OS BIÓGRAFOS E A BIOGRAFIA
Na biografia como na história, muitos fatores concorrem para a precariedade e a falibilidade dos julgamentos e das observações na pesquisa da verdade em torno duma vida. Se os indivíduos mudam e são contraditórios, os biógrafos, diferentes entre si - como são todos os homens - jamais conseguirão ver e julgar de maneira igual determinado fato. Incapaz de sair de dentro de si próprio, incapaz de se despojar do seu “eu”, cada biógrafo o apreenderá através do seu temperamento, e este, afinal, acabará por se refletir sobre o seu trabalho. Ainda mais: em consequência dessas diferenças, que separam um biógrafo de outro, aquilo que um terá como essencial, outro talvez julgue supérfluo, ou secundário. Daí as divergências, as discordâncias, as discussões. Poderemos pender para este ou aquele lado, julgar melhor esta ou aquela interpretação, preferir esta ou aquela biografia. Mas, ser-nos-á dado afirmar, com segurança, que a verdade está aqui e não ali?
Para fixar as maneiras diferentes por que o mesmo acontecimento pode ser visto por duas pessoas, Anatole France lembra o episódio evocado por Louis Bordeau sobre o sucedido a Walter Raleigh, que, preso na Torre de Londres, se ocupava em escrever a segunda parte da sua História do Mundo. Interrompido certo dia pelo barulho duma querela, que se iniciava sob as janelas da prisão, Raleigh acompanhou com o olhar atento os incidentes da briga e acreditou tê-la fixado perfeitamente. No dia seguinte, tendo conversado sobre o ocorrido com um dos seus amigos, também testemunha do fato, e que nele havia até tomado parte ativa, foi por ele contestado em todos os pontos. Refletindo então sobre a dificuldade de conhecer a verdade sobre os acontecimentos remotos, quando se pudera enganar sobre o que ocorria sob as suas vistas, lançou ao fogo o manuscrito da sua história. (1)
Não aconselhamos aos historiadores que queimem as suas histórias, nem aos biógrafos que atirem ao fogo as suas biografias. Até porque, no episódio, se há verdade, há também exagero. Desejamos apenas mostrar quanto terá de ser relativa a verdade contida em qualquer biografia, que represente tentativa de interpretação e compreensão duma vida, pois será bem pouco provável conseguirem dois autores percorrer sempre o mesmo caminho e chegar a conclusões idênticas.
Nem é outra, aliás, a causa, pela qual vemos o mesmo homem ser julgado de modos inteiramente diversos por autores perfeitamente honestos e sequiosos de encontrarem a verdade. Quem se poderia esquecer, no assunto, de Maquiavel, que sugeriria a um dos seus biógrafos, possivelmente atormentado ante a incógnita, a afirmação de não haver “um grande assunto sobre o qual o acordo tenha sido possível”? (2) Não nos mostra Scherer como Ranke, Gervinus, Macaulay e Frank jamais se puderam conciliar em torno da personalidade do autor de O Príncipe? (3) Aliás, é o mesmo Scherer quem, falando de Sainte-Beuve, recorda que “ele sentia que todo julgamento é necessariamente parcial e provisório, e que o único meio de o tornar menos imperfeito é retificá-lo, completá-lo, e, para isso, a ele voltar, uma vez, duas vezes, ininterruptamente”. (4) Mas, por mais que o biógrafo volte sobre os seus próprios passos e retome a figura do biografado, estudando-a e analisando-a nessa ânsia de se aproximar o mais possível dum ideal de verdade e de perfeição, jamais alcançará deixar de vê-la e julgá-la despido do seu temperamento, da sua maneira de encarar as coisas e os homens. Disso, exemplo típico é o de Metternich, em torno de cuja personalidade se desavêm escritores franceses, austríacos e alemães, todos eles possivelmente honestos, mas involuntariamente dominados pelo meio, que lhes formou a mentalidade.
