No relógio da minha vida muitas horas tenho ansiosamente esperado que soem. Todos nós temos as nossas horas esperadas e, aguardando-as, seguimos os ponteiros, contando febrilmente os minutos, que quase sempre são duros anos decepcionados – ou porque a hora nunca chega a soar ou, se soa, nunca traz a apetecida alegria, se é que as longas e dolorosas vigílias não esfumam nas tristezas da demora as luzes, que de longe nos pareciam solares. Por isso não raro – ai de nós! – a hora desejada é a hora malograda, companheira ou causa da desventura, talvez porque, como no verso camoniano do maravilhoso lírico paulista, “nunca a pomos onde nós estamos”. Quem, paciente, descesse ao mistério das coisas transitórias, provavelmente estudando a filosofia das horas, descobriria a fonte dos desenganos no mito alexandrino que as fazia filhas do Sol e da Lua, pois, no Olimpo como na terra, sempre foi condição humana e divina que os frutos do amor e do ciúme não escapassem à amargurada incerteza dos consórcios. Ninguém resumiu melhor os desesperos de esperar e a certeza das desilusões da realidade do que La Fontaine no hemistíquio célebre: N’attends qu’à toi Seul, símbolo eterno de que é dentro de nós e não nas estrelas que devemos buscar as fontes da fortuna ou da desgraça. Em todo caso – bem ou mal – não será o melhor da vida, como no aforismo popular, o tempo que se consome esperando?
Decerto por isso a hora de entrar na Casa de Machado de Assis foi para mim, de todas as minhas horas, a que esperei melhor. Nunca a perturbou a agitação de outras que aguardei para longo descrer, nem a envenenou a paixão das lutas, que transformam em gotas de sangue ou lágrimas o ouro que as assinala no mostrador. E assim, para saborear a ventura da espera sem quebrar-lhe o encanto, não me apressei a transpor esta ilustre soleira. Já me bastava meditar todos os dias na honra que me havíeis feito, abrindo-me a vossa porta logo da primeira vez que a ela ousadamente bati. Fiz, entre a eleição e a posse, um ano de noviciado, contente de saber que viria, se Deus quisesse, esta noite de junho para sentar-me timidamente em uma destas cadeiras, a que destes, por um senso inspirado dos matizes, a cor das madrugadas brasileiras.
Pude assim prolongar o sabor que precede todas as núpcias, dilatando a sensação de conquista daquele que, noite velha, do alto da montanha, vê, depois de longa viagem, brilhar no vale o clarão da cidade suspirada.
Venho do tumulto da vida pública começada na adolescência. Percorri-a toda, conheço-lhe os acidentes da inconstante geografia. Atravessei prados floridos, galguei montanhas íngremes, desci ladeiras alucinantes, palmilhei desertos intermináveis. Entre a ordem e a revolução, o que era e o que devia ser, atormentado pela sede não conformista dos homens do meu tempo, e satisfazendo os próprios anseios renovadores, varei com os da minha geração os dias de angústia que coube viver à pátria brasileira.
Mas não é um inventário a que venho proceder, ainda que quanto a mim tivesse a melancolia dos arrolamentos de pobreza. Nem o momento nem o lugar poderiam converter este cenáculo do espírito em tribunal de julgamento cívico, bem que hoje, alterada a estrutura da sociedade humana, já não se permita o pensamento insulado entre as paredes de um templo e desintegrado da ação circunscrita à poeira de todos os embates.
A geometria do mundo moderno desconhece a bissetriz metafísica que separa o cérebro do músculo, como não se admite mais a espécie dividida em duas categorias rivais – os que concebem e os que executam, dualismo das épocas tristes em que havia lá no alto o seminário dos iluminados para raciocinar e cá embaixo a massa vil dos deserdados para obedecer. A idade, que vivemos, é a da cooperação niveladora. Todas as forças sociais estão ou devem estar conjugadas para o mesmo fim – a felicidade humana. E a inspiração não conhece as leis da gravidade, brotando indiferentemente de cima ou de baixo, porque não há zonas nem castas privilegiadas. Apenas a força criadora mobiliza os potenciais de energia, sob os impulsos da audácia e do gênio. Todos os enigmas do universo estão sendo decifrados e o cálculo dos números humanos é feito por uma nova tábua de valores. Pensa e manda assim quem sabe pensar e mandar.
Poderíeis destarte, a teor do novo conceito político-social, vestir a toga sobre o fardão e, examinando os meus títulos humildes, ajuizar no acidentado pleito. Mas nem isso me interessaria postular, porque eu mesmo, sem me negar ou contradizer, já sacudi à porta a poeira das sandálias, não como o profeta desconsolado, mas como o lidador disposto a deixar no vestiário de Elêusis as armas de toda a vida, enquanto junto percorremos as aleias do jardim de Academus.
Se aludi às dominantes da minha carreira, só o fiz, senhores, para afirmar que ela correu, como um pobre fio d’água, mas entre as margens da convicção e do sacrifício e que a sua linfa pode ser examinada com imparcialidade pela crítica. Não é um néctar, mas não contém os venenos da ambição nem desliza sobre a lama dos interesses. Através do pequeno volume d’água, não receio que olheis o fundo do leito, sólido no granito da paixão patriótica. Para os erros do curso, conto desde logo com a vossa indulgência generosa.
As duas faces da medalha
Sempre me faltou a vocação do panegirista, mas não preciso constranger-me no ritual acadêmico para tentar numa miniatura o elogio de Coelho Neto. A vida e a obra dele confundem-se no espaço e no tempo, tanto o artista das Rapsódias nelas vazou a sua alma e conformou dentro das concepções da sua estética a própria essência do seu ser.
A obra de Coelho Neto tem, como certas medalhas preciosas, duas faces de cunho raro. Numa vereis, se a contemplardes com olhos profundos, a imagem do seu tempo – boêmio, faminto, pobre, heroico, idealista – tombando, erguendo-se, subindo, descendo para remontar afinal. Nela divisareis meio século de vida brasileira, dos últimos clamores da Abolição às primeiras luzes da segunda República.
Voltai o bronze e custareis a distinguir o perfil de cada figura. É que elas se associam, entrelaçam e confundem no esplendor de todos os gêneros literários, cultivados com igual perícia.
Aqui está o romance, invasor de almas e paisagens. Ali, o conto resumindo num relâmpago as paixões esquilianas, as misérias burguesas, as tragédias sertanejas, as malícias fesceninas. Ao fundo, a rampa ilumina as personagens dos seus dramas e das suas comédias – condessas e pajens, pastores e feiticeiras, bobos e alquimistas, o ritmo da poesia no da música, amores infelizes, quebranto de venenos sutis, bonanças passageiras, nuvens que cobrem venturas domésticas, sátiras e charges, sonhos e pesadelos.
Além, o jornalista, desde o artigo de fundo, gongórico, apostrófico, vieux jeu, até a notícia retocada de primores literários. E abrindo alas, antemultidões magnetizadas de pares, ouvintes e discípulos, o professor, o orador acadêmico e parlamentar, o conferencista. O verso da medalha ostenta, pois, o livro, a máscara, o jornal, a cátedra e a tribuna. Mas, como toda a obra de engenho exige a cúpula e a coroa, sobre essas cinco colunas dóricas paira, fundida no mais puro ouro da terra brasileira, a lira de um poeta, que não tendo querido sê-lo integrou no escrínio da língua portuguesa, como uma das suas maiores joias, o admirável soneto sobre o amor materno:
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração; ser mãe é ter no alheio
Lábio que suga o pedestal do seio
Onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormido; é ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra.
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho.
Ser mãe é andar chorando num sorriso,
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada,
Ser mãe é padecer num paraíso.
Entre o mundo e a pátria
Havia no espírito de Coelho Neto a imprimidura de dois signos, que teriam de ser singulares na instância de seu julgamento. Porque, em verdade, nenhum escritor brasileiro os ostenta em igual medida. Ele é o mais completo dos nossos polígrafos e, fazendo uso da pena, como do pão quotidiano, as variadas manifestações do seu talento refletem no cristal das suas águas a claridade, a escuridão, a bonança, as tormentas, as estrelas ou os raios que recamam ou percorrem o céu brasileiro na caligem de cada noite ou no esplendor de cada dia.
Não importa que por vezes ele pareça escrever do fundo do Velho Testamento, que suas páginas tragam a poeira das ruínas do Partenon ou das suas palavras se evolem os perfumes do Oriente misterioso e perturbador. O cenário pode ser exótico, como alienígenas os nomes dos atores dos seus dramas. Nada, porém, lhes desfigura o engenho criador, impregnado daquele sal do sentimento universalista que faz com que o amor seja amor na Grécia e na Idade Média, e o ódio, ódio nas tragédias de Sófocles ou no círculo do Inferno dantesco.
Nada também, vistam as suas personagens os trajes que vestirem, nada lhe faz esquecer que todas as cordas do coração humano têm em cada latitude, sob a influência do ambiente e da hora transitória, uma vibração própria e uma sonoridade diversa.
Guardando em justo equilíbrio o que pertence à essência humana e a parte em que ela se deixa saturar pelos complementos adverbiais do tempo e do lugar, sendo contemporaneamente do mundo e da pátria, Coelho Neto terá de ser escutado no juízo final das letras e, entre os poucos escolhidos, o seu lugar está soberanamente marcado.
Há na sua copiosa estante uma síntese de meio século das transformações universais e das modificações no tecido da vida brasileira. Certos livros do glorioso autor de Tormenta bastariam para a fixação da época em que foram escritos.
Romântico ou realista, como preferirem os Lineus da botânica literária, romancista ou dramaturgo, orador ou jornalista, ele nunca deixa de ser um animador de cenário, um intérprete de atmosferas, um tradutor de almas. Estas podem estar vestidas por algibebes da Idade Média ou caminhando na Rua do Ouvidor com as últimas elegâncias de Raunier, nos derradeiros dias de A conquista, pouco importa. A sua substância é animada pelas grandes paixões que o escritor analisa nas minúcias mais íntimas, expondo-as em grandezas e misérias. As paisagens, sejam da Bíblia ou de Vassouras, Bagdad ou dos Três Córregos, são, como no direito judiciário, as testemunhas mudas que acusam estados d’alma, aumentam ou aplacam angústias, explicam deslumbramentos da vida interior ou servem para a sinfonia dos contrastes – um coração despedaçado nuns olhos enevoados pelas lágrimas, contemplando a mais gloriosa das manhãs de sol que se levanta sobre o trêmulo tapete das ondas da Guanabara.
A verdade e as escolas
Por que, senhores, recorrermos aos paralelos traçados por Taine sobre o mapa-múndi da filosofia da arte, pesquisando, aflitos e geométricos, no multiforme e agitado espólio de Coelho Neto a zona que há de ser levada a débito da raça, do meio físico e do momento? Teríamos de começar verificando a exatidão do sistema engenhado pelo explicador da França Contemporânea e indagando se é a nação que produz o gênio ou se, ao revés, devemos subordinar as nações aos gênios, “considerando os povos pelos seus artistas, o público pelos seus ídolos, a massa pelos seus chefes”.
E que grave risco – o de nos perdermos no debate que apaixonou a crítica francesa no último quartel do século XIX!
Boileau e La Harpe legaram os padrões do julgamento clássico. Sobre essa imobilidade marmórea, não tardou a soprar a rajada renovadora. Sainte-Beuve identificara a obra com o autor, fornecendo-nos, segundo Lanson, “d’étonnantes biographies d’âmes”.
A Taine surpreendeu, ao contrário, a relação entre a ambiência física e social e a produção artística, encerrando entre os três vértices da raça, do meio e do momento, os ímãs de atração determinista. Um abrira demasiado crédito ao cunho do indivíduo; outro alargara excessivamente o horizonte das generalidades. E não demora o criador da Critique Scientifique, invertendo a ordem dos fatores para considerar o momento não o que precede, mas o que sucede à produção artística. Já não é a voz que fala, mas o eco que responde.
Entre as distâncias polares, Guyau tenta o meio termo das acomodações. Mas contra os sistemas que colocaram a obra de arte sob a luz dos projetores externos, quase reduzindo o autor à humildade do papel carbono, já Flaubert reclamava em uma de suas cartas: Du temps de Boileau et de La Harpe on est historien. Quand sera-t-on artiste, rien qu’artiste, mais bien artiste?
