JEREMIAS ASTOR
Mas não era possível descrever toda a fauna humana que Brasílio encontrou na Casa do Povo, como chamava a Câmara. Eram cinquenta e quatro figuras diversas, cada qual com um jeito, uma cara, assentando-se ou se levantado ao comando da intimação do presidente e dos líderes.
Muito mais proveitoso seria contar-se, por exemplo, o que se passava na Secretaria, de onde saíam prontinhos, estandardizados, os pareceres das Comissões. Na maioria, é claro. Na taquigrafia, onde os taquígrafos faziam esforço tremendo, coisa comparável aos trabalhos de algum valentão mitológico, para pôr em ordem as palavras do Inácio Patranha ou do Sinésio Sobrense, ditas de envolta ao emaranhado de ideias confusas, dignas do enunciado; ou dos cochichos da bancada da imprensa, à qual os deputados dedicavam mais atenção do que à fala do presidente.
Você sabe, leitor amigo, o que é a bancada da imprensa? Pois vou dizer-lhe, em poucas palavras: são uns senhores que ficam, em geral, defronte dos deputados. quando eles falam, conversam ou estão calados; que tomam, ou não tomam notas em papel sem pauta, de preferência; que trocam ideias entre si, muito cordialmente, sem dar nenhuma ideia nova em troca da que não recebem; e que, no dia seguinte, a gente toda fica sabendo da opinião que tinham do que se passou na sessão a que assistiram, ou que não tinham e a direção do jornal entendeu que era bom ter.
Entendido? Sim ou não, é isto. E isto quer dizer: “manchetes’, “sueltos”, artigos de fundo, editoriais, “barrigas’, boatos, e tudo o que você vê diariamente, com espantosa regularidade nos jornais. E nem sempre no mesmo sentido, ainda que sempre com bons fundamentos.
Para esses homens se fazem os discursos nas assembleias, ainda que não haja para eles saudação regimental nos cabeçalhos, como não há para os eleitores. A eles se levam todas as notícias: as reais, os boatos, e os “consta”, variedade destes últimos. A eles se dão as explicações das palavras menos pensadas, ou que se julga nem o foram.
E a eles, no dia seguinte, se procura catequizar, se a notícia da manhã não foi favorável. E, conseguindo-se ou não, sempre amigos, hem? Sempre amigos.
Na Imprensa, ou antes, no lugar onde se assentava a bancada da imprensa, havia coisa mais interessante.
Era uma curiosa (se me permite) personagem que se intitulava jornalista, em verdade um “publicador” de escritos (não sei se os escrevia por si próprio) em afamado jornal da Metrópole.
Curiosa. Não há dúvida. Para um retrato, bem entendido. Nunca para uma prosa. Mesmo porque se conversava com ele, quando ele queria, e não a gente; sobre o que ele queria; enquanto queria; enfim, enfim, não lhe digo nada. Conclua.
Era alto, esguio, magro, ossudo mesmo. Tinha uns cinquenta e tantos anos. Talvez sessenta. Talvez mais. Por que não setenta? Faces enrugadas, morenas, flácidas, desbotadas, macilentas. (Perdoe-me, leitor, se carrego as tintas.) Os anos, ou a conversa, que queria sempre ao pé do ouvido, haviam-lhe encurvado os ombros, numa semicorcunda nada simpática.
A gravata borboleta preta, permanentemente, e sempre a mesma, os encardidos contrastando, aqui e ali, com o puído das dobras, realçava a brancura, às vezes duvidosa, do colarinho de pontas viradas, escolhido de propósito para quem não deixava descansar a saliência do corpo hioide, como chamam os doutores ao pomo de Adão, ou maçã de Adão, ou nó de Adão, nó de garganta, nó da goela, ou, simplesmente, gogó.
Tinha predileção pelo marrom. Urucubaca? Mera coincidência, dessas que a vida planta, toda hora, à frente dos homens. E dava-lhe sorte, a ele, a cor da roupa. Ou não seria ela.
Peso, diziam, que dava aos interlocutores, que sempre os achava, por mais voltas dessem, cruzando passeios para o outro lado da rua, fazendo que não o viam, simulando pressa e mais tentativas vãs.
Estava armado de uma bengala, quando Brasílio o viu. E todas as outras vezes. E de uma pasta debaixo do braço, sob a pressão dele, braço, e da bengala. E trajava também um colete branco, bem usado, que também era permanente.
Conservador, parecia, ainda que se dissesse liberal. Mas isso não vem ao caso, porque era conservador nos trajos e liberal em política.
Tipo merecedor de mais reparos.
