MEMÓRIA SOBRE OS LIMITES DO BRASIL COM A GUIANA FRANCESA
Antes de proferir nem sequer o título deste pequeno trabalho, peço licença para consagrar as minhas primeiras palavras a um tributo de gratidão. O Sr. Manuel Ferreira Lagos, digníssimo terceiro Vice-Presidente do Instituto, o Sr. Francisco Adolfo de Varnhagen, digníssimo Primeiro-Secretário, e o Sr. Miguel Maria Lisboa, digníssimo Relator da Segunda Comissão de Geografia, favoreceram-me generosamente com documentos preciosos, sem os quais sairia muito mais minguada a minha penúria. Aceitem os três nobres cavalheiros esta pública declaração; e perdoem, se não aproveitei devidamente em prol da Pátria as riquezas que cada qual deles utilizaria melhor.
MEMÓRIA
1. Tratado de Paz, entre sua Majestade Cristianíssima, e sua Majestade Portuguesa, concluído em Utrecht a 11 de abril de 1713. Artigo VIII. “A fim de prevenir toda a ocasião de discórdia, que poderia haver entre os vassalos da Coroa de França e os da Coroa de Portugal, Sua Majestade Cristianíssima desistirá para sempre, como presentemente desiste por este Tratado pelos termos mais fortes, e mais autênticos, e com todas as cláusulas que se requerem, como se elas aqui fossem declaradas, assim em seu nome, como de seus Descendentes, Sucessores e Herdeiros, de todo e qualquer direito e pretensão que pôde, ou pudera ter sobre a propriedade das terras chamadas de Cabo do Norte, e situadas entre o Rio das Amazonas e o de Japoc, ou de Vicente Pinzón, sem reservar ou reter porção alguma das ditas terras, para que elas sejam possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa, seus Descendentes, Sucessores e Herdeiros, com todos os direitos de Soberania, Poder absoluto, e inteiro Domínio, como parte de seus Estados, e lhe fiquem perpetuamente, sem que Sua Majestade portuguesa, seus Descendentes, Sucessores e Herdeiros possam jamais ser perturbadas na dita posse por Sua Majestade Cristianíssima, seus Descendentes, Sucessores e Herdeiros.”
2. Ato do Congresso de Viena, assinado em 9 de junho de 1815.
“Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Reino de Portugal e do Brasil, para manifestar de maneira incontestável a sua consideração particular para com Sua Majestade Cristianíssima, se obriga a restituir a sua dita Majestade a Guiana Francesa até o rio Oiapoque, cuja embocadura está situada entre o quarto e o quinto graus de latitude setentrional; limite que Portugal considerou sempre como o que fora fixado pelo Tratado de Utrecht. A época da entrega desta Colônia à Sua Majestade Cristianíssima será determinada, assim que as circunstâncias o permitirem, por uma Convenção particular entre as duas Cortes; e proceder-se-á amigavelmente, com a maior brevidade, à fixação definitiva dos limites das Guianas Portuguesa e Francesa, conforme o sentido exato do artigo oitavo do Tratado de Utrecht.”
3. Convenção entre Sua Majestade Fidelíssima El Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e Sua Majestade El Rei de França e de Navarra, feita em Paris a 28 de agosto de 1817.
Artigo 1º - “Sua Majestade Fidelíssima, animado do desejo de dar execução ao artigo 107 do Ato de Congresso de Viena, se obriga a entregar à Sua majestade Cristianíssima, dentro de três meses, ou antes, se for possível, a Guiana Francesa até o rio Oiapoque, cuja embocadura está situada entre o quarto e quinto graus de latitude setentrional, e até trezentos e vinte e dois graus de longitude a leste da Ilha do Ferro, pelo paralelo de dois graus e vinte e quatro minutos de latitude setentrional.”
Artigo 2° - “Proceder-se-á imediatamente de ambas as partes à nomeação e expedição dos comissários para fixarem definitivamente os limites das Guianas Portuguesa e Francesa, conforme o sentido exato do artigo oitavo do tratado de Utrecht, e as estipulações do ato do Congresso de Viena: os ditos Comissários deverão terminar o eu trabalho no prazo de um ano, ao mais tardar, contando desde o dia de sua reunião na Guiana.
Se, à expiração deste termo de um ano, os ditos comissários respectivos não conseguirem concordar entre si, as duas Altas Partes Contratantes procederiam amigavelmente a outro arranjo sob a mediação da Grã-Bretanha, e sempre conforme o sentido exato do artigo oitavo do Tratado de Utrecht concluído sob a garantia desta Potência.”