Não creio que seja possível adotar as receitas mais ou menos empíricas para o cálculo da produção artística. Continuam os químicos a combinar as percentagens dos elementos decisivos, anunciando os eurekas sempre desmentidos pelos imprevistos da natureza humana, nunca logrando explicar por que a fórmula Raça + Meio + Momento produziu na Grécia Eurípedes e Aristófanes, em Roma Lucrécio e Cícero, na Espanha Cervantes e Lope de Vega e aqui mesmo, com idênticos contribuintes raciais, tornou contemporâneas a exuberância torrencial de José do Patrocínio e a misantropia irônica e conceituosa de Machado de Assis.
Mas, ainda navegando ao largo de tais dogmas, não é possível surpreender o segredo do escritor sem apurar-lhe as origens étnicas, sem fazer-lhe a crônica pregressa, sem situá-lo nos paralelos geográficos do seu berço e do seu habitat, sem fixar as épocas, os autores e as massas que influíram nas suas concepções.
Um mameluco
Pouca gente sabe que no registro paroquial Coelho Neto era Henrique Maximiano Coelho Neto, nascido dos castos e legítimos amores de um português e de uma índia, Antônio da Fonseca Coelho e Ana Silvestre. No seu berço renovava-se o enlace entre o conquistador e a terra conquistada. Três séculos depois, se suprimidos os dramas da descoberta, do povoamento, da colônia e da emancipação, nada obstaria a que se repetissem, a 400 quilômetros do litoral, as núpcias entre a descendência de Nun’Álvares e a autêntica fruta da terra tropical.
Coelho Neto foi, pois, um mameluco. O seu berço, a cidade de Caxias, à margem do Itapicuru, demora a 4o e 50’ de latitude sul, nas proximidades, portanto, da linha equatorial.
Eis o homem em seus termos raciais e no seu paralelo geográfico.
Só os anos da primeira infância lhe decorreram no recanto que Deus fadara a dar ao Brasil Gonçalves Dias, o maior dos poetas, e Coelho Neto, o mais fecundo dos nossos homens de letras.
Foi-lhe o primeiro mestre o tio Rezende, o irmão mais velho do pai, guarda-livros austero, com os seus óculos, as suas partidas dobradas, as suas réguas, o Diário e o Copiador de Cartas legalmente arrumados e o Tito Lívio rigorosamente traduzido.
O sangue materno escaldar-lhe-ia o cérebro, o paterno dar-lhe-ia o acento melancólico, o sol subequatorial incendiaria os seus primeiros raciocínios. Desde logo duas mulheres atiçam, como feiticeiras de Shakespeare, as chamas do sobrenatural e do mistério que vão ser os dois pólos atraentes de toda a sua concepção estética. A mucama Eva contribui com os contos populares do Brasil, instila-lhe os primeiros venenos da superstição. Mas não lhe falta a sua Sherazada. É dona Maria, a preta engomadeira, que lhe propina em versões plebeias as maravilhas da lâmpada de Aladino e os segredos da caverna de Ali Babá.
Na vida de Neto, Caxias tem o sentido das raízes, que a terra dissimula. Ocultas, nem por isso deixam de ter o seu papel no destino da planta, porque são elas que extraem do húmus as substâncias, que alimentam o caule.
Os dias da infância não se apagariam na Via Láctea do pensador e do artista, como as estrelas conservam o pó cintilante da primitiva nebulosa. E Neto mesmo faz a confissão plena dos primeiros influxos na sua formação espiritual:
Até hoje sofro a influência do primeiro período de minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados... Nunca mais essa mistura de ideias e de raças deixou de predominar e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos.
Espírito eclético
Há nesse depoimento uma autodefinição preciosa. Entre todos os que o louvaram até o ditirambo e os que o depreciaram até a calúnia, nenhum acentuou tão exatamente o cunho da sua produção eclética. É o que ele foi substancialmente – um eclético, incapaz de resistir à tentação de todos os gêneros e à sedução de todas as musas.
Dispondo de virtualidades para aprofundar o leito que elegesse à descida das torrentes brotadas do seu portentoso engenho, preferiu dividi-las entre tantos galhos líquidos. Poderia ter sido um só Amazonas caudaloso, largo e profundo, marchando para o oceano e enfrentando a onda verde contra a muralha fluvial, ao rugido de pororocas estranhas. Preferiu ser como o Nilo, de águas partilhadas, buscando a foz entre ilhas floridas, na expressão fragmentária dos deltas.
Caxias não foi para Coelho Neto um palco. Nem chegou a ser um bastidor, mas um simples acidente geográfico.
O seu cenário é a Corte, onde o trazem antes dos sete anos. Longe ficara o berço natal, adormecido entre as brancas areias do Itapicurú. Não o tornaria a ver senão quase três decênios depois, já na antecâmara da celebridade literária. A ave voltaria, embora fugazmente, ao ninho antigo. Não guardara nas células cerebrais uma só placa fotográfica daquela pátria del corazón. Imagens veladas na câmara escura da memória infantil, elas só lograram perpetuar-se pela reativação beneditina de Ana Silvestre, que, costurando na corte com as suas mãos de fada, não adormecia sem gravar no cérebro do filho um pequenino mapa da casa em que nascera, tão fiel nas suas linhas, dimensões e nomenclatura, que o escritor, sem qualquer auxílio, entra, passados trinta anos, pela porta, percorre todas as dependências, aponta o lugar dos móveis ausentes, assinala particularidades topográficas, como se tivesse partido na véspera daqueles muros do coração.
A equação pessoal
Os termos da equação pessoal estavam enunciados – um jovem mestiço imaginoso perdido no anonimato da grande aldeia colonial. Só o tempo revelaria a incógnita.
Fez a princípio o cuidadoso estudo das humanidades no Colégio Jordão. Como Balzac que se transportava em parcelas para dentro da alma de seus heróis, Neto se auto-retrata no Josefino Soares, de O morto, entrando no Colégio Mormão, “um velho prédio tenebroso e úmido da Rua do Hospício, sumido debaixo das abas da rabona paterna”.
Nem em Letras, nem em Direito alcança o diploma de bacharel.
Mas a frequência acadêmica serviu para evidenciar-lhe as inclinações literárias. Trouxe-lhe a velha faculdade paulista o primeiro cenáculo. Ei-lo em 1921, traçando para a Novela Semanal as efemérides da sua carreira: “Em 1883 fui para São Paulo e lá encontrei Raul Pompéia, meu companheiro literário com quem comecei a escrever. Entrando na Academia, lá fui companheiro de Raimundo Correia, Valentim Magalhães e Augusto de Lima, naquela vida boêmia de então, sob a impressão ainda dos versos de Álvares de Azevedo. As ideias combativas do tempo levaram-me à tribuna, que ocupei várias vezes, em discursos incendiários pró-abolicionismo. Em outubro desse ano embarquei para Recife, onde fui prestar exame do meu primeiro ano de Direito. Na luminosa capital nortista, colaborei em A Folha do Norte, de Martins Júnior. Pairava em todos nós a figura inolvidável de Tobias, de quem fui íntimo... Nas minhas horas de isolamento completo, vejo o grande mestre na minha retina: os lábios grossos, os olhos empapuçados de longo estudo, o cabelo puxado na testa, a explodir a sua gigantesca admiração pela Alemanha... Sigamos. Voltei a São Paulo em 84 onde, com fervor, tentei os primeiros contos, os artigos de polêmica, e senti as primeiras manifestações no meu espírito por Maupassant. Foi para mim o período mais fecundo de leitura ao lado de Pompeia, que era um devorador de livros clássicos... Só em 85 vim para o Rio, onde, a convite de Patrocínio, me fixei, entrando a fundo na campanha abolicionista, com prejuízo da minha carta de bacharel.”
Estava finda a idade do crescimento. As primeiras flores já apontavam nas franças da árvore nova, que o tempo ia cobrir de frutos de ouro, numa tal perenidade de colheitas que até o último dia da vida paralisaria o curso das estações, num eterno, provido e deslumbrante estio.
Nabuco e Patrocínio
Transcorria o ano da graça de 1885. Neto chega ao Rio de Janeiro. Chama-o José do Patrocínio. Abrem-se-lhes as colunas da Gazeta da Tarde, que foi a crisálida da Cidade do Rio. A monarquia atravessa indecisa a sua crise definitiva. Ganhara terreno de ponta a ponta a questão do elemento servil. A conquista generosa do primeiro Rio Branco, longe de resolver o problema, apressara as impaciências represadas. Duas grandes vozes, das maiores que o Brasil já teve, pluralizam os anseios semi-unânimes. São dois antípodas nas origens, no teor espiritual, nas finalidades. Nabuco é um ateniense, nascido entre a nobreza mental de Pernambuco. Dir-se-ia que não lhe corre nas veias o sangue dos vencedores dos Guararapes, mas o néctar de um deus evadido do Olimpo e dominando pela majestade da eloquência a ágora palpitante. É abolicionista por humanismo. Não compreenderia a espécie, toda ela oriunda do mesmo fiat divino, separada entre senhores e escravos. A sua concepção filosófica da propriedade repugna a inclusão do ser humano entre os bens mercantis. Autor sincero do dilema – Reforma ou Revolução – jamais pregou a emancipação do negro como um instrumento de transformações do regime. À raiz de suas convicções, o Brasil quebraria as algemas, que lhe envergonhavam a cultura, mas edificaria a felicidade coletiva entre o trono e o altar, tanto o seu espírito situara a perfeição da Pátria entre as fronteiras de Deus e do rei. A sua própria ação, a elegância dos seus gestos e os primores da sua forma literária prefaciavam a estátua, simbolizando a redenção dos humildes pela mão aristocrática do incomparável biógrafo de Um Estadista do Império.
Mas os caminhos divinos não são traçados pelos engenheiros da terra, mas pelos bandeirantes do céu. O abolicionista de cima ia encontrar em sua passagem, cruzando a reta do seu luminoso destino, o abolicionista de baixo – José do Patrocínio. À música de Orfeu, que era a garganta de Nabuco, bela, embriagadora e harmoniosa, como se tivesse o diploma dos conservatórios da eloquência, juntar-se-ia o hino selvagem brotado das cordas vocais do negro de gênio, sem a técnica demostênica, rebelde às injunções escolásticas, clara e brutal como as tempestades do trópico, desfile verbal de procissões alegóricas, dando cor e relevo às imagens, cristalinidade às lágrimas, relâmpago às apoteoses.
Mas para que tentar, na pobreza de uma vinheta, o perfil de Patrocínio, se Coelho Neto o imortalizou nestes períodos antológicos: “Patrocínio foi como a flecha lançada em linha reta ao Sol – partiu da miséria, subiu gloriosamente, chegou ao esplendor, feriu o núcleo de fogo, fazendo-o rebentar em faiscações estelares e voltou ao ponto de onde partira. Não era um orador de escola, disciplinado e elegante: era um ímpeto. A sua palavra não tinha melodia – era silvo ou rugido; o seu gesto era desgarrado, o seu olhar despedia faúlhas. Avançava, recuava, agachava-se, gingava, retraía-se, despejava-se, ficava nas pontas dos pés, arremangando, com a gola do casaco tão subida que, às vezes, parecia um capuz de monge; o colete sungando deixava espocar a camisa – era um desmantelo de tormenta.”
A abolição era a ideia-força. Adquirira a velocidade das catástrofes. Liberais e conservadores transformaram-na em suprema ratio, rematando num paradoxo bem nacional – a bandeira dos liberais passou para os punhos conservadores. E o próprio Paulino de Souza, na hora da votação, a passo de carga, rendia ao inimigo a homenagem da galanteria, como um autêntico gentleman do Império, abreviando o discurso para não fazer esperar a princesa, dama de tão alta hierarquia...
Coelho Neto vinha de completar a maioridade. Com os seus compromissos étnicos e a influência da colmeia em que fabricara os primeiros favos do mel espiritual, a sua conscrição estava virtualmente feita nas fileiras abolicionistas. Brilhavam no céu brasileiro os últimos clarões do romantismo e os primeiros da democracia liberal, sem tiara nem coroa, buscando no povo a origem e o fim da soberania política. A vida do país passava naquele momento sob o meridiano da República; os adversários da realeza levavam-lhe a débito todos os males inevitáveis às nações jovens semicoloniais, praticando pelo mimetismo um sistema inadequado às nossas condições geográfico-econômicas, sobretudo asfixiando pelo centralismo as províncias ricas de seiva e esperança.
Cometendo, como diria Talleyrand, mais do que o crime, o erro de transformar o exército em capitão-do-mato, os últimos governos do Império apressaram a curva descendente da parábola e atrelaram nos mesmos riscos a estrutura econômica da lavoura e a sorte da dinastia.
