à situação de Ivo e continuou a lastimá-lo.

Estava correndo um sério perigo e não havia como evitar o sofrimento iminente. Possuído de uma grande emoção, pensou quanto era profundamente triste aquela situação: a vida vinha a Ivo em toda a sua grandeza, e ele, pela sua natureza, pelas suas qualidades, podia e merecia aceitá-la nobremente. Todavia, eis que, nessa vida apenas ainda no horizonte, já o tentador se introduzira. E procuraria, agora, dominar tudo, perverter Ivo, deformando o simples oferecimento da vida, a tomada de um contacto no momento das grandes dádivas e dos compromissos decisivos.

Uma tristeza, uma miséria, uma traição com que não é possível pactuar. A obra de perversão e destruição não poderá ir adiante - pensa o padre. Ivo não se perderá daquele modo lastimável, como se perderam tantos outros. Ivo não se perderá porque dispõe de mais recursos e porque, também, por seu lado, ele agora tem mais experiência na direção das almas.

A compreensão da importância e das dificuldades da luta exaltam padre Luís. Está disposto a tudo para não falhar. E, de joelhos diante do Cristo crucificado - desse Cristo que para ele é, acima de tudo, o Cristo em agonia até o fim de séculos - implora que não seja abandonado na sua tarefa e tenha a força e a confiança necessárias para a luta que pressente em toda a sua violência e nas suas imensas dificuldades. Não se ilude: terá que sustentar nos ombros todo um mundo e os ombros de um homem, mesmo os de um padre, são muito fracos. - Qualquer peso os faz vergar até o chão se a mão de Deus não estiver servindo de contrapeso. - Os ombros de um padre, sobretudo os de um padre, talvez de todos os homens o mais fraco, o que mais sente o peso terrível da condição humana...

Nem por um momento se ilude sobre as dificuldades. Sente-se mesmo a presa de uma grande angústia. E desde então até a madrugada que lhe traz enfim o sono, é como se soubesse, se pudesse adivinhar, que numa casa, distante apenas alguns quarteirões, numa cama revolvida pelo desatino, imagens impuras triunfaram sobre todas as proibições e se impusessem a Ivo como o mais irreprimível e legítimo apelo da vida.

***

O excesso de entusiasmo de ambos, nessa noite, fez com que, no dia seguinte, o encontro os decepcionasse um pouco. Especialmente a Ivo que esperara uma Lourdes mais compreensiva, mais à altura do que chamava: o seu drama. A ignorância em que Lourdes se mostrou do que se passara com ele durante aqueles dias de separação, não a soube compreender. Não a queria censurar naquele dia, mas, não pôde deixar de pensar que se mostrara um pouco fria, por demais igual à Lourdes de antes do rompimento.

Por seu lado, Lourdes o achara pouco contente, ainda preocupado com outras coisas. Já que faziam as pazes, já que não havia mais nada, por que persistir naquela atitude antiga? Ou não tinha ficado tão alegre quanto ela? Ou havia alguma coisa nova que não queria dizer por medo de perturbar a felicidade daquele reencontro?

Tanto um quanto outro sentiram alguma coisa destoando no céu aberto que tinham imaginado. Nada de importante, felizmente, e o encontro continuava a ser o grande acontecimento sonhado. Contudo, não fora exatamente como cada um havia imaginado. E não restava dúvida: haviam voltado ambos para casa com uma vaga apreensão.

Assim, já nessa idade, duas criaturas que se reencontram em condições como essa, sofrem da impossibilidade de perfeita compreensão. Mais uma vez, o choque entre o ser imaginado e o ser real, entre as palavras que lhe pusemos na boca momentos antes e as que ouvimos momentos depois, vem revelar insondáveis abismos entre almas as mais próximas. Não é propriamente o amor que é impossível na terra. A comunicação entre os seres é que falha a todos os instantes, o silêncio traindo, as palavras traindo, o mundo inteiro traindo sempre que duas criaturas precisam realmente se entender. O amor não é impossível. Seguramente não o é. Mas, é um milagre - o milagre de um equilíbrio que nada consegue romper, apesar de sua infinita fragilidade.

