Senhor Manuel Bandeira,
Se a Academia Brasileira me encarregou de dar-vos as boas-vindas, não é porque seja eu aqui o mais indicado para fazer o elogio da vossa obra. Os títulos que me valeram este encargo são de natureza afetiva, mas igualmente me desvanecem: dentre os membros desta Casa, sou o vosso mais velho amigo. Nossas vidas se identificaram, no plano da compreensão, da confiança, da estima e da convivência, precisamente a partir do tempo em que ficastes só, tendo perdido os entes mais caros. Eu também era só, porém da solidão de qualquer rapaz de vinte anos que chega da província, com um livro de versos por bagagem, para tentar a vida de jornal e a literatura. A vossa, no entanto, era outra solidão. A vida vos chegava apenas “pelos jornais e pelos livros”. Todas as vossas curiosidades tinham de confinar-se no quarto em que o “menino doente”, e agora de luto fechado, parecia “passar a vida à toa”. Já vos doía repetir aqueles versos escritos seis anos antes, em 1912:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
“Meu verso é sangue”, havíeis dito também, para acrescentar que eles vos deixavam “um acre sabor na boca”. No soneto a Antônio Nobre estava a explicação do segredo:
Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino
A esmorecer e desejando tanto...
Desde 1908, nos versos denominados “Desesperança”, feitos em Teresópolis, havíeis escrito:
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...
Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
— Ah, como dói viver quando falta a esperança!
Tínheis 22 anos. Não se tratava de uma falsa desesperança, de uma imaginária dor. Pouco antes o soneto “Renúncia”, escrito entre aquelas mesmas montanhas, exprimira a vossa resignação:
Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...
Vossa vida, já então, era “reclusa em poesia”, ainda que não escrevêsseis muito, nem amiúde. Não tínheis mesmo consciência de que a visitação do lirismo, que se exprimia nas vossas queixas, fosse o anúncio de um grande destino poético. Fazíeis versos por desespero, “como quem chora”. Não fora o acidente da enfermidade, não teríeis talvez escrito a vossa obra, isto é, a mesma obra, com os seus motivos fundamentais, vividos por experiência direta. Faltaria o tormento de olhar a vida pela janela sem poder tomar parte no voluptuoso tumulto; destarte, não viríeis a descobrir depois dos quarenta anos o reino de Pasárgada – país dos recalques em liberdade, dos antigos desejos recompensados, das alegrias enfim permitidas. País em que quando estais cansado podeis até mesmo ouvir a mãe d’água, na beira do rio, contar-vos as histórias da mulata Rosa...
Rosa aparece mais de uma vez nos vossos poemas. Ela é toda a infância. Ficou entre “as vozes daquele tempo”, vozes para sempre caladas, de parentes, amigos e velhos criados que compunham o quadro dos vossos afetos. Certa noite de São João, ao despertardes a horas perdidas e olhando no céu escuro os balões que passam em silêncio, evocareis os vultos de outrora:
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Com razão escrevestes na “Epígrafe” do vosso primeiro livro, A Cinza das Horas:
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Vossa família deu ao Brasil notáveis magistrados, advogados, médicos, engenheiros e escritores. Pela linha paterna, Sousa Bandeira, como pelo tronco materno, Costa Ribeiro, estais ligado a ilustres estirpes pernambucanas. Nesta Casa já cintilou o elegante espírito de um vosso tio, João Carneiro de Sousa Bandeira; aqui vindes encontrar dois dos vossos primos, Olegário Mariano e Múcio Leão.
Do vosso pai herdastes o talento para as ciências exatas, o gosto pelo estudo das línguas, o instinto das artes e as virtudes morais que fazem de vós, como escreveu Gustavo Capanema – um homem. Acresce que o Dr. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira não era só engenheiro notável: era também, na intimidade, um conversador adorável, com uma extraordinária veia humorística, sabendo dizer uma infinidade de versos e histórias populares com um perfeito dom de imitação prosódica. O elemento folclórico na vossa obra mais recente foi em parte colhido na tradição oral, mas em vosso próprio lar, graças àquele delicioso companheiro. Eu próprio tive a ventura de lhe ouvir alguns motivos do folclore nortista, que ele sabia transmitir com igual comicidade e ternura, como aquele caso do negro fugitivo, vendo por toda parte perseguidores, e cuja obsessão medrosa incorporastes ao ritmo do vosso poema “Trem de ferro”:
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá.
No humour, que se tornou cada vez mais, e mais dolorosamente, ao longo destes derradeiros vinte anos, um dos elementos prodigiosos da vossa poesia, está também a secreta herança daquele mestre admirável, artista sem obra nem biografia, cuja influência enriquecedora, em vosso espírito, me é grato assinalar aqui – e eu sei quanto esta homenagem será grata ao vosso coração. Dele são ainda certas expressões de que usais nalguns poemas, como aquele “Meu Jesus-Cristinho!”, o comovente apelo em diminutivo do agonizante de uremia. Por que não dizer, aliás, que vossa mãe exerceu influência semelhante na vossa expressão literária? Não sei se estou traindo um segredo, mas quando escreveis, na “Contrição”,
Confiei às feras as minhas lágrimas
Meu Deus valei-me
reproduzis, com a força de impulsão poética, o “Meu Deus valei-me!” que tantas vezes ouvistes da boca materna.