Boa ou má, a ideia republicana não seduzia apenas pela medicina dos prodígios ou pela miragem das promessas. Cumpria-se no combate ao regime monárquico o destino de todas as oposições engrossadas pelos erros dos dirigentes e até pela invencível fatalidade de causas estranhas à vontade dos homens.
Poderia ter sido, como o foi, o segundo Imperador um varão de Salústio. Nada deteria mais o curso dos acontecimentos.
O primeiro papel
Nesse cenário é que Coelho Neto vai desempenhar o seu primeiro papel. O acaso deu-lhe um contra-regras de gênio – José do Patrocínio. Não era preciso tanto. Todas as forças, que entraram na equação do seu caráter, tinham de nele revelar imediatamente a dominante de Taine. E esta toda se exaure num idealismo imaginoso e inorgânico, que de princípio a fim lhe marcará os movimentos de ascensão e recuo, irisando-lhe a versatilidade dos temas, na singular mobilidade de uma rosa de todos os ventos. Há no engenho de Neto um demônio proteiforme, que se diverte em mudar os rótulos do destino na bagagem da sua acidentada viagem por todos os distritos literários.
Aí ficou o palco. Neto já está em cena. E, durante quarenta e nove anos, o seu nome não faltará ao programa de todas as récitas enchendo com o fulgor das suas manifestações a crônica espiritual do Brasil. Na sua vida, é apenas madrugada, mas o sol que ascende entre esperanças realizará um novo milagre bíblico – o de não recair no acaso durante meio século bem vivido, precipitando-se do meridiano apenas no mistério da morte, sem conhecer a melancolia dos crepúsculos nem a síncope dos eclipses.
O primeiro artigo, traça-o de um jacto para a Gazeta da Tarde. É um grito de amargura e protesto contra os maus tratos infligidos aos escravos velhos... Patrocínio ouve-o num arroubo e beija-o com a ternura de um noivo.
A estrada é longa. Ele estava apenas no marco zero. Dali, em dez lustros, viria da fome sofrida com versos na boca até recolher pela primeira vez as insígnias de príncipe dos prosadores da sua Pátria.
O sentido da fecundidade
A ninguém seria possível, diante da vida e da obra de Coelho Neto, repercorrer-lhe o acidentado caminho nem proceder à avaliação do seu mérito, pesando-lhe as belezas, apontando-lhe as falhas, determinando a massa das influências em tão complexa formação literária.
Coelho Neto é um pequeno mundo, que requer para compreender-lhe os pontos cardeais a ubiquidade da crítica. Singularizam-no no Brasil o volume e a variedade da produção. Nesses dois alvos, centralizaram os censores as baterias de grosso calibre. A fecundidade pareceu-lhes uma coceira mórbida ou uma leviandade jactanciosa do homem que alterara o provérbio latino – nenhum ano sem um livro. E verdadeiramente, se repartirmos o número dos seus volumes pelos anos da sua carreira, teremos que aqueles duplicam a estes, alinhando-se os seus livros – afora os sumidos na gaveta de editores negligentes – numa biblioteca de cento e cinquenta tomos!
Se os adversários lobrigaram na fecundidade de Neto um dos pontos vulneráveis da sua couraça, em contrapartida os panegiristas não se cansavam de salientar que uma tal colheita e do melhor trigo constitui a prova da excelência do engenho e da fertilidade da terra.
Não sei como se há de condenar o escritor só porque produz muito ou, ao revés, exaltá-lo pela quantidade das obras.
A arte não é nem nunca foi função da quantidade. Aos livros aplicar-se-ia o que, numa velha sentença, se desejava para os votos – deviam ser pesados e não contados. Nas famílias não é o número de filhos que as torna ilustres, mas as virtudes e os feitos de cada um deles. Bem ou mal, o gênio não se democratizou. D’Annunzio, em um de seus mais belos livros, resumia o sonho aristocrático da arte na figura daquele André Sperelli para quem o ideal consistia em escrever um só livro, dele tirando apenas um exemplar para oferecer a uma única mulher.
Pode a fecundidade levar ao trivialismo, como pode ser simplesmente um atestado de exaltação criadora. Não há como invocar os exemplos de Balzac e Zola, nem enfeitiçar-nos com a certeza de que, em língua portuguesa, apenas Camilo produziu mais do que Neto. Ele próprio escreveu a respeito do grande tema um conceito definitivo: “A fecundidade em excesso é como as enchentes dos rios; é como a pletora nas veias, subverte, sufoca.”
A bagagem literária não deve ser estimada pelo número de volumes, como as equipagens das damas galantes e dos marajás em viagem.
Entre o original de Os Lusíadas, salvo das vagas pelo poeta-soldado e toda uma biblioteca medíocre, Omar faria bem se encostasse a esta o archote vingador do fanatismo, preservando das águas a epopeia camoniana. Há livros, que fizeram um renome, como o Gil Blas, de Lesage, sem que sobrevivesse qualquer outro da sua coleção.
A apologia e a crítica
Ao entrar na Academia Francesa, Victor Hugo, aprofundando com exatidão o sentido do espólio de seu antecessor, dizia: Le droit de critique, messieurs, paraît au premier abord découler naturellement du droit d’apologie. Boileau n’a pas loué Molière sans restrictions. Celà est il à l’honneur de Boileau? Je l’ignore, mais celà est.
A autoridade do mestre de Les Contemplations encoraja o sapateiro de Apeles.
Em honra do próprio Coelho Neto, teremos de assinalar que a sua fecundidade não era exclusivamente a resultante do seu espírito inquieto. De certo havia nele o fundo de um argonauta. Latejava-lhe nas artérias o sangue dos descobridores. Pertencia ao clã espiritual dos profetas. Coelho Neto escrevia quase por imposição orgânica. Daí o acelerado da sua produção. Não era um lapidário paciente nem passaria a vida de um monge medieval, retocando uma iluminura. Por muito que nos pareçam polidos os seus períodos, eles brotaram mais da espontaneidade criadora do que do lavor caprichoso do artista. Os originais dos seus artigos e dos seus livros quase não contêm rasuras ou emendas. É ele mesmo quem, em A conquista, valoriza com graça os seus primores caligráficos e a nitidez com que as suas ideias passavam do cérebro para o papel: “Em verdade, a caligrafia era magnífica: o título dos atos em caracteres góticos, a descrição das cenas e as rubricas em fino cursivo à tinta carmim, e toda a escrita uniforme, sem uma emenda, uma rasura, limpa e igual.”
Ramalho Ortigão testemunha em As Farpas a tortura inquisitorial a que Eça de Queirós submetia os seus períodos, corrigindo-os, invertendo, suprimindo, adicionando, reduzindo as provas tipográficas a um amontoado de garatujas, naquelas longas vigílias de perfeição durante as quais fumava cigarros que não acendia e acendia cigarros que não fumava.
É o romancista do Rei negro um antípoda do memorialista de Fradique Mendes. Em Neto tudo é exuberante e natural, mesmo os artificialismos, como a flora equatorial que o viu nascer. O laboratório das suas ideias e das suas frases é o cérebro, não o papel. A fábula dos seus romances e a miniatura dos seus contos saem-lhe já equipadas da cabeça de Júpiter.
Escrevia a jacto contínuo, enchendo a oficina de editores diversos, colaborando diariamente em jornais da capital e dos Estados, professando na Escola Dramática, deputado em duas legislaturas, conferencista na estação elegante, orador das grandes solenidades, improvisador dos saraus da Rua do Roso.
Admirável Coelho Neto, que tesouros tu esbanjaste nessa usina espiritual, acionando a tua pena com as torrentes de uma imaginação de califa!
Os que procuraram as razões da tua fecundidade, para exaltá-la ou deprimi-la, deveriam baixar até certo ponto àqueles instintos subalternos, que Augusto Comte considerava senhores dos mais nobres, para proclamar que realizaste, no Brasil e, mais do que isso, no teu tempo, o prodígio de pagar com as moedas cunhadas no cérebro o pão de cada dia, levantando as paredes do teu lar com aqueles tijolos de livros que tu mesmo viste velando o cadáver de Rui Barbosa!
No dramaturgo do Pelo Amor coabitavam um artista e um proletário. A sua oficina não tinha horas de abrir nem de fechar. Mourejava de sol a sol. O editor Magalhães pagava-lhe 400$000 mensais para que entregasse, de dois em dois meses, um daqueles hoje desconhecidos livros de capa amarela que eu devorei nos meus tempos de ginásio, procurando no dicionário o significado das palavras desconhecidas.
Uma tarde, subindo a Rua do Ouvidor com a esposa, esta parou fascinada diante de uma sombrinha de luxo. A joia custava então a fortuna de 200$000. Neto deixou-a na adoração da prenda e correu para o livreiro a quem recusara a venda por 700$000 de uma obra recém terminada. Embolsou às pressas o dinheiro e lá foi às carreiras comprar a pequena umbela de sedas multicores.
Levem-lhe, assim, no julgamento final, à conta devida tantas obras que lhe saíram da pena na pressa de prover ao pão de cada dia. Príncipe dos prosadores, sem a lista civil, faltou-lhe, quer por idiosincrasia, quer por pressão exterior, aquele repouso indispensável à construção das pirâmides.
Mas não é só a abundância que lhe foi prejudicial, senão a variedade dos gêneros cultivados. Ele próprio fez o seu diagnóstico, quando se declarou um eclético. E o foi, na ânsia de talhar por todos os frutos do pomar de Ceres. Não há como recusar-lhe os excessos de diletantismo. Os críticos não lhe foram indulgentes com os pecados desta infidelidade permanente. O pontífice dos Estudos de Literatura Brasileira chegou à dureza dos conceitos: “naturalista, realista e idealista a um tempo, e por último simbolista, sente-se que esta mistura incoerente de tendências estéticas não é nele o resultado do ecletismo contemporâneo, mas antes o efeito de um engenho que se compraz em experimentar-se em modos e gêneros diversos. Esta versatilidade estética pode ser, e eu receio muito que seja, um sintoma de insinceridade artística.” E foi a esse propósito que José Veríssimo assinalou a verdadeira falha de Coelho Neto – falta de unidade espiritual da sua obra. Esse aresto pró veritate habetur, transitando em julgado ainda quando a sua prolação antecedesse de muito o fim da carreira do escritor. É que os anos seguintes aumentaram o espólio, enriqueceram a sua coleção de águas-marinhas, mas cada uma delas de cor diferente. O artista não corrigira na maturidade a sua insatisfação de globe-trotter, a sua volúpia de novos amores, numa poligamia sistemática, que chegava a raiar pelo harém do seu Oriente predileto.
Decerto ele podia responder à rispidez da crítica: “Os que combatem a exuberância não sentem a nossa natureza, vivem fora do nosso mundo maravilhoso, são espíritos impermeáveis.”
Tenho para mim que Neto era um eterno descontente de si mesmo. Não o atormentava o narcisismo, que imobiliza tantos espíritos na adoração da própria imagem. Ao contrário, cada obra finda incutia-lhe o desejo de superá-la, na ânsia de exceder-se a si mesmo. Tinha as concepções instantâneas. Vivia numa noite os seus mais belos romances, que lhe desciam da imaginação afogueada para as tiras em branco, no mesmo tropel bárbaro com que a sua ascendência tapuia varejava as florestas maranhenses.
O Rei Fantasma e O Rajá de Pendjab, assim como O Polvo, valem por verdadeiros improvisos, escritos a desoras para a voracidade dos amantes de folhetim. E assim, semeando as maravilhas do seu estro, Coelho Neto bem merecera a interdição por prodigalidade literária.
Mas, no tumulto de obra tão vasta e desigual, nunca o escritor baixou à vulgaridade. As joias de sua coleção variam de lavor e de preço. Com as pedras preciosas, as suas concepções vão do diamante mais puro à ametista mais humilde, mas não há no seu tesouro as falsidades revoltantes nem os pechisbeques grosseiros.
Mesmo quando se olha para baixo, nas horas em que o seu engenho atinge as Agulhas Negras da literatura brasileira, nenhuma das suas páginas, mesmo as mais toscas, mereceria o repúdio paterno. Se nem toda a prole é bela como Vênus e Apolo, nenhum dos filhos coxeia como Vulcano.
Três grandes livros
Três são os seus grandes livros, aqueles que, estou certo, transporão a contemporaneidade para se fixarem in æternum entre os monumentos perenes.