Como escrevemos de certa feita, os biógrafos são vidros de graus diferentes. Graus representados pela maneira de sentir e compreender de cada qual, e que se reflete em qualquer trabalho histórico, pois ninguém pode fugir a essa contingência. Por isso, Voltaire, a propósito das críticas de Nordberg, ex-capelão do rei, à Histoire de Charles XII, escrevia a Schulenbourg: “Tenho medo, na verdade, que o capelão tenha algumas vezes visto as coisas com olhos diferentes daqueles dos ministros, que me forneceram os meus materiais”. (5)
E é justamente pelo fato de ver “com olhos diferentes” que cada biógrafo, se confrontado com qualquer outro, transmite imagens distintas. Do mesmo modo que máquinas fotográficas munidas de lentes de refração diversa produzirão da mesma imagem fotografias desiguais. Realmente, em última análise, quando lemos uma biografia não fazemos mais do que ver a vida duma personalidade através dum biógrafo, e com todas as deformações, coloridos, restrições, e omissões daí decorrentes. E isso embora o biógrafo busque interferir o menos possível e se esforce, sinceramente, para não alterar a imagem do biografado, tal como tenha existido.
De qualquer forma, porém, o autor estará sempre presente, e a biografia sofrerá dele o reflexo do seu temperamento. Littré, falando do perfil de Plutarco feito por Amyot, lembra esta opinião de Sacy: “Amyot não tomou a fisionomia de Plutarco: deu-lhe a sua”. (6) E, com intensidade maior, ou menor, é o que acontece em todas as biografias. Poderemos, no entanto, dizer que o perfil de Plutarco esboçado por Amyot é menos verdadeiro do que o traçado por Langhorne ou Ricard? De que elementos disporíamos para afirmá-lo?
Realmente, essa diversidade nos modos de considerar e ver uma individualidade constitui contingência inseparável da biografia. Umas poderão aproximar-se entre si e ter pontos de semelhança; outras diferirão inteiramente. E todas poderão ser honestas e representar trabalho de pesquisa e de investigação. Lemaître, externando-se sobre divergências profundas em torno de Napoleão, não se eximia de escrever: “Isso prova apenas que há duas maneiras de se representar a pessoa e a obra de Napoleão. E há uma terceira, mitigada e temperada: a de Thiers. Há uma quarta. Há outras. Há mesmo a do velho Dupin, esse chevreuil dos vaudevilistas, a quem se perguntava se vira o imperador: ‘Sim, respondia, eu o vi. Era gordo, de aspecto comum.’ Nada mais. E todas essas maneiras são boas”, conclui Lemaître. (7) Porventura, seria aquele velho Dupin, para quem o Imperador não passava dum homem gordo e de aspecto comum, menos sincero do que Heine, cuja imaginação ficaria até à velhice impressionada pela figura de Napoleão, que vira na infância? Poder-se-ia mesmo dizer que qualquer deles fosse mais verdadeiro do que o outro, ou teremos de reconhecer que, apenas, graças a uma divergência de temperamentos, cada qual vira “com olhos diferentes”?
Isso não significa a inexistência da verdade ou que não a devamos procurar infatigavelmente. Até porque, aproximar-se dela o mais possível é a primeira tarefa do biógrafo. Revela, porém, que além de não possuirmos um ponto de referência capaz de nos proporcionar a certeza de a havermos encontrado, ela ficará sempre sujeita à interpretação e às mutilações decorrentes da tendência do biógrafo. Pierron diz de Tácito que “em toda a parte, e sempre, ele acredita no mal: é a sua regra”. (8)
Macaulay afirma não haver retrato que seja igual ao original. É o que também sucede nas biografias. Mas, ele próprio, ante essa intangibilidade da perfeição, nos aconselha: “Assim como não há retrato que nos possa oferecer a verdade em toda a extensão da palavra, também não há história que esteja nesse caso; mas sempre serão os melhores retratos e as melhores narrativas aqueles nas quais certas partes da verdade se nos apresentem de tal modo que produzam da melhor maneira o efeito do conjunto”. (9) Cabe, porém, acrescentar que assim como um retrato nunca será perfeitamente igual ao original, oferecendo-nos a verdade em toda a extensão da palavra, também jamais dois retratos, ou duas biografias, por autores diferentes, serão iguais entre si. Ambos, no entanto, poderão ser honestos, pois o que ressai dessa variedade e diversidade, que existem até entre biógrafos igualmente informados e escrupulosos, é justamente a impossibilidade de vermos qualquer fato, e reproduzi-lo, senão através das nossas ideias e dos nossos sentimentos.