A educação cristã que recebestes em vosso lar é o substrato de toda a vossa obra. O desespero da matéria limitada e o angustioso desejo de transfiguração pela graça encontram nalguns dos vossos poemas os mais patéticos acentos, como nessa mesma “Contrição”:
Quero banhar-me nas águas límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdidoConfiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-meVozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.
À crueza da flagelação sucede a purificação pelas “vozes da infância”. Mesmo quando pedis a “estrela da manhã”,
Pura ou degradada até a última baixeza,
será com a recôndita certeza de chegardes, limpo de todas as aflições da terra, até esse “calmo seio da eternidade”. Sabeis que um “anjo moreno, violento e bom – brasileiro” (em que se transmudou a irmã morta) vos acompanhará nessa redentora viagem.
Desde muito cedo, nos vossos versos, podemos encontrar a obsessão da pureza – desde o encontro da inscrição grega da “Antologia”, de que fizestes em 1910 o delicadíssimo soneto:
Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançara descuidosa, e hoje não dança mais...
Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.
A morte a surpreendeu um dia que sonhava.
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava...
Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava...
Seu destino foi curto e bom...
– Não a choreis.
Foi, porém, na vida de Santa Maria do Egito que achastes a mais comovente alegoria da pureza, quando a santa pediu ao barqueiro para levá-la à outra margem do rio:
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
O homem duro fitou-a sem dó.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...
O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo, e
[vou levar-te.
E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade da sua nudez.
Cristão é também o sentimento de fraternidade que vos atrai para os anônimos, os simples e os pequenos, que aparecem com freqüência nos vossos poemas da fase mais recente: a cunhantã de “boquinha tuíra” que “quando se machucava dizia: Ai Zizus!”; o pai Zusé da macumba do Encantado, que, segundo murmuram, virou em água o sangue da moça branca; “Irene preta, Irene boa, Irene sempre de bom humor”, entrando no céu e pedindo “Licença, meu branco!”, mas já tão do céu que São Pedro a acolheu bonachão: “Entra, Irene. Você não precisa pedir licença”; os “meninos carvoeiros” que passam muito cedo a caminho da cidade e para quem parece feita “a madrugada ingênua”; as sereias do Mangue “jogadas pela ressaca nos aterrados da Gamboa”; João Gostoso, carregador de feira livre, que uma noite, depois de beber e cantar, “se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado”; o desmemoriado de Vigário Geral, herói também de notícia de jornal, perdido no mistério de uma extinta constelação e inexplicavelmente encontrado morto; o “marinheiro triste”; as flores murchas, as meninas pálidas, as asiladas que mãos caridosas amortalharam “em vestes tristes”...
Ao cair da tarde
Vós me recordais
– Ó meninas tristes! –
Minhas esperanças!
Minhas esperanças
– Meninas cansadas,
Pálidas crianças
A quem ninguém diz:
– Anjos, debandai!...
O que há de pungente na vossa obra – precisamente o que se exprime por vezes de um jeito exteriormente perverso – é o conflito entre o sentimento cristão e o pudor desse sentimento. Escondeis “o desejo insatisfeito de Deus” sob a máscara de demônio em férias. Vossa poesia nem sempre se dá: nós é que temos de dar-nos a ela, para sentir “tudo o que existe em vós de grave e carinhoso”. A reação do pudor – desse humano carinho – assume de súbito formas agressivas, o que bem se compreende em face da resposta que destes a Peregrino Júnior, em 1926, no inquérito sobre o movimento moderno: “Eu não sou modernista, nem literato, nem coisa nenhuma... Viro poeta quando estou estalando de raiva ou de ternura.” Raiva e ternura pusestes no elogio daquele cacto que “tombou atravessado na rua” e, pela obstrução do trânsito, “durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:”
– Era belo, áspero, intratável.
Quando aos dez anos de idade viestes do Recife (o arrabalde em que nascestes tem um nome evocador: Capunga), éreis um menino inquieto, aplicado, teimoso, de vontade forte e inteligência precoce; Antenor Nascentes, vosso condiscípulo no Ginásio Nacional (hoje Pedro II), assim recorda aqueles anos dos vossos primeiros triunfos:
Bandeira era dos mais vivos do grupo, dos mais brigões; corrigia qualquer erro que se cometesse. Foi com ele que comecei a tomar cuidado com a colocação dos pronomes à portuguesa. Não lhe agradeço este serviço; criou-me um hábito que hoje me impede de colocar os pronomes à brasileira. Seu temperamento já se revelava em pequeninas coisas. Com uns treze para quatorze anos organizou uma espécie de álbum, que denominou Bons bocados e em que havia de tudo: caricaturas de Raul, sonetos de Bilac, autógrafos de Machado de Assis, retratos de literatos notáveis, etc., tudo escolhido com um gosto, uma arte, difícil de encontrar em criança daquela idade. No primeiro ano do curso, Bandeira tirou distinção em todas as cadeiras e ganhou um prêmio. Parece que a situação de “bonzão” desagradou-lhe intimamente. Daí por diante não repetiu mais a proeza porque não quis.