Um é Miragem – o drama da miséria humana, simples e verdadeiro. Tem virtudes que raro possuem os outros livros do escritor. Nele não o perturbaram excessos de imaginação. Tadeu, Luiz e Maria Augusta movem-se entre as suas folhas com a naturalidade das criaturas. Não vivem entre as paredes do cérebro; copiou-os o autor da realidade. Têm sangue e carne. Procurem no livro e não encontrarão cordéis dissimulados, tiranizando as personagens, como fantoches. A intriga só se parece com a vida. A ação decorre sem que cada um dos figurantes se desvie da rota fatal marcada pelo horóscopo, fugindo às tragédias estudadas ou à banalidade dos happy ends. E, no final, ao desgraçado rapaz, ante o flagrante da irmã amasiada, do lar destruído, da mãe ébria e alistada no elenco das marafonas da Ludovina, só parece sobrar a fuga para o longínquo rincão de Mato Grosso a fim de afogar nos braços consoladores da Maria Bárbara o fim de uma existência destroçada. Mas nem isso lhe permite o naufrágio. E o velho Nazário resume numa frase a amarga filosofia das venturas passageiras:
Queres o meu conselho? Não voltes. Deixa lá a rapariga. Para que? Assim como assim, o melhor é guardares a lembrança do tempo que lá viveste e o resto... Isso de felicidade é como dinheiro de jogo. Vais aí a uma barraca, entras, jogas, levantas a parada. Se sais com o bolo, muito bem; mas, se insistes, é prejuízo na certa. E vai-se tudo, não só o lucro como ainda o que tens no bolso, e sais a tinir como me tem acontecido muitas vezes. Foste feliz? Não voltes à banca.
O outro é Rei negro. É o drama da escravidão. Enquanto em Miragem a sensibilidade atinge os picos mais altos, Rei negro é a epopeia em prosa do cativeiro. Macambira é decerto uma criação do artista, mas têm tal vigor as linhas do perfil, tamanha densidade as paixões da raça oprimida e da honra ultrajada que o herói, mesmo quando se perde no nevoeiro das divagações ou na inverosimilhança das cenas, ganha em beleza e majestade, como se um autêntico rei exilado no fundo das selvas brasileiras traduzisse shakespearianamente a um tempo os martírios de Cham e as perfídias do monstro de olhos verdes, aquele que fabrica o próprio veneno de que se nutre. Há ainda no livro um sentido descritivo de paisagens, que excede todas as obras anteriores. Parece um álbum de aquarelista.
Já se disse que Balzac fazia concorrência ao registro civil, criando seres que se moviam no palco do mundo como se fossem de carne e osso. Eça de Queirós deixou, por sua vez, uma galeria de tipos que há meio século tomam parte na vida de Portugal e Brasil, assentados à mesa dos nossos jantares, escrevendo nas colunas dos nossos jornais, falando no recinto das nossas câmaras, enchendo as ruas e os salões com os seus ditos, os seus gestos, as suas virtudes e os seus defeitos.
Coelho Neto, que verdadeiramente soube dar substâncias e colorido a certos vultos da sua ficção, não logrou a mesma fortuna. Em grande parte isso se há de dever à quantidade das suas concepções. Falta à maioria dos habitantes do seu cosmos a predominância de caracteres. É que os traços se diluem na exuberância afogando as linhas fundamentais, indispensáveis aos seres verdadeiramente vivos, como um Père Goriot ou uma Madame Bovary.
A inspiração do escritor brasileiro jamais se contém dentro das fronteiras individuais.
Mesmo quando se propõe a estudar a alma humana pacientemente, decompondo-lhe o mecanismo das ideias e sentimentos peça por peça, nunca se restringe ao campo do microscópio. Neto não foi feito para a arte dos instantâneos. Falta-lhe um sistema de policiamento interior contra os desbordamentos ou de diques holandeses contra as inundações marítimas. Os seus sentidos são bárbaros, inadaptáveis às exigências do equilíbrio, que é uma das belezas supremas da arte e da vida. Padece do atavismo tapuia escaldado pelo sol tropical. Desconhece a câmara lenta, em que se surpreendem certos traços imperceptíveis a distância, como documentos de pequenas virtudes ou misérias, que são afinal as grandes virtudes e misérias. Vi uma vez, numa exposição de Natal, a obra de um jardineiro japonês. Não tinha um metro de base. E nela havia uma casa, uma rede e um carvalho, um carvalho autêntico e vivo. Apenas os processos do cultivador o reduziram, com as raízes, o caule e as franças, a um arbusto liliputiano. Era a natureza viva, como nos exemplares normais, mas da árvore gigantesca – símbolo da glória e da força – só se via a miniatura. Lembrei-me, ao admirá-la, do grande escritor brasileiro, pela eloquência dos contrastes. Ele saberia elevar a estatura de uma roseira às proporções de um jequitibá, mas não conseguiria – pelo seu complexo do grandioso – reduzir um carvalho a dois palmos de altura. Talvez daí resulte a relativa pobreza das suas figuras esmagadas não só pelo fiat do artista, que compõe de preferência com as tintas da criação no primeiro dia, como sufocadas pela torrente verbal, jorrando de todas as encostas da sua imaginação, num dilúvio de sinônimos e onomatopeias.
O último é O Sertão. Ninguém fecha as suas páginas sem pensar inevitavelmente no livro de Afonso Arinos. Não há, porém, como compará-los. Cada um deles exprime o corte individual do autor. E, porque ambos se distanciam na sua arquitetura, nem por isso o sertão brasileiro, deixa de ter dois épicos da sua beleza selvagem e dos seus homens. Apenas Arinos viveu o sertão, no paradoxo de um supercivilizado que o amava como se dele nunca tivesse saído. Neto adivinhou a paisagem naquelas páginas atingindo o máximo da dramaticidade. Praga e Tapera resistirão ao desfile dos tempos. Num, sobre o fundo da peste devastadora, alçasse o vaqueiro Raimundo que experimenta depois do matricídio o castigo da morte, sumido no mesmo pântano onde abatera a própria mãe. No outro, passam todas as rajadas da loucura do adultério e do sangue.
A imaginação e o poder verbal
As duas grandes forças da obra de Coelho Neto residem na imaginação e no poder verbal. Ninguém o excede na primeira, cabendo-lhe um primado incontestável. No manejo da palavra tem, entretanto, um rival, mas a simples menção do seu nome vale pelo mais alto louvor. É Rui Barbosa.
Sei por testemunhas presenciais da instantaneidade criadora do autor de Fogo-Fátuo. Havia no seu cérebro, como nos teatros modernos, palcos móveis para as mutações da mágica. É o exemplo único do repentista da prosa. Compunha contos e romances diante do público, com os temas sugeridos pelo auditório, como Gregório de Matos e Laurindo Rabelo improvisavam as suas sátiras ou Castro Alves e Tobias Barreto discutiam em verso as suas atrizes prediletas.
A Bíblia e o Orientalismo
Se os pendores do espírito o levavam de preferência ao gênero imaginoso, ele ainda requintou pelo culto do orientalismo e dos textos sagrados. A Bíblia era o seu livro de cabeceira. É de ouvir-lhe a confissão: “Homem de fé, o livro de minha alma aqui o tenho: é a Bíblia. Não o encerro na biblioteca entre os de estudo, conservo-o sempre à minha cabeceira, à mão. É dele que tiro a água para a minha sede de verdades; é dele que tiro o pão para a minha fome de consolo; é dele que tiro a luz nas trevas de minhas dúvidas; é dele que tiro o bálsamo para as dores de minhas agonias.”
A paixão do grandioso é levada às últimas proporções – reis e rajás, monstros e semideuses acotovelam-se entre as suas páginas. O sertão, o garimpo, a antiguidade e a banalidade social surgem ensanguentadas pelo ódio, a ambição e o amor.
Gide dizia em Le grain ne meurt: Je suis un être de dialogue, tout en moi combat et se contredit. Neto não trava diálogos interiores. A sua arte é a sua voz, num solilóquio dominante e avassalador. Tem carícias e rugidos, mas é ela só que varre os panoramas contemplados pela imaginação.
Araripe Júnior chamou-o “um assombrado”. José Veríssimo corrigiu a classificação para “um complicado”. E, diante dos tons evangélicos de uma parte da sua obra, outro crítico aludia malignamente aos “cafarnauns do Sr. Coelho Neto”.
Não há como contestar que ele esteve longo tempo no clima do orientalismo e da Bíblia, mas talvez mais cativo das exterioridades do que do fundo do sentimento cristão ou muçulmano.
Dinamismo verbal
Dotado de um dinamismo verbal muito raro, Neto foi um idólatra da forma. Os seus períodos têm ritmo como as estrofes parnasianas. Redondos e sonoros, podem neles se diluir as tintas da paisagem que descreve ou das almas que retrata, mas ninguém lhes negará uma deslumbrante opulência de vocábulos. Atribuíam-lhe um tesouro de vinte mil palavras. Com elas edificara a galeria dos seus livros. Era, como Baudelaire, um leitor apaixonado dos dicionários. E fazia praça do seu vernaculismo: “Anselmo, porém, sempre a rebuscar nos clássicos termos novos, tinha assomos de entusiasmo e proclamava o seu vernáculo o mais belo, o mais rico, o mais soante. E lia altissonantemente estrofes de Camões, trechos de Bernardes, de Fernão Mendes, de Lucena, os sermões e as cartas de Vieira, apontando as belezas e os grandes recursos dos mestres, e ia assim formando o seu vocabulário.”
Em Fogo-Fátuo narra um debate entre ele, Aluísio e Bilac sobre a língua. O romancista de O Cortiço increpa-lhe a paixão dos arcaísmos: “Por que não fazes outra coisa senão desenterrar defuntos? Esses arcaísmos, que exumas, que são senão cadáveres? Andas sempre às voltas com obsoletos carreados dos dicionários.” E Neto a retrucar: “Sigo o conselho de Gautier. E achas que faço mal? A língua revolve-se, como se revolve a terra. Falaste em trajos... Pois os dicionários são como as alfaiatarias, onde se encontram trajos para as ideias. Há escritores que andam por aí esfarrapados que nem mendigos, outros que se vestem em belchiores ou usam fatos de empréstimo. Eu faço, sob medida, as roupas para os meus pensamentos.”
Mas o seu fanatismo verbal não se esgotou nas suas imensas disponibilidades vocabulares. Foi um semântico e um sintático, interessado em enriquecer ainda o idioma pelas adoções necessárias. Parecendo um purista ortodoxo e intolerante, que exigisse de cada vocábulo os pergaminhos de nobreza centenária, atestado pelos clássicos, quantas vezes apadrinhou com a sua autoridade o ingresso nos quadros da língua portuguesa de tímidas e noviças palavras adulterinas, que rondavam as portas da Academia sem ânimo de transpor-lhe os umbrais.
A eterna contradição dos grandes espíritos! O escavador apaixonado de forais vernáculos outorgava carta de naturalização a neologismos bárbaros e legitimava construções espúrias, colocando às vezes os pronomes contra as regras clássicas!
Tornou-se célebre aquele artigo do Jornal do Brasil, em que, aludindo aos próceres políticos, o mestre os denominou – paredros, termo que justificou com raízes e equivalências, a tal ponto que os pró-homens jamais deixariam de ser paredros, até mesmo quando a classificação não passasse, como os galões daquele coronel da Guarda Nacional, de um simples labéu...
Esses enfeites vocabulares, o amor às perífrases, o purismo das construções deram ao seu estilo literário por vezes alguma coisa de barroco, que faz insensivelmente lembrar certas obras do Aleijadinho na arquitetura colonial das nossas igrejas.
Não adorava as palavras. Dedicava-lhes carinhos de jardineiro, na combinação dos tons. Era dos que nelas descobrem matiz e perfume. Conhecendo a fundo o sentido musical dos períodos, usava dos adjetivos como um compositor de sinfonias.
Isso não o impediu de pôr nos lábios de Bilac estas sábias advertências que não seguia: “A simplicidade é tudo. A natureza é simples. O excesso de ornatos prejudica a beleza. Os adjetivos são enfeites, devem ser usados sem abuso. O mais é bisantinismo. Assim também a propriedade das imagens.”
Coelho Neto e Olavo Bilac
Muito têm sido discutidas as influências que lhe pesaram no espírito. Flaubert, Maupassant, Saint-Victor e Eça de Queirós são apontados como os santos da sua capela predileta. Aqui e ali de fato se encontram aproximações inegáveis, pegadas fugitivas, inspirações distantes. Mas para que, em frente de uma cadeia de montanhas, tão bela como a obra de Coelho Neto, indagar se este pico se parece com aquele ou se tal vale lembra vales longínquos? A Guanabara não deixa de ser uma baía, só porque a sua rival australiana também o seja. Ambas têm o mesmo risco geográfico, apenas uma está no Brasil e a outra na Oceania. E ambas são maravilhosamente belas.