Realmente, sendo impossível reproduzir-se integralmente a vida de um homem, enquanto um biógrafo dará maior relevo a este ou a aquele aspecto, outro acentuará passagens diferentes, embora ambos conheçam perfeitamente o assunto e tenham a convicção e a preocupação de se subordinarem à verdade. E como poderia deixar de ser assim se em cada biografia se terá de refletir, com maior ou menor intensidade, o próprio temperamento do autor?
Aliás, nesse estudo da variação dos nossos julgamentos sobre a mesma individualidade, é necessário observar-se a influência exercida pelo tempo. Não só pelos novos elementos, que, por vezes, nos proporciona, senão também pela ação que exerce em nossa maneira de considerar a vida de qualquer homem. De fato, três fatores, principalmente, concorrem para modificar, através do tempo, o juízo sobre determinada personalidade: a) aparecimento de novos documentos; b) ampliação da perspectiva; c) alteração dos nossos critérios de julgamento.
Portanto, excetuado o primeiro caso, no qual a imagem do biografado, tal como emerge dos documentos, sofre substancial modificação devido ao concurso de novas informações, nos demais varia, apenas, a nossa visão, ou o nosso critério.
[...]
(1) A. France, Oeuvres complètes, VI, p. 440.
(2) Gautier de Vignal, Maquiavel, p. 7.
(3) Scherer, ob. cit., VI, p. 99.
(4) Scherer, ob. cit., IV, p. 110.
(5) Voltaire, ob. cit., p. 6.
(6) Littré, Littérature et Histoire, p. 59.
(7). Lemaître, ob. cit., IV, p. 185.
(8) Pierron, Histoire de la Littérature Romaine, p. 598.
(9) Macaulay, Vida de políticos ingleses, p. 348.
(A verdade na biografia, 1945.)
O SERTÃO E O NEGRO
O sertão não foi hostil ao Negro. A sua organização econômica, no entanto, repeliu o escravo negro. Primeiro associado ao açúcar, depois às minas, e mais tarde às plantações de café, o escravo africano, dentro da economia rudimentar das caatingas e dos campos de criação, foi um elemento deslocado. Para isso concorriam múltiplos fatores. Primeiro o seu alto preço, em desacordo com a pobreza das explorações da região. Depois a própria natureza dos serviços locais, reclamando apenas limitado número de trabalhadores afeitos ao conhecimento geográfico dos tabuleiros sem fim, e destinados a uma constante mobilidade no rastro dos animais tresmalhados. Por último a impossibilidade duma severa fiscalização, como a que exerciam, nos canaviais e nas minas, os feitores atentos. Tudo conspirava contra o regime da escravidão negra. Caro, ignorando a região, sempre disposto à fuga, o negro, não oferecia, no sertão, as mesmas vantagens que dele fizeram o trabalhador indispensável do litoral. Excetuadas as zonas auríferas e diamantíferas, a cuja exploração se adaptava perfeitamente, não houve para ele um lugar na vida sertaneja. Um ou outro existia, desempenhando funções de criado, ou de lacaio. E quando muito foi um elemento de passagem, transitando pelas estradas do interior como tropeiro ou carregador, ou como parte mínima de alguma bandeira. Nas demais atividades, o precioso colaborador do branco foi o índio, e depois, ao se alastrar a miscigenação, o mameluco ou curiboca. Estes foram os que fizeram o sertão, integrando-se na sua vida, amando-a, e dela tirando os seus hábitos de sobriedade e de energia, distantes do luxo do litoral e ambicionando apenas o domínio de largas áreas de terras, sujeitas ao seu poder de mando incontrastável. A pobreza e o isolamento enrijaram a fibra do sertanejo. Segregado, desconheceu o que fosse a sujeição a outra vontade além da sua. Esparso pelas fazendas e sítios de população escassa, e entre os quais se interpunham léguas e léguas de caatinga, ignorou as vaidades da emulação, os desperdícios da ostentação, que exigiam largos lucros, empréstimos, sacrifícios financeiros. Adaptou a sua vida às pequenas margens de ganho. Trocou o fausto pelo prazer do mando.