O que queríeis era tirar o curso de engenheiro-arquiteto em São Paulo, com distinção em todas as cadeiras e prêmio de viagem. Aos dezessete anos, em 1902, bacharel em Ciências e Letras, fostes matricular-vos na Escola Politécnica paulistana com esse deliberado intuito. Vossa família era pobre. Tínheis de trabalhar para viver: então, empregado nos escritórios técnicos da Estrada de Ferro Sorocabana, atravessastes um período de árduas experiências. Além das horas de aula pela manhã e das tardes fatigantes no emprego, tínheis à noite o Liceu de Artes e Ofícios, onde aprendíeis o desenho de ornato. Ao fim do primeiro ano da Politécnica, vossos exames foram brilhantes: distinção em todas as cadeiras. Seria a porta aberta para o prêmio de viagem, se houvésseis continuado. No entanto, vosso esforço fora excessivo. No planalto, de temperatura inconstante, os ares garoentos armam traições a certos peitos delicados. Perdestes a saúde. Tivestes de voltar ao Rio de Janeiro, para desde logo começar a longa e ansiosa peregrinação pelos climas serranos: Itaipava, Campanha, Teresópolis; depois o Ceará, em Maranguape, Uruquê, Quixeramobim; depois novamente as montanhas fluminenses. Só em 1913 pudestes vencer as afetuosas resistências maternas e partistes, sozinho, para a Suíça, porto da suprema esperança.
Já na Campanha, durante o ano inteiro que ali morastes, entre 1905 e 1906, preso à cadeira de repouso que conheciam todos os transeuntes do Largo da Matriz, a poesia fizera a sua aparição na vossa vida. Verdade é que aos dez anos de idade escrevíeis quadrinhas satíricas e que até os dezesseis, uma vez por outra, vosso espírito se comprazia na correta metrificação de algum soneto; segundo o vosso próprio juízo, não era nada que valesse a pena. Foi na Campanha e durante os anos seguintes que a expressão poética passou a constituir, com o vosso tormento, “uma coisa só”. Mas no sanatório suíço, em Clavadel – no povoado onde estivera Antônio Nobre, pelas mesmas razões, vinte anos antes – íeis entrar uma nova fase da vossa existência, em todos os sentidos, inclusive no sentido literário. Vossas leituras se enriqueceram de Laforgue, de Rimbaud, dos decadistas franceses, dos futuristas italianos, dos russos, dos irlandeses. Ali encontrastes o poeta húngaro Charles Picker, o poeta francês Paul Eluard e outros intelectuais, de diferentes nações, que a enfermidade reunira na montanha. Apesar do contato com as novas correntes estéticas estrangeiras, o sentimento clássico da poesia portuguesa subsistia, como subsistiu sempre, em vossa obra, como prova o fato de haverdes então escrito o soneto “A Camões”, verdadeiro canto brasileiro de um lusíada:
Quando n’alma pesar de tua raça
A névoa da apagada e vil tristeza,
Busque ela sempre a glória que não passa,
Em teu poema de heroísmo e de beleza.
Gênio purificado na desgraça,
Tu resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça
O amor da grande pátria portuguesa.
E enquanto o fero canto ecoar na mente
Da estirpe que em perigos sublimados
Plantou a cruz em cada continente,
Não morrerá sem poetas nem soldados
A língua em que cantaste rudemente
As armas e os barões assinalados.
Dessa fase do sanatório de Clavadel são também a “Canção de Maria”, as “Cartas de meu avô”, o “Poemeto erótico”, “Natal” e “Alumbramento”.
Com esses e outros trabalhos completastes os Poemetos Melancólicos, que quisestes imprimir em Coimbra: mas os senhores França Amado e Companhia não responderam à vossa carta. Mandastes a Eugênio de Castro os dois talvez mais belos sonetos da vossa obra, “A Camões” e “Inscrição”: também não lograstes resposta.
O ambiente de Clavadel, com seus pinheiros, suas neves, não se refletiu em vossa obra. Em A Cinza das Horas vem apenas um poema com a paisagem que vos rodeava, e é uma paisagem de outono, a estação dos finos crepúsculos pensativos, quando se desfolham os lariços e morrem os doentes graves.
Sobrevindo a guerra de 1914, tivestes de deixar a Suíça, esquecendo no sanatório o manuscrito dos Poemetos Melancólicos, que nunca vos foi possível refazer inteiramente. Alguns dos vossos poemas se perderam.
De regresso ao Rio de Janeiro, podíeis agradecer à Suíça a saúde recuperada e dizer, como Antônio Nobre:
... Benditos sejais vós, Alpes cheios de neve!