A cada momento da história de uma arte ou de uma literatura – disse-o Brunetière – quem escreve está sob o peso, se assim posso dizer, de todos os que o precederam, pouco importando que os conheça ou não. E é por isso que a originalidade é tão rara, mesmo na ignorância.
Não seria assim mais útil e mais exato assinalar que Coelho Neto impregnou com a sua maneira muitas das gerações que desabrocharam no período áureo da sua glória? E a verdade é que os imitadores, como sempre acontece, não possuindo o seu talento, acabaram incidindo nos seus defeitos, sem alcançar a linha das suas belezas. Era a eterna sina dos falsificadores de vinhos, que se limitavam a copiar o frasco, o rótulo e as cores, sem o conhecimento dos segredos que só o gênio dá.
Discutido, louvado e agredido, ele se fez o mestre da primeira leva de homens de letras da República, que lhe deferiu, como um paradoxo do regime, o principado dos prosadores nacionais. Exerceu essa magistratura mental vitalícia, parecendo que a sua morte abalou os alicerces do trono. O magnífico Humberto de Campos mal lhe atinge os primeiros degraus. Logo, pela ordem da vocação natural, vem Ronald de Carvalho, mas a cegueira de um acidente ceifa em plena glória aquela orquídea de ouro – símbolo de uma vida bela, alta e colorida entre as verdes selvas do Brasil, que ele amou como raros e cantou como poucos. E até hoje, como nas dinastias estéreis, o sólio continua deserto ainda quando tantos nobres escritores, do mais puro sangue, possam com lustre sentar-se na Cadeira desolada.
Olavo Bilac e Coelho Neto, vindos da mesma vigília boêmia, foram as duas margens entre as quais deslizou a corrente literária desde as últimas luzes do século XIX até o derradeiro decênio. O Príncipe dos Poetas e o Príncipe dos Prosadores tornaram-se os dois ídolos da mocidade da época – a que nas escolas superiores foi invariavelmente a semeadora de todas as conquistas populares e daquela que sempre despontou, silvestre e exuberante, sem diplomas e sem anéis, na poesia e na prosa, na imprensa e na tribuna, no centro, no Norte e no Sul, carreando para dentro da unidade nacional a fé e o engenho da federação intelectual, que precedeu de sempre a própria arquitetura das duas cartas republicanas.
O orador
Dispondo de uma riqueza vocabular assombrosa e de uma imaginação incomparável, Coelho Neto teria de ser, como o foi, um dos maiores oradores do seu tempo. E àqueles dois predicados aliava uma dicção perfeita e um raro poder de improvisação.
Ainda o estou a escutar, conservando nos ouvidos o recorte verbal da sua tonalidade silábica e metálica, apesar de lá irem – ai de mim! – os anos que medeiam entre a saída do ginásio e esta imprevista noite da minha vida.
Neto pertencia àquele patriciado peritus dicendi e tinha garbo nas manifestações da sua eloquência. Não a escondia como a um pecado, por certo indiferente à ironia de certos snobs, privados por inibição mental ou glótica, de concretizar o voto de Merejkowski – os deuses só mandaram os homens à Terra para que falassem com eloquência. Na de Neto, falando, um observador imparcial veria à justa os traços que Santo Agostinho exigia no grande orador: “Ele não depende das palavras, as palavras é que dependem dele.”
Foi na sua viagem ao Rio Grande que experimentei pela única vez a ventura de escutá-lo. Ainda estou a ver-lhe o vulto entre as flores provincianas que adornavam a tribuna, a que assomara sem um sorriso. Faltava-lhe a máscara profissional dos que procuram, ao levantar do pano, conquistar a plateia pelo magnetismo das fisionomias irradiantes. Nem os traços fisionômicos o ajudavam. Era desde logo um homem feio. Talhe mediano, ombros altos, cabeça grande, rosto triangular, descarnado e moreno. Os olhos brilhavam, pardos, profundos e móveis, atrás das lentes sem aros. Eriçados e duros os cabelos, como uma escova, aumentavam-lhe no rosto a impressão de uma pirâmide. Mas a voz detinha o mistério das seduções. Não dispunha de melodias cariciosas na garganta, nem de retumbâncias tempestuosas. Era no registro de meios-tons que ele sabia arrancar da palavra todos os efeitos mágicos. Se compunha bem, improvisava ainda melhor. Pronunciava os vocábulos não apenas com a acentuação tônica exata, senão que dispunha de uma espécie de prosódia do sentido. Nos seus lábios, Pátria, Liberdade, Poesia e outros sinônimos de lutas, grandeza e majestade tinham, como há de ser raro, sonoridades desconhecidas.
Os aplausos da assistência, lágrimas que brotavam dos olhos, sorrisos desenhados nos lábios, a sensação de voluptuoso enlevo dos ouvintes nasciam não só da beleza dos períodos como dos transportes imprevistos da sua voz, que destilava nas palavras os filtros da imaginação – aquela deusa fantástica, que na arte como na vida ignora a topografia dos girondinos e a neutralidade das meias-tintas.
Embebido de cultura literária e conhecendo a fundo toda a crônica da humanidade, às suas orações jamais faltaram os conceitos de poetas e filósofos ou o abono de antecedentes e semelhanças históricas. Poderíeis tê-lo escutado neste recinto ou na Casa de Tiradentes, como no adro de uma igreja, no comício político, no clube de regatas ou de foot-ball, saudando a França em 14 de julho, esmaltando de beleza as asas de Santos Dumont ou inaugurando uma piscina no Fluminense, a sua eloquência era ungida sempre da mesma beleza sacerdotal, os raios de Zeus misturar-se-iam aos vinhos de Hebe, o carro de Elias cruzaria com os dramas do hagiológio, santos do cristianismo e deuses pagãos, os poetas de Roma e as epopeias da Índia, no mesmo tecido majestoso do seu verbo magnífico.
Na cadeia velha
A política teria de ser também a sua feiticeira. Um dia o seu Maranhão – “a Provença dourada do Brasil” – haveria de mandá-lo à Câmara. Fora a sua terra um dos púlpitos de Vieira, sede da cultura clássica que lhe valera o batismo de Atenas brasileira. A candidatura de Neto não viria apenas do sufrágio dos vivos senão também e principalmente da imposição unânime dos que dormiam num panteon de glórias. E nunca talvez a pequena província, ligada espiritualmente ao espírito helênico, pelo laço inquebrantável da federação das ideias, tanto valorizasse um diploma como o que habilitaria Coelho Neto a sentar-se entre as bancadas da representação nacional, onde foi o deputado da inteligência e não de clãs facciosos.
A Câmara tinha e sempre teve no seu seio outros homens de letras, que os fabricantes de atas ora disputavam para enfeite das chapas eleitorais, ora nelas incluíam como Mecenas beneméritos.
Neto fora republicano, como fora abolicionista. Não o arrastaram às duas jornadas apenas as ideias de emancipação e democracia. Sofrera a influência das correntes do seu tempo. Logo depois de 15 de Novembro, governando o Estado do Rio, Portela confiara a ele as funções de Secretário. O autor de A conquista reuniu os boêmios da propaganda que vegetavam sem vintém às mesas do Café Globo e da Maison Moderne. Levou-os para a repartição, transformada em arcádia, que a renúncia de Deodoro dispersaria bem cedo.
Deputado, não foi, como outros artistas em idênticas circunstâncias, um simples frequentador da lista da porta e das folhas de subsídio.
Subiu à tribuna para sustentar grandes causas impessoais. Coube-lhe a fortuna de ser o autor da emenda que providenciou para que a música de Francisco Manoel encontrasse o seu poeta e assim puderam os brasileiros ter a letra do seu hino, juntando nas mesmas palavras em certas horas as vozes de todas as crianças nas escolas de todos os recantos destes imenso território.
Germano Hasslocher, o admirável parlamentar que o Rio Grande enviara à Câmara, havia lavrado um parecer contrário ao pedido do diretor do Instituto Nacional de Música. Neto teria de enfrentar no debate um dos oradores mais ágeis, mais brilhantes, mais cultos do parlamento e que manejava ainda a primor a ironia. O discurso de combate ao parecer é, porém, um modelo não só de beleza literária, mas calcado sobre uma argumentação irrefutável.
Mereceram ao representante do Maranhão o mesmo carinho o serviço militar obrigatório e a defesa das florestas devastadas com a criminosa neutralidade dos governos. Lá, a necessidade, hoje como então imperativa, de enriquecermos os quadros da nossa defesa e forçarmos pela preparação militar o respeito à soberania. Aqui, o crime de abater a selva indefesa, modificando o clima, alterando o ritmo das estações, extinguindo ou diminuindo a navegabilidade dos rios e a fertilidade das terras ribeirinhas. Amigo das árvores, não só pela sua condição de sombra para todos os fatigados, como de companheira inseparável da poesia, Neto, erguendo o grito de protesto contra os machados sacrílegos, pronunciou estas palavras dignas de Hesíodo:
Será ainda preciso insistir nos louvores à floresta? Será ainda necessário dizer da sua generosidade? A floresta acompanha-nos com mais fidelidade do que a sombra; toma-nos ao entrarmos na vida; é o berço; desce conosco à morada eterna onde a alma não penetra, é o esquife. A floresta gera as fontes, mães dos rios; doma a cólera dos ventos, purifica a atmosfera; dá-nos a essência e o bálsamo e os seus troncos prestam-se a todos os misteres: são as colunas do lar, a ara do templo, a quilha da nau, o carro das ceifas, o móvel doméstico, a haste da lança, o estilo da pena, tudo.
Mas não foi só. O povo brasileiro tinha uma dívida de honra – repatriar os despojos mortais do imperador e da imperatriz. Não foram vozes suspeitas de sebastianismo as que reclamaram a volta daquelas cinzas sagradas. Encarnou o sentimento público, precisamente a eloquência sincera e um pouco selvagem de um propagandista da República – o Senador Coelho Lisboa. Coelho Neto, apenas empossado, profere na Cadeia Velha, secundando o gesto do ilustre paraibano, um dos melhores discursos da sua carreira.
Mas não era um declamador estudado de períodos laboriosamente trabalhados no gabinete. O improviso era o seu forte. Ele mesmo o celebrou na boca de Paula Ney: “Discursos lidos são pássaros de gaiola. O improviso é o pássaro livre, de voo largo, cantando no espaço, ao sol. Ler discursos... Não, meu amigo. Eu sou como o pássaro: produzo, não decoro.”
Consinta a Academia que eu aqui exalte a eloquência de Neto, repetindo alguns dos períodos da despedida que, em nome de toda a companhia, ele proferiu antes que da sala do Silogeu se apartasse o cadáver de Bilac:
Deixa que eu lembre os anos que vivemos juntos, tão claros e felizes apesar de pobres; tão alegres apesar de difíceis, porque foram como alamedas de espinheiros floridos; tão cheios de angústias e, ao mesmo tempo, de entusiasmos, porque os atravessamos nadando em lágrimas, como Leandro pelo Helesponto tempestuoso, tendo, diante de nós, a luz da torre de Hero que era o ideal; anos que abriram capítulos fulgurantes na história da pátria: o de 87, ano da flor, e o de 89, ano do fruto.
Mas estava escrito que Neto havia de ser tudo ou quase tudo que quisesse. Conhecendo a fundo a sua arte, não é de admirar que ele conquistasse a cadeira de literatura no famoso concurso do Ginásio de Campinas, disputando-a a Batista Pereira, já então em plena florescência do espírito a caminho do esplendor que tem sido a sua vida intelectual. Neto não frequentara, como hoje é fácil, cursos universitários. Não ouvira, como hoje acontece, professores do Colégio de França, ensinando as disciplinas especializadas. Era um autodidata que construíra, paciente e inspirado, os sistemas da sua aprendizagem, promovendo-se, sem diploma, de aluno de si mesmo a professor da mocidade do seu tempo.
