A Fundação da Academia
A idéia da criação de uma Academia de Letras no Brasil, nos moldes da Academia Francesa, não teve a inspirá-la o espírito de iniciativa daquele que seria, como seu primeiro presidente, o principal responsável pela sobrevivência e pelo prestígio do novo instituto.
Com efeito, não se pode incluir Machado de Assis entre os idealizadores da Academia. Este papel cabe, em épocas diferentes, a Medeiros e Albuquerque e a Lúcio de Mendonça. Entretanto, pode-se afirmar, com segurança, que, sem a figura de Machado de Assis, a idéia não se teria concretizado.
As origens da Academia Francesa, no dizer de Voltaire, não foram de ordem intelectual e sim de ordem cordial, como um círculo de bons amigos. Os requisitos de ordem intelectual vieram depois, no aprimoramento gradativo da corporação, sem que esta perdesse, no entanto, na escolha de seus novos membros, o sentido da cordialidade que inspirou a formação do pequeno cenáculo em casa de Valentin Conrart.
Nossa Academia, bem examinada nas suas origens, constituiu-se também sob a inspiração da afinidade de sentimentos. Não constituíra exagero afirmar que sob certos aspectos, no que concerne às suas raízes, ela decorre mais da geração boêmia que fez a Abolição do que do grupo de altos espíritos que moldou a consolidação legislativa de seus estatutos.
Graça Aranha, testemunha do nascimento da Academia, disse que ela, "oriunda de um pacto entre espíritos amigos, hauriu nesta inspiração original a força intrínseca de que se mantém, e se vai transmitindo às gerações que se sucedem".
Ao contrário do que ocorre na Academia Francesa, sempre pendente de algumas vontades firmes que orientam as deliberações do instituto, nossa Academia habituou-se a prescindir dessas vontades individuais, que não se compaginam com as tradições da Casa.
Há ali quarenta companheiros, comumente identificados no gosto das boas letras, sem chefes de grupos nem líderes evidentes.
Ninguém comandou jamais, de modo ostensivo e pessoal, os destinos da Academia Brasileira. Não houve um tempo em que, na Academia Francesa o gênio de d'Alembert, assistido por Madame de Lespinasse, exerceu influência tirânica sobre os companheiros? E Voltaire, com toda a universalidade de seu gênio, não se viu compelido a abrigar-se sob a proteção de Madame de Pompadour, para eleger-se acadêmico? E não é verdade, ainda, que, desde os tempos de Richelieu, só se pode ser acadêmico, na França, andando em boas graças oficiais? Não foi assim com La Fontaine? Não foi assim com Chateaubriand? E não foi assim, ainda recentemente, com Paul Morand, cuja condição de antigo colaboracionista lhe cerrou por largo tempo a porta da Academia?
A Academia Brasileira, nesse, e ainda em outros pontos, divergiu de seu figurino, a começar pela autonomia das deliberações do instituto.
Só uma influência decisiva se observa no curso de sua evolução: a de Machado de Assis. Influência habilíssima, mais sugestão que ordem, menos determinação que alvitre. Depois dele, ninguém mais desempenhou esse papel de líder, a não ser, de relance, um de seus herdeiros diretos no plano da vida acadêmica: Mário de Alencar.
Na fase inicial da Academia, a geração boêmia plasmou a amizade que uniu a maior parte dos companheiros. Coelho Neto, Bilac, Araripe Júnior, Patrocínio, Murat, Valentim Magalhães, Aluísio e Artur Azevedo, Guimarães Passos, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Medeiros e Albuquerque, Pedro Rabelo e Filinto de Almeida pertenceram à plêiade de espíritos desprendidos e joviais que a afeição aproximou, antes da identificação definitiva na cordialidade da Academia.
Machado de Assis, José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Lúcio de Mendonça, Rodrigo Otávio e Inglês de Sousa - para lembrar apenas os que mais se destacaram em realizar o pensamento comum - trouxeram à idéia da corporação literária a porção de austeridade e a constância de propósitos com que se consolidam as instituições de sua espécie.
Mesmo no caso deste grupo, foi a amizade que uniu e identificou seus componentes, no período que imediatamente precede a criação da Academia. Basta lembrar a importância, para essa criação, dos jantares promovidos pela Revista Brasileira, ao tempo em que José Veríssimo a dirigiu.
(O presidente Machado de Assis, 1961. 2ª ed., 1986.)
Ricardo Palma
Em 1953, quando nos coube a honra de inaugurar, na mais antiga Universidade do Continente, a cátedra de Estudos Brasileiros, criada na Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, por iniciativa do Itamaraty, achamos de bom alvitre eleger, para tema de nosso primeiro contato com a juventude peruana, assunto que interessasse às duas culturas, no altiplano da especulação literária.