Devíeis ainda, por alguns anos mais, observar as cautelas de uma vida frágil, mal acabada de recompor-se; mas, embora guardando nos vossos hábitos a regra do retiro ascético – a que chamastes “perau profundo” –, havíeis purgado a condenação à montanha. Podíeis viver junto ao mar, nas suas areias ardentes:
Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz das minhas melancolias:
Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!
Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!
As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!
Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.
Mar que arremetes, mar que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!...
O “perau profundo” era no Leme, à Rua Goulart, n.o 25. Acompanháveis de longe as agitações literárias. Vosso tio Sousa Bandeira, como acabais de recordar, já vos dera o bom conselho: a técnica do verso deve ser sabida, sem dúvida (e bem que a sabíeis); “quanto à essência, o melhor é pedir inspiração à própria alma”. Zombastes então dos parnasianos, nesse coro de “Os Sapos”, em que pela primeira vez o folclore se identifica com a vossa poética:
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
“Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...”
Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei!” – “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– “A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.”
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo cururu
Da beira do rio...
Perdestes vossa mãe em 1916 e dois anos depois a irmã enfermeira, “a melhor das Marias”, com dizeis na “Canção das muitas Marias”:
................. Maria Cândida
(Mária digam por favor),
Minha Maria enfermeira,
Tão forte e morreu de gripe,
Tão pura e não teve sorte,
Maria do meu amor.
Em 1917 fizestes imprimir em duzentos exemplares os antigos Poemetos Melancólicos no volumezinho de A Cinza das Horas. Era uma experiência da vossa curiosidade. Queríeis saber “como era aqui fora”. Entre as poucas notícias que se escreveram sobre o livro, destaca-se do vosso mestre no Ginásio Nacional, o grande e lúcido João Ribeiro, no seu folhetim de O Imparcial:
A Cinza das Horas, pequenino volume, é neste momento um grande livro. De tal arte nos haviam estragado o gosto com o abuso das convenções, dos artifícios e das nigromancias mais esdrúxulas, que esta volta à simplicidade e ao natural é uma reparação consoladora e saudável. Saindo daquele atordoamento de luzes multicores, de lanternas nipônicas, reentramos com o poeta no frescor ameno das sombras.
Recorda o que diz Carlyle sobre “o inefável da verdadeira poesia”, all inmost things are melodious, e acrescenta: “A poesia dessa espécie, já se entende, não pode ser obtida por formulários, tabelas e por precauções antecipadas de rimas e vocábulos. Rimas e vocábulos? Até idéias de antemão enfileiradas servem aos maus poetas.”
Vosso lirismo, com efeito, trazia de novo a poesia brasileira “à simplicidade e ao natural”. A reação tinha precursores em Marcelo Gama e Mário Pederneiras, como nos demais poetas do pós-Simbolismo, sendo aqueles dois os primeiros que ousaram incorporar o cotidiano ao lirismo, com a utilização de temas até então considerados prosaicos; reação que sob outros aspectos – sobretudo a predominância da música interior – vinha também, está claro, do próprio Simbolismo, com Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Silveira Netto. O grupo do pós-Simbolismo, em torno da revista Fon Fon!, por volta de 1913, é todo um capítulo da literatura brasileira que está por escrever.
Em A Cinza das Horas, entretanto, o lirismo escolhia não só as formas fluidas da expressão, como empregava, também, os modelos graciosos da tradição portuguesa, tudo com a marca inconfundível da vossa personalidade, que era um secreto acento de pudor e ironia:
Donzela, deixa tua aia,
Tem pena de meu penar.
Já das assomadas raia
O clarão dilucular,
E o meu olhar se desmaia
Transido de te buscar.
Sai desse ninho de alfaia,
– Céu puro de teu sonhar,
Veste o quimão de cambraia,
Mostra-te ao fulgor lunar.
Dá que uma só vez descaia
Do ermo balcão do solar
Como uma ardente azagaia
O teu fuzilante olhar.
Donzela, deixa tua aia,
Tem pena de meu penar...
Sou mancebo de alta laia:
Não trabalho e sei justar.
Relincham em minha baia
Hacanéias de invejar.
Tenho lacaio e lacaia.
Como um boi ao meu jantar!
Castelã donosa e gaia,
Acode ao meu suspirar
Antes que a luz se me esvaia...
Tem pena de meu penar.
Vou-me ao golfo de Biscaia
Como um bastardo afogar.
Minh’alma blasfema e guaia,
Minh’alma que vais danar,
Dona Olaia, dona Olaia!
– Meu alaúde de faia,
Soluça mais devagar...
Verdade é que em sonetos como “A aranha”, “D. Juan” e “Mancha”, ainda havia todas as engenhosidades do buril parnasiano, o que sucederia também, no livro seguinte, Carnaval, com certas peças da mesma época, tais “A ceia”, “Menipo” e “A morte de Pan”. Fácil vos seria renegar esses exercícios didáticos, a que pensastes dar, no volume Poesias, em 1924, colocação à parte, sob o título de Pastiches. Entretanto, preferistes conservá-los disseminados em vossa obra, sem nenhuma discriminação particular, como cadernos de estudo entre os manuscritos de uma obra-prima.