Nariz judaico, o mais que se puder imaginar; olhos empapuçados, com duas verrugas, uma de cada lado, simetria perfeita; pés compridos, metido num verniz surrado e pontudamente ofensivo, meias não se viu nunca, não que não usasse, mas porque jamais cruzava as pernas, mesmo sentado.
Sempre de pé - era um homem de atitude.
Brasílio não tivera sorte com ele. Não lhe gostara da apresentação física. Nem se interessara por suas conversas. E o resultado é que um dia, solicitado a conduzi-lo até Palácio para uma audiência, Brasílio esquivou-se. O homem - chamava-se Jeremias Astor - apertou-o; Brasílio escusou-se, mas, encantoado, amassado, cuspido (na conversa, Jeremias perdigotava o interlocutor, agarrava-o pela gola do paletó, puxava-lhe a gravata, a manga, dava-lhe tapinhas de repelão e de aconchego etc.), Brasílio acabou negando-se a levá-lo.
Sofreu, então, descompostura como não esperava, nem merecia. O homem desancou-o, oralmente. E mesmo com a bengala nas mãos argumentou, algumas vezes, em tom suspeito.
Brasílio, calado e pálido, ouviu o destampatório. E quando pôde retirar-se, conquistara um desafeto - e algumas indulgências para o juízo final. Justamente.
(Brasílio, 1968.)
A TIRADENTES
Discurso na sessão solene do Conselho Federal da OAB, em 22 de abril de 1974.
Cumpre este Conselho, nesta hora, uma de suas missões mais nobres: homenageia, aere perennius, neste Plenário, a figura legendária de Tiradentes, entronizando a efígie do Mártir, imolado à Liberdade, no pedestal que a História lhe reservou, para o culto das gerações.
Fria, hirta, rude, pelo contraste relembra o herói, sôfrego, vibrante e largo, que encarna e renova os anseios de liberdade, independência e dignidade, que plantou no solo brasileiro.
A História vive e alimenta-se dos mitos que se criam para reavivar ideologias, alentar versões e manter lendas; e poucas são as pátrias que os não inventam para descansar neles sua unidade e vitalidade. O Brasil está entre as que não precisaram buscá-los nos heróis forjados ou manipulados pela propaganda, porque teve o Tiradentes altivo, cavalheiro, firme, impávido, sacrificado no cadafalso, como o tem hoje, vivo, atuante, luminoso, generoso e nobre no altar das comemorações cívicas e no coração da Pátria promissora, que redimiu para os séculos.
Aqui, sobretudo, sua presença incorpora-se fisicamente ao patrimônio desta Casa, de que, em espírito, foi sempre o patrono, se aqui se cultuam e defendem os mesmos ideais que desfraldou entre nós, e pelos quais se deu, até a morte e a execração dos potentados da hora.
A lição que nos legou, de perenidade dos ideais de liberdade, justiça e dignidade, que constituem o cabedal em que assenta nossa Ordem - que os encarna - fez dele nosso patrono imortal.
Advogado, como nenhum, foi desses ideais, tanto e tanto que pereceu por eles, para que lhe sobrevivessem. E advogado que não precisou de investir-se do grau para abraçar a causa, porque a inspiração do seu humanismo lhe apontou à razão o caminho que os séculos marcariam com a luminosidade das estrelas. E advogado que foi defensor, e prova, e sangue, para que se não pusesse nunca em dúvida que, desdobrada a bandeira da defesa, era preciso dar o exemplo supremo do amor, do desprendimento e da intrepidez, da grandeza e do sacrifício, para que ninguém, jamais, tempo afora, descresse dela.
Por isso, Tiradentes, que pairava, em alma, sobre as nossas decisões, quando - em jogo o destino da Pátria - havia que arrostar poderosos, dobrar temores, vencer perigos e decidir para o futuro, é, de agora em diante, a inspiração presente, na efígie que se transfigura aos nossos olhos pela aura de nobreza que o cerca, ilumina e anima.
Dele tivemos a grande lição de liberdade, indelével porque marcada pelo sangue e pela ignomínia, liberdade que não morreu com ele, mas viveu da sua morte; dele, a grande lição de dignidade, que se não vence nem com o sacrifício; dele, a permanente lição de nobreza e a comprovação de que os ideais sobrevivem aos que os pregam e se estendem e eternizam no tempo.
Ao morrer, seu exemplo deu-nos a certeza de que podem morrer os defensores da causa sem que esta pereça, nem fraqueje, antes se engrandeça e renasça do sangue derramado. Como o Cristo haveria de morrer para que vivêssemos. Tiradentes morreu para que nossa liberdade deixasse de ser aspiração de poucos para fazer-se anseio incontido e invencível de todos. E se o sangue de Cristo fecundou o corpo da Humanidade inteira para que germinasse, florescesse e frutificasse no Cristianismo e se redimisse o Homem, o sangue de Tiradentes embebeu o solo brasileiro para que brotasse, enflorasse e crescesse, entre nós, a liberdade e se resgatasse seu povo.