Desse sertão de economia modesta, de hábitos simples, a região mais característica da Bahia, nos primeiros séculos, foi o São Francisco. Divorciado do litoral, desconheceu as suas misérias e as suas grandezas. E aí, onde a riqueza não existia, a lei também foi uma simples ficção, que os homens preferiam relegar totalmente. A pobreza era compensada pela liberdade. Mas, nem por isso a vida deixava de ter o seu encanto: terra de ninguém, sem lei e sem Rei, nela, ao mesmo tempo, refugiavam-se bandidos perseguidos pela justiça, e homens de bem, austeros, graves, honestos, evadidos dos desregramentos das cidades. Dela diria, em 1704, o padre Antônio de Sam Joseph: “não quero ficar com escrupulo de admitir que são as familias do Rio de São Francisco e certões por onde andei muito poucas, e os moradores que nelle se achão solteiros, e não dos mais rudes que do Reino passão para esta America, por que hoje se acha o Brasil em tal estado que a melhor sahida que podem ter os homens que mais se prezão de entendidos e bem criados é o retiro do Certão do Rio de São Francisco donde trabalham mais a cavalheiro e com mais lucro do que nos Engenhos, curraes de tabacos e negociação de mercancias.” (1) E, lado a lado dessas virtudes, que narra o religioso, era também o “receptaculo de facinorozos de toda a America”. Em 1715, escrevia o vice-rei Pedro Antônio de Noronha: “He certo também que as povoações deste rio [São Francisco] que todas constão de currais a que chamam citios, ou algüas moradas separadas com grandes distancias umas das outras, he covil e azilo de todos os delinquentes deste Estado”. (2) Imperava a lei dos contrastes.
A todos, porém, fossem bandidos ou homens de bem, marcava um traço comum - a pobreza. A pobreza da economia incipiente dos currais. Nesse ambiente não poderia medrar o escravo-negro.
Duas forças atraíram o homem, fazendo-o desprender-se da praia para alcançar o interior da Bahia; ainda desconhecido - a bandeira e a criação de gado. Em ambas o negro, pode-se dizer, esteve ausente.
Da bandeira, que foi o primeiro condutor de homens brancos para as regiões centrais do país, o negro não participou. Não faz muito que Cassiano Ricardo, contestando Afonso Taunay e Alfredo Élis, afirmou a presença do negro nas bandeiras paulistas. O poeta paulista poderá ter razão se quiser dar a essa presença um sentido matemático, absolutamente rigoroso. Fora daí, estará em equívoco. Na bandeira, o negro é um elemento imponderável. Se um ou outro participou de alguma das expedições, pouco importa. Jamais, porém, terá tido a sua contribuição um vulto capaz de a fazer notada no panorama da história. O conquistador português era bastante inteligente para compreender que o negro não tinha as qualidades necessárias para ser, no interior do Brasil, um varador de terras, vencendo obstáculos, transpondo rios, enfrentando perigos e provações, em que o índio já estava perfeitamente amestrado, e com o qual o negro, nesse trabalho, não podia concorrer. Naquele a educação formara um sexto sentido, o sentido da defesa diante de todos os perigos dessas travessias ousadas pelo coração do país. O índio, melhor e mais barato, era o colaborador imprescindível das bandeiras. Nelas o negro, se existiu, foi como parcela mínima, insignificante. A sua presença, ignorada pelos cronistas, não terá sido de modo a marcá-las com a sua cor e os seus hábitos. Terá sido a presença de um elemento falhado, fadado a desaparecer.