Naturalmente, se Ivo e Lourdes, ao voltar para casa, pudessem perceber com clareza o que o encontro representara de decisivo para suas vidas, quando a felicidade futura de ambos dependera de terem conseguido entregar, um ao outro, um pouco mais ou um pouco menos do que ia de dolorido e angustiado em suas almas, naturalmente se tivessem uma consciência tão viva do verdadeiro sentido dos acontecimentos que ainda estavam vivendo, teriam chegado desanimados, convencidos de que tudo ficara por se fazer ou de que, o pouco feito, já começava a desmoronar.

No entanto, sentem-se felizes e quase tranqüilos, ansiosos pelo dia seguinte. E os dias passam naquela primeira semana de reconciliação sem nada de decisivo. Apenas, o restabelecimento de um hábito antigo: o de se verem todas as tardes. A alegria ainda é grande para que as pequenas decepções signifiquem alguma coisa. Assim, durante aquela semana, Ivo se sentiu completamente transformado. Não era só a felicidade junto de Lourdes. Ao lado dessa alegria, defendendo-a provavelmente, uma enorme tranqüilidade quanto ao resto. Tinha sido Lourdes, tinham sido as palavras de padre Luís? - Não sabia. Contudo podia garantir que, de repente, tudo como que cessara e as terríveis tentações de antes não haviam reaparecido. Não se tratava de ele ter forças para resistir. Apenas, de elas não aparecerem, de terem como que misteriosamente fugido de sua vida. O próprio sono lhe vinha fácil, é noite - um sono tranqüilo, sem pesadelos.

***

Depois, bruscamente, eis que um dia, já na semana seguinte, o final de que tudo ia recomeçar viera num sonho, a que, ao acordar, não dera grande importância, mas que o perseguira o dia inteiro. E, à noite, já antes mesmo do novo sonho, tão ruim como o anterior, tudo se envenenara na sua alma e, na imaginação, mais uma vez, tinham triunfado as forças do mal.

Acordara, no dia seguinte, humilhado e sem ânimo. Desesperado consigo mesmo, levara se amargurando o dia todo. De que servia rezar, comungar, se era assim, se no fundo dele o que havia era aquilo, aqueles desejos que queriam ser satisfeitos de qualquer modo?

A alguns dias de relativa calma, seguiu-se nova crise. O intervalo seguinte já foi menor. E, em pouco tempo, podia constatar que só havia em sua alma a velha luta que o levara à casa de Mme. Ninon.

A própria Lourdes o tratava, já agora, de modo diferente, cheia de reticências, de pequenas fugas e recusas misteriosas. A confiança das primeiras semanas depois da reconciliação, já não a encontrava mais. Em conseqüência, também ele se fechava, sem confiança no seu amor, sem coragem de falar - guardando para si uma série de coisas que sabia que não devia esconder de Lourdes. No momento, porém, ainda é a outra crise o que mais o preocupa. E não sabe como explicá-la. Talvez tenha confiado demais nas suas forças, no auxílio misterioso que recebeu de padre Luís. Talvez tenha descansado demais, ou esquecido de novo a estranha união que prende o "vigiai" ao "orai" segundo a fórmula que lhe ensinaram.

Não chega a nenhuma conclusão. Sabe só que, agora, tudo é diferente. Confissões e orações não têm o menor efeito. Já nem mais consegue rezar com fervor. Talvez mesmo João tenha razão e aquilo não tenha sido senão uma simples "crise religiosa" - alguma coisa já inteiramente ultrapassada.

De qualquer modo, sente-se diante de um fato consumado. A tentação se instalou de novo nele Os maus desejos vêm, como vinham antigamente. Consegue resistir no início, porém o sono foge logo e as piores imagens povoam sua cabeça, como se ocupassem um terreno vazio e abandonado de há muito. É uma estranha sensação essa - pensa Ivo: ver-se, de repente, como que tomado de assalto por não ter querido aceitar logo o inevitável... Sente-se irritado e seus esforços para reagir lhe parecem inúteis e desprezíveis. Se a própria Lourdes nada pode por ele, que adianta lutar? Para conseguir o quê? E é nesses momentos de fraqueza que os pecados antigos voltam com mais violência, deprimindo-o.