O porte divino Daquele, pairando como arquétipo sobre-humano inatingível, terá sido aos olhos humildes mas altivos do mártir, o exemplo em que se terá inspirado e impulsionado, nos sonhos do patíbulo.
Não é a liberdade força que se domine e vença: obscurecida, às vezes; represada, quantas outras; aparentemente domada, outras tantas; cresce, encorpa, enrija, e salta, de repente, para a luz do dia, que transforma em alvorada ofuscante; e esmaga, cedo ou tarde, inexoravelmente, os que exultaram sobre seu corpo exangue.
Não há desmaios da liberdade a que não suceda, agora, ou logo, o revivescer da liberdade, como não há abusos de autoridade a que se não siga o recrudescer dos anseios de liberdade.
Pode parecer que a liberdade esmorece, bruxuleia, agoniza. Pode parecer que o poder da prepotência se revigora, domina, alardeia e ostenta, soberano e incontrastável. Cantem os dominadores os hinos marciais da vitória sobre a liberdade; e quanto mais o entoem e a pisoteiem, mais sulcam a terra de onde brotarão novos anseios e novas auroras de liberdade.
Quem terá pensado, há 185 anos - senão o louco visionário dos sonhos da liberdade - que a cabeça do mártir tresloucado, erguida, para escarmento, no poste da infâmia, em Vila Rica, viria a entronizar-se no salão mais nobre dos advogados do Brasil, cercada de glória e gratidão?
Quem terá pensado, há 185 anos - senão, em alucinado vanilóquio, o alferes da Inconfidência - que os membros de seu corpo, espalhados em quatro cantos da Colônia, para abater a insânia dos intrépidos e acovardar a tibieza dos pusilânimes, se juntariam, um dia, para fazer-se o corpo mesmo da Pátria, inconsútil e invencível, tão grande que assombrasse os poderosos, tão poderoso que dobrasse os onipotentes, tão potente que rompesse todas os grilhões da opressão?
O exemplo de Tiradentes é a lição diária do advogado, na luta que não cessa, nem cansa, e se confunde com a permanente ânsia de justiça que afaga e reanima o coração do homem.
Quando contemplamos a grandeza da Pátria, vemos que sobre ela se projeta sua imagem, e a cobre qual manto protetor e escudo inquebrantável. Se meditamos na obra que se fez, será ela a projeção dos ideais que sonhou; e se projetamos os nossos próprios sonhos, encontramos neles a transfiguração dos que vimos brilhando na sua imaginação vidente.
Esta Casa não faz, pois, senão corporificar o próprio espírito ao homenageá-lo. Porque é da liberdade que vive o Direito e se nutre a justiça, e não há Direito onde não há liberdade e nem há liberdade onde não há Direito.
Liberdade, Justiça e Direito são trindade humana, de raiz divina, que se transfigura em unidade conceitual incindível, partes místicas do mesmo corpo moral que sustenta Homem e Humanidade.
Os que creram cindi-las, constrangê-las, coarctá-las, pisá-las, vencê-las, cedo as viram romper o cerco da opressão, da injustiça ou da ilegitimidade, que sempre tiveram reinado efêmero, infecundo e vil. Por isso os regimes de violência à liberdade se chamam regimes de exceção, que a regra é a liberdade, a inspiração - a justiça, o destino - o Direito.
Eminentes Colegas,
A Ordem dos Advogados do Brasil rende homenagem eterna a Tiradentes. E coloca-o, nesta sala augusta, ao lado de Rui, patrono do advogado brasileiro.
Tiradentes e Rui: o ímpeto da liberdade, ingênito na alma simples, feito força indomável; e o impulso da liberdade, animado pelo poder da razão, feito arma irresistível; o desvairado amor da Pátria e a iluminada defesa dos seus anseios; o holocausto da vida para remir pelo sangue, e a dedicação da vida para redimir pela inteligência.
Tiradentes e Rui: mito e símbolo de um mesmo ideal, pilares sobre que, nascendo, se fundou a Ordem, e, crescendo, e ampliando-se, se fecunda e vitaliza, para cumprir a missão que, a todo instante, em todos os tempos, lhe coube, cabe e caberá, de baluarte inexpugnável do Direito, da Liberdade e da Justiça.
Missão que cumpriu e cumprirá, com a bênção do Cristo e a inspiração, o anseio e o comando de Tiradentes e Rui!
(Vultos e retratos, 1985.)