Retrato da mocidade
No tumulto da sua produção multiforme, não se olvidou de deixar o retrato da sua iniciação. E, graças a esse cuidado, aí estão em todas as estantes as páginas de A conquista. É A conquista, até certo ponto, um livro precursor das modernas vidas romanceadas. De comum com o de Murger só tem a semelhança entre os processos boêmios. Mas esses foram sempre os mesmos – no Quartier Latin ou nas arcadas de Coimbra, nas cervejarias de Reidelberg ou nas touradas de Salamanca. Pode haver e haverá certamente em A conquista uma larga quota de invenção pessoal do escritor, embora este, na dedicatória aos da caravana, se reserve o modesto papel de cronista:
Este livro, meus amigos, é mais vosso do que meu, porque na sua composição entrou apenas a minha memória. Eu vim seguindo a caravana que a musa precedia, como Miriam à frente de Israel. Vim seguindo e apanhando pelo caminho saibroso e seco as gotas de sangue, as gotas de lágrimas, as estrofes sonoras, os arrancados soluços e os suspiros que deixáveis, e, durante a marcha, só três vezes paramos, com as liras caladas, os olhos lacrimejantes, para guardar na terra santa os que caíam.
Espelho da última mocidade aventurosa do Brasil, uma espécie de fim de raça do romantismo às portas da idade egoística que a civilização materialista implantou na cidade de Estácio de Sá, é A conquista, antes de tudo, o depoimento palpitante da maneira de ser do Rio de Janeiro durante os tempos que antecederam o 13 de maio. Não se destinou a inventariar as causas nem os fatos da grande jornada, mas a retratar a boêmia literária em cujo seio se forjaram as melhores armas da Abolição e da República. Bilac, Aluísio, Pardal Mallet, Patrocínio, Guimarães Passos, Artur Azevedo, Luís Murat e Paula Ney enchem-lhe as páginas sob transparentes disfarces. Mas não são apenas poetas, romancistas, homens de jornal e de tribuna que aparecem aos nossos olhos encantados. É a vida da cidade, ainda silvestre, que desponta com a animação noturna dos seus restaurantes e dos seus clubes, com as tardes da Garnier e da Rua do Ouvidor. Campo fechado, faltavam-lhe os respiradouros do oceano. Não rompera ainda para o tráfego febril das populações abrasadas e sequiosas de ar, horizonte e perfume marítimo, as muralhas que a separavam das praias atlânticas. A mocidade fazia versos, discutia e conspirava. O sonho dos jovens era o louro de Atenas, não o carvalho de Esparta. Ainda não despontara a era do stadium. Talvez houvesse menos fortaleza física, mas havia seguramente mais idealismo. Ninguém assistia à tristeza de hoje, com os cursos mastigados às pressas, divinizado o prestígio da ignorância desde que se apóie no biceps atlético, o desdém pela cultura, os crepúsculos do espírito, a deusa Nudez instalada nos templos de alguns falsos devotos de Hígia, que muitas vezes não passam de pérfidos epicuristas das épocas de decadência.
Mas A conquista era apenas o primeiro tomo da epopeia da mocidade caravaneira, que colaborara nas transformações do regime econômico e político do país. Coelho Neto completou-a em Fogo-Fátuo. Os dois volumes têm a mesma origem, as mesmas personagens, o mesmo cenário. Só o tempo varia. Um acaba com a noite de 13 de Maio, o outro atravessa o 15 de Novembro, até além da revolta da esquadra, dominada pela energia férrea de Floriano. Se A conquista distribui os papéis com relativa igualdade, em Fogo-Fátuo a figura de Paula Ney assume as proporções de herói de quase todas as suas páginas. Livro providencial. Sem ele, as gerações atuais desconheceriam o perdulário de gênio, derramando pelas mesas das redações e dos cafés a graça fascinante que constituiu a paixão do Rio de Janeiro. Ele foi o crítico verbal de todos os livros e de todos os escritores. Deu forma a todas as aspirações. Ironizou todos os defeitos, mas as suas setas não tinham o veneno letal dos aimorés. Trespassavam com doçura sem dilacear os tecidos, virtuosas como a lança do herói. Destruiu a poder de sátira todos os ridículos. A mesa do Café Globo era o tribunal da cidade e os seus epigramas voavam de boca em boca, desde a porta das livrarias até os subúrbios distantes e as províncias longínquas. Floriano pode ter sido o governante intransigente, enchendo as cadeias em defesa da ordem, exercendo além das fronteiras constitucionais as faculdades do estado de sítio. Ney, seu adversário, foi, porém, o ditador implacável contra todas as afrontas à gramática ou à liberdade, ao bom gosto ou à dignidade humana. Os seus decretos não se imprimiam no Diário Oficial. Ele mesmo os baixava à saída dos teatros do Largo do Rocio ou à mesa das cervejarias, pontificando às esquinas ou atravessando a Rua do Ouvidor, que era a sua sala de despachos. E ninguém resistia ao prestígio das suas determinações, elaboradas e executadas por ele numa confusão de poderes que aterrorizaria as suscetibilidades de Montesquieu.
Já um dos melhores críticos do autor de Tormenta, o cintilante Péricles de Morais, denunciara em Coelho Neto uma vocação de estatuário. Em verdade ele marmorizou em períodos semi-eternos algumas figuras do seu tempo.
E, fechados os dois grandes livros, ainda ficam longamente passando sob os nossos olhos cerrados, vivendo, amando, escrevendo, sofrendo, cheios de fome e de glória, Bilac já então ouvindo estrelas, Aluísio, que, depois de O Mulato, tão feliz no acerto das observações, se deixara arrastar aos exageros do Naturalismo, Pardal Mallet com a sua gravata vermelha à Lavallière, panfletário iluminado dos sonhos republicanos, Luís Murat, que fazia concorrência ao mar com a poesia das suas Ondas, o Guima com o lenço côncavo de beijos, eternamente enamorado, sucumbindo em Paris de nostalgia, Artur Azevedo enchendo de bom humor os leitores dos seus contos e o público das suas revistas e finalmente ele mesmo, Coelho Neto, sob o dominó de seda de Anselmo Ribas, deslumbrando a sua geração com a sua prodigiosa polimorfia literária, grande em tudo e mais ainda no amor aos seus amigos, insensível à emulação das arcádias e à perfídia dos detratores, realçando os parceiros da mocidade, no seio da qual o seu talento floriu como uma vitória-régia matizada por todas as cores do espectro solar.
Não é possível fechar A Conquista sem recordar duas de suas páginas maiores. Uma é a chegada dos retirantes, batidos pela seca daquele ano terrível. Ney, cearense, eternamente cearense, que a metrópole não desnaturara, vai recebê-los no mar, emocionado e infatigável. Arrastando Coelho Neto no meio do imenso rebanho flagelado e emagrecido, o boêmio percorre a bordo todos os grupos, falando, interrogando, animando, consolando como um missionário. E o escritor soube dar o colorido exato à cena acabrunhadora daquela massa humana arrancada ao solo natal pela injustiça climatérica. E Ney a infundir-lhe coragem: “Vocês aqui estão muito bem; a terra é boa, a gente é boa, ganha-se muito dinheiro. Depois é o mesmo Brasil. Vocês não são brasileiros?
Um velho, com uma longa camisa que lhe descia aos joelhos por cima das calças, acenou com o dedo negativamente:
– Nhôr não.
– Como! Então você não é brasileiro, velho?
– Cearense té morrê! Disse atirando uma cusparada por entre os dentes.
– Então o Ceará não é uma província do Brasil, velho?
– Inche! Ceará é dele só... té morrê. E foi-se resmungando convencidamente.
O Neiva rompeu a rir e perguntou:
– Até morrer, hein?
E o velho de longe sacudiu a cabeça, repetiu:
– Té morrê!”
A outra é uma tela marinha. A pena do escritor iguala o pincel do paisagista mais ilustre. Não vale elogiá-la. É preciso ouvi-la.
Depois de uma noitada boêmia, Neto e Guimarães Passos vão assistir ao clarear do dia na praia do Boqueirão. Era a Copacabana do tempo. Ei-la:
Seguiram e, quando chegaram ao Boqueirão, o céu ao longe, estiado sanguineamente, estava cor de bronze. Na praia branca, o mar liso, metálico, rutilava.
Uma multidão chapinhava na areia úmida que guardava a pegada funda até que a onda, subindo preguiçosamente, a desmanchava. Havia barracas de lona como brancas pirâmides, mas a maioria dos que mergulhavam vinha já pronta nas roupas de flanela dos estabelecimentos balneários.
As senhoras, sorrindo, esfregando as mãos, iam timidamente para o mar que mandava à praia as suas ondas como para buscá-las, curvavam-se, tomavam nos dedos um pouco de água, como se se benzessem naquela imensa pia verde e, friorentas, dando-se as mãos, entravam, aos saltinhos, quando a onda rolava cheia, espumosa, desdobrando-se na praia com sauve marulho.
Cabeças apareciam longe e gente saía gotejante, gente entrava a correr e todo o mar fervilhava de banhistas. Ao longo da praia e no terraço do Passeio, apinhavam-se curiosos.
Um bote negro, remado lentamente, bordejava. Tresandava a maresia. De repente Anselmo gritou: – Olha, Fortúnio! Era o Sol, o grande, o magnífico, o esbraseado Sol americano que subia. O céu estava encandescido, era de ouro líquido, e, quando o disco do astro, imenso e translúcido, fulgindo como uma patena polida que girasse vertiginosamente, apareceu acima dos montes longínquos de Niterói, houve uma chuva mirífica e doirada, todas as eminências foram polvilhadas, o espaço e as águas ficaram como Danae na hora amorosa do lentejo d’ouro; mesmo para o fundo a serra acidentada de Teresópolis que, de tão azul, quase se confundia com o céu, teve a áurea bruma da manhã triunfal. E o Sol subia, a luz alastrava. A água voluptuosa tornou-se mais lânguida. Gaivotas cruzavam-se contentes e o Pão de Açúcar e os fortes ficaram sobre um mar de ouro.
A luz chegou às árvores do Passeio e as folhas, galvanizadas, rebrilharam; o mesmo bote fúnebre, negro, que ia e vinha com a lentidão de um esquife, teve a sua orla de luz e refletiu-se na água espelhenta e mansa.
Os que se banhavam pareciam incrustados na superfície serena e rútila das águas vastas, e longe, enorme e escuro, fumegando, com uma bandeira trêmula solta às brisas, um paquete saía sereno, sem oscilação, fechado, em direitura para a barra por onde vinha entrando, rebocado, um brigue, de velas ferradas, os mastros secos, vagaroso e pesado.
A alegria do céu comunicou-se aos que nadavam e gritos alegres vinham do mar, e sempre a sair gente ansiosa para a onda: velhos, senhoras, crianças. Uma menina aleijada desceu ao colo dum banhista esperneando, aos gritos e, diante desse rumor de vida, nessa azáfama jocunda, Fortúnio, com os olhos no paquete, suspirou:
– Ah! pudesse eu ir ali!
– Ora qual! Deixa-te disso, homem! Olha para aquele Sol, admira aquela beleza e dize se é possível que Deus estrague tão formosa auréola numa terra destinada à miséria e ao abandono.Uma Pátria que tem este sol há de ser grande por força. Viva a nossa terra, deixa lá, homem! A nossa manhã há de vir, descansa. E os dois, extasiados, ficaram a olhar o astro deslumbrante que remontava majestosamente.
A idade madura
Mas a mocidade findara. O coração de Neto elegera a companheira de toda a vida. Dispersara a caravana. Cada qual seguia os roteiros do seu destino. Cruzes já marcavam a estrada. Guimarães Passos, Pardal e Paula Ney, carregados pela morte. Para o memorialista da idade de ouro, despontavam o lar e o trabalho. A abelha ia prover com o mel do seu engenho as necessidades da família, até a dúzia de descendentes, como a dos patriarcas da Bíblia.
Entre os livros e os filhos, a sua vida deslizaria nove lustros bem contados.
E Neto não foi apenas um dos arquétipos da nossa vida literária. O homem e o cidadão equivaleram ao artista. Não é aqui o lugar para falar das suas virtudes privadas, nem para exaltar-lhe o civismo. Sem embargo, senhores, a sociedade humana hoje aprecia mais o equilíbrio dos dons do que a raridade de certas prendas isoladas.
Um Krechstmer, debruçado sobre a existência de Coelho Neto, auscultando-lhe o predomínio do autismo sobre a tirania da realidade, diria que ele era um esquizóide. Outros afirmariam pretensiosamente que ele guardava a introversão ancestral. Eu prefiro ver nele um puro idealista, que deveria ter vivido numa época em que o Estado alimentasse os gênios, como Deus alimenta os pássaros para que cantem sem a miséria das contas a pagar.
Neto amou profundamente o Brasil. E, morto Bilac, tomou-lhe o lugar derelito à frente da Liga da Defesa Nacional, estimulando todas as energias ao serviço impessoal da Pátria, que o maravilhoso aedo de “O Caçador de Esmeraldas” queria colocada “acima da tabuleta dos partidos”.