Matias Cardoso, ao chegar à Bahia, em 1690, traz “mais de cem homens brancos com os seus oficiais de que se formou um regimento e grande número de índios armados para aquele efeito”. Nenhuma referência ao elemento negro. A bandeira Adorno tem 150 portugueses e 400 índios auxiliares. Também Cristóvão de Barros Cardoso leva 150 brancos e mamelucos e... 3.000 frecheiros tapuias. (3) Assim são as bandeiras. Brancos, mamelucos e índios são os elementos que as compõem. Nos índios repousa a sua força numérica, a sua eficiência militar maior, não só como estrategistas, pelo conhecimento profundo do terreno em que vão lutar, mas também pelas virtudes guerreiras, pela bravura com que se batem. Sem eles a conquista seria impossível no momento em que se realizou. Ao índio, o único elemento a opor eficientemente, é o próprio índio. Por isso Bartolomeu Gonçalves ao chegar à Bahia, contando o ataque realizado pelos selvícolas no São Francisco, dá conta de ter Francisco Dias d’Ávila marchado com “40 homens brancos e mamelucos e poucos índios por se não fiar do gentio que tinha temendo a sua trahição e que por não levar índios sem os quaes se não pode fazer guerra ao Gentio Barbaro não sabia se teria bom sucesso”. (4) Sem o índio era impraticável desbravar o sertão. O negro, porém, sem oferecer, para a empreitada, as vantagens deste, ficaria adstrito às plantações do litoral, onde era incomparavelmente maior o seu rendimento econômico.
Também na criação de gado não prosperou o trabalho do negro escravo. O fato é fácil de explicar. Assentava, principalmente, em razões de ordem econômica. A criação, além de não suportar as despesas exigidas pelo regime escravo, fazia-se fora das vistas dos donos das extensas sesmarias, quase todos eles residentes nas cidades. Adotara-se por isso o sistema fácil da parceria. O vaqueiro não era um assalariado. Era um sócio. Da bezerrama “ferrada” em cada ano, 25% lhe pertencia como remuneração dos seus serviços. Dele, no entanto, se exigiam duas qualidades imprescindíveis: fidelidade absoluta e domínio completo da região. Eram virtudes que só o tempo poderia criar. Aquela vinha duma moral fortemente arraigada na tradição. Esta se adquiria numa existência toda ela vivida no rastro do gado perdido no despotismo da caatinga. O negro, emigrado da África ou nascido no litoral, não se integraria nesse regime. Era antes um sistema de colaboração econômica do que de subordinação. E o escravo negro somente em organizações de total subordinação poderia compensar o seu alto custo. No sertão, porém, a própria natureza do serviço, impedindo qualquer fiscalização, reclamando o trabalhador livre, a percorrer por sua conta, de dia ou de noite, mas sempre quando lhe apraz, o rebanho sob a sua responsabilidade, era incompatível com a escravidão negra. Por isso o negro aí como que não existe. E se aparece, excepcionalmente, não tem significação social. Somente as fazendas mais ricas, as casas mais afortunadas, se podem dar a esse luxo de possuírem escravos negros, dedicados aos serviços mais ou menos ligados à vida doméstica. Estes mesmos são em número reduzido. O próprio Garcia d’Ávila, ao alforriar, por testamento, alguns cativos negros, não se esquece de determinar que “assistirão na Fazenda em que estão do dia do meu falecimento a um ano para mais comodamente quem suceder na dita fazenda se provar de outros que nela ponha”. (5) E eram apenas quatro escravos e duas escravas, cuja falta temia o testador que desorganizasse a economia da sua fazenda. Pelo mesmo ato foi libertada a família de Francisco de Guiné, residente no Curral de São Tomé. Também o mesmo prazo de um ano lhe foi imposto.
Escravos negros como que só existiam, pelo menos em número ponderável, nas áreas próximas do mar, nos engenhos, nos currais de tabacos; nas fazendas de farinha: Por isso, quando Francisco Dias d’Ávila, em 1741, pede a dispensa dum imposto, alegando as grandes despesas a que é obrigado com a sustentação de escravos, apesar de grande criador de gado, refere-se apenas aos escravos que “precariamente conserva em um engenho e duas fazendas de farinha”. (6) Nas fazendas de criação, mesmo pleiteando um favor régio, ninguém se atreveria a declinar a existência de escravos negros.