Logo em 1919 publicastes o Carnaval, quase todo composto nos dois anos anteriores. Tudo nesse segundo livro (tirado também a poucos exemplares e destinado a um público restrito) é de uma estranha força, com um acento absolutamente novo na deliberada “libertinagem” de composição rítmica. Podíeis desde logo declarar, como viríeis a fazer alguns anos mais tarde:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
[expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
[cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
[amante exemplar com cem modelos de cartas e as
[diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
No Carnaval, havia todas as técnicas, mas em torno de um tema “todo subjetivo”:
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...
Quaisquer que sejam os desenvolvimentos e as transformações, de expressão ou de essência, que apresente depois a vossa obra, foi com esse livro que trouxestes à poesia brasileira uma autêntica mensagem de mistério. A atitude melancólica, do “doente atrás de janelas”, que há em A Cinza das Horas, transfigura-se em sarcasmo de anjo rebelde:
A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
Com tanta paixão diabólica,
Tanta, que se lhe ensangüentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.
O clown lastimoso tem esgares cínicos. Serve-se dos temas da farsa clássica para mascarar a sua angústia. Reclama bacanais em altos gritos:
Quero beber! cantar asneiras!
– Vinhos!... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé, Baco!
Sob essas aparências, quanta austeridade, e que “ar lúgubre”! Antes de acabar o “carnaval”, já se sabia que ele não tinha sido como o de Schumann:
......................... diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
– O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...
Logo nos começos de 1920 partiria o último companheiro do vosso lar – o bom companheiro que também sabia de cor as histórias de Rosa. Na véspera de finados poderíeis dizer a alguém que o tinha conhecido:
Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero,
E em verdade estou morto ali.
Foi alguns dias depois desse último luto que passamos a ser vizinhos, na Rua do Curvelo. Eu ali ocupava um compartimento de fundos com janela para o mar, na “casa do gato cinzento”. Era uma dessas vivendas burguesas que já vão desaparecendo, e onde laboriosas famílias de recursos medianos alugam “quartos sem pensão a cavalheiros”. Os anúncios pedem mesmo: “cavalheiros de fino trato”. Fostes morar, pouco adiante, num magnífico rés-do-chão acavalado sobre três pisos de morro abaixo. Ao estudante Batista esse rés-do-chão se afigurava uma residência de príncipe solitário, com seus belos móveis de jacarandá, suas estantes bem arrumadas, seus objetos de arte, inclusive certo Cristo de marfim à cabeceira. Entretanto, o castelo não tinha cozinha. A minha hospedeira, bondosa portuguesa, que sempre se recusara a fornecer comida aos hóspedes, acudiu ao meu apelo: para o Sr. Dr. Bandeira, ali tão sozinho, sem família, e meu amigo, com muito gosto. Passamos então nós dois, privilegiadas criaturas, a regalar-nos com a mesa que nos preparava D. Sara; e será negra ingratidão se um dia, em nossas reminiscências escritas, não levantarmos um monumento de glória àquelas peixadas, àquelas galinhas da cabidela, àquelas papas, àqueles bifes de cebolada com que a paciente senhora nos compensava da imensa pena de existir.
No vosso rés-do-chão, mais tarde pouso de poetas modernistas que vinham da província – Ascenso Ferreira, por exemplo, fazia desarrumações tremendas – ainda levastes por algum tempo a vida de recluso, porém de recluso que se emancipava. Foi ali que exercestes, por exceção, vossas primeiras atividades de professor, iniciando uma menina, flor da vossa amizade, nas matemáticas, nos idiomas, na história, nas artes, na poesia.
Se a vida “é amarga e triste, e ao cabo dói mais do que tudo”, ainda assim vale a pena. Foi o que vos revelou o Morro do Curvelo. Das vossas amplas janelas, tanto as do lado da rua, em que brincavam crianças, como as do lado da ribanceira, com cantigas de mulheres pobres lavando roupa nas tinas de barrela, começastes a ver muitas coisas. A ouvir também muitas coisas: ao longe, no tumulto confuso que vinha do Catete, da Glória e do Flamengo, a maravilhosa “sinfonia da vida civil”. Entrando na vossa alma, dando-se, pedindo para ser amado, o Morro do Curvelo entrava, humilde, na poesia brasileira. Como de um território mágico, tomastes posse do cotidiano. A poesia não estava só em vós, estava também naquilo que o mundo de em torno vos oferecia. O cotidiano também tem a sua santidade e a sua sublimidade. Até então a vida vos vinha “através dos livros e dos jornais”, por causa do ascetismo da forçosa prisão, o quarto do “menino doente”. O Morro do Curvelo, em seu devido tempo, trouxe-vos aquilo que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir: a rua. Viva, simples e sem história: a rua.