4. Tais são as estipulações vigentes entre o Brasil e a França. Reconheceu-o a própria França no dia 5 de julho de 1841, em Aviso do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros ao seu Ministro na corte do Brasil, quando desistiu finalmente da pertinácia com que ocupava o Amapá desde os fins de 1835; e tornou a reconhecê-lo no mês de agosto de 1850, em comunicação de outro seu Ministro dos Negócios Estrangeiros ao Ministro brasileiro em Paris, quando renunciou à tentativa que repetira em dezembro de 1849 sobre o mesmo posto do Amapá.
5. Em presença de tão sérios documentos, é uma verdade irrefragável que os limites estipulados foram provisórios; e que a fixação definitiva ficou reservada para um ajuste subsequente.
6. Este ajuste ainda não se realizou; e como ele depende da interpretação genuína do Tratado de Utrecht, cumpre averiguá-la bem.
7. A interpretação de Portugal e do Brasil tem sido invariável, como proclamou solenemente o Ato do Congresso de Viena: o rio Japoc ou de Vicente Pinzón, do artigo oitavo do Tratado de Utrecht, é por nós um único rio - o Oiapoque, cuja embocadura esta situada entre o quarto e quinto graus de latitude setentrional.
8. A França, porém, tem variado estranhamente, situando o mesmo rio, ora no Amapá, ora no Carapapuri, ora no Araguari, ora no Amazonas. De sorte que, determinando o Ato do Congresso de Viena, e Convenção de Paris, que se resolva o ponto conforme o sentido exato do Tratado de Utrecht, apresenta-nos a França esta incrível solução: o rio Japoc ou de Vicente Pinzón do Tratado de Utrecht é ao certo o Calsuene, a 50 milhas do Amazonas; é ao certo o Maiacaré, a 49 milhas do Amazonas; é ao certo o Amapá, a 33 milhas do Amazonas; é ao certo o Carapapuri, a 12 milhas do Amazonas e ao certo o Araguari, 25 milhas dentro do Amazonas; é ao certo o próprio Amazonas.
9. Seria bem cabido em semelhante caso aquele argumento em que se afirmou Bossuet na sua História das Variações das Igrejas Protestantes; mas não precisamos dele. Tomaremos uma por uma todas as seis desconcentradas asseverações da França, e única do Brasil; e depois de destruirmos aquelas, demonstraremos a nossa.
10. Urge que o Brasil exponha solidamente o seu direito, para embarga que a repetição da mentira se converta em verdade. Urge, e vale a pena; porque trata com uma Nação magnânima, idealista, que pode prejudicar por iludida, mas nunca por cálculo; e que, tendo por timbre a máxima de Atenas, não hesita em sacrificar o útil, quando se convence de que não é honesto.”
“É O OIAPOQUE”
159. Sim, o rio de Japoc ou de Vicente Pinzón, cuja margem direita foi adjudicada ao Brasil pelo artigo oitavo do Tratado de Utrecht, é o Oiapoque: aquele mesmo, que tem a embocadura entre o quarto grau da latitude setentrional: aquele mesmo, de que a França nos quer esbulhar há século e meio.
160. Bem longe está de concluir deste modo o Sr. Victor de Nouvion, Secretário da Sociedade de Estudos para a Colonização da Guiana Francesa; o qual, em uma obra publicada em Paris no ano de 1844, menoscabou o Brasil com este vitupério:
“O Governo Francês, depois de cometer a culpa de tomar em sério as pretensões erguidas por Portugal, não a tem cessado de agravá-la, aceitando todos os pretextos dilatórios com que o Brasil forceja por adiar indefinidamente o reconhecimento dos direitos da França.”
De qual dos dois lados esteja a razão, refulge dos fatos que se alevantam agora.
[...]
“1° E ÚLTIMO FATO”
197. A própria França reconhece plenamente que o art. 8° do Tratado de Utrecht fixou por limite setentrional do Brasil o Oiapoque.
198. Com efeito, sendo que desde 1691 pretendiam os Governadores da Guiana entranhar-se até o Amazonas, nada intentaram por muitos anos, depois do Tratado de Utrecht. Assim o afirma Berredo. Governara este escritor o Estado do Maranhão e Grão-Pará desde junho de 1718 até julho de 1722; e ali se demorou ainda perto de um ano, depois de rendido, a coligir materiais para os seus Anais Históricos; de sorte que se recolheu por meado de 1723. Pois eis aqui o que ele declara nos 1471 e 1472: “Ainda o novo ano de 1714 achou no Pará o Governador Cristóvão da Costa Freire ocupado todo nos interesses públicos da Capitania; mas desembaraçado destas dependências, depois de nove meses partiu para a cidade de S. Luís no dia 19 de outubro. Com a felicidade da viagem teve também Cristóvão da Costa a de receber a ratificação do Tratado de Utrecht, concluído em 11 de abril do ano passado; e como compreendia a renúncia de El Rei Cristianíssimo do direito que queria ter na parte do Norte do grande rio das Amazonas, cessaram para sempre as pretensões injustas daquela Monarquia.”