Assim, ressalvadas as manchas das minas, o sertão se formou quase sem a contribuição do negro. Ainda hoje, quem o percorrer, há de notar como apenas dentro do raio de expansão de alguma antiga mina se assinalam os tipos étnicos de caracteres africanos. Fora daí o que domina é uma população clara, a pele tostada pelo sol, muitos de olhos azuis, o cabelo liso, os traços finos e livres do exagerado prognatismo dos mestiços descendentes de negro. Euclides da Cunha, que foi o nosso melhor observador do sertão, notou que do forte cruzamento de brancos e índios despontara “uma raça de curibocas puros quase sem mescla de sangue africano”. (7) Fixara-se no homem como que “feito por um molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, quase a mesma tez, variando brevemente do mameluco bronzeado ao cafuz trigueiro, cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética, e os mesmos caracteres morais espelhados nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes”. (8)
A ausência do negro no sertão deu a essa região baiana a sua fisionomia peculiar, diversa da região litorânea. Separa-as a distância racial. Entre as populações de uma e outra região existe o desajustamento de duas culturas diversas, formadas por fatores étnicos e econômicos diferentes. Se no sertão, afastadas as zonas das minas, o índio foi o elemento quase que exclusivo no cruzamento com o branco, no litoral, ao lado do índio, tipo predominante foi o negro. Mas, se não bastassem essas divergências étnicas, não nos deveríamos esquecer que uma e outra se desenvolveram dentro de regimes econômicos completamente antagônicos. Com a riqueza da zona açucareira, perfeitamente organizada dentro duma hierarquia rígida, orgulhosa da sua autarquia, ávida de lucros, fascinada pelo luxo, contrasta o pauperismo dos campos de criação, onde cada um é senhor de si mesmo, e a necessidade, transformando num hábito a poupança, deu aos homens uma sobriedade de costumes, que até no falar parece estar presente.
A sua pobreza reflete-se nesse fato: a inexistência do mercado de dinheiro. Desconhece-se o que seja o empréstimo a juro, a hipoteca, as operações comerciais baseadas no crédito. Até o século XIX não foi outra a situação financeira do sertão. As finanças resumem-se no produzir, vender e comprar. O banco é o fundo de algum velho baú. E a produção fora do criatório, feita de parceria, reduz-se aos índices da capacidade de trabalho da família. O empréstimo é coisa a que apenas se recorre em horas extremas, solicitando-o de um amigo abastado, sem qualquer retribuição de juros e sem outro documento que não seja a própria palavra. Fora disso apenas um pequeno comércio de gêneros e uma ou outra indústria modesta de rapadura.
Tudo isso explica a inexistência do negro no sertão. Do negro, que custava caro, que se comprava a crédito para pagar com safras futuras, e que exigia uma larga margem de lucros. Nada disso, porém, havia no sertão para fixar o negro. Poderia ter se adaptado ao seu clima. Jamais poderia caber dentro da sua economia. A sua população foi por isso um elemento estranho. Um elemento transitório, insignificante, e que não a impregnou com traços da sua cultura. Na própria alimentação, onde, no litoral, foi tão farta a contribuição africana, quase nada ficou do negro.
Muitas das profundas divergências que distanciam o sertanejo do praieiro devem ter a sua origem no fenômeno étnico, agravado pelo antagonismo econômico. São as diferenças existentes entre o curiboca e o mulato. À perseverança e à sobriedade daquele se opunham a volubilidade e a imprevidência deste. Aquele é o filho do índio criado numa sociedade pobre. Este é o descendente do negro, nascido numa sociedade rica. Diferenciam-se pelo sangue e pelas tradições. Só o tempo poderá fazer que se entendam algum dia.
(1) Col. Ms. do Arq. Púb. da Bahia. Ordens Régias. Carta de Padre Antonio de Sam Joseph, anexa à carta de D. Rodrigo da Costa de 13-5-1704.
(2) Idem. Carta de D. Pedro Antônio de Noronha em 1º de junho de 1715.
(3) Pedro Calmon, A conquista, pág. 43
(4) Col. MS. do Arq. Púb. da Bahia. Provisões, cartas e portarias. Portaria de 12-6-1676.
(5) Borges de Barros, Bandeirantes e sertanistas baianos, pág. 69.
(6) Idem, pág. 110
(7) Euclides da Cunha, Os sertões, 2ª ed., pág. 99.
(8) Idem, pág. 107.
(O negro na Bahia, 1946.)