(Mundos mortos, 1937.)

 

O ROMANCE NASCE DO ROMANCE

Falando do romance e de seus problemas, escrevia eu, outro dia, que "o romance nasce do romance". Sinto necessidade de me explicar melhor, tantas as possíveis confusões que a asserção permite conceber.

Quis eu dizer, em poucas e rápidas palavras, que, muitas vezes, não se escreve um romance de uma vez só. Isto é - que o romancista não colhe apenas. Pelo contrário, o romancista planta, tem de plantar muitas vezes, antes de poder colher. A semente, plantada, germina. Então, ao fim de muito esforço e sofrimento, vem a colheita, o resultado final a que ele chega, se for operoso e paciente.

Este, realmente, me parece ser o ponto essencial: o plantio. Porque a semente, se plantada, germina. Deixada a marca, largado o sêmen, o resto vem em seguida - surge o romance. Marca-se o terreno, lança-se a expressão própria, a "virtu" básica de cada um, o único gesto de amor que ninguém conseguirá desenraizar. O desenvolvimento, o resto, segue-se. O romance é a coroação, o ponto final.

A esse respeito, lembro-me de minhas próprias experiências de principiante na difícil tarefa de escrever romance. Quantas vezes não pensei em abandonar um romance, tão fraco me pareceu o "depósito" inicial? Afigurava-se-me tão mal escrito, tão rudimentarmente delineado, que não merecia a menor consideração, nele não depositando eu mais a menor fé. Passei adiante. Fiz por me esquecer dele. Caminhei para cá e para lá. Mudei de eixo. Voltei a antigas tentativas. Tateei, inventei, bordei, recomecei. Idas e vindas... E, um dia, a surpresa: o romance estava diante de mim, vivo, quente, bem maior do que a minha impiedosa crítica inicial sentenciaria. No escuro, o romance crescera. Trabalhado, remodelado, o romance como que nascera. O romance nascera do romance...

O romance nascera do romance. Não conheço outra explicação para o fenômeno. O romance nasce do romance. Tudo mais é confusão, fuga ao essencial. Basta deixar, basta confiar, basta trabalhar, basta esperar: do depósito inicial, aparentemente vão, insosso, inútil (afinal, pensamos, por que não rasgar logo essa tolice?...) surgem os acréscimos de pouco, de quase nada, vem as correções insignificantes, e emerge um belo dia a vida, a obra. Que tínhamos escrito de início? Evidentemente, nada. Ou muito pouco: um quase nada. Que estamos lendo agora?! E o espírito pára, atônito, tomado de inaudita surpresa. O que tínhamos deixado escrito não era nada - quase que não tinha sentido, não possuía vida, não significava coisa alguma. O que agora estava diante de nossos olhos era, evidentemente, outra coisa. Aceitável ou não, texto bem ou mal escrito, grande coisa ou coisa pequena, merecia que nos detivéssemos ante ele. O que sucedera?

Talvez ainda não seja possível dizer com exatidão se chegamos a um resultado definitivo. Talvez, nesse instante de perplexidade e confusão, possamos apenas assegurar que ante nossos olhos alguma coisa está, surgiu, alguma coisa que não existia, alguma coisa grande, pelo menos para nos - alguma coisa que, talvez, vai representar qualquer coisa para os outros. O romance com que sonhávamos, exatamente. O romance que como que surgiu do nada (mal o suspeitávamos possível, realizável...), o romance que "brotou" do depósito inicial que havíamos abandonado, largado, - sem pensar em "remissão" - quase por mero e ridículo escrúpulo intelectual. O romance que, agora, para nós, é muito mais do que uma imposição, é quase como se fosse uma "revelação". O romance que, evidentemente, nasceu do romance sem que nem mesmo o tivéssemos percebido.

(Última hora, Rio de Janeiro, 10 jan. 1977.)