199. Desavindas as duas cortes, pela referida ocorrência do Abade de Liri, e resolvendo a França cobrir com um forte a sua fronteira da Guiana, onde foi que o levantou? Na margem esquerda do Oiapoque. Revela-nos esta circunstância importante o padre Fauque, em uma carta escrita de Caiena a 27 de dezembro de 1744, e impressa em 1749 na Coleção das cartas edificantes e curiosas dos Missionários da Companhia de Jesus. Narra o Padre, como testemunha presencial, a interpresa e o incêndio daquele forte pelos ingleses na noite de 10 para 11 de novembro de 1744; e conclui com os seguintes termos, na p. 276; "Este forte, que acabamos de perder, foi construído em 1725 no tempo do falecido Sr. d’Orvilliers, Governador desta Colônia; de sorte que só durou dezenove anos.”
200. Mas aqui temos mais que tudo reconhecimentos explícitos.
Primeiro reconhecimento. No mesmo ano de 1725 em que se fortificava o Oiapoque, esteve em Caiena o Cavalheiro Des Marchais, comandante de um dos navios das Companhias das Índias; informou-se de tudo quanto interessava à Guiana Francesa, e o assentou na Relação da sua viagem, publicada por Labat. Pois aqui está o tomo 3° p. 74-75: “Os limites das terras que a Colônia de Caiena ocupava outrora na terra firme, eram muito mais afastados da Ilha de Caiena, que podemos considerar como centro, do que são hoje em dia. O seu limite da banda de Leste era o Cabo do Norte, ou antes o Rio Amazonas; e da banda do Oeste era o Rio Paria: o que fazia perto de quatrocentas léguas de costa. Porém os Portugueses pela banda de Leste, e os Holandeses pela de Oeste, nos têm encurtado muito ambos estes limites. Ninguém nô-los disputava em 1635, quando pela primeira vez nos estabelecemos em Caiena. Mas tendo os Portugueses estendido as suas Colônias do Brasil até o Rio das Amazonas, e achando que as ilhas, que estão na foz daquele grande rio, eram boas e muito à sua conveniência, estabeleceram-se ali. Atravessaram depois o rio, e achando a margem da banda da Guiana carregada de grandes florestas de cacaueiros naturais, apoderaram-se dela e construíram fortes para segurarem a posse... As desordens acontecidas nesta Colônia desde 1635 a 1664... deram aos Portugueses todo o tempo necessário para se firmarem nas terras que nos tinham tirado do Norte do Amazonas; não foi possível aos Governadores de Caiena fazer-lhes repassar este rio. Foram continuamente ganhando terreno, e por fim nos levaram até o Cabo de Orange.” Pág. 76: “A nossa fronteira, da banda de Leste, é pois atualmente o Cabo de Orange.”
Outro reconhecimento. Em 13 de agosto de 1726. No mesmo Labat, t. 4, p. 510-512: Carta do Padre Lombard, que era Geral dos Missionários da Companhia de Jesus na Guiana Francesa, segundo se lê na p. 425, e que ali residia desde o ano de 1709, como consta da p. 429. Trata largamente do Oiapoque, a quem até dá o mesmo nome do Tratado de Utrecht, Yapok; e remove qualquer dúvida sobre a identidade deste rio, com a declaração duàs vezes repetida de ser seu confluente o Rio Camopi. Pois começa a passagem do Padre Lombard por estas formais palavras, para nós memorandas: “Estende-se o Governo de Caiena desde o Rio Maroni até o d’Yapok.”
201. Podemos portanto exclamar: Acabaram-se as incertezas, o Oiapoque é nosso.
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Confiemos agora na França: nessa Nação humanitária, que, tendo títulos incomparáveis para se ufanar do predomínio das armas, preza-se antes dos incentivos da palavra, não da palavra ríspida, ou floridamente estéril, mas da palavra vivífica, transfiguradamente luminosa, e transubstancialmente regeneradora, da palavra símbolo da Razão celeste: nossa Nação Cristianíssima, que, em vez de cevar-se na visão horrífera do Deus das Batalhas, adora no Criador aquela fórmula esplêndida Que o VERBO se fez homem.