Falando e escrevendo, compondo o Breviário Cívico, o boêmio da Abolição foi ungido Apóstolo do Brasil.
Talvez, por isso, não falta quem hoje o considere um dos precursores da corrente nacionalista e junte o seu nome com o de Bilac no altar das divindades autóctones, pouco faltando para atribuir-lhes a devoção a doutrinas sectárias.
Não conheço maior erro de diagnóstico na apreciação do homem e da obra. Coelho Neto foi, como escritor, essencialmente universalista. As paixões, que animaram os seres da sua ficção, no Oriente e no Ocidente, na sua época como no passado, nunca se coloriram com os matizes desta ou daquela bandeira, porque todas foram constitucionalmente humanas, das portas do paraíso terrestre até estes dias desventurados.
Sem dúvida, ele situou muitos dos seus dramas e desenvolveu a intriga dos seus romances na paisagem da nossa terra, de que foi um dos maiores aquarelistas. Não há negar que vestiu com os nossos trajos numerosas das suas personagens, algumas das quais modelou com carne e sangue brasileiros sobre o esqueleto da espécie vertebrada. Há nos seus livros vozes genuínas dos nossos sertões, aldeias e cidades. Até a meia língua do escravo ele a reproduziu na sua prosódia característica. Vultos da nossa história e figurantes da crônica contemporânea atravessam as suas páginas ou se eternizam pelo cinzel da sua vocação estatuária. Mas talvez nenhum escritor se tivesse deixado impregnar em igual medida pela influência alienígena, quer nos cenários, quer na mística dos sentimentos, quer na fotografia das almas. Creio até que Neto foi dos que concederam à inspiração pátria apenas a quota indispensável aos compromissos da origem.
Se nacionalismo, no conceito vigente e quiçá deturpado, é, no distrito literário como no político, a divinização da Pátria acima das outras nações, no fanatismo que esquece defeitos e exagera virtudes, Coelho Neto jamais foi, cidadão ou homem de letras, um nacionalista.
Não o foi como homem de letras, porque, numa temperatura em que tudo se tenta submeter ao imperativo do sangue e do solo, mesmo o idioma, ele jamais deixou de render a sua vassalagem à língua portuguesa, esmerando-se no cultivo das formas sintáticas e na preocupação vernácula, sem prejuízo da enxertia indispensável aqui, como em ultramar, dos termos peculiares a cada região ou insubstituíveis pelas exigências do uso. Nisso, como em quase tudo, não se distanciou de Bilac, o poeta que cantou a língua portuguesa no magistral soneto de Tarde. E Neto não só a exaltou em louvores filiais, senão que foi um devorador de clássicos. Fazia praça de ter enriquecido o seu vocabulário garimpando nos rios cristalinos de Camões, Bernardes e Vieira. Poderia ser uma vaidade de colecionador – armazenar palavras como quem guarda moedas ou selos. Nem isso. Em Neto era amor à língua. A sua paixão vernácula imprimia-lhe aos períodos cunhos arcaicos. Um dos críticos, para evidenciar esse erro, transcreve um exemplo flagrante: “Enfermara o piloto e, como a bordo outro não houvesse conhecedor daqueles mares arriscados, grande foi o terror na fusta.” E logo de indagar: “Pensa o leitor que esse trecho é de João de Barros? Não é, mas do Sr. Coelho Neto no Romanceiro.”
Se Neto fosse um nacionalista, que pensaríamos do chamado grupo da Anta? Esse, sim, preconizava uma gramática brasileira, com uma sintaxe própria. Como todas as modas, aquela fez escola e discípulos, resolvidos a quebrar as nossas ligações exteriores, impondo uma fala nossa, como uma pintura, uma arquitetura, uma poesia, um urbanismo – tudo mais perto do primitivismo do que da civilização ocidental.
Mas, se na concepção das suas obras e na expressão idiomática das suas ideias, Coelho Neto jamais se enfileirou entre os da revolução verde-amarela, também a sua projeção cívica não se ressentiu daquelas preocupações. Ao contrário, digo eu. Deflagrada a guerra europeia, formou pela palavra e pela pena, entre as legiões aliadófilas, chegando a pronunciar em francês um discurso sobre a Batalha de Yser.
Não, Neto estimou a sua Pátria no fundo do coração, honrou-a com a inteligência, dar-lhe-ia o sangue, mas não se alistou no sectarismo que leva à guerra entre as nações, criando os problemas da raça no domínio étnico, da religião no plano espiritual e da autarquia no conflito econômico.
Verdadeiramente, Neto era um humanista. Ao entrar no Colégio Jordão, já conhecia bem o latim. A História e os clássicos foram os fundamentos da sua atividade literária. Nunca reduziu os acontecimentos ao campo do seu país. Sempre os submeteu ao império das leis históricas.
Se não houve melhor brasileiro do que ele, também nunca se entibiou a sua devoção à humanidade, na essência da dignidade individual e coletiva.
O que se convencionou chamar nacionalismo no sentido agressivo, que engendra e endeusa a guerra pela rivalidade das pátrias e pelos delírios do imperialismo, nunca lhe mereceu uma linha sequer de aplauso na sua imensa e majestosa obra.
Neto foi – e o foi com sinceridade e esplendor – um patriota idealista e ardente. Com a paixão do seu país, não transigia com os pessimistas, que tudo lhe negam, mas não se deixou arrastar pelo que ele mesmo chamou a xenomania. Tratou de valorizar o homem e a terra. Impressionado com o desmoronamento da civilização em consequência da guerra universal, aterrado com a nossa displicência em matéria de aparelhamento militar, tornou-se o pregoeiro do serviço obrigatório, tratou de avivar as responsabilidades de cada cidadão, publicou o Breviário Cívico, contendo os mandamentos do catecismo patriótico. Nem podia circunscrever o seu horizonte o homem que fizera da Bíblia o seu livro predileto. Estou certo de que ele se alistaria, como eu e como todos nós, entre os que reagem à espoliação estrangeira, acastelada no império da finança cosmopolita, amenizando a força das nações jovens e reduzindo-as à condição semicolonial. Se um século atrás um grupo de patriotas conspirava em Vila Rica contra a mãe pátria, porque os dízimos empobreciam o Brasil, como não articular hoje a resistência de todos contra a soberania insidiosa que tudo nos vai absorvendo, impondo-nos nos pulsos algemas, que, por serem de ouro, não deixam de ser símbolos de dolorosa escravidão?
Outra vez, no epílogo de duas vidas bem vividas, Olavo Bilac e Coelho Neto associavam a lira do poeta e a eloquência do orador, entoando no meridiano da fama o mesmo epinício à terra, que, trinta anos antes, com os estômagos vazios, haviam cantado entre as Sarças de Fogo de um, e por Montes e Vales de outro.
Neo-romântico
Tendo escrito todos os gêneros e frequentado todas as escolas, que foi afinal esse panteísta literário? Aí, os críticos se encarniçaram. Estes, como os gramáticos, é que constituem o genus irritabile. Não permitiria o tempo um debate no conflito das opiniões. Mas tenho que a Academia não estará longe de aceitar que o realista de Tormenta, o orientalista de Baladilhas, o psicanalista de Inverno em Flor não era afinal senão o romântico inatual, a que se referiu o Sr. José Maria Belo ou, ainda melhor, o neo-romântico, como o classificou em admirável estudo inédito esse malogrado e brilhante Artur Mata, tão cedo e há tão pouco arrebatado às letras brasileiras.
Crepúsculo do coração
Afinal, o lar que ele edificara entre as paredes dos seus livros também começou a ser visitado pela morte. As roseiras do seu jardim receberam a poda das tesouras implacáveis. O coração de Neto tinha sensibilidades estranhas, e o sofrimento exercia sobre ele uma influência magnética.
Acutilado pelos golpes da ceifa, refugiou-se no trabalho, produzindo e escrevendo mais do que nunca. E um dia lá se foi a meeira de toda a vida, aquela que, como a Carolina, de Machado, também levou “o coração do companheiro”.
O filho – Mano – sucumbira na beleza atlética da mocidade.
É demais. Neto fora sempre um supersticioso. As forças, que entraram na composição do seu caráter, tinham sido as espirituais. Ele começou a desenvolver pelo estudo e a leitura as suas tendências naturais para o mistério. Nunca passara de um finalista. Não podia ver uma flor ou uma estrela sem procurar um destino. Era a antítese de Lawrence, para quem: “Não há fins. A vida e o amor são a vida e o amor. Um bouquet de violetas é um bouquet de violetas, e meter lá dentro uma ideia de finalidade é demolir tudo. Vivei e laissez faire.”
A dor abrira um novo caminho às suas pesquisas. Jamais tinha sido um católico, no sentido confissional da palavra, nem mesmo um “católico relaxado”, na feliz expressão de um oficial revolucionário, que traduzia nesse barbarismo o homem que crê nos dogmas, mas não pratica os mandamentos. O Deus, que adorava, era um Deus dele, um Deus pessoal e profano, que chamava “o Deus de todos nós, os artistas”.
Colhido pelo infortúnio, despertam as energias vulcânicas do sobrenatural, adormecidas no seu inconsciente, e ele se volta para o além, tacteando o segredo da vida e da morte. A metapsíquica empolga-o com as visões paranormais. Ei-lo, afinal, caminhando entre as sombras subjetivamente movediças dos seres amados e desaparecidos. Melancólico crepúsculo de coração em que o consolo das amarguras reside na perenidade das vidas desencarnadas e errantes, diáfanas aos olhos do corpo, mas presentes aos da alma, inspirando os nossos atos.
E assim, sonhando, amando e servindo, sucumbe numa tarde triste um dos seres que honrou a espécie humana e uma das maiores glórias do seu país. Lá se foi esperando, talvez, ser um dos movimentos imperceptíveis da grande vibração, contínua e eterna, que Richet ainda via nas ondas oceânicas produzidas pelos remos das galeras de Cleópatra.
O papel da Academia
Já vos agradeci, Senhores Acadêmicos, os votos que me destes. Não os explico nem os aplaudo. Há mercês, que a gente pede e alcança, sem nunca as justificar em exames da consciência.
Ainda agora, relanceando o olhar pela magnificência desta sala e ouvindo o eco da minha voz, o que admira é que seja eu quem fale e vós que me escuteis, como na frase célebre.
Habituado às disputas eleitorais, nunca me intimidaram os comícios e, tantas vezes tenho querido, quantas as urnas me têm enviado às casas da representação política. Outra, porém, é a forma de investidura vitalícia deste Senado da Inteligência. Só a ele se chega pelo sufrágio de censo alto. Aqui são poucos os que escolhem, simbolizando nos seus votos todas as fontes da soberania mental do país.
Não tem faltado a esta Casa nem a sátira nem a contestação da legitimidade dos seus diplomas. Verdade seja que não raro ou o facho incendiário das suas paredes é empunhado por muitos aos quais recusastes os vínculos desta consanguinidade espiritual ou, anos volvidos, encontrais aqui, de espadim e chapéu armado, os infiéis redimidos no Jordão dos vossos sufrágios retardados.
A mim, que venho das glórias e misérias do sufrágio universal, o que me seduz nas vossas eleições é que nelas não há a preocupação de zonas nos títulos do candidato. O Brasil, neste recinto, não tem bancadas. É uno e indivisível, até porque as manifestações intelectuais não se aferem pelas condições geográficas, não dependem da opulência ou da pobreza das regiões, não resultam da estatística demográfica. Despontam indiferentemente no Norte, no Centro ou no Sul, entre pobres ou ricos, entre muitos ou poucos. Podeis errar e errareis muitas vezes na escolha, mas jamais aqui prepondera a influência dos particularismos.
Não seria de bom gosto a um iniciado o louvor da Academia, mas tenho por certo que, hoje mais do que nunca, Ela vale menos pelo conteúdo pessoal do que pela posição finalística.
Quando tudo se organiza no mundo e ressurgem, ao lado do estado sindical, as ordens de todas as profissões, num certo ou errado medievalismo, esta Casa, bem ou mal constituída, representa um papel institucional nas letras brasileiras. Termine ou não o dicionário, pouco importa. O essencial é que ela exista e seja o sujeito ativo e passivo das nossas relações intelectuais com os outros povos.
Suprimi a Academia e encontra-la-eis em seu papel agora insubstituível para a comunhão desses quarenta milhões de criaturas já convalescentes nas enfermarias do vasto hospital e que querem cooperar para o engrandecimento próprio e da terra, dando à Pátria as dimensões da cultura individual ou das massas, no prestígio da soberania política.