Daí se originou, com alguma novidade de observações críticas, naturalmente oriundas da originalidade do cotejo, um paralelo entre os dois vultos representativos das literaturas peruana e brasileira, no último quartel do século XIX e no primeiro deste século: Ricardo Palma e Machado de Assis.
Não obstante a dessemelhança de processos de composição literária, que fizera de um deles a memória de seus próprios desencantos e do outro a memória de seu povo através de recursos expressionais também diversos - o romance e a tradição - o certo é que, ao longo de análise meticulosa, nos foi possível surpreender, em Machado e Palma, certas zonas comuns, que valiam como traços de identidade, ao lado de contrastes significativos, que auxiliavam, pelo cuidado do confronto, a compreensão das duas figuras.
Embora as semelhanças então apontadas não chegassem à região perigosa das coincidências excessivas, não se esmaecia a curiosidade de sua verificação: antes se acentuava flagrantemente, em face do reparo de que é possível conciliar, no encontro fortuito dos textos literários, as vertentes opostas ou contrastantes.
Nenhum escritor mais original e mais impregnado de influências marginais do que Machado de Assis, na literatura brasileira. Nenhum escritor mais pessoal e mais embebido de influxos laterais do que Ricardo Palma, na literatura peruana. E ambos alcançaram, na maestria comum do riso leve, a nomeada perdurável que os projeta como eminências indiscutíveis no mundo opulento das literaturas em que se dissociou, pela diversidade da língua, o patrimônio medieval e renascentista da cultura peninsular.
A suspensão de que tanto em Machado de Assis como em Ricardo Palma ocorrera o encontro sedutor de iguais matrizes, orientou-nos no sentido de buscar, no estudo atento da obra do tradicionista, aqueles vestígios já denunciados na obra do romancista de Dom Casmurro e que fazem do nosso principal escritor o rebento brasileiro da família espiritual européia a qual pertencem Sterne e Xavier de Maistre.
Por outro lado ainda está por empreender-se, com abundância de documentos e agudeza de critérios, a exemplo do que iniciou Silvio Júlio com Reações na literatura brasileira; o estudo capaz de denunciar, através de cortes horizontais no tempo, os pontos de aproximação ou afastamento entre a literatura brasileira e as literaturas hispano-americanas.
À luz desse estudo, ser-nos-á permitido evidenciar, com a teoria de nossos mais expressivos valores literários, ignoradas afinidades continentais. E haverá certamente de concluir-se que, se a língua e a distância nos separam, muitas vezes o acaso, mais expedito que os homens, retifica o espaço e supera as fronteiras do idioma, com o milagre das identificações surpreendentes.
Na moldura cronológica do mesmo século, enquanto Gregório de Matos, no Brasil colonial, vergastava costumes com o látego metrificado de suas sátiras - outro poeta de índole congênere, no Peru colonial, o temível Caviedes, desferia idênticas chibatadas, para concluir seu destino exatamente à feição do que acontecera com o nosso Boca do Inferno: de joelhos, diante do Crucificado.
No Gonçalves Dias compungido de Ainda uma vez adeus, Luiz Benjamin Cisneros, grande poeta peruano da última geração romântica, encontrou o modelo de um de seus mais belos poemas. E um filho do poeta, Luiz Fernan Cisneros, notável figura de escritor e diplomata recentemente desaparecida, traduziu para o castelhano, com o domínio do verso e dos mistérios da língua portuguesa, alguns sonetos essenciais de Olavo Bilac.
Em 9 Poetas Nuevos del Brazil, Enrique Bustamante y Ballivian transplantou para Lima, na fase em que o nosso modernismo já ultrapassará o período eminentemente demolidor de 1922, os poemas de maior significação na obra de Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Gilka Machado, Cecília Meirelles, Murilo Araújo e Tasso da Silveira.
Nesses contatos aleatórios entre a literatura brasileira e a literatura peruana, não falta sequer a nota pitoresca e divertida .
Em 1900 o Arcebispo de Lima excomungou a romancista Clorinda Matto de Turtner, ilustre discípula de Ricardo Palma e hábil narradora das Tradiciones Cuzquenas, a pretexto do que havia sido publicado, na revista que ela então dirigia na capital peruana, um conto um tanto herético, intitulado Magdala, de autoria do nosso Coelho Neto.
Na cidade peruana de Arequipa, logo após a excomunhão da novelista, houve um pequeno reboliço de saias, com o intuito de obter-se que a severidade da sentença eclesiástica fosse extensiva ao escritor brasileiro.