Nalgumas páginas das Crônicas da Província do Brasil, escritas para os jornais (o que representou em vossa existência uma tomada direta de contato com o mundo ambiente), contais muitas das vossas novas incursões com tocadores de violão, poetas, homens de Estado, conspiradores, macumbeiros, pintores, gramáticos e “reis vagabundos”. Aí vamos encontrar os andaimes dos poemas dessa fase inteiramente “oposta” à primeira, depois que a vossa poesia palpou o chão, botou raízes na terra.
Essas crônicas, muitas vezes, são desenvolvimentos temáticos da contagiosa ternura humana que daí por diante se observa na vossa obra. Assim, por exemplo, quando vos referis aos menininhos do Curvelo, que à vossa janela pediam livros das estantes...
– “[...] aquele!
– Aquele é em francês, você não entende.
– Então aquele!
– Aquele é em inglês!
– Não tem figura?
– Não tem figura.
– Deixe ver!
E eu mostrava. Um silêncio.
– Então me dá um biscoito!
– Acabaram-se.
– Então eu esbodego a sua porta”.
A partir desse tempo, quando íeis veranear em Petrópolis tínheis olhos para outros meninos, como os “Meninos carvoeiros”, que passavam de madrugadinha, carregando os sacos remendados, deixando cair os carvões. (“Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido”). O mundo que vos rodeia é bom. Vale a pena existir para ver como os seres se movem, respiram, trabalham, sofrem, riem, dormem. Observais até mesmo as aranhazinhas que no silêncio da noite, pelas paredes do quarto, urdem teias levíssimas, aranhazinhas que tendes “vontade de beijar”. O amor de todas as coisas entra pelo vosso coração: ah, além do vosso sofrimento, havia milhares, milhões de outros sofrimentos! Além do vosso desejo de alegria, havia milhares, milhões de outros seres com o mesmo instinto! O simples pedaço de gesso – “gessozinho comercial” – de uma pequena estátua, fazia-vos
......................................... agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
Tudo merece amor, em si mesmo, pelo simples fato de viver conosco, de ser um fragmento do mundo que nos sustém os pés, que é pouso dos nossos olhos e fonte de melodia para os nossos ouvidos. Na “noite morta / Junto ao poste de iluminação / Os sapos engolem mosquitos”. Sabemos quanto esses bichinhos haviam tomado parte no vosso “carnaval subjetivo”. Agora, o que eles vos despertam, como vigias da solidão, é o pensamento de que nessa estrada deserta, por onde não passa “nem um bêbado”, “há seguramente uma procissão de sombras. / Sombras de todos os que passaram. / Os que ainda vivem e os que já morreram”. Os que ainda vivem! Em vossa poesia, na qual éreis como que a única personagem digna de lástima e simpatia, entram “os que ainda vivem”, mas que por serem sombras merecem dó. Da vossa janela, olhando pelo morro abaixo os quintais da Rua Cassiano, vedes a garotada saltear com assobios e pedradas o balão que “leva tempo para tomar fôlego”. “Quem o fez foi o filho da lavadeira, / Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito”. Era um balão como os outros, agredido a pedras como tantos outros, mas adivinhais com que amor foi feito pelo menino. Acompanhais assim a sua viagem, a viagem que ele fez apesar dos ataques
... subindo...
muito serenamente...
para muito longe...
“Não caiu na Rua do Sabão. / Caiu muito longe... Caiu no mar – nas águas puras do mar alto.” As feiras da cidade, com seu tumulto de donas de casa pechincheiras e mercantes gritalhões, com suas “bancas de peixe” e “barraquinhas de cereais”, atraem os vossos passos; misturai-vos às “burguesinhas pobres”, às “criadas das burguesinhas ricas”, às “mulheres do povo”, às “lavadeiras da redondeza”; os “menininhos pobres” (em torno do “homem loquaz” que apregoa “O melhor divertimento para crianças!”) “fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.” Já agora, não podeis dizer que a vida vos chega “através dos jornais e dos livros”. O povo apareceu na vossa poesia. Não o considerais mais como “turba grosseira e fútil”, como quando, “de dominó negro”, passeáveis de mãos dadas com outro “dominó negro”, ambos com solenidade, olhando com repugnância as “Vênus para caixeiros”, repimpadas nos carros alegóricos. Quando tiverdes de recordar a infância, não usareis de nenhuma generalização abstrata (Fui bem-nascido. Menino...), mas repetireis nomes de bairros do Recife, de rios, de pessoas: D. Aninha Viegas, Totônio Rodrigues. Os pregões
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
voltarão aos vossos ouvidos, como melodias encantatórias. Notais mesmo, de passagem, pormenores etnográficos de que Gilberto Freyre fará com certeza um uso oportuno: “amendoim” chamava-se “midubim e não era torrado, era cozido”. Nesse mesmo antigo Recife “sem história nem literatura”, onde “as famílias tomavam as calçadas com cadeiras, mexericos, namoros, risadas”, despertareis do sono em que “dormem profundamente” os meninos que gritavam
Coelho sai!