De luta é o signo dos nossos tempos. Não apenas nos domínios da arte se processam os choques entre o espírito retrógrado e as ousadias renovadoras. Toda a vida humana e em todos os setores da sua atividade é o teatro desse dualismo mais violento do que Ahrimam e Ormuzd, da velha Pérsia sonhadora e legendária. Apenas na esfera celeste não se faz mister o choque para a produção da luz. “O Sol e a Lua – dizia Roldán – realizam sem atrito o poema dos dias e das noites.”
Cá embaixo – condição da vida ou castigo divino – nunca uma ideia triunfou sem batalha ou uma civilização conquistou o seu lugar ao sol sem pagar um pesado imposto de sangue e sofrimento.
O que se convencionou chamar espírito acadêmico – escreveu há pouco Jacques da Lecretelle, um dos mais novos e mais jovens imortais da França – não é senão a familiaridade com as obras belas e a preocupação aperfeiçoadora. Ora, sobre esses dois pilares repousa em verdade o anseio de todas as inteligências. Nenhum deles impede a marcha das vanguardas.
Da casa de Richelieu, os seus inimigos disseram que sobre a ponte, que leva do Louvre ao Instituto, não transitam nem veículos nem ideias.
Encontramo-nos aqui à beira de uma larga avenida. Não há sinaleiras fechadas às audácias criadoras. Todas passam junto de nós, inclusive o espírito transformador. Terra jovem não tem ideias velhas.
Estamos elaborando um mundo. Tudo aqui tem andaimes. A atmosfera está impregnada de caliça. Há operários por toda parte. Muros, chegados ao respaldo, foram postos abaixo, para serem recomeçados. Todos os materiais – étnicos, econômicos, espirituais e políticos – amontoam-se por toda parte. A vida americana tem um perfume de primavera, um ar de acampamento. Verdadeiramente ainda não começamos. Povos assim nunca podem ser rebeldes às novas categorias do espírito. Por isso, o figurino desta Casa jamais foi um obstáculo à marcha das novas ideias nem das novas formas literárias.
A quem vive do presente não interessa falar de passadismos ou futurismos. O esforço da atualidade consome todas as horas, consagrando as belezas pretéritas e adivinhando as formas vindouras.
A Poesia e a Arte não se eternizam em padrões imutáveis. Nem foi preciso pôr fogo a estes muros a fim de que a revolução subisse das ruas para os cérebros. A insurreição triunfante aqui e alhures recebeu-a a Academia com as portas abertas. Nem caberia o apelo aos códigos clássicos. Bastaria o sentido de uma realidade palpitante, que todos os dias defrontamos – a de que se está fabricando, aqui mesmo, nesta fornalha climatérica, um atestado de brasilidade, que não provém de exaltações jacobinas ou de xenofobias facciosas. Demonstramos que é possível, contra todos os vaticínios, edificar uma civilização nesta temperatura de febre. Circulem os tristes o olhar pelas ruas, nos dias caniculares, e verão um formigamento de gente laboriosa, entre a usina, o comércio, as escolas e os escritórios, produzindo, comprando, vendendo, estudando, escrevendo, falando, pensando com a lucidez, o rendimento e o esforço de habitantes das zonas temperadas.
Estamos praticando hoje aventuras de autodescobrimento, num esforço de nos compreendermos e completarmos.
Um século atrás, a personalidade jurídica internacional do Brasil poderia ter sido uma ficção. Hoje, afirmada a nossa capacidade de viver e desfeita a lenda de sermos um ajuntamento melancólico de enfermos, subjugados pela natureza apocalíptica, não temos por que temer o futuro. Acima das nossas deficiências inegáveis, pairam, com a melhor das seguranças, a consciência de sermos uma Nação e a certeza de que na crise universal todas as bilhas são mais ou menos de barro. Da nossa alma e do nosso destino, seria justo dizer como Michelet da energia céltica – resistiremos duzentos anos pelas armas e mil anos pela esperança.
À vossa companhia Machado de Assis deu o sentido eterno naquelas palavras do discurso inaugural, simples e claras como um versículo do Evangelho – “manter a unidade literária no seio da federação política”.
Jamais uma síntese terá abrangido melhor as latitudes de um grande papel.
Os vínculos da federação devem ser de seda para os estados, a fim de que não sintam as cadeias, mas devem ser aço para a União, simbolizando na dureza metálica o dever imperioso de legarmos aos vindouros a Pátria, que herdamos, com as fronteiras intactas.
Não é este o plenário para ajuizar o pleito, que corre em outro fórum, acerca da conveniência de volvermos ao sistema centralizador ou prosseguirmos no padrão pluritário.
Mas hoje não há mais torres de marfim. As rajadas da luta social e econômica forçam todos os julgamentos. Os cenáculos, como as pátrias, são cadeias de interdependências compulsórias. Nem a Academia se pode subtrair ao embate das lutas, que afligem o mundo e assolam o Brasil.
A verba testamentária do mestre obriga-o a velar pela unidade literária no seio da federação política.
Sou dos que não crêem na vantagem de um retrocesso aos modelos centralizadores. Se houve excesso nas franquias locais, não é pelo menos prudente cercear as autonomias nesta altura em que muitas das unidades já amadureceram para o self-government e outras adquiriram, como os filhos maiores, o direito à chave da porta da rua.
A Geografia e a História, a economia e o espírito de emulação criaram para a nossa Pátria um sistema planetário no campo da organização nacional, consagrado até na mística da bandeira, com as estrelas que brilham no céu azul. O regresso à nebulosa unitária seria um risco que só os ideólogos se animariam a enfrentar sem temor da cissiparidade.
Não me enfileiro entre os que anunciam os perigos da fragmentação brasileira. A verdade é que temos atravessado, unidos e crentes, as crises da Independência, da Abolição e das transformações de regime. Nenhum sintoma autoriza os prognósticos sombrios. Ao contrário, as nossas lutas como que reforçam os sentimentos de fraternidade.
Do ângulo literário, considero até a poesia regional um índice de vitalidade, trazendo para o estuário brasileiro todos os afluentes do sentimento coletivo, com as suas lendas, as suas alegorias, as suas peculiaridades. A imagem da Pátria não se desfigura porque as linhas do seu perfil se reflitiam no cristal de vinte espelhos conjugados. Os lieder germânicos não dificultaram a obra de Bismarck. E, na própria França, Lamartine saudava em Paris a chegada de Mistral, que encastoara a sua poesia no dialeto da Provença. Para ser grande e una, não há de a lira do Brasil reduzir à monotonia as cordas que há tantos anos, cada uma com um som diferente, contribuem para a majestade das suas harmonias.
Livre-me Deus do pecado de querer contaminar pelo veneno da política os santuários da Arte. Mas a verdade é que já não há santuários fechados à invasão da realidade humana. E nada se tem deixado mais avassalar pela política do que a própria literatura. Aliás, os sacerdotes do culto exclusivista sempre se negaram a compreender que, desde o fundo obscuro dos tempos, já nas epopeias de Homero ressoavam os hinos de guerra. Se descontarmos as escolas do subjetivismo, jamais a poesia ou a prosa deixariam de refletir as lutas e as aspirações do tempo no alto e puro sentido da política.
Hoje, mais do que nunca, os artistas estão penetrados de problemas sociais, inscrevendo-se no debate para todas as soluções. Das nuvens arcádicas da arte pela arte, baixamos à terra desolada e ao homem sofredor, com as suas taras, misérias e grandezas.
A arte e a democracia
Por isso mesmo, são intoleráveis os catecismos escravagistas quer se amparem à direita ou à esquerda, quando suprimam a liberdade de opinião sob a ditadura do partido ou da classe.
Nunca os regimes autoritários foram companheiros do esplendor mental. Chame-se como se chamar a fórmula excepcional o seu império elimina as franquias da crítica, nivela todas as cabeças e impõe às prerrogativas do espírito os limites da intolerância.
Decerto a sociedade atual padece os males da desordem e por vezes beira os abismos da anarquia. Mas não há de ser ao preço da servidão que se hão de curar os desvarios. A medicina do espírito ainda está no espírito, restaurando-se as noções do verdadeiro humanismo, porque em verdade os preceitos antidemocráticos, tão encarecidos hoje, valem mais pelo que negam do que pelo que afirmam.
A formação moral do Brasil, as fatalidades da sua geografia física, a experiência dos seus cem anos de independência, os imperativos do seu sentimento cristão devem tranquilizar as nossas noites na segurança de que nenhuma das duas calamidades desabará sobre o país. Embora estejamos apenas na aurora do que havemos de ser, já adquirimos a ossatura de um caráter, podendo realizar o sonho de Renan, consultando-nos espiritualmente por um plebiscito diário.
Se o cérebro do Brasil sofre as ardentias do Equador e os seus pés assentam nas primeiras geadas austrais, estabeleceu-se por isso no seu organismo ciclópico um equilíbrio de temperaturas, que explica afinal o seu instinto de conservação coletiva.
Não é dado a quem quer que seja avançar juízos sobre o dia de amanhã quanto à estrutura social das nações, tanto cada uma delas é função das outras e das suas peculiaridades, num sistema circulatório superior ao do próprio organismo. Mas, dada a quota de reação própria a cada aglomerado humano, à raiz das suas tendências e idiossincrasia, fácil é afirmar sem medo que a sociedade brasileira não alterará o seu teor cristão e humanista, nem perderá o sentido das liberdades superiores, que constituem o leitmotiv de todas suas lutas.
Quis também o fundador desta Casa que ela fosse o refúgio dos espíritos literários, estendendo os olhos para todos os lados e vendo “claro e quieto”.
Assim poderia ser em 1897, nos dourados tempos vitorianos, quando ainda subsistia a delícia do mundo clássico. Não assim hoje. As casas já não têm portas às doutrinas e aos acontecimentos, que entram nos lares pelo éter, enquanto os próprios oceanos perdem o prestígio divisório entre os continentes, aproximados pela magia dos motores aéreos. Daqui, como dos templos da ciência, como da torre das igrejas ou da seteira dos conventos, o panorama se desdobra, não desgraçadamente “claro e quieto”, mas obscuro e tumultuário. Não há como cerrar as pálpebras assustadas. Teremos de tomar – e já o tendes feito – sem a cor da facção ou da seita, mas humana e brasileiramente, a nossa parte na batalha, em que se decidem destinos da civilização e da cultura, o patrimônio espiritual da espécie e as conquistas imemoriais da liberdade e da justiça.
Somos a geração que assistiu à queda de um mundo e ao despontar de outro. Para nós, viver é um contínuo esforço de adaptação e sofrimento. Spengler dizia bem: “É uma grande época a que vivemos, grande, isto é, terrível e desgraçada. Grandeza e felicidade são incompatíveis e nem nos sobra o direito de escolha. Feliz não será ninguém entre os vivos de hoje. Quem deseja o bem-estar não é digno de viver.”
Profunda e dolorosa sentença! Soa aos nossos ouvidos com um lasciate ogni speranza de todas as alegrias medíocres e prazeres fugazes. É o clima de heróis, de estoicos e de santos.
Crises como esta só se enfrentam com decisões e firmeza. Vamos direto ao perigo para evitá-lo. Não é hora de imitar a personagem mítica de Gribouille, que, de medo de se molhar, se atirou às ondas.
E, se nem a violência nem o intelectualismo conseguiram aplacar as tempestades sociais, ainda nos sobra aquela ordre du coeur, de que falava Pascal, buscando a salvação nas reservas do sentimento.
Uma sombra entre dois clarões
Aqui me tendes convosco, Senhores da Academia Brasileira. Sou o monge mais pobre da companhia, mas serei fiel aos votos da ordem, na ânsia de aperfeiçoar-me em vosso esplêndido convívio.
Agora, toca a sentar-me na Cadeira que me destes. Nela brilha um nome – o de Álvares de Azevedo, “do deserto o poento caminheiro”. A Lira dos Vinte Anos tem as mesmas harmonias do seu gênio. Coelho Neto, que o elegeu por patrono, conservou aceso, durante quase meio século, o lume da lareira romântica, impregnando a atmosfera espiritual do Brasil de um perfume de beleza e de sonho. Álvares de Azevedo e Coelho Neto! Repetindo-lhes os nomes cresce em mim a noção dos deveres que acompanham a herança esmagadora. Tenho de aceitá-la, porque assim o pedi e assim o quisestes. Resta-me o recurso ao benefício de inventário. Nem eu conseguiria jamais saldar-lhe os compromissos.
Fico sendo aqui, por uma confirmação do destino, uma sombra entre dois clarões.