E enquanto na cidade imperial de Cuzco se queimavam na praça pública os exemplares da revista que divulgara o conto de nosso patrício, um poeta paraense - o esquecido Frederico Rhossard - atirava ao Arcebispo limenho, em nome da Arte e em defesa de Coelho Neto, com toda a veemência dos alexandrinos construídos ao compasso de Guerra Junqueiro, um anátema irritadíssimo que assim principiava:
Qual seguro ao sentir-se um lazarento gato,
Hás de agora berrar, seguro na presilha,
Pois te vou suspender das vestes o aparato,
Apertando-t'a bem, meu bobo de cartilha;
Vou guardar-te no dorso uma esquisita albarda
A capricho talhada em folha de jornal,
Pespegando-te ao ombro, à guisa de espingarda,
D'uma vassoura o pau, truão de carnaval!
O grande Varnhagen, no período em que chefiou a missão diplomática do Brasil em Lima, aí publicou um pouco de seu labor de historiógrafo, ao mesmo tempo que esmiuçou bibliotecas e arquivos, no vivo afã de restaurar, ao contato dos documentos virgens, a verdadeira história brasileira.
E em Lima nasceu Antonio Ruiz Montoya, o grande sabedor da língua guarani, a quem se deve, com a sua batina surrada de jesuíta transitando pelas selvas, o livro fundamental para o conhecimento de uma vasta cultura ameríndia: o Tesoro de la lengua guarani - obra raríssima que a diligência de Varnhagen fez reimprimir em Viena.
Esses encontros ocasionais, registrados na história da cultura brasileira e da cultura peruana, podem abrir caminhos a investigações mais acuradas, de que sairá robustecida a convicção de que, à revelia do isolamento a que mutuamente nos condenamos, os fados sempre descobrem pretextos sutis para as identificações de circunstância.
Machado de Assis e Ricardo Palma, postos em confronto no debate de um estudo minucioso, não apresentarão certamente as identidades meridianas que se denotam entre Caviedes e Gregório de Matos. Mas permitem, por outro lado, o descortino de outras afinidades, sem dúvida menos evidentes e por isso mesmo bem mais sedutoras, na penumbra de mistérios que as envolve para melhor atrair nossas indagações.
Se as perquirições em torno do nosso maior escritor já entram a desarmar os ensaístas, após os estudos exaustivos de Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira, Mucio Leão, Eugênio Gomes, Mário Matos e Vianna Moog, ainda está por inquirir-se, em alguns de seus aspectos mais profundos, o gênio de Ricardo Palma, não obstante a copiosa bibliografia que lhe tem investigado a vida e a obra, nos últimos cinqüenta anos. Certas regiões tenuamente iluminadas desafiam nosso olhar, convidando-nos a desvendá-las com prudência.
Palma, nos seus livros e no seu estilo, é mais do que a manifestação excepcional de uma cultura americana: é a própria cultura hispânica, reelaborada no Novo Mundo.
(Ricardo Palma, clássico da América, 1954.)
Os Tambores de São Luís
Até ali os tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras.
No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata.
- Faça favor...
Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faisca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:
- É o convite para o meu próximo espetáculo:
- Outra vez A queda da Bandeira?
- É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda.
Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites.
- De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio.
Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão.
- Bis, bis - gritava-lhe da torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios.
Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. A frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.
(Os Tambores de São Luís, 1975.)
O Combate
Na véspera do combate, quando a lua despontou por cima dos contrafortes da serra do Medeiro, já encontrou as tropas do Capitão Nelson de Melo a poucos quilômetros do lugar escolhido para o duplo movimento - de vanguarda e retaguarda - contra as forças governistas. O batalhão marchava em silêncio, cobrindo a picada no passo certo da marcha, de baterias prontas para a ofensiva, enquanto a cavalaria se alongava em fila indiana, com os animais de orelhas fitas, rédeas soltas, batendo cadenciadamente os cascos nas pedras do chão. Adiante, nas carretas vagarosas, seguiam dois canhões, ladeados por quatro artilheiros.
Por volta das dez e meia, o batalhão parou para acampar. Dali se podia ver, banhada pela claridade do luar, a silhueta compacta das montanhas fechando o cenário da luta. Ocultos pela vegetação das encostas, já os canhões inimigos espreitariam, alongando o pescoço comprido, prontos para atirar.