Não sai!
A introdução da vida popular na vossa poesia não foi, de resto, um fenômeno de sentimentalismo: foi como que o toque da graça franciscana. Mais do que nunca, lutareis contra os impulsos do sentimentalismo: o humour vos impedirá de “chorar de manso e no íntimo”, como antigamente. Tão lúcida é agora a vossa vontade de reação viril, que até mesmo os soluços serão “lágrimas”, como no “Último poema”, que desejaríeis
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Nesse poema, que encerra o volume Libertinagem, estão os “motivos” mais constantes da vossa obra poética, toda a essência da vossa mensagem, a síntese do vosso “cotidiano trágico”. Cada palavra ilumina um recanto obscuro do “perau profundo”: terno, simples, ardente, pureza, chama, diamante, límpido, paixão, morte: morte sem explicação.
A Academia Brasileira, entretanto, não recebe em vós tão-somente o grande poeta de canto inconfundível; abre também as suas portas ao filólogo, ao crítico de arte e ao historiador literário, sempre rico de saber e de sensibilidade, a toda parte levando uma clara paixão de humanista.
Como filólogo, estais consagrado até mesmo pelos dois maiores mestres da moderna lingüística entre nós, Antenor Nascentes e Sousa da Silveira, nos escritos que há pouco, no Jornal do Commercio, dedicaram, respectivamente, ao vosso estudo sobre as Cartas Chilenas de Tomás Antonio Gonzaga e às vossas duas antologias, a da Fase Romântica e da Fase Parnasiana, precursoras das Obras Completas de Gonçalves Dias, cuja edição comentada tendes em preparo.
Como crítico de arte, mostrais particular afeição pelas velhas igrejas coloniais. Muito escrevestes sobre a Bahia e sobre a região ouro-pretana, publicando mesmo um perfeito Guia de Ouro Preto. Da vossa vocação de adolescente, a arquitetura, guardareis mais do que nostalgia: uma espécie de amoroso “complexo”. Ao visitardes a Bahia em 1926, dizeis que em vós “estremeceram aquelas fundas raízes raciais que nos prendem ao passado extinto”; magia dos sobradões portugueses, das frontarias conventuais de austera simplicidade. Fazeis então a apaixonada defesa dessas formas de arte arquitetônica, em que cada vez menos se inspiram as nossas metrópoles; acentuais as “linhas simples e poucas” de que se serviam os nossos primitivos construtores, “dispondo dos claros com uma ciência ou intuição admirável da assimetria”. Também na vossa obra poética a expressão formal escolhe linhas simples e poucas; e com toda a ciência dispondes da assimetria rítmica. Tomais também a defesa do barroco, que esplende no interior de nossas igrejas; escreveis que “em nossa terra exuberante, onde a natureza dá o modelo do mais fantástico capricho de curvas, o barroco é o grande estilo religioso”, foi ele que se adaptou à natureza e à vida de imaginação dos colonos peninsulares.
O antigo estudante de arquitetura, quando vai a ares em Campanha, Quixeramobim ou Pouso Alto, guarda nas retinas os volumes nobres das mais humildes igrejas, e a sua revolta explode contra a lastimável importação de estilos sem familiaridade com o ambiente brasileiro: “Todos esses nossos góticos de meia tijela não valem a igrejinha pobre de Mangaratiba ou outra qualquer capelinha de arraial.”
Inspirado no mesmo gosto da tradição são tantas outras linhas-mestras do vosso espírito: nas questões de etnografia, de artes plásticas ou de lingüística. Por ocasião do movimento moderno, entre os anos de 1920 e 1926, vossa posição ficou bem definida na entrevista com Peregrino Júnior: “Os vanguardistas brasileiros divergiram sensivelmente das vanguardas européias. É visível em todos a vontade deliberada de fazer arte brasileira.” À pergunta sobre se existia uma arte brasileira, respondestes sem hesitação: “Para mim existe uma arte brasileira, e não é de agora. Alencar, Macedo, Manuel de Almeida fizeram romance brasileiro. Castro Alves, Casimiro, quase todos os românticos fizeram poesia brasileira.” Em seguida, referindo-vos à questão da língua, dissestes de modo lapidar: “A poetas e escritores compete o dever de trabalhar artisticamente os brasileirismos, até dar-lhes foros de linguagem literária.” Os modernos, restabelecendo a tradição brasileira de José de Alencar e dos românticos, procuraram introduzir nas formas líricas ou expositivas aquele mesmo saboroso jeito da nossa língua viva familiar e popular, sem perder de vista que a língua portuguesa é uma só. Tanto no Brasil como em Portugal ela obedece ao seu natural instinto de transformação, apesar de haver de vez em quando, lá como aqui, quem prefira escrever em língua morta. Aliás, esses clérigos do enganoso purismo (a pureza está longe de ser imitação formal) não são de todo inúteis com seus exercícios didáticos, pois nos casos de aguda corrupção idiomática servem para recordar o armário dos antigos remédios caseiros. Em muitas páginas da vossa obra, espelha-se o aparente conflito entre a língua culta e a língua popular, como se tivésseis mesmo o propósito de oferecer-nos os dados objetivos de um problema; a chave é bem simples, já no-la tinha indicado Júlio Ribeiro, como lembrastes em vosso discurso: “A gramática não faz leis e regras para a linguagem; expõe os fatos dela.” Ao filólogo, portanto, cabe encontrar a unidade orgânica de todo esse vasto material, de léxico e de sintaxe, que o povo incessantemente cria e incessantemente transforma; assim como ao artista compete acomodar as necessidades da linguagem com a tradição do idioma. Não exercessem uns e outros essa função superior, seriam simples escravos de caprichosas desviações transitórias, de caráter local e até individual; acabaríamos todos, sem nenhuma capacidade de coerência e depuração, a falar como aquela indiazinha do vosso poema, a “Cunhantã” de boquinha tuíra, que quando se machucava dizia: “Ai Zizus!” Ou a exprimir-nos como os irmãozinhos de certo subúrbio, que “ensaiavam cheganças para o Natal” e, segundo o vosso testemunho, dialogavam assim:
O Menino Jesus – Quem sois tu?
O preto – Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo
[do rebolo. Quem sois tu?
O Menino Jesus – Eu sou o fio da Virge Maria.
O preto – Entonces como é fio dessa senhora, obedeço.
O Menino Jesus – Entonces cuma você obedece, reze aqui um terceto
[pr’esse exerço vê.
Senhor Manuel Bandeira,
Sabeis com que emoção, certa noite, Múcio Leão, Cassiano Ricardo e eu fomos procurar-vos na vossa casa – que já não é mais no Morro do Curvelo, porque o vosso “cotidiano” se espalhou por adjacências de morro abaixo, na planície da Lapa, especialmente sonora de “sinfonias civis”. Íamos pedir-vos que escrevêsseis ao Presidente da Academia Brasileira a vossa carta de candidato. Em pijama, com o corpo esguio a marcar angulosidades minuciosas, tivestes um recuo de hesitação; não era uma hesitação de fundo antiacadêmico, porque sabíeis que aqui dentro só viríeis encontrar companheiros devotados para uma função que é a vossa: trabalhar pela cultura brasileira. Talvez porque fosse uma noite de calor e estivésseis à frescata, naquele vosso ambiente de intimidade que guardou sempre um ar afetuoso de enfermaria, ficastes gravemente assustado com a expectativa de envergar o fardão regimental. Teimastes na recusa: não era possível; e nós teimamos em nossos argumentos, que acabaram por vencer a vossa indisposição para este gênero de indumentária. No entanto, não ignorávamos que tínheis lá as vossas boas razões; com efeito, que fariam os meninos de outrora, do Morro do Curvelo, se vos vissem entrar em casa com tal solenidade, metido nestes ouros aparatosos? “Es-bo-de-ga-vam a vos-sa por-ta!”
A mim – habituado embora, por deveres de carreira profissional, a vestir um fardão, ainda que com muito menos bordados – o que me assustou foram as galas de um fardão, de certa maneira, também regimental: o da linguagem. Ao saber que deveria saudar-vos aqui em nome da Academia, pensei no indispensável tratamento de “vós”, que seria preciso dar ao mais íntimo dos meus amigos. Pensei também num certo quê do estilo oratório em tais cerimônias. A Academia é ciosa dos seus usos – no que faz muito bem – e não me concederia que de outro modo me desempenhasse do honroso encargo. Não fora o perigo das reformas, a que esta corporação é igualmente arredia, e eu teria apresentado um projeto revolucionário: para que em certos casos, a exemplo deste, a gente pudesse falar na terceira pessoa – como na vida, como na vida brasileira. Assim eu não me afligiria com o imperioso “vós” e diria o brasileiríssimo “o senhor”, que no íntimo escamotearia, substituindo-o pelo “você”, tão nacional e tão natural entre amigos.
Fica-me no espírito, por isso, a incômoda sensação de ter calado coisas que eu sei mas que só poderia dizer de outro jeito, o único jeito com que a respeito da vossa vida e da vossa poesia sou capaz de exprimir
Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso.
Quis o destino que eu também fosse fazer peregrinações pela serra, anos a fio, à procura de “melhores climas”. Numa das visitas que então me fazíeis, pelo verão, conhecestes Pouso Alto, cujas andorinhas se queixavam, nos fios telefônicos da estrada deserta, de “passar a vida à toa”. Ali escrevestes aquele poema em que lhes respondeis à maneira de consolo:
..... minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
Não passastes a vida à toa, à toa. Nem eu também, a quem Deus reservou a alegria de receber-vos nesta Casa. Como São Pedro à porta do céu, onde foi bater a velha Irene do vosso poema,
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
eu agora poderia dizer, mas por outras razões, que são as razões da vossa grandeza de homem e de poeta:
– Entre, Manuel. Você não precisa pedir licença.