João Maurício, que dispensara a barraca de campanha, preferira ficar ao relento, na companhia de seus soldados, sentindo à sua volta a noite imensa e clara. Jamais tinha visto outra assim. Afeito a galgar escarpas e desfiladeiros, vivia agora uma emoção diferente, com aquela luz úmida, aquele silêncio espaçoso, aquelas cumeadas, aquelas árvores que a brisa balouçava. Por terra, junto aos fuzis e às mochilas, jaziam os companheiros adormecidos, agasalhados nas mantas e nos capotes, sem que se lhes ouvisse o ressonar sobressaltado. Parecia a João Maurício que, afora as sentinelas, que se mantinham alerta nos postos avançados, somente ele permanecia vigilante, àquela hora tardia, sentado no chão, com as mãos frias escorando o corpo, que se reclinava para trás. Apesar da marcha longa, não sentia sono nem cansaço. Aquela vigília não seria um aviso de que seu fim se aproximava? Entregava-se às mãos de Deus, convicto de que tomara o partido da boa causa. E alongava para os alcantis a vista insone. A noite, olhada daquela iminência, com as montanhas empinadas sob a luz alvacenta, tinha a imponência inaugural do mundo primitivo, como se Deus houvesse acabado de fazer tudo aquilo. Aqui, além, esguios pinheiros imóveis, perfilados no sopé das encostas, abriam-se no alto, como em gesto de oferenda. Com o passar das horas, a luz adquiria gradações novas. A própria lua, suspensa sobre a crista da serra, dava a impressão de buscar alguma coisa na claridade fosca, com um ar de notívaga assustada.
Nisto João Maurício percebeu que um vulto se movia ao seu lado, firmando as mãos no solo para erguer a cabeça, e logo reconheceu o Cabo Ruas, que por fim se sentou, esticando os braços curtos:
- Não quis dormir, Tenente? Eu passei pelo sono. Em noites assim, durmo e acordo, durmo e acordo. Tomara que esta briga acabe depressa. Já estou sentindo a falta de casa. Vou brigar ainda um mês ou dois, depois pego licença: já está em tempo de ver minhas crianças. Agora mesmo sonhei com a patroa. Ela fazia um festão com a minha chegada.
E após um silêncio longo, olhando a noite erma:
- Isto aqui mete medo. Aquela montanha ali, muito escura, muito alta, parece que está de dedo empinado, ralhando com a gente. E olhe o vento assobiando. Deus não pode ter inventado a guerra, Tenente. Isto é coisa do Diabo. Eu, aqui, com o meu fuzil, e o senhor, aí, com a sua pistola, só estamos pensando em matar para não ser morto. Deus disse: "Não matarás." E nós, aqui, não fazemos outra coisa. Acho que foi esse pensamento que me tirou o sono. Estou dizendo besteira, Tenente? João Maurício bateu-lhe no ombro:
- Não. Mas trata de dormir. Precisas estar descansado, e eu também. Fica quieto.
E alongou-se ao comprido do chão, com o rosto voltado para o céu, como em busca das estrelas, enquanto o Cabo Ruas se deitava de borco com a cabeça no braço dobrado. Mas, mesmo quieto, João Maurício não dormiu. Para os lados de Belarmino, voltavam a retumbar tiros isolados, que as montanhas repetiam.
- Boa-noite, Tenente.
- Boa-noite, Ruas.
E João Maurício, com as mãos sob a nuca, ia vendo farrapos de nuvens que o vento levava. Quando a luz da aurora se espalhasse por aquelas alturas, haveria sangue no horizonte, por cima das árvores, e sangue na terra, com os primeiros mortos e feridos. Os cavalos se precipitariam sobre o verde dos desfiladeiros, e muitos deles relinchariam, ouvindo o toque das cornetas, por entre o rugir dos canhões, o sibilar das balas, e o estrugir nervoso da metralha. E tanto de um lado quanto de outro, os corpos iriam tombando, à proporção que o dia fosse crescendo.
Sem perceber a transição da vigília para o sono, João Maurício deixou cair pesadamente as pálpebras, e só voltou a si com o Ruas a lhe sacudir o braço:
- Depressa, Tenente: o ataque está começando.
De um salto, ele ficou de pé, ouvindo em redor o alvoroço dos companheiros que se apresentavam para o combate. Na manhã ainda clareando, estrondavam as primeiras cargas cerradas do bombardeio inimigo. Soavam longe os clarins e as cornetas. Alguns cavalos galopavam, outros relinchavam com o repuxo das rédeas e o toque das esporas. E as granadas não tardaram a explodir ali no alto, arrancando toiceiras de mato e salpicos de terra revolvida. De vez em quando, um grito. E os canhões rugiam dos dois lados, escancarando na luz atônita o clarão instantâneo das balas detonadas.
Após a desordem assustada dos momentos iniciais de luta, uma ordem natural ia-se impondo - com os soldados nas posições de combate, a resposta rápida dos tiros, o corpo-a-corpo que lá adiante se travava, a arremetida dos cavalarianos, os grupos que se infiltravam pelos capões de mato e pelo aclive das ribanceiras. A cada instante, uma nova ordem da corneta. Novas cargas cerradas. As granadas de mão que se amiudavam, e já um ou outro soldado inimigo tentava infiltrar-se nas linhas rebeldes, enquanto a luz da manhã crescia e se alastrava.
(A coroa de areia